RESUMO: O presente estudo aborda a prescrição das infrações à ordem econômica configuradas pelas práticas cartelizantes frente à Lei 9.873/1999 e à jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Verifica-se sua adequação lógica e consequentes modulações. Para tanto, utiliza-se recursos da metodologia constructivista lógico-semântica como a semiótica, e o ramo específico da Teoria Geral dos Signos, e a Teoria das Classes. A partir do prévio estabelecimento do regime jurídico sob o qual se deve analisar a questão, estabelecer-se-á uma relação entre a semiótica e a tipicidade para promover o cotejo entre a estrutura elementar das infrações e dos crimes, de modo a estabelecer os casos de sobreposição normativa.
Palavras-chave: Direito da Concorrência. Direito Administrativo Sancionador. Cartel. Teoria per se. Prescrição.
ABSTRACT: This study shall address the statute of limitations applicable to violations to the economic order configured by cartel practices vis-à-vis the provisions of Law 9,873/1999, in face of the Administrative Council for Economic Defense – CADE`s jurisprudence. It reviews its logical adequacy and consequent modulations. For that purpose, it uses tools of logical-semantic constructivist methodology such as semiotics, notably the Theory of Signs, and the Theory of Classes. As a result of the previous establishment of the legal regime under which the problem shall be analyzed, a connection between semiotics and “vagueness doctrine” (under the specific perspective of Brazilian criminal law) will be established to promote the comparison between the elementary structure of violations and crimes, in order to establish the cases of normative overlap.
Keywords: Competition Law. Administrative Sanctioning Law. Cartels. Statute of limitations.
A expressão cartel é bem compreendida, de modo geral, como um conluio indevido, podendo a partir disto navegar entre diversas especificidades ou ambientes. Mesmo em vocabulário técnico, destaque-se o ambiente das ciências econômicas e das ciências jurídicas, há um amplo conjunto de significações que podem ser adotadas, referindo-se a uma série de condutas possíveis, cada qual com suas relevantes peculiaridades e distinções. É notável sua pluriformidade e, por conseguinte, certa perplexidade em sua compreensão.
Sob a égide das ciências econômicas, há muito se empenha esforços para teórica e tecnicamente descrever sua estrutura e propriedades, de modo a produzir para o termo cartel uma significação rigorosa e aprimorada, considerando características intrínsecas e extrínsecas de sua configuração. A partir da epistemologia econômica, o cartel foi qualificado como, senão a mais grave das infrações à ordem econômica, uma delas.
Como consequência, foram costuradas diversas normas jurídicas voltadas a tal comportamento, especialmente normas de cunho proibitivo, adotando como meio de coibir tais comportamentos a atividade repressiva. No Brasil, acompanhado por diversos outros países, a conduta, por sua gravidade, é objeto de ambos os subsistemas da atividade repressiva do Poder Público, a tutela administrativa e criminal, com mais de uma norma tipificante neste último, a depender do seu contexto em concreto.
Em que pese a persecução em ambas as esferas nos pareça legítima, não se pode negar que haja sobreposição e/ou conflito de significações quanto à conduta, causando complexos desdobramentos sobre o ordenamento jurídico. Como se verá, há classificações extremamente úteis à ciência jurídica da conduta de cartel, sendo impositivo, contudo, que as acompanhem precisas significações, buscando evitar confusões conceituais que, em maior ou medida, levarão a repudiáveis distorções lógicas na aplicação do Direito.
Neste ambiente, toma peculiar posição a determinação do prazo prescricional de tais condutas no âmbito administrativo. Conforme adiante, a Lei 9.873/1999, em seu art. 1º, §2º (reproduzido no art. 46, §4º Lei 12.529/2011), que normatiza a prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, limita em cinco anos o prazo regular para prescrição, abrindo exceção aos fatos objeto da ação punitiva que também constituírem crime, casos em que a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na correspondente lei penal, cabendo ler a expressão “constituir crime” em concreto ou em abstrato.
Principalmente na leitura em abstrato, atualmente adotada pelo CADE, o entendimento acerca do que pode ou não “constituir crime” fora contaminado pela indistinção quanto aos plurais significados da expressão “cartel”, às diversas condutas possivelmente abarcadas por tal rótulo e às condutas típicas encontradas na Lei 8.137/1990 (art. 4º) e no Código Penal (art. 337, com o advento da Lei 14.133/2021), mergulhando a questão em severa insegurança jurídica.
Neste trabalho, buscar-se-á oferecer balizas ao esclarecimento das celeumas que orbitam a matéria, submetendo tal problemática a uma rigorosa análise de compatibilidade lógica. Para tanto, toma lugar o Constructivismo Lógico-semântico talhado por Lourival Vilanova, que oferece um robusto arcabouço ferramental a viabilizar tal objetivo.
Em destaque, serão ferramentas úteis a desenredar os conceitos atinentes à matéria a Semiótica, em especial a Teoria Geral dos Signos – auxiliando-nos a estabelecer os limites dos campos de significações relacionados “aos cartéis” –, e a Teoria das Classes – de modo a traçar distinções e similitudes entre tais significações para, então, estabelecer a adequação de sua operação.
Afinal, buscar-se-á responder, identificando em que medida se diferenciam as duas propostas correntes de interpretação normativa concreta versus em abstrato: (i) qual seria o prazo prescricional adequado à interpretação em concreto da norma; e (ii) quais seriam os prazos prescricionais adequados à intepretação em abstrato da norma.
Entre os possíveis entendimentos da semiótica, cumpre destacar sua concepção sob o prisma peirciano, conforme desenvolvido por Santaella[1], na qual a semiótica seria, sobretudo, “uma teoria do pensamento como signo e uma teoria do conhecimento que só pode se dar em signos”, atraindo protagonismo ao processo de significação, metodologia e adequação para o conhecimento científico.
Neste estudo, toma especial importância o ramo da Teoria Geral dos Signos, entendendo-os como um devir, um meio sem começo nem fim, qualquer coisa que represente uma outra que será o objeto do signo, de modo a produzir efeito interpretativo[2]. Neste contexto, esse efeito interpretativo depende do modo como o signo representará seu objeto, emergindo potenciais problemas da não rara situação em que um mesmo signo represente objetos distintos – que, conforme antecipado, é o caso do “cartel”.
Toda epistemologia depende de um rigoroso processo de significação para que haja fluidez e precisão na linguagem científica, algo especialmente relevante no ambiente das ciências jurídicas, que têm as normas, construídas por linguagem, como seu objeto de estudo.
Este capítulo representa, neste esteio, o esforço de estabelecer conceitos melhor delimitados acerca das possíveis significações de cartel, distanciando tal termo de um conjunto vago de diversas condutas possíveis, para que, então, se possa compreender suas modulações frente ao direito posto.
Sob a ótica econômica, que cumpre o fim de integração semântica da perspectiva jurídica, e somente este, a base da conduta se perfaz no concerto entre agentes econômicos para, atuando em conjunto, abusar de seu poder econômico combinado, arbitrando preços acima dos padrões competitivos, reduzindo quantidades ou diminuindo a qualidade, quantidade ou variedade de produtos ou serviços, visando amplificar seus lucros de forma artificial[3]. Isto é, na hipótese de um produtor não deter sozinho poder de mercado suficiente para dele abusar, busca combinar sua participação com a de outros produtores, equiparando-se o conclave a um agente monopolista.
Em outras palavras, poder econômico pode ser sintetizado como a capacidade de um ou mais agentes alterarem artificialmente as condições de mercado, isto é, arbitrariamente agirem em desacordo com as leis racionais de mercado para majorarem seus lucros, sendo o cartel um meio de viabilizar seu abuso.
A conduta representa, em termos de efeitos, graves impactos sobre o bem-estar[4], representados por três tipos de ineficiências econômicas: a ineficiência alocativa, produtiva e dinâmica. A primeira, relacionada à alocação ineficiente dos recursos sociais pelo aumento de preços e restrição de oferta (fazendo com que a parte do que seria excedente não seja apropriada nem pelo consumidor nem pelo produtor, representando destruição de riqueza social, ou “peso morto”). A segunda, relacionada ao encarecimento dos custos dos agentes econômicos e, a terceira, ao desincentivo à inovação.
É de se notar, das ineficiências econômicas trazidas à baila, que tais efeitos são, apesar de graves, deveras abstratos, sendo dificultoso o processo de estimação da intensidade e extensão, algo que impactou a forma com que lidamos com a repressão de tais condutas. Sem prejuízo de tal fato, parece consenso em matéria econômica que dificilmente um cartel será produtor de efeitos líquidos positivos, isto quando tiverem possibilidade de causar efeitos.
Isto é, em termos abstratos, segundo parte da epistemologia econômica, um acordo entre produtores que conjuntamente não detivessem poder econômico seria inócuo, haja vista que sua atuação uniforme não teria o condão de enfrentar as leis de mercado e, por conseguinte, manipular suas condições. É a anedota que Martinez[5] chama de “o dilema dos padeiros”, na qual dois padeiros acordam em fixar o preço do pão francês em R$ 5,00 em um bairro com centenas de padarias, em que o preço desse mesmo pão varia entre R$ 0,15 e R$ 0,20. Formalmente, o ajuste entre concorrentes com objetivos espúrios ocorreu, mas em momento algum tal prática ofereceu qualquer perigo à livre concorrência, haja vista que “o único efeito esperado desse acordo é a perda de clientela por parte dos dois padeiros”.
Com efeito, as propriedades até aqui coligidas acerca dos contornos econômicos do cartel trazem uma série de celeumas quando de sua intelecção pelo campo jurídico. Em termos de semiótica, consoante supra, não há consenso, seja na esfera administrativa, seja na esfera penal, acerca da(s) silhueta(s) conceitual(is) da(s) conduta(s) típica(s) de cartel.
Neste estudo, reconhece-se como mais adequada a referência plural a cartéis, consubstanciando condutas distintas e com elementos distintos. Conforme brilhantemente minudenciado por Martinez, pode-se estabelecer uma série de recortes metodológicos e segmentar os cartéis em tipos[6], segundo diferentes critérios. Trar-se-á ao presente contexto tais tipos e critérios de recorte para, adiante e segundo a Teoria das Classes, estabelecer as possíveis relações de distinção e similitude – que é o que oferecerá balizas lógicas para verificar adequação de certos desdobramentos jurídicos.
Alerta-se neste ínterim, contudo, que não se utilizará a expressão tipo, por sua potencial confusão com a expressão igualmente utilizada em referência ao princípio da tipicidade – algo que tomará relevante espaço neste trabalho, principalmente como referência central para definição semântica da conduta passível de repressão. Destarte, chamar-se-á a divisão abstrata das condutas chamadas de cartéis em classes, sem alteração da semântica adotada na obra original, utilizando os tipos de cartéis para referências aos diferentes delitos de cartéis positivados e suas propriedades.
No capítulo anterior, viu-se o que a teoria econômica estabelece de comum a todas as classes de cartéis adiante esmiuçadas. Passando-se às propriedades distintas, a primeira diferenciação diz respeito à variável comercialmente sensível objeto da conduta, distinguindo os cartéis entre os gêneros cartéis de preço/quantidades[7] e cartéis de alocação de mercado, estes últimos englobando as divisões geográfica e de clientes como espécies. Conforme alerta a autora, cartéis em licitações também podem ser considerados espécie do gênero cartéis de alocação de mercado, porém com propriedades específicas que os diferenciam das outras duas.
Por sua importância adiante, cumpre desde já registrar tais peculiaridades. Os cartéis em licitações são aqueles que implicam fraude ao caráter competitivo do certame, geralmente refletindo objetivo de sobrepreço nos contratos com a Administração Pública[8]. Especialmente nestes casos, há uma multiplicidade de situações concretas que podem alterar substancialmente os elementos da conduta, de modo que esta classe de cartéis pode ensejar subsunção a mais de uma norma no ordenamento jurídico – propriedade relevante que será em seu tempo abordada.
Outra usual distinção, e a mais relevante para o presente estudo, se refere à diferenciação entre cartéis clássicos e cartéis difusos, classificação esta que também causa confusão, na medida em que são utilizados dois critérios distintos para separá-los, com especial destaque ao critério adotado no Brasil, na esfera administrativa.
A primeira distinção entre cartéis clássicos e difusos é a defendida pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE e pela International Competition Network – ICN, na qual o critério distintivo é a existência de um acordo expresso acerca de variáveis comercialmente sensíveis (cartéis clássicos) ou a mera troca de informações comercialmente sensíveis (cartéis difusos).
A segunda distinção, adotada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, arvora seu critério na institucionalidade do acordo[9]. Os cartéis clássicos, segundo a jurisprudência do Conselho, seriam aqueles em que há mecanismos de coordenação institucionalizados, consubstanciados em reunião periódicas, manuais de operação, princípios de comportamento, mecanismos de fiscalização e de retaliação em caso de descumprimento, entre outros.
Neste sentido, para o CADE, enquanto os cartéis clássicos não decorrem de uma situação eventual de coordenação, os cartéis difusos, apesar de manterem os objetivos espúrios dos cartéis clássicos, possuem um caráter eventual e não institucionalizado, sem a estruturação de mecanismos que visem a tornar o ajuste permanente ou perene. Na jurisprudência do Conselho se nota, entretanto, alguma vagueza quanto aos limites de tal definição, havendo diferentes referências ao que determinaria um cartel difuso, ou soft cartel[10]-[11].
Outras formas de classificação dos cartéis, estas de compreensão mais acessível, são quanto à sua explicitude (cartéis explícitos ou tácitos); quanto à territorialidade (cartéis nacionais ou internacionais); quanto à relação dos agentes econômicos no mercado interno (cartéis de compra ou de venda); e quanto à relação dos agentes econômicos frente ao mercado externo (cartéis de importação ou de exportação).
Como se nota, essas distinções possuem finalidade descritiva arvorada na materialidade empírica da conduta, isto é, utiliza-se as propriedades de cada uma das condutas adotadas para, segundo seus contornos concretos, classificá-las. Adicione-se a tal proposta uma distinção de cunho prescritivo, utilizando por critério a subsunção a normas jurídicas administrativas ou criminais. Em outras palavras, distinguindo o cartel enquanto infração daquele tido como crime, porquanto no Brasil, conforme se passa a demonstrar, não necessariamente abarcarão condutas com elementos equivalentes.
III. A repressão aos cartéis no ordenamento jurídico brasileiro
Para o exercício que se propõe, é necessário que se estabeleça brevemente as consequências da natureza da atividade repressiva do Poder Público em termos de regime jurídico, o que, por sua vez, exige a compreensão do bem jurídico adotado pela ordem econômica constitucional.
Conforme explica a doutrina[12], a livre iniciativa é conceito fundamental da Ordem Econômica Constitucional brasileira, figurando como bem jurídico último de tutela do Estado, consoante ao art. 170 da Constituição da República. Conforme Franceschini[13], o ordenamento brasileiro adotou, mediante interpretação coerente à episteme econômica, a livre concorrência como veículo de tutela da livre-iniciativa, aqui entendida como liberdade de agir em ambos os sentidos econômico e político. A livre concorrência seria, neste contexto, bem jurídico meio de tutela do bem jurídico fim livre-iniciativa.
Ana Frazão[14] amplia tal escopo, estendendo à livre concorrência a função de equalizar falhas de mercado e suas consequências não apenas econômicas, mas alinhadas às preocupações políticas e sociais ligadas ao liberalismo enquanto filosofia política. Disto resulta que a livre concorrência não representa apenas veículo à proteção da livre-iniciativa enquanto fundamento da ordem econômica, mas sim verdadeira simbiose com o Estado de Direito Democrático[15], não encontrando no art. 170 da CF princípios contrastantes, promovendo sua leitura enquanto unidade[16]. Sem desprezo à existência de relevantes divergências[17], adota-se o entendimento de Frazão, que nos parece bem alinhado e sólido em ambos os planos jurídico e econômico[18].
Nesta leitura, a Constituição protege a liberdade ou autonomia decisória[19], em matéria econômica, frente a uma dupla vulnerabilidade[20], que aqui não se enxerga como contradição[21]: uma que reflete o disposto no art. 173, §4º[22], da Constituição Federal sob o prisma do abuso de poder econômico (tutela da livre concorrência frente ao poderio concentrado de entes privados, decorrente das ditas falhas de mercado) e outra, no caput do art. 170 da Carta[23], ou sob o prisma do arbítrio, consoante os direitos fundamentais estampados no art. 5º da Constituição, que reflete o próprio Estado de Direito Democrático, sob o prisma do intervencionismo (tutela da livre concorrência frente à ingerência indevida do Poder Público).
A leitura proposta do ordenamento econômico constitucional brasileiro implica a natureza repressiva de sua exegese, contrastando a leitura gerencial, trazendo consigo um necessário arcabouço principiológico para que sua execução encontre conformidade com o Estado de Direito Democrático.
Pela maturidade das ciências jurídicas criminais, não se verificam intensos debates acerca da mera atração dos princípios, direitos e garantias fundamentais dos acusados, que sofrerão o peso da persecução estatal sob mais lapidada segurança jurídica. O mesmo não ocorre no âmbito administrativo, em que seguem ocorrendo intensas disputas acerca da incidência de princípios sobre o regime jurídico administrativo sancionador. Destaca-se neste contexto Ferreira[24], Osório[25], Palma[26] e Voronoff[27], acolhendo em maior ou menor medida Nieto[28].
Por tal razão, o Direito da Concorrência, cujo pilar é a Lei nº 12.529/2011, é entendido por parte da doutrina como integrante do direito penal-econômico, interpretação sustentada em sua história e características endógenas[29] e com objetivo de afastar flexibilizações na proteção de direitos e garantias fundamentais, tal como da seara criminal[30].
Em que pese comumente associados ao Direito Penal, os direitos e garantias fundamentais que orbitam o regime são de extração constitucional, de modo que os princípios norteadores de tal atividade são, por imposição do Estado de Direito Democrático, atraídos por sua natureza repressiva[31], não pelo diploma legal no qual o delito esteja positivado. Não por outra razão, mesmo a doutrina que acolhe distinção substancial entre o direito criminal e o direito administrativo sancionador não enxerga distinção ontológica entre os delitos e sanções contempladas por cada regime, que, em essência[32], são idênticos, reconduzindo-os a um núcleo central punitivo que tem por preocupação coibir a arbitrariedade[33]-[34].
Portanto, entende-se que reconhecer a unidade do ius puniendi enquanto origem da atividade estatal não implica reconhecer identidade plena entre as esferas, mas sim a existência de propriedades comuns que permitem uma observação aproximada de determinados fenômenos e o uso, observada a necessária adequação, de determinadas ferramentas teóricas. Mesmo Costa[35], que rejeita a teoria da unidade do jus punitivo, reconhece serem os resultados adotados semelhantes aos dessa teoria, porém com supedâneo mais sólido na distinção, a cada campo, com identidades próprias.
Seja sob o fundamento da unidade do ius puniendi, seja sob fundamento constitucional autônomo, vem se formando um relativo consenso em torno da premissa central de que a natureza repressiva da atividade estatal, ao invadir aflitivamente a esfera de direito fundamentais dos particulares como resposta a atos ilícitos, demanda um regime jurídico rigoroso no estabelecimento da causalidade jurídica.
Na doutrina, ainda que eventualmente se filiem a doutrinas sensivelmente distintas, encontram território comum neste aspecto, Costa, conforme supra, Ataliba[36], Ferreira[37], Nieto[38], Osório[39] entre outros. Na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal também vem solidificando a positivação de tal premissa, como na Reclamação 41.557[40], e no Mandado de Segurança (MS) 32.201[41], reconhecendo tanto a autonomia científica do direito administrativo, quanto os aspectos basilares de seus princípios, com reflexo nas decisões proferidas no MS 35.536 e MS 35.294.
Entende-se, pois, que direitos e garantias fundamentais, no ambiente repressivo, devem se sobrepor a primados de eficiência estatal, sem que caiba flexibilização do processo de estabelecimento de causalidade jurídica, conforme a doutrina majoritária supra. É por isto que é de central importância para a compreensão da matéria estabelecer que o regime jurídico na esfera do CADE atrai para si em igual intensidade e extensão os princípios jurídicos comumente associados à esfera criminal que sejam calcados na proteção, já que, conforme elucidado pelo Min. Roberto Barroso, são de extração constitucional.
Isto permite que tracemos certo paralelismo entre os princípios incidentes, evitando que eventuais distorções sejam equivocadamente atribuídas a uma legítima distinção substancial dos sistemas, especialmente no que tange à interpretação estrita da norma e ao princípio da tipicidade, sem que haja distinção de sua significação no campo administrativo sancionador e criminal.
Conforme se verá, a atividade hermenêutica do CADE modula a tipicidade das infrações de cartel, dando ao núcleo do tipo infracional elementos e contornos específicos, alterando inclusive a leitura constitucional do tema.
A tutela criminal dos cartéis no Brasil resvala em diversos tipos normativos. Conforme elucida Martinez, podem ser encontrados dispositivos diretamente aplicáveis nas Leis 8.137/1990 (art. 4º) e Lei 8.666/1993 (arts. 90, 95 e 96). Com o advento da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), os referidos dispositivos foram transpostos para o Código Penal nos arts. 337-F, 337-K e 337-L, embora o primeiro com redação sutilmente distinta, sem alteração substancial do tipo delitivo.
Os cartéis podem ser subsumidos a ambos os incisos I e II do art. 4º da Lei 8.137/1990. O inciso I abarca não apenas os cartéis, mas qualquer ajuste entre empresas para abusar de poder econômico, independentemente de estarem horizontalmente relacionadas ou não – aqui cabem ambos os cartéis clássicos e difusos, classificados acima, em que pese a primeira classe melhor se enquadre no inciso II. Refere-se a um crime de resultado/dano[42], de modo que a configuração de ilicitude advém da consumação de seus efeitos, isto é, o abuso de poder de mercado mediante ajuste, consoante interpretação restritiva da norma[43].
O inciso II, por sua vez, se refere apenas aos cartéis clássicos, em definição mais alinhada à da OCDE, exigindo um acordo, convênio, ajuste ou aliança entre concorrentes, escrito ou verbal, expressões com sentido específico. Neste caso, ter-se-ia um crime de perigo concreto[44], que não exige a produção de efeitos, mas também não se confunde com o delito formal. Neste sentido, acolhe-se que a existência de poder de mercado por parte dos ofertantes, para subsunção às alíneas a e b do inciso II, é requisito imprescindível à observância do princípio da insignificância ou bagatela.
Rememorando a classificação anteposta, os cartéis difusos possuem peculiar distinção no caso da esfera criminal e administrativa. Conforme se verá, a mera troca de informações comercialmente sensíveis entre concorrentes pode configurar ilicitude na esfera administrativa independentemente de sua possibilidade de efeitos, enquanto na esfera penal isso não ocorre – para os cartéis difusos, deverá haver dano, conquanto não haja acordo, ajuste, aliança ou convênio – tornando-os clássicos, casos em que se exigirá ao menos a possibilidade, isto é, o poder de mercado.
A legislação referente às licitações, por sua vez, possuía três tipos delitivos nos quais cabem as práticas cartelizantes. Na Lei 8.666/1993 tratava-se dos arts. 90, 95 e 96, atualmente no Código Penal, nos arts. 337-F, 337-K e 337-L. Tratam eles das possíveis fraudes a licitações públicas, porém cada um com suas modulações.
O art. 337-F traz um crime material, de resultado e com dolo específico[45], em que o bem jurídico imediato é a concorrência plena do certame, enquadrando as condutas que, sem prejuízo da fraude, não venham a causar efetivamente prejuízos ao erário. O art. 337-K, por sua vez, prevê um crime formal, que se configura mediante a busca por afastar licitante. O art. 337-L, por fim, traz um crime material e de resultado, porém sem previsão de dolo específico[46].
Cumpre breve apontamento, por derradeiro, o conflito aparente de normas, mormente por sua potencial relevância na seara da prescrição. Ainda nos esclarecimentos de Martinez (idem, p. 195), disputa a doutrina acerca dos conflitos entre os dispositivos da 8.137/1990 e dos dispositivos atualmente constantes do Código Penal. De um lado, há os que enxergam bens jurídicos distintos tutelados por cada lei, havendo concurso formal, sendo, portanto, crimes autônomos. De outro lado, há os que sustentam conflito aparente de normas.
Neste último caso, haveria sustentação de aplicação do princípio da especialidade, entendendo a Lei 8.137/1990 como geral e a antiga 8.666/1993 como especial. Independentemente do rigor de tal leitura, atualmente os dispositivos estão situados no Código Penal, o que, por tal visão, poderia pressupor a inversão da incidência do referido princípio, tendo o Código Penal caráter geral frente à Lei 8.137/1990.
Contudo, não se acolhe aqui a incidência do princípio da especialidade, mas sim o da consunção, associando, no caso dos dispositivos referentes aos cartéis em licitações, a conduta como meio. Neste caso, há de se ressaltar, a incidência do princípio da consunção pode depender do contexto do caso concreto, mediante, por exemplo, a demonstração de que o cartel de fato constituiu meio de atingir o dolo específico consubstanciado no art. 337-F, ou, pelo contrário, que o conluio extrapolava a finalidade de fraudar licitações.
Conforme anotam Franceschini e Bagnoli[47], o artigo 36 da Lei 12.529/2011 é estruturado, no caput, sobre a possibilidade de produção dos efeitos enumerados em seus incisos. Os autores chamam de infrações-fim[48], os objetos ou efeitos que oferecem densidade à norma consubstanciada no caput, enquanto o parágrafo 3º e respectivos incisos trazem as condutas empíricas. Conforme ensinam os doutrinadores, as condutas cartelizantes estão tipificadas no §3º, I e, e de influência à uniformização no inc. II, do artigo 36.
A partir da estrutura exposta, o preenchimento do enunciado do caput não se dá ato contínuo à subsunção do enunciado dos incisos I e II do §3º. As condutas típicas descritas no inciso só provocam subsunção ao caput à medida que também se subsumirem à possibilidade dos efeitos dispostos nos seus incisos. Trata-se de subsunções sucessivas, cada qual com seus elementos, até a configuração de ilicitude, que se verifica já no perigo concreto de efeitos (considerando o texto que reprova já a possibilidade de efeitos)[49] – podendo ter sua relevância na dosimetria da sanção ou no ensejo de reparação do dano.
A despeito da respeitável doutrina, a atividade hermenêutica do CADE vem oferecendo diferentes balizas à composição do tipo infracional. Conforme salienta Schuartz, ainda nas palavras de Martinez, a redação da lei permite a leitura dos incisos como ‘propósito objetivamente visado’, priorizando um caráter intencional da busca por tais efeitos, leitura que a autora entende infeliz, conjugando-a com a anedota dos padeiros.
Não obstante, o CADE vem adotando a responsabilização objetiva, supostamente sem qualquer lastro na intenção dos agentes econômicos, em cotejo com a chamada teoria da infração “per se”. Por mais que seja notável certa confusão por parte da autoridade quanto a este ponto[50], a teoria atualmente adotada pelo CADE contempla uma presunção iuris et de iure, absoluta, de ilegalidade[51] da conduta cartelizante. Neste esteio, os cartéis deixam de representar um meio ao abuso de poder econômico e passam a conter em si antijuridicidade, afastando da autoridade a necessidade de apurar a existência de poder de mercado dos agentes cartelizantes.
Isto é, mesmo que se apresente prova em contrário[52] quanto à possibilidade de produção de efeitos ou favorável à existência de efeitos líquidos positivos, a presunção de ilicitude da existência do ajuste subsiste. O CADE reconhece o alcance de tais premissas analíticas[53], que acabam por equiparar os cartéis a delitos formais, conforme já abordamos em outra oportunidade[54].
Delitos materiais e formais seriam delitos que possuem necessidade de resultado naturalístico, sendo o delito material com resultado naturalístico produzido de forma externa ao tipo, colhido do plano fenomênico, e o delito formal aquele que possui resultado naturalístico internalizado na descrição da conduta típica, não sendo necessária sua verificação no plano fenomênico para o desvalor jurídico. Já os delitos de mera conduta são aqueles não possuem a descrição de um resultado naturalístico externo à própria materialidade da conduta descrita, nem externo, nem interno ao tipo.
Disto se afirma haver incompatibilidade com a classificação formal do cartel frente a um sistema de responsabilização objetiva, já que nos delitos formais o resultado é interno ao tipo e a antijuridicidade está na intenção do agente de visá-lo, e não na verificação de um efeito decorrente da conduta delitiva (resultado empírico).
Também não cabe categorizar a prática de cartel como de mera conduta em decorrência da complexidade das relações econômicas, a partir da qual essa categorização poderia resultar em grave desincentivo a práticas economicamente eficientes e benéficas. Acordos entre concorrentes podem resultar em contratos associativos ou joint ventures, além de situações de efetivos acordos voltados a objetivos lícitos, como em casos de projetos assistenciais, de inclusão e diversidade e até na situação da recente pandemia de coronavírus, em que ocorreram, em diversos mercados, alinhamentos entre concorrentes buscando solucionar problemas decorrentes da crise de saúde[55].
A despeito do histórico de sua jurisprudência[56]-[57], nota-se que recentemente, o CADE passou a aplicar tal teoria a todas as classes de cartéis anteriormente visitadas[58]-[59], mesmo nos casos de trocas sistemáticas de informações[60], tornando irrelevante sua classificação para esta fatia da exegese da norma no campo administrativo.
Neste sentido, no passado, para o CADE, o conteúdo semântico do delito de cartel encontrava maior similitude ao conceito, acima referido, extraído das ciências econômicas[61] – que, como visto, informam e integram o ordenamento jurídico, inclusive criminal. Atualmente, contudo, possui contornos distintos, específicos ao arcabouço normativo do Direito da Concorrência.
IV. A semiótica e a tipicidade no direito repressivo
Neste complexo contexto, situa-se a Lei 9.873/1999, notadamente seu art. 1º, caput e § 2º. O caput delimita em cinco anos o prazo prescricional para ação punitiva da Administração Pública Federal. Como exceção à regra do caput, o §2º determina que, quando “o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime”, o prazo será regido pela lei penal.
Conforme a doutrina e jurisprudência do CADE, há pelo menos duas leituras possíveis do enunciado do §2º, uma leitura em concreto e outra leitura em abstrato. Ambas submetidas ao regime jurídico repressivo e, por conseguinte, à leitura estrita. Nos dois casos se destacam ao menos duas perguntas acerca da incidência da referida regra: (i) o regimento do prazo ficaria restrito às pessoas físicas ou atingiria pessoas jurídicas? (ii) em que medida ocorre a sobreposição dos enunciados e uma conduta pode constituir tanto uma infração quanto um crime?
Na primeira hipótese, ter-se-ia uma concepção referencial dos termos utilizados, adotando sentido concreto para a expressão também constituir crime, ensejando problemas quanto à sobreposição normativa frente a uma conduta em específico, cuja solução reside na regra de competência.
Respondendo aos questionamentos, Martinez[62] ensina, em leitura estrita, que não há possibilidade de ampliação do escopo da norma, de modo que somente pessoas físicas podem ser sujeitos ativos do crime de cartel, restringindo-se a elas a possibilidade de também constituir crime o fato sob apuração da Administração.
Quanto à sobreposição normativa, o regimento na esfera administrativa pelo prazo prescricional previsto na lei penal depende de haver pelo menos o recebimento da denúncia por parte do juízo competente: observando que os ilícitos penais e administrativos possuem requisitos distintos, não caberia à autoridade administrativa determinar se uma conduta pode ou não também ser tida como crime. A avaliação de sobreposição normativa ficaria além da envergadura do CADE.
A regra de competência, nesta leitura, demanda determinar se há processo penal em andamento contra os mesmos investigados e somente quanto a esses seria contado o prazo conforme a lei penal, algo que é acompanhado pelos tribunais superiores[63]. Na mesma linha, a autora questiona se a atração do prazo prescricional se daria quanto ao prazo máximo previsto em tese ou sobre o prazo prescricional em concreto, concluindo que o art. 110 e seus parágrafos do Código Penal teriam de ser conjuntamente importados com o art. 109[64]. Portanto, no mesmo sentido, a autoridade administrativa também não poderia afastar a possibilidade de incidência de prescrição retroativa. Diante de tal contexto, Martinez se posiciona no sentido de que a regra deveria ser afastada ou deveria ser considerada a pena mínima em abstrato.
Na segunda leitura possível da norma, a expressão crime contempla um sentido abstrato para seu campo semântico, ensejando problemas quanto à sobreposição normativa em tese, sem que haja um referencial concreto e cuja solução, como se verá, reside no princípio da tipicidade.
Acolhe-se como mais adequada, à luz da melhor doutrina e de parte da jurisprudência do CADE[65], a leitura estrita e concreta da norma, dado que, como se demonstrou, é a interpretação normativa adequada ao campo repressivo. Contudo, não se pode ignorar que a jurisprudência majoritária atual do Conselho adota a segunda leitura, atraindo para sua realidade o prazo criminal.
Aqui se remete às premissas do Capítulo II, na medida em que se nota uma concepção abstrata da conduta de cartel, ignorando as peculiaridades de suas classificações. Veja-se, por exemplo, o ilustrativo Parecer da Procuradoria Federal Especializada Junto ao CADE – PFE-CADE, exarado no Processo Administrativo 08012.003970/2010-10:
“As práticas de cartel são tipificadas como crime pela Lei no 8.137/1990, cuja pena máxima é de 5 (cinco) anos (art. 4o, II). De acordo com a regra insculpida no art. 109 do Código Penal, antes de transitar em julgado a sentença final, a prescrição regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade prevista, prescrevendo em 12 (doze) anos a pretensão punitiva se o máximo da pena for superior a quatro anos e não exceder a oito (inciso III). Portanto, como estamos diante de indigitada conduta de cartel, cuja pena na esfera criminal é de no máximo 5 (cinco) anos, o prazo prescricional aplicado ao presente processo concorrencial é de 12 anos. (...) Ainda, o § 2o do artigo 1o da Lei no 9.873/1999, e o § 4o do artigo 46, da Lei no 12.529/2011, somente exigem que o fato seja capitulado como crime, não impondo que haja persecução criminal quanto ao mesmo fato que enseja a responsabilização administrativa. Assim, é prescindível, para fins de aplicação da prescrição prevista em lei penal, a propositura de ação penal ou mesmo a investigação dos fatos em sede de inquérito criminal. Veja-se, portanto, que a Lei no 9.873/1999 tão somente criou um critério objetivo, ou seja, se uma conduta administrativa também é crime, tal conduta é mais grave e, portanto, merece maior tempo para ser investigada e reprimida, dado o bem jurídico protegido ser mais valioso. (...) É a gravidade da formação de um cartel que levou não só à tipificação penal desta conduta, como também justificou a majoração do prazo prescricional”. (grifou-se)
Os grifos buscam destacar a referência à formação de cartel e a intensa adjetivação da conduta em tese, sem que haja um esforço em densificar o que se entende por tal expressão. Conforme já visitado, há diversas classes de cartéis, diversas condutas que podem ser nomeadas de tal maneira, sem que, contudo, haja similitude entre seus elementos, efeitos e, portanto, desvalor jurídico.
Registra-se por oportuno que o CADE opta por alargar ao máximo o prazo prescricional de sua pretensão punitiva. A uma, por historicamente adotar os prazos prescricionais dos tipos penais da Lei 8.137/1990, mesmo em cartéis em licitações, sem qualquer análise acerca dos princípios da especialidade ou consunção no caso concreto. A duas, ao adotar o prazo prescricional máximo previsto na hipótese normativa da lei 8.137/1990, considerando em qualquer hipótese o prazo prescricional de 12 anos, como bem ilustra o trecho coligido do Parecer da PFE.
No mesmo processo, a Superintendência-Geral do CADE também fez considerações em sentido similar, conforme Nota Técnica 27/2015[66], acolhida sem questionamentos pelo então Conselheiro-Relator Paulo Burnier da Silveira (item 21 e 22), no sentido de que basta a capitulação, isto é, demandaria tão somente a tipificação legal da conduta para atração do prazo criminal.
Neste racional, não obstante o CADE não enverede tais esforços, a averiguação da sobreposição típica entre as normas, isto é, a verificação de que os fatos objeto da persecução do CADE também constituem crime, demanda um cuidadoso olhar sobre o campo semântico de cada dispositivo. Conforme já se abordou, a Teoria Geral dos Signos ensina que estes não se confundem com o objeto que representam, nem possuem o condão de exauri-los.
Superando o rótulo cartel, a avaliação da sobreposição normativa demanda análise acerca do paralelismo entre seus elementos, suas propriedades, para que haja de fato equivalência entre seus conteúdos. Trazendo a lógica da semiótica para o presente enredo, o conteúdo de uma norma de caráter penal, conforme imposição deste regime jurídico já esmiuçado, se define por sua tipicidade. Isto é, recorre-se ao tipo delitivo para compreensão adequada do conteúdo semântico das normas sob escrutínio.
Somente dessa forma haverá possibilidade de compreender como se daria a sobreposição em abstrato entre as normas, haja vista que a mera e vaga noção de cartel, como visto, não é suficiente para descrever os fatos a caracterizarem o objeto da apuração.
V. As prescrições dos cartéis na esfera administrativa
Cumpre breve e último parêntese antes do cotejo entre os tipos delitivos adrede apresentados para avaliar sua sobreposição em abstrato. Para que possamos fazer tal análise, é preciso compreender que o nosso sistema penal adotou a teoria finalista do tipo[67]. No Código Penal, portanto, compreende-se o delito como um ato típico, antijurídico e culpável, incluindo o elemento subjetivo na própria tipicidade[68]-[69].
Aqui se nota, portanto, que mesmo nesta leitura abstrata, as pessoas jurídicas não poderiam ser atingidas pelo prazo prescricional do crime. Isto porque o CADE adota a leitura do tipo infracional de cartel como de responsabilização objetiva, não havendo, em termos de tipo, sobreposição, mesmo em abstrato, para as pessoas jurídicas. No caso das pessoas naturais, há responsabilização subjetiva em ambas as esferas, passando-se a analisar os demais elementos de cada tipo.
Conforme exposto, atualmente o CADE adota a teoria da infração “per se” para apuração das diferentes classes de cartéis. A todas, portanto, se aplica o entendimento indiscriminado pelo tipo formal, em detrimento da avaliação de poder de mercado e possibilidade de efeitos.
Neste esteio, os crimes previstos no art. 4º, incisos I (crime material e de resultado/dano) e II (crime de perigo concreto), da Lei 8.137/1990, já não possuem estrutura similar ao tipo administrativo formal cunhado pelo CADE. Veja-se que o fato objeto de apuração do CADE pode ser o cartel entre os padeiros, que, em sua avaliação, será um ato infracional gravíssimo, conforme ilustrado pela PFE, enquanto para o judiciário será um ato atípico, pela impossibilidade de resultado ou pela incidência do princípio da insignificância – conforme explicado.
Uma vez que o CADE opta por não delimitar o mercado relevante, não logrará apurar existência de poder de mercado, não tendo ao seu alcance elementos suficientes para entender preenchida a hipótese do crime – por mais abstrata que seja sua concepção.
O mesmo ocorre com os tipos criminais do art. 337-F (crime material, de resultado e com dolo específico) e art. 337-L (crime material e de resultado, sem dolo específico) do Código Penal.
Resta, neste sentido, o art. 337-K, único que prevê um crime formal, que se configura mediante a busca pelo objetivo de afastar licitante. Ainda, a interpretação da expressão afastar deve ser lida de forma estrita, em sentido específico de buscar que um licitante não participe de licitações, conforme o parágrafo único, se abstenha ou desista. Considerando que muitos cartéis operam por meio de propostas de cobertura, na qual o licitante não é de fato afastado, mas cooptado a participar de forma fraudulenta, a escolha por uma interpretação lato sensu poderia impactar a contagem do prazo prescricional.
A leitura abstrata dos tipos normativos, portanto, possuiria sobreposição, em hipótese, somente em relação às pessoas naturais e somente nesses casos em que houvesse cartéis em licitações, demonstrando que tais agentes atuaram para afastar outros licitantes do certame – o que reduziria drasticamente o feixe de condutas passíveis, em abstrato, de também constituírem crime.
Ainda assim, nesses casos, subsistiram dois problemas que restam irrespondidos: (i) por que a aplicação da prescrição penal é atraída ao campo administrativo sempre em sua máxima extensão? e (ii) por que a determinação da dosimetria da sanção não pode gerar prescrição retroativa?
Quanto a essas questões, acolhe-se novamente a solução de que se atraia o prazo prescricional contado a partir da pena mínima estabelecida em lei. De todo modo, o que se conclui é que, uma vez que adota o CADE a teoria da infração per se, transmuta a infração de cartel, qualquer que seja sua classe, em infração formal. Por inferência lógica, só podem os fatos objeto de sua apuração também constituírem os crimes que assim o sejam em abstrato, visto que o signo “cartel” é insuficiente para descrever os elementos típicos dos delitos previstos em cada dispositivo normativo – como visto bastante plurais.
O presente estudo se debruçou sobre espinhosa problemática atualmente e há muito enfrentada pela comunidade jurídica concorrencial, que é a prescrição da pretensão punitiva do CADE nos casos de cartéis. O instituto possui fundamental relação com o princípio da segurança jurídica, sendo urgente que as discussões nesta matéria ganhem maior maturidade, para que se possa ter uma aplicação orgânica e coesa, frente ao ordenamento jurídico como unidade.
Neste contexto, abordou-se como as noções de cartel podem ser manejadas em diferentes ambientes, notadamente o econômico, origem de suas definições empíricas, e o jurídico, guardadas as especificidades de cada sistema normativo. A partir disso, reflete um esforço em busca de trazer maior concretude e clareza à terminologia utilizada ao abordar a questão, buscando reduzir ao máximo o espaço para confusões semânticas.
Como se viu, a semiótica tem relevante serventia neste diapasão, visto que seu primeiro ramo, a Teoria Geral dos Signos, nos provê um útil vetor para buscarmos um referencial único e aprimorarmos o entendimento acerca de cada conceito e suas modulações.
Para aplicá-la ao ambiente do presente estudo, observou-se que o regime jurídico atraído por ambos os sistemas que normatizam a resposta jurídica aos cartéis é o regime jurídico repressivo, próprio do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador, enquanto distintos braços do ius puniendi estatal. No ambiente repressivo de um Estado de Direito Democrático, o campo semântico, ou o objeto dos signos, se define consoante ao princípio da tipicidade, visto que é o que determina o enunciado ao qual se subsumirá o fato, tendo sua interpretação sempre de forma estrita.
Adotado com clareza este conjunto de premissas, passou-se à análise detida da questão proposta, avaliando os dispositivos normativos atinentes à questão. O problema se inicia a partir da leitura do art. 1º, §2º da Lei 9.873/1999 (reproduzido na Lei 12.529/2011 em seu art. 46, §4º), que determina a alteração do prazo prescricional quando os fatos objeto da apuração da Administração também constituírem crime.
A partir de tais dispositivos, empreendeu-se em doutrina e jurisprudência duas leituras distintas, uma propondo uma atividade hermenêutica voltada a um objeto concreto e outra propondo que se adote a figura delituosa em abstrato, buscando similitude em sua constituição deôntica.
A primeira leitura, como se viu, deve se submeter primordialmente à regra de competência, restringindo a envergadura da autoridade administrativa quanto à declaração de existência ou não de crime. Por conseguinte, a autoridade administrativa só teria legitimidade para adotar o prazo penal se houvesse ao menos uma ação judicial instaurada com visada à tal conclusão. Caso contrário, não haveria razões para a autoridade administrativa legitimamente presumir estar diante de um crime em potencial. Assim responde-se à primeira pergunta de pesquisa.
A segunda pergunta, consoante leitura abstrata do dispositivo, produz um resultado de maior complexidade, visto que a hipótese de sobreposição entre os tipos, em abstrato, merece cotejo específico, detalhado e permeado pela semântica tecnicamente atribuída a seus termos. Não obstante tal esforço não seja, ainda, acolhido pela jurisprudência do CADE, buscou-se delimitar os contornos típicos em ambas as matérias infracional e criminal.
Enquanto os tipos penais foram, um a um, esmiuçados e definidos segundo a classificação de cartéis anteposta, o tipo administrativo logrou definição única, vez que todas as classes de cartéis são tratadas pelo CADE, em termos de hermenêutica, da mesma maneira, isto é, enquanto delitos formais. Tal exercício permitiu demonstrar que a estrutura elementar de cada tipo penal se difere substancialmente do tipo infracional, à exceção de um tipo penal específico, o art. 337-K do Código Penal, que de fato pode, e não necessariamente o fará, encontrar similitude entre os elementos exigidos, a depender de o caso em apuração ser subsumível ao art. 36, §3º, alínea d, que se refere à infração de cartéis em licitações e da busca por afastar licitante.
A conclusão a que se chegou é, afinal, que a leitura concreta do referido dispositivo demanda acolhimento do prazo quinquenal estabelecido pela norma no caput, enquanto a leitura abstrata do enunciado demanda uma demonstração detalhada de congruência típica entre as normas, que só poderá ocorrer nesses casos de cartéis em licitação, condicionados à busca por abstenção ou desistência de outro licitante. Ainda nestes casos, a autoridade administrativa precisará enfrentar as duas questões que subsistem a esta leitura abstrata da norma, que implicaria atração do prazo aplicável à pena mínima em abstrato.
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[1] SANTAELLA, Lucia. A relevância da semiótica para a construção do conhecimento. in CARVALHO, Paulo de Barros. (Coord.) et. BRITTO, Lucas Galvão (Org.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016. p. 78.
[2] Idem, p. 84.
[3] “Quando se estuda o estabelecimento comercial e o papel do empresário, novamente, duas visões emergem da análise: a econômica e a jurídica. A visão econômica ressalta o papel do administrador na organização dos fatores de produção – capital, trabalho, terra e tecnologia -, combinando-os de modo a minimizar seus custos ou maximizar seu lucro. A jurídica, extraída do Direito Comercial, apresenta várias concepções, que enfatizam que o estabelecimento comercial é um sujeito de direito distinto do comerciante, com seu patrimônio elevado à categoria de pessoa jurídica, com a capacidade de adquirir e exercer direitos e obrigações. Consumidores e produtores/fornecedores encontram-se nos mais variados mercados. Adam Smith, analisando os mercados, descobriu uma propriedade notável: o princípio da mão invisível, pelo qual cada indivíduo, ao atuar na busca apenas de seu bem-estar particular, realiza o que é mais conveniente para o conjunto da sociedade. Assim, em mercados competitivos, não concentrados em poucas empresas dominantes, o sistema de preços permite que se extraia a máxima quantidade de bens e serviços úteis do conjunto de recursos disponíveis na sociedade, conduzindo a economia a uma eficiente alocação dos recursos. (…) Segundo essa visão do sistema econômico, o Estado deveria intervir o menos possível no funcionamento dos mercados, porque estes livremente resolveriam da maneira mais eficiente possível os problemas econômicos básicos da sociedade: o quê, como e para quem produzir. Contudo, quando o Estado deveria intervir na economia? A justificativa econômica para a intervenção governamental nos mercados se apoia no fato de que no mundo real observam-se desvios em relação ao modelo ideal preconizado por Smith, isto é, existem as chamadas imperfeições de mercado: externalidades, informação imperfeita e poder de monopólio. (…) Já o exercício do poder de monopólio caracteriza-se quando um produtor (ou grupo de produtores) aumenta unilateralmente os preços (ou reduz a quantidade), ou diminui a qualidade ou a variedade de produtos ou serviços, com a finalidade de aumentar os lucros[3]”. (Vide VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de; Marco Antonio S. Vasconcellos, Manuel E. Garcia. Fundamentos de Economia. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008).
[4] MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis: interface entre Direito Administrativo e Direito Penal. São Paulo: Singular, 2013, P. 36.
[5] Idem, p. 59
[6] Ibidem, p. 41
[7] Aqui entendidos como de uma mesma classe, não de duas espécies de um mesmo gênero. Segundo as ciências econômicas, os dois terão os mesmos efeitos no mercado, uma vez que a quantidade determina o preço e vice-versa, devendo ser entendidos como um conceito único, cartéis de preço/quantidades. (Ibidem, p. 42).
[8] A peculiaridade sob a ótica econômica dos cartéis em licitação, sem prejuízo de sua gravidade decorrente do envolvimento direto do erário, é que estes podem não implicar a destruição de riqueza acima referida (peso morto), visto que em diversos certames a quantidade a ser adquirida pela Administração Pública é fixada independentemente do preço, sendo que todo o excedente será apropriado pelo agente econômico fraudador.
[9] Vide Voto do Conselheiro Relator, Luiz Carlos Delorme Prado, no Processo Administrativo n. 08012.002127/2002-14, p. 5 (Cartel das Britas) in Voto na Averiguação Preliminar n.o 08012.001198/2007-04, de 28 de abril de 2010. Representante: Senador Flávio Arns. Representada: Postos de combustível de Curitiba. In DOU de 10 de maio de 2010, Seção 1, pág. 32, item 2.2.1.
[10] “95. Além dos cartéis hard core, há também os que poderiam ser chamados de cartéis soft (sendo o nome dado apenas para fazer o contraponto do hard). Estes, apesar de na prática serem chamados de cartel e, de fato, poderem resultar em graves danos para a sociedade, podem não ter uma definição precisa, como tem o cartel hard core. A Resolução no 20 não foi pensada para estes casos e, na minha humilde interpretação, nem o inciso I do artigo 21da Lei no 8.884/94 ou o inciso I, parágrafo 3o, do artigo 36 da Lei no 12.529/11, que, por isso, não deveriam ser usados para descrever um cartel soft. 96. Diferentemente do cartel hard core, esses cartéis soft podem ter diversas outras estratégias, muitas vezes não previstas na literatura econômica e que podem apresentar algum tipo de eficiência no ato ilícito, como, por exemplo, apresentar poder compensatório, um tipo de eficiência”. (Voto da Conselheira Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt no Processo Administrativo 08012.002568/2005-51, sendo Representante a SEAE/MF e Representados Liquigás Distribuidora S/A, Supergasbras e Paragás Distribuidora Ltda.)
[11] “O soft cartel (nome para contrapor ao hard core), desta forma, seria o conjunto de condutas concentradas disjunto (isto é, sem interseção) ao conjunto das condutas do hard core (aquele que tem definição precisa dada pela OCDE). Esta nova definição não tem como objetivo ir contra a literatura antitruste internacional, mas aclarar que há casos de ações concertadas que não têm os objetivos traçados pela OCDE em 1998, não se encaixando, assim, na definição de hard core”. Vide Voto-Vogal no Processo Administrativo 08700.001859/2010-31, julgado em 4 de julho de 2018. Disponível em:
https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yNJFCMGqkxs3ow-T5qCPnNsBAe4skVKz2DcFe3E1X0od3hvLmFUK7e1OTO-lNDka_7NL20ov1fMkSbfQUvlwP8u
[12] CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 3952 apud FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Tratado de Direito Empresarial: Direito Concorrencial. 2ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2018 p. 46.
[13] Vide FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p. 46.
[14] Vide FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017 p. 31.
[15] FRAZÃO, Ana. Ob. cit., p. 31.
[16] “Uma leitura apressada da Constituição poderia sugerir que esta procura conciliar princípios conflitantes, como a livre-iniciativa e a propriedade privada, de um lado, e a função social da propriedade e a justiça social, de outro. No entanto, o Estado Democrático de Direito traz em si uma unidade de sentido que permeia toda a Constituição e orienta a compreensão dos demais princípios: a dignidade da pessoa humana, o que se reforça pelos princípios fundamentais constantes dos arts. 1º e 3º”. (FRAZÃO, Ana. Ob. cit. p. 47)
[17] “Há marcante contradição entre o neoliberalismo – que exclui, marginaliza – e a democracia, que supõe o acesso de um número cada vez maior de cidadãos aos bens sociais. Por isso dizemos que a racionalidade econômica do neoliberalismo já elegeu seu principal inimigo: o Estado Democrático de Direito”. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). São Paulo: Malheiros, 2010. p. 55).
[18] “Na intersecção das curvas de oferta e demanda (…), teremos o preço e a quantidade de equilíbrio, isto é, o preço e quantidade que atendem às aspirações dos consumidores e dos produtores simultaneamente. Se a quantidade ofertada se encontrar abaixo daquela de equilíbrio (...), teremos uma situação de escassez do produto. Haverá uma competição entre consumidores, pois as quantidades procuradas serão maiores que as ofertadas. Formar-se-ão filas, o que forçará a elevação dos preços, até atingir-se o equilíbrio (...), quando as filas cessarão. Analogamente, se a quantidade ofertada se encontrar acima do ponto de equilíbrio (...), haverá um excesso ou excedente de produção, um acúmulo de estoques não programado do produto, o que provocará uma competição entre os produtores, conduzindo a uma redução dos preços, até que se atinja o ponto de equilíbrio (...). Como se observa, quando há competição tanto de consumidores quanto de ofertantes, há uma tendência natural no mercado para se chegar a uma situação de equilíbrio estacionário – sem filas e sem estoques não desejados pelas empresas. Desse modo, se não há obstáculos para a livre movimentação dos preços, ou seja, se o sistema é de concorrência pura ou perfeita, será observada essa tendência natural de o preço e a quantidade atingirem determinado nível desejado tanto pelos consumidores como pelos ofertantes. Para que isso ocorra, é necessário que não haja interferência nem do governo nem de forças oligopólicas, que tem poder de afetar o preço de mercado”. (Conforme VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de e GARCIA, Manuel Enriquez. Ob cit. p. 54).
[19] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 31ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p.813.
[20] GRAU, Eros Roberto. Ob cit. p.36.
[21] GRAU, Eros Roberto. Ob cit. p.34.
[22] Ressalte-se, na passagem, que encontra eco na Constituição Federal em seu art. 173, §4º, a noção de que a repressão aos cartéis se dá no intuito de reprimir o abuso de poder econômico.
[23] Registre-se de antemão que a premissa não encontra qualquer contraste com a regulação setorial, de uma atividade ou de serviços públicos, desde que condicionados à existência de lei: “Esta garantia constitui uma reafirmação da liberdade individual em matéria de empreendimento econômico. Não confere ao legislador o poder de decidir quais atividades estariam abrangidas por esta liberdade, nem deixa ao seu arbítrio a determinação da amplitude em que estas atividades podem ser exercidas pelos particulares. Este parágrafo reforça as determinações do art. 170, caput e IV, da CF/1998 (LGL\1988\3), pois determina que quaisquer atividades poderão ser exercidas sem a necessidade de autorização para tanto. Ao mesmo tempo, estabelece a única restrição possível, que é a possibilidade e alguma lei vir a exigir a autorização de órgão público para o exercício de atividade econômica específica” (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Intervenção do estado na economia. Revista de direito constitucional e internacional. V. 15/1996, p. 73-88, abr./jun., 1996. pp. 75-76).
[24] “Em síntese, o Direito Administrativo Sancionador corresponde ao conjunto sistematizado de princípios – expressos ou implícitos – e de regras informadores da estipulação regulamentar (quando necessária) e averiguação concreta das infrações, da imposição e, ainda, da aplicação das sanções, no exercício da função administrativa. O que não se pode olvidar é que há um marco característico garantidor de sua identidade substancial e que de tão bem apreendido por NIETO (2000, p. 185) merece literal transcrição e adesão: El Derecho Administrativo Sancionador es substancialmente un derecho de riesgos. Éste es el tronco de la institución, que se instrumentaliza en un mecanismo muy sencillo: la norma contiene una orden (mandato o prohibición) acompañada de la amenaza de una sanción. Uma vez aceita essa premissa, fica evidente o distanciamento entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador. Não no sentido de que este deixe de (também) impor limites ao legislador e ao administrador público, mas que as sanções administrativas tendem a garantir a preservação do Direito – em si e por si – e não necessariamente proteger bens jurídico-administrativos relevantes, com a ameaça de sua imposição”. (FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas: Entre Direitos Fundamentais e Democratização da Ação Estatal. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v.12, n.12. p. 176).
[25] OSÓRIO, Fabio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.113.
[26] PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e Acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 267
[27] VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: Justificação, Interpretação e Aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 96.
[28] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. Madrid: Tecnos, 4ª Ed. 2006. p. 167-168.
[29] Arvorado em Stampa Braun, Pontes de Miranda, Oscar Barreto Filho, Orosimbo Nonato, Celso Neves e José Cretella Junior, vide FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p. 47.
[30] Vide FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p.44.
[31] FRAZÃO, Ana. Ob. cit. p. 259.
[32] “a sanção administrativa tem, em essência, a mesma natureza da sanção de caráter penal” (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo, apud FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p.70).
[33] OSÓRIO, Fabio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.113.
[34] Aliás, pode-se dizer que tal pressuposto exsurge da própria essência do Direito Administrativo, que, conforme canônico ensinamento do e. Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, é instrumento de controle da Administração Pública pelo particular, não o inverso (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 31ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p.47), o que não se aplica apenas ao ambiente sancionador (FERREIRA, Daniel. ob. cit. p. 178). Não parece cabível que princípios constitucionais garantidores de direitos fundamentais individuais fossem afastados do ambiente do Direito Administrativo, cujo propósito essencial é o oposto, justamente em sua categoria fundamental voltada à aflição do particular – que é a atividade repressiva.
[35] COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador – ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese de Livre-Docência apresentada na Universidade de São Paulo (USP), em 2013.
[36] “Constitui exigência constitucional que toda vez que se configure situação em que o particular esteja diante do estado no exercício do seu direito de punir (castigar), incide automática e imediatamente o chamado regime jurídico punitivo, assim designado o conjunto de preceitos constitucionais e legais que estabelece limites procedimentais, processuais e substanciais à ação do Estado, nesta matéria (exercício do jus puniendi)” (ATALIBA, Geraldo. Imposto de Renda – Multa Punitiva, p. 550).
[37] “Como anota Canotilho (1993, p. 227), tratando do ‘princípio da máxima efetividade’: A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça a maior eficácia aos direitos fundamentais). Forçoso concluir, pois, que todas as regras e todos os princípios versando sobre ‘ilícitos’, ‘sanções’, ‘litígios ou processos sancionadores’ e, adicionalmente, sobre as garantias deferidas aos ‘acusados’ e aos ‘sancionados’ em geral, como insculpidos na Carta Magna, são apropriáveis tanto pelo Direito Penal como pelo Direito Administrativo Sancionador, ainda que com nuanças, porque retratam o poder punitivo estatal” (FERREIRA, Daniel. Op. Cit. p. 176).
[38] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. Madrid: Tecnos, 4ª Ed. 2006. p. 167-168.
[39] OSÓRIO, Fabio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.102.
[40] Conforme repercutido no Supremo Tribunal Federal na Reclamação 41.557, julgada em 15 de dezembro de 2020 pela Segunda Turma. Relator Min. Gilmar Mendes, tratando de improbidade administrativa, “que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal”. Importando, na passagem (p.4), doutrinas de Ana Carolina Oliveira, citando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) (“O direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal” in Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 190) e Regina Helena Lobo da Costa (“Assim, seguindo a proposta de Rando Casermeiro, crê-se que uma política jurídica conjunta, que leve em conta os dois ramos sancionadores, é imprescindível para aportar um mínimo de racionalidade à questão” in Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador).
[41] “Essa linha de pensamento se mostra apropriada na medida em que as sanções administrativas estão sujeitas, em suas linhas gerais, a um regime jurídico único, um verdadeiro estatuto constitucional do poder punitivo estatal, informado por princípios como os da legalidade (CF, art. 5o, II, e 37, caput); do devido processo legal (CF, art. 5o, LIV); do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5o, LV); da segurança jurídica e da irretroatividade (CF, art. 5o, caput, XXXIX e XL); da culpabilidade e da pessoalidade da pena (CF, art. 5o, XLV); da individualização da sanção (CF, art. 5o, XLVI); da razoabilidade e da proporcionalidade (CF, arts. 1o e 5º, LIV)”. Vide citação acima do MS 32.201.
[42] MARTINEZ, Ana Paula. Ob cit. p. 186.
[43] Idem, p. 185
[44] Ibidem, p. 188
[45] MARTINEZ, Ana Paula. Ob cit. p. 192
[46] Idem, p. 194
[47] FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p.421.
[48] FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p.474.
[49] Em linha às lições de Bagnoli (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p. 467).
[50] O CADE por vezes afirma adotar teoria “assemelhada” à regra per se, sem que haja presunção absoluta, chamando-a de infração “por objeto” (nomenclatura adotada no direito comunitário europeu, que, por sua vez, adota uma presunção iuris tantum, relativa, de ilicitude). Com efeito, a jurisprudência do CADE alterou-se ao longo do tempo, atualmente optando por não proceder à definição de mercado relevante nos casos de cartel, tornando impossível a verificação de existência de poder de mercado, haja vista que este último se estima a partir da definição do primeiro. É neste sentido que entende a doutrina (MARTINEZ, ob cit, FRANCESCHINI e BAGNOLI, ob cit, e, ainda, DONAS, Frederico Carrilho; VILAS BOAS, Maria Izabella; LUCIANO JUNIOR, Paulo César. Parâmetros de análise de infrações concorrenciais pelo Cade. In DONAS, Frederico Carrilho; SOARES, Marcio (coord). Direito concorrencial: questões atuais. São Paulo, Edgar Blücher: 2018. p. 120).
[51] MARTINEZ, Ana Paula. Ob cit. p. 55.
[52] TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 4ª ed., São Paulo, Noeses: 2016.
[53] “Em texto repetido à saciedade em praticamente todas as Notas Técnicas relativas aos processos por cartel ou indução à conduta uniforme, e sem mais rebuço, assim passou a se manifestar em seu conteúdo, até à atualidade, a Superintendência-Geral do CADE, mutatis mutandis: “171. O resultado prático e útil desta classificação na aplicação da lei antitruste é evidente. Quando uma conduta for considerada anticompetitiva porque possui objeto ilícito, ou seja, sua mera existência a torna ilícita já que dela nunca decorreriam efeitos positivos concorrenciais, existe uma presunção de ilegalidade, ‘aplicando-se aquilo que se convencionou chamar de regra ‘per se’. Neste caso, repise-se, a mera existência de uma conduta com determinado objeto é anticompetitiva, não sendo necessárias análises posteriores sobre efeitos ou sobre o mercado” (FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga; BAGNOLI, Vicente. Ob. cit. p. 196).
[54] VIANNA, Rodrigo França. A conformidade da apuração da infração de cartel sob a teoria per se segundo a hermenêutica constitucional. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2022, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58978/a-conformidade-da-apurao-da-infrao-de-cartel-sob-a-teoria-per-se-segundo-a-hermenutica-constitucional. Acesso em: 05 ago 2022.
[55] Pode-se mencionar, a título de exemplo, a sinergia para produção de equipamentos de proteção individual ou a troca de informações concorrencialmente sensíveis sobre P&D de farmacêuticas. Esse cenário, diga-se, acabou reconhecido pelo CADE: https://noticias.r7.com/economia/empresas-se-ajudam-nos-carteis-do-bem-durante-pandemia-29062022
[56] “184. A determinação de uma conduta como per se, portanto, depende de declaração por parte da jurisprudência. No Brasil, houve um movimento no sentido de aplicar a regra per se às hipóteses de cartéis chamados clássicos, em que os acordos são perenes e têm características que demonstram a sua institucionalização (sendo exemplos, não excludentes, de outras circunstâncias de institucionalização, os mecanismos de monitoramento e/ou de punição). (...) 187. Em suma, conforme a Lei n.° 8.884/94 e precedentes do CADE, nos casos em que houver a atuação de um cartel clássico, será exigida apenas a prova da existência da conduta para a configuração da infração, presumindo-se a potencialidade de que sejam produzidos efeitos prejudiciais à concorrência. Dessa forma, como estabelecido no caso do ´Cartel de Britas´, verificadas as condições de existência de um cartel clássico, alcança-se um quantum probatório em que uma decisão pode ser exarada, sendo desnecessário realizar a prova dos efeitos. (...)190. A partir do caminho delimitado nos itens anteriores, resta agora utilizar as informações coletadas ao longo do processo para avaliar se: (i) houve cartel; e, havendo, (ii) se esse cartel é ou não clássico, hipótese em que seria aplicável a regra per se”. Voto de Relatoria no Processo Administrativo n.º 08012.004702/2004-77, de 9 de maio de 2012, Representante: SDE, ex officio. Representados: Peróxidos do Brasil Ltda., Solvay do Brasil Ltda. e outros. In DOU de 11 de maio de 2012, Seção 1, pág. 78.
[57] “E o mesmo pode ser dito com relação às supostas evidências de cartel no mercado de combustíveis lastreadas na verificação, usualmente de consumidores, de reajustes próximos dos preços praticados. É desnecessário rememorar discussões a respeito de teorias sobre paralelismo de preços para afirmar que comportamentos paralelos não são ilícitos per se na doutrina concorrencial. Para delimitar a ilicitude de um paralelismo, é indispensável demonstrar que a hipótese de cartel seria a sua explicação mais provável, inexistindo outras causas plausíveis com grau de causalidade adequado à hipótese que está sub-judice. Já é famosa a tese doutrinária do paralelismo pIus, em que aos órgãos de defesa da concorrência é necessária a comprovação de um fator adicional determinando que o paralelismo decorre de um cartel, tese essa que já chegou a ser utilizada pela jurisprudência do CADE em julgamentos anteriores. [NR] Como na AP n.° 08012.006844/2000-45; Representante: Câmara Municipal de Bragança Paulista-SP; Representados: Postos de Combustíveis de Bragança Paulista; Conselheiro-Relator Luiz Carlos Delorme Prado.” Voto na Averiguação Preliminar n.o 08012.001198/2007-04, de 28 de abril de 2010. Representante: Senador Flávio Arns. Representada: Postos de combustível de Curitiba. In DOU de 10 de maio de 2010, Seção 1, pág. 32, item 2.2.1.
[58] “9. Em seu voto, a Relatora aduziu que cartéis “hard core” teriam análise pela regra per se e cartéis “soft” teriam análise pela regra da razão, o que não possui respaldo legal. A Lei 12.529/11 – ou a revogada Lei 8.884/94 – não faz qualquer distinção ou tipologia de cartéis para análise probatória ou para fixação de penalidades. Os parâmetros que a Lei 12.529/11 traz referem-se a critérios de dosimetria, nos quais os julgadores podem avaliar que algumas conformações de cartel podem ser menos gravosas que outras, diferenciando, portanto, tão-somente as penalidades aplicadas ou aplicáveis. Dessa forma, trazer uma tipologia (“hard”/”soft”) que a própria lei não trouxe é tentar encaixar na lei uma norma que sequer o legislador quis criar, ainda que se tente fazer qualquer tipo de interpretação sistemática da Lei 12.529/11 com qualquer outro diploma legal ou constitucional. Se for entendido que alguns cartéis são menos graves que outros, por qualquer razão, dever-se-ia fazer essa distinção apenas na dosimetria (especialmente no critério gravidade da infração) e não criar padrões de análise diferentes para práticas anticompetitivas subsumidas a um mesmo dispositivo legal, ou seja, a distinção deve ser na sanção e não no padrão probatório. Nesse raciocínio, divirjo da Relatora, pois entendo que todos os cartéis devem ser avaliados sob a mesma regra – regra per se –, sob pena de afronta aos princípios da legalidade e da segurança jurídica” (grifos do original). (Vide Voto-vista vencedor do então Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior no Processo Administrativo 08012.002568/2005-51. Disponível em:
https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOjafDNaGjVAfBWmuN-JBNSbWoDmXhK-D5j1xZDWXzG3yFF-9Vr76OKii03-cwcV0QANLcXk4o3K7hb-fpvt5pu
[59] “De regra, o CADE vem entendendo que negociação coletiva e tabelamento de preços é uma prática que configura infração por objeto contra a ordem econômica, ainda que esse não seja o meu entendimento, como expus no PA n° 08012.002874/2004-14, referente à negociação conjunta pela Associação Médica da Grande Dourados, pelo CRM/MS e pela Unidas. (...) No entanto, tendo em vista decisões mais recentes do Conselho, que passou a considerar a negociação conjunta uma infração por objeto, incluindo o PA n° 08012.006969/2000-75, PA n° 08012.009381/2006-69 e o PA n° 08012.003422/2004-41, votei pela condenação da UNIDAS”. (Vide Voto do Conselheiro-Relator Alexandre Cordeiro Macedo, no Processo Administrativo 08012.007011/2006-97, reproduzido no Processo Administrativo 08700.001020/2014-26.
[60] “158. De forma semelhante, também sob a perspectiva da lei concorrencial brasileira, a troca de informação concorrencialmente sensível entre concorrentes, se tiver como objeto a concertação ou uniformização de condutas, deve ser tratada como uma prática colusiva, independentemente da verificação de seus efeitos (...). 159. Desse modo, tal como visto acima, a presunção de ilicitude se justifica pela natureza concertada da prática que, em si, apresenta alta probabilidade efeitos anticompetitivos e baixa probabilidade de benefícios pró-competitivos. Assim, a conduta é uma infração por objeto se a informação é (i) trocada entre concorrentes, (ii) desagregada e (iii) relacionada a intenções futuras da atuação da empresa ou, até mesmo atuais, desde que permitam eliminar as incertezas quanto ao comportamento das empresas participantes da prática”. (Conforme Nota Técnica 66/2020/CGAA8/SGA2/SG/CADE, no Processo Administrativo 08700.004548/2019-61).
[61] Conforme a antiga Resolução do CADE 20/1999: “Cartéis: Acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio”. (in MARTINEZ, Ana Paula. Ob cit., p. 137).
[62] MARTINEZ, Ana Paula. Ob cit. p. 255.
[63] Além das referências coligidas pela autora, conforme decisão do então Ministro do STJ Teori Zavascki: “(...) em razão da expressa determinação do art. 1º, §2º, da Lei 9.873/99, aplica-se à Administração Pública Federal o prazo prescricional fixado na legislação penal quando o fato apurado constitui crime em tese. Analisando a questão sob enfoque do art. 142, §2º, da Lei 8.112/90, que contém dispositivo com idêntico teor, esta Corte consolidou o entendimento segundo o qual o prazo criminal somente se aplica à seara administrativa quando instaurada a respectiva ação penal. Nesse sentido: MS 14.446/DF, S. Mm. Napoleão Nunes Mala Filho, DJe de 15.2.2011; MS 15.462/DF, S. Mm. Humberto Martins, Dje de 22.3.2011, este último assim ementado: (...) Igual entendimento deve ser adotado à hipótese dos autos, tendo em vista a semelhança da regra constante no art. 1º, §2º, da Lei 9.873/99. No caso, o acórdão recorrido consigna que não houve sequer a abertura de inquérito policial (fl. 920), razão pela qual não merece reparos”. (REsp no 1.116.477/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, j. 16.8.2012, DJe 22.8.2012).
[64] “Ou bem a autoridade administrativa mostra-se satisfeita com o prazo de 5 (cinco) anos que lhe confere a Lei de Processo Administrativo, ou aplica, se cabível, prazo mais dilatado, sujeitando-se a ter que afastar posteriormente a decisão em vista de decisão criminal, que pode, inclusive, ser prolatada anos depois da decisão administrativa” (MARTINEZ, Ana Paula. Ob cit, p. 256).
[65] Conforme o Voto da Conselheira Paula Farani de Azevedo no Processo Administrativo 08700.001859/2010-31, itens 22 a 41, e o Voto-Vista do então Conselheiro Mauricio Oscar Bandeira Maia no Processo Administrativo 08012.004674/2006-50, itens 42 a 48.
[66] “Em casos em que o ilícito administrativo é imediatamente enquadrado no tipo penal (como ocorre no caso dos crimes contra a ordem econômica e os ilícitos antitrustes), mais claramente se observa a necessidade de garantir a adequada tutela ao bem jurídico. Nesse tocante, cumpre lembrar que a própria Constituição Federal determina a repressão do poder econômico que visa à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, §4º). Tal interpretação se mostra em conformidade com a própria redação do art. 1º, §2º da Lei 9.873/1999, uma vez que o dispositivo demandaria tão somente a tipificação legal da conduta”.
[67] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. 11ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
[68] BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Ed. Revista dos Tribunais, volume II, 2ª Ed., 2000. p. 133.
[69] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 5ª ed., 2012. p. 102.
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIANNA, Rodrigo França. A prescrição da infração à ordem econômica de cartel à luz da semiótica e tipicidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2022, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59040/a-prescrio-da-infrao-ordem-econmica-de-cartel-luz-da-semitica-e-tipicidade. Acesso em: 24 nov 2024.
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