Resumo: O presente trabalho pontua a inovação legislativa operada pela Lei 14.344/22 (Lei Henry Borel) que traz em seu bojo a definição de violência doméstica contra a criança e aos adolescentes, que se espraia pelo Código Penal e pela Legislação Extravagante, com novas causas de aumento de penas e qualificadoras, bem como na inserção de novas figuras penais, com vistas a contemplar uma maior proteção a eles, vulneráveis por natureza. Embora no período de vacatio legis, a eficácia social da norma é tema que ultrapassa os meandros de um Direito Penal Simbólico.
Palavras- Chaves: violência doméstica – criança – adolescentes – revitimização- proteção legal – Lei 14.344/22.
Abstract: The present work points out the legislative innovation operated by Law 14.344/22 (Henry Borel Law) which brings in its core the definition of domestic violence against children and adolescents, which spreads through the Penal Code and the Extravagant Legislation, with new causes of violence. increase in penalties and qualifiers, as well as the insertion of new penal figures, with a view to providing greater protection to them, who are vulnerable by nature. Although in the period of vacatio legis, the social effectiveness of the norm is a theme that goes beyond the intricacies of a Symbolic Criminal Law.
Sumário: Introdução. 1.1. Contornos da Lei 14.344/22 ao crime de Homicídio (art. 121 do CP). 1.2. Reflexos da Lei 14.344/22 na Lei dos Crimes Hediondos e no Código Penal. 1.3. Influxo da Lei Henry Borel na Lei de Execução Penal. 1.4. Incursão da Lei Henry Borel no ECA ( Lei 8.069/90).1.5. Influência da Lei Henry Borel na Lei 13.431/17. 1.6. Crimes tipificados na Lei 14.344/22. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
A Lei 14.344 nasceu na data do dia 24 de maio do ano de 2022, e, longe de prestar homenagens aos militares de Arma de Infantaria do Exército Brasileiro, apesar da coincidência da data comemorativa, a lei foi mesmo apelidada informalmente de Henry Borel, reportando-nos ao sensível caso do menino Henry - que teve suprimida a sua vida devido à hemorragia interna - advinda de espancamento em ambiente doméstico, de acordo com dados periciais, até então apresentados mundialmente.
Atente o leitor que, muito embora o legislador não tenha batizado formalmente a Lei com tal nomenclatura, ao Henry se reportou - quando instituiu um dia do ano, qual seja, o dia três de maio, como o marco da violência doméstica contra a criança e ao adolescente – dia, esse, coincidente com a data de aniversário dele, homenageado expressamente, nos termos do art. 27 da Lei 14.344/22.
A comoção social da morte cruel de uma criança tocou o coração dos brasileiros, de um modo geral, e aquele menino acabou por levantar a bandeira de todos os meninos (as) do nosso país, de modo que o legislador, com “olhos de pai e coração de mãe” nos apresentou, na data acima referida, a Lei 14.344/22, a fim de melhor resguardarmos os nossos infantes das mazelas do mundo.
É cediço que a lei, por ela mesma, não é varinha de condão da fada madrinha, a ponto de modificar a realidade fática e social do país, mas, a nós, não restou dúvidas de que o legislador almejou uma prevenção geral negativa e, seja por meio de um Direito Penal Simbólico (resultado de um Direito Penal de Emergência), ou não, estava imbuído de boa intenção quando da elaboração dos trabalhos legislativos ao esculpir de hediondez o crime de homicídio praticado em desfavor de pessoa menor de quatorze anos. Se irá apresentar eficácia social só o tempo dirá....
E, por falar neles, nos trabalhos legislativos, o legislador, imbuído do espírito dos contos da branca de neve e dos sete anões, imitando a rainha-madrastra, que namorava o espelho, voltou-se para o seu próprio e disse a ele mesmo:
“- Espelho, espelho meu, existe realidade de violência e opressão que seja mais sensível do que aquela reportada na Lei Maria da Penha?”. A resposta negativa se impôs!
Lei Maria da Penha? Como assim? Não estamos falando de crianças? A resposta é positiva. Mas também, de igual modo, estamos conversando de violência doméstica e a violência é uma só, em qualquer lugar do mundo, de modo que inspirado nas premissas que o embasaram a redigir a Lei Maria da Penha, o legislador assim o fez quando da elaboração da Lei do Menino Henry Borel.
Voltemos os nossos olhos e sentidos para ela!
1.1 Contornos da Lei 14.344/22 ao crime de Homicídio (art. 121 do CP).
Na vida como ela é Dona Crecineide nunca desejou ser mãe. Sempre alardeou a todos que se tornou mãe por um infeliz acidente do destino. Dia desses (data de hoje, qual seja: 04/06/22) resolveu dar cabo da criança, seu filho, espancando-o e, logo após, amarrando-o no pé de goiaba de sua fazenda. A criança veio a óbito dois dias depois. A pergunta que não quer calar é a seguinte:
Dona Crecineide responderá criminalmente por sua conduta nos termos da Lei 14.344/22?
A resposta é parcialmente negativa, com algumas adaptações ao caso da vida real. E, para tanto, se fazem necessárias algumas análises acerca de lições de Direito Intertemporal, bem como noções acerca da natureza híbrida das normas.
Isso porque a Lei 14.344/22 publicada em 24 de maio de dois mil e vinte e dois não entrou em vigor na data de sua publicação. Entrará em vigor no lapso temporal de quarenta e cinco dias. Lei em período de vacatio legis ainda não produz efeitos, por ser despida força cogente e nua em eficácia. Sendo novatio legis in pejus,as suas disposições só encontrarão adequação típica nas condutas praticadas após 45 (quarenta e cinco) dias, no caso, após 08 de julho do presente ano. É o Direito Penal Intertemporal que assim nos ensina.
Mas, claro, no caso concreto acima descrito, restou patente a conduta de homicídio qualificado pelo meio cruel (art. 121, parágrafo segundo, inciso terceiro), crime hediondo, de igual modo.
Dona Crecineide não ficará sem a resposta do Direito Penal, apenas, a ela, não poderá ser aplicada a Lei 14.344/22 que deu o contorno de qualificadora ao artigo 121, parágrafo segundo, inciso nono ao art. 121 do CP, acrescido da causa de aumento da pena no parágrafo segundo em 2/3 por ter o sujeito ativo do crime um ascendente, sob pena de macularmos o princípio da irretroatividade da lei gravosa (a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu), consectário do princípio da legalidade e, gostemos ou não, direito fundamental dela e de todos nós! Uma “carta na manga” que todo cidadão possui contra as arbitrariedades, porventura cometidas, contra os atos do Poder Público. Dura lex sed lex!
Vale destacar que em período pretérito a edição da Lei 14.344/22, em caso similar ao por nós narrado, em que a genitora golpeou com uma furadeira o seu filho, criança, com apenas quatro anos de idade, acarretando-lhe o rompimento do baço, pelo único fato de a criança, por descuido, ter pisoteado nas fezes de um cachorro, o Superior Tribunal de Justiça, considerando o homicídio tentado qualificado pelo meio cruel, assim o fez para fundamentar a prisão preventiva , na faceta da necessidade de se garantir a instrução criminal. Confira o leitor trecho do julgado:
HC: 422140 RS.
EMENTA: HABEAS CORPUS SUBSTITUTO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. PRISÃO PREVENTIVA. MODUS OPERANDI. GRAVIDADE CONCRETA DO DELITO, PRATICADO, EM TESE, CONTRA O PRÓPRIO FILHO, DE 4 ANOS DE IDADE. MAUS ANTECEDENTES. TEMOR DAS TESTEMUNHAS. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS.INSUFICIÊNCIA. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. O habeas corpus não pode ser utilizado como substitutivo de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.2. A privação antecipada da liberdade do cidadão acusado de crime reveste-se de caráter excepcional em nosso ordenamento jurídico (art. 5º, LXI, LXV e LXVI, da CF). Assim, a medida, embora possível, deve estar embasada em decisão judicial fundamentada (art. 93, IX, da CF), que demonstre a existência da prova da materialidade do crime e a presença de indícios suficientes da autoria, bem como a ocorrência de um ou mais pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal. Exige-se, ainda, na linha perfilhada pela jurisprudência dominante deste Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que a decisão esteja pautada em motivação concreta, sendo vedadas considerações abstratas sobre a gravidade do crime.3. Mostra-se devidamente fundamentada a prisão preventiva em hipótese na qual o Tribunal a quo, ao dar provimento a recurso em sentido estrito ministerial, destacou a periculosidade do acusado, evidenciada pela violência e desproporção do delito imputado, consistente em golpear com uma furadeira o seu filho de apenas 4 anos de idade, com tal ímpeto que provocou-lhe o rompimento do baço, sendo que o ato foi motivado pelo simples fato de que a criança havia pisado nas fezes de um cachorro. 4. Por outro lado, é de se notar que os antecedentes criminais do acusado reforçam os indícios de sua personalidade violenta, uma vez que ostenta inquéritos por supostos crimes praticados em âmbito doméstico, uso de entorpecentes, furto tentado, estupro de vulnerável tentado e resistência. 5. Nos termos da orientação desta Corte, inquéritos policiais e processos penais em andamento, muito embora não possam exasperar a pena-base, a teor da Súmula 444/STJ, constituem elementos aptos a revelar o efetivo risco de reiteração delitiva, justificando a decretação ou a manutenção da prisão preventiva (RHC n. 68550/RN, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, DJe 31/3/2016).6. A prisão encontra justificativa também na necessidade de garantir a escorreita instrução criminal, uma vez que as testemunhas revelam temor em relação ao acusado - circunstância relatada espontaneamente pela avó da criança, e reforçada pela apresentação de versão desconectada dos fatos pela esposa do acusado.
7. As circunstâncias que envolvem o fato demonstram que outras medidas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal não surtiriam o efeito almejado para a proteção da ordem pública.8. Ordem não conhecida.
Há que se destacar, entretanto, que a tipificação penal de Crecineide não poderá estar abarcada pelo novo diploma normativo, por representar direito penal material e estar atrelada ao seu direito fundamental de liberdade.
Contudo, a nova lei no que toca ao aspecto processual penal obedece ao princípio do isolamento dos atos processuais e aplicação imediata, ou seja, o tempo rege o ato. Base legal: art. 2º do CPP.
Ilustrativamente, se a nossa mãe desalmada Crecineide, após espancar o seu filho e amarrá-lo ao pé de goiaba, não consegue ceifar-lhe a vida, devido ao fato de um vizinho, da fazenda ao lado, ter desamarrado a criança, e, note o leitor, mesmo tendo sido a conduta de Crecineide praticada antes da entrada em vigor da lei, após o período de vacatio legis, Crecineide poderá ter contra si (após a vigência normativa) um medida protetiva de urgência, qual seja, o afastamento de sua pessoa para com a criança - do lar de convivência, para o bem e resguardo da própria criança. O foco aqui é a criança e não a mãe! Isso porque as medidas cautelares ostentam a natureza jurídica de normas processuais penais genuínas e a elas não se aplicam o princípio da irretroatividade da lei gravosa, mas o princípio da imediatidade, nos termos do art. 2º do CPP. É a nossa posição!
Logo, o leitor deve tomar em conta que a resposta quanto à incidência da Lei Henry Borel a fatos pretéritos a sua entrada em vigor- dependerá da natureza da norma envolvida, se de natureza material ou processual. Note que a Lei Henry Borel possui caráter material e processual e apenas na parte material não será aplicada retroativamente!
1.2) Reflexos da Lei 14.344/22 na Lei dos Crimes Hediondos e no Código Penal.
O rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/90) que, por essência, é um rol taxativo sofreu ampliação com a Lei 14.344/22 ganhando o homicídio qualificado nova roupagem, com a qualificadora do inciso IX ao art. 121 do CP. Base legal: art. 32 da Lei 14.344/22. Confira o leitor:
“Art. 32. O inciso I do caput do art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art.1º ...................................................................................................................
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX).”
“Art. 121. ............................................................................................................
§ 2º ......................................................................................................................
Homicídio contra menor de 14 (quatorze) anos
IX - contra menor de 14 (quatorze) anos:
......................................................................................................................
§ 2º-B. A pena do homicídio contra menor de 14 (quatorze) anos é aumentada de:
I - 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é pessoa com deficiência ou com doença que implique o aumento de sua vulnerabilidade;
II - 2/3 (dois terços) se o autor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela.
Atente-se o leitor para o fato de, além do art. 121 do Código Penal ter sido objeto de contemplação pelo novo diploma normativo, dois outros artigos também assim o foram. São eles: art. 111 do CP – atinente ao tema da prescrição e, de igual modo, o art. 141 do CP – abarcando disposições referentes aos crimes contra a honra.
No que toca ao art. 111 do Código Penal, tal dispositivo tem a missão de nos revelar o termo inicial da pretensão punitiva do Estado. Em palavras simples: indaga-se a partir de que momento conta-se a prescrição quando tal cenário envolver como protagonistas crianças e adolescentes?
Nossa lei substantiva nos guiava ditando que : “ V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, (conta-se a prescrição) da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.” ( grifos nossos!).
O que efetivamente mudou com a Lei 14.344/22?
O objeto jurídico dignidade sexual foi ampliado para englobar qualquer violência perpetrada contra criança ou adolescente.
Confira o leitor:
Art. 31. Os arts. 111, 121 e 141 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passam a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 111. .............................................................................................................
V - nos crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.” (NR). ( grifos nossos!).
Mas em que consiste a violência contra a criança ou o adolescente?
O artigo 2º da Lei 14.344/22 nos fornece, com precisão, a resposta. Vejamos:
Art. 2º Configura violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial:
I - no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que compõem a família natural, ampliada ou substituta, por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. Para a caracterização da violência prevista nocaputdeste artigo, deverão ser observadas as definições estabelecidas na Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017.
Art. 3º A violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.
Não vamos muito longe...
No cenário do caso da vida, Enzola mudou-se de uma casa para um apartamento, aos onze anos de idade. Seu pai (Sr. Paulo Deixa Disso) logo tornou-se síndico do condomínio e Enzola, na sua visão mirim, achou que já era o dono do prédio. Subia bem alto no escorregador, a ponto de ficar quase da altura do muro que fazia divisa com o prédio e, para tanto, jogava areia nas roupas branquinhas da vizinha, a Dona Cacilda Gargarejo. Cansada de ficar lavando, mais de uma vez, as suas roupas e, do pouco caso genitor no tocante as suas reclamações, Dona Cacilda resolveu tomar uma atitude mais drástica. Eis que se dirigiu pessoalmente a reunião de condomínio e, na frente de todos “gargarejou”, isto é, xingou o meninos de todos os nomes, aproveitando a presença da criança para agredi-la fisicamente em público. O pai do menino fez “cara de paisagem” e, por desejar não se indispor com os vizinhos, nenhuma atitude tomou, por longos anos. Se tais fatos narrados forem praticados após a vigência da Lei 14.344/22, ainda que seu pai nenhuma atitude tomasse Enzola não ficaria ao desalento, sem uma resposta estatal. Poderá, agora, ele mesmo, buscar o Direito Penal para fins de reparação pelo mal sofrido (quando possuía onze anos de idade) e a sua pretensão não estará fulminada pela prescrição. Isso, claro, desde que não tenha sido proposta a ação penal em tempos pretéritos.
Outro aspecto interessante a ser mencionado por nós é o de que no caso acima narrado, em tempos anteriores a vigência da lei em comento, na hipótese da vizinha Gargarejo ter se limitado a prática do crime de lesão corporal de natureza leve em desfavor da criança, a ação poderia tramitar sob o rito da Lei 9.099/95, sem qualquer óbice. A competência dos Juizados Especiais Criminais, entretanto, restaria afastada caso pela somatória de crimes a pena cominada ultrapassasse dois anos.
Ilustrativamente, citamos a posição esboçada pela Corte Cidadã - à luz da legislação pretérita, em caso envolvendo violência doméstica, com aplicação do instituto da suspensão condicional do processo, outrora revogado, ante o descumprimento das condições propostas e aceitas. Confira o leitor: REsp 1498034/RS. Atente-se para o fato de que a decisão não fazia distinção entre os atores da violência doméstica - na qualidade de sujeito passivo do delito, podendo ser crianças ou não.
RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. AMEAÇA. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. DESCUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES IMPOSTAS DURANTE O PERÍODO DE PROVA. FATO OCORRIDO DURANTE SUA VIGÊNCIA. REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO MESMO QUE ULTRAPASSADO O PRAZO LEGAL. ESTABELECIMENTO DE CONDIÇÕES JUDICIAIS EQUIVALENTES A SANÇÕES PENAIS. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Recurso especial processado sob o regime previsto no art. 543-C, § 2º, do CPC, c/c o art. 3º do CPP, e na Resolução n. 8/2008 do STJ. PRIMEIRA TESE: Se descumpridas as condições impostas durante o período de prova da suspensão condicional do processo, o benefício poderá ser revogado, mesmo se já ultrapassado o prazo legal, desde que referente a fato ocorrido durante sua vigência. SEGUNDA TESE: Não há óbice a que se estabeleçam, no prudente uso da faculdade judicial disposta no art. 89, § 2º, da Lei n. 9.099/1995, obrigações equivalentes, do ponto de vista prático, a sanções penais (tais como a prestação de serviços comunitários ou a prestação pecuniária), mas que, para os fins do sursis processual, se apresentam tão somente como condições para sua incidência. 2. Da exegese do § 4º do art. 89 da Lei n. 9.099/1995 ("a suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta), constata-se ser viável a revogação da suspensão condicional do processo ante o descumprimento, durante o período de prova, de condição imposta, mesmo após o fim do prazo legal. 3. A jurisprudência de ambas as Turmas do STJ e do STF é firme em assinalar que o § 2º do art. 89 da Lei n. 9.099/1995 não veda a imposição de outras condições, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. 4. Recurso especial representativo de controvérsia provido para, reconhecendo a violação do art. 89, §§ 1º, 2º, 4º e 5º da Lei n. 9.099/1995, afastar a decisão de extinção da punibilidade do recorrido, com o prosseguimento da Ação Penal n. 0037452-56.2008.8.21.0017. (REsp 1498034/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/11/2015, DJe 02/12/2015).
E, aqui, cabe um adendo: A lei 14.344/22 proíbe expressamente a aplicação da lei 9.099/95 para os casos referentes à violência contra crianças e adolescentes. Confira o leitor:
“Art..226. ............................................................................................................
§ 1º Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
§ 2º Nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.” (NR).
Voltemos nossa análise, agora, a modificação no que toca as disposições comuns, concernentes aos crimes contra a honra. Base legal: art. 141 do Código Penal. A novidade aqui estampada foi o aumento de 1/3 (um terço) se quaisquer dos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) forem praticados em desfavor de criança ou adolescente, ao lado de pessoas com idade acima de 60 (sessenta anos) ou com deficiência.
Ampliou-se, aqui, o rol de sujeitos passivos para fins de maior reprimenda, no intuito de maior proteção a personalidade moral do ser humano, de per si considerado. Tal causa de aumento de pena apenas é excepcionada no tocante a injúria discriminatória, que possui disciplina própria de regulamentação tipificada no parágrafo terceiro do artigo cento e quarenta e um do Código Penal, do qual recebe o mesmo tratamento do racismo no tocante a imprescritibilidade. Perceba o leitor que a exceção no tocante ao aumento de pena, em tempo pretérito a vigência do novo diploma normativo, abarcava tão só o crime de injúria. Mas, já nos ensina o brocardo popular: “uma andorinha não faz verão!”. A exceção ao crime de injúria não se justificava, já que o bem jurídico integridade moral restava abalado de igual monta. Com a entrada em vigor da Lei 14.344/22, o crime de injúria, por ele mesmo, desde que não discriminatória, estará abarcado pelo aumento de pena.
Vejamos: Creuza é moça trabalhadeira. Desde muito jovem trabalha na bilheteria do único cinema do Município de Deus me Livre. Dia desses, sua filha menor de idade (Evinha dos Anjos) adoeceu e a creche, como não está autorizada a ministrar medicamentos para conter a febre, telefonou para o pai da criança, que, por necessitar, de igual forma, de sair para trabalhar optou por deixar a criança aos cuidados da mãe, já que essa estava encerrando o expediente no trabalho naquele dia. Mais lenta que de costume, já que Creuza estava se desdobrando entre olhar a criança e atender aos clientes, Dona Emengarda Abraziva, estressada pela demora da atendente, que, segundo ela, era injustificável passou a proferir palavras de baixo calão, gritando aos quatro ventos que a criança deveria voltar para a África, de onde nunca deveria ter saído, a fim de brincar com os orangotangos e não mais atrasar a fila do cinema.
A pergunta que não quer calar é se Abraziva, nesse caso hipotético por nós narrado, em tendo praticado o delito na vigência da Lei Henry Boreli responderia por ela, já que direcionou a sua conduta em desfavor de criança?
A resposta negativa se impõe. No caso ilustrativo por nós citado Abraziva, ao fazer menção a Àfrica, englobou o critério raça em suas ofensas. Trata-se de racismo estrutural que compõe o espectro do tipo injúria racial qualificada. Com sua conduta Abraziva não ofendeu somente Evinha, mas um grupo indeterminado de pessoas, pessoas essas que são pertencentes à mesma raça de Evinha. E racismo é racismo, independentemente de estar tipificado no bojo de uma injúria ou fora dela!
Para sermos fiéis ao leitor, citamos aqui decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal referida no HC 154248, que em caso similar ao por nós narrado, que envolvia injúria racial, decidiu da seguinte maneira:
Ementa: HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ESPÉCIE DO GÊNERO RACISMO. IMPRESCRITIBILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Depreende-se das normas do texto constitucional, de compromissos internacionais e de julgados do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento objetivo do racismo estrutural como dado da realidade brasileira ainda a ser superado por meio da soma de esforços do Poder Público e de todo o conjunto da sociedade. 2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. 4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. 5. Ordem de habeas corpus denegada.
Voltemos os nossos olhos, ainda, para a cena do cinema. Abraziva, estressada pela demora na fila - atinente a compra de ingressos para assistir ao filme, e, sabedora que a demora no atendimento estaria ocorrendo pelo fato de a filha da atendente estar doente; e, com ela, no trabalho, passa a proferir-lhe palavras de tom ofensivo do tipo: - “essa criança não está doente, está com birra. Além de birrenta é feia e só sabe atrapalhar!”.
Nesse caso, se a conduta de Abraziva se der após o advento da Lei Henry Borel, por tratar-se de crime de injúria, sem nenhum qualificativo, dará ensejo a uma condenação, com pena aumentada em um terço (1/3) - por ter sido praticada em face de criança. Repise-se: O dolo do sujeito passivo, aqui, não foi o de ofender uma raça, mas uma pessoa determinada, qual seja, Evinha.
1.3) Influxo da Lei Henry Borel na Lei de Execução Penal.
A modificação pontual ocorrida na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/92) deu-se no tocante ao instituto da limitação de final de semana - que nada mais é que do que a obrigação de permanência do apenado, em dias e horários determinados pelo legislador, em casa de albergado ou outro estabelecimento similar.
Dispõe o art. 152 da LEP, em seu caput, que poderão ser ministrados ao condenado durante o tempo de permanência cursos e palestras e atribuídas atividades educativas. Já nos ensina o brocardo popular: “cabeça vazia, oficina do diabo”. Logo, ocupando a mente o condenado não disporá de muito tempo para idealizar empreitadas criminosas. É fato!
A modificação do art. 152 da LEP não se operou em seu caput, mas em seu parágrafo único. E, aqui, exporemos a redação nova, acrescida pela Lei 14.344/22. Confira o leitor:
Art. 152: “Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas.
Parágrafo único - Nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança, o adolescente e a mulher e de tratamento cruel ou degradante, ou de uso de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra a criança e o adolescente, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”.
Vale dizer que a redação anterior englobava como sujeito passivo do crime tão somente a mulher vítima de violência doméstica e familiar. O espectro da violência doméstica e familiar fora ampliado para abarcar, agora, os infantes e adolescentes. Educar o agressor como medida preventiva para evitar novas lesões aos bens jurídicos das crianças, dos adolescentes e das mulheres, todos inseridos no contexto de violência doméstica e familiar.
Transpondo a letra fria da lei para o cotidiano, é cediço que grades não ressocializam ninguém, assim, após 08 de julho de 2022, caso José das Couves Mussum aporrinhado com as malcriações de Zacarias, seu filho adolescente, de treze anos, perca a cabeça e resolva dar uma “sova” no garoto, com vara de marmelo - achando que, por ser pai, pode corrigir o seu filho, de qualquer maneira, e, a qualquer preço, o magistrado poderá determinar o seu comparecimento a programas de recuperação e de reeducação, no afã de que o pai desavisado informe-se melhor a respeito dos limites do seu poder punitivo, para fins de melhor educar o seu filho e, quem sabe, amanhã Mussum não seja mais um voluntário a fornecer depoimentos de sua evolução, como forma de ajudar o próximo. No mesmo lema do AA (alcoólicos anônimos): “Só por Hoje eu não agrido”! ou “ Por hoje serei melhor do que ontem”. Terapia coletiva em que o grupo ajuda uns aos outros.
Mas o “causo” da vida como ela dá cores e ganha asas além do papel. Fato é que Dona Amargosa, residente do Município Onde o Vento Faz a Curva, mãe de Lucinda Inocêncio, desgostosa do namoro de sua filha adolescente com Patrício Espinhoso, no intuito de corrigir o comportamento que considera inadequado por parte de sua filha, e, como forma de castigo - pelo fato de a mesma desobedecê-la e insistir no namoro, tranca-a em seus aposentos como forma de evitar novos encontros. Lucinda tinha cabelos curtos e, diferente das estórias em quadrinhos de Rapunzel, sequer poderia jogar as suas tranças, a fim de fugir.
Sua conduta não ficará impune. A filha mantida presa acarretará a mãe, após a vigência normativa na lei em apreço, a sua imediata vinculação a casa de albergado.
Em obediência ao art. 152 da LEP, o douto magistrado da comarca aplicará a Amargosa o comando legal, determinando o seu comparecimento, por cinco horas diárias, aos finais de semana, a casa de albergado, para fins de reeducação.
Mas o juiz era recém empossado e acabara de chegar ao Município Vento Faz a Curva.
Contudo, o Município de O Vento Faz a Curva, além do vento, possui pouca coisa e, nessa toada, o Município não possui casa de albergado para que Amargosa pudesse cumprir a limitação de final de semana. Limitação essa, até, então, desconhecida pelo juiz.
A pergunta que não quer calar é a seguinte:
Diante da ausência de casa de albergado na localidade, a defesa de Amargosa poderá pleitear ao juízo pelo cumprimento de sua pena em regime domiciliar?
Se não houver casa de albergado ou outro estabelecimento adequado, nada obsta que Amargosa cumpra a pena restritiva de direitos - consistente em limitação de final de semana - em regime domiciliar e, para tanto, assistindo palestras de auto-ajuda, de forma online. A concessão, para o regime domiciliar, contudo, não se dá forma automática, embora não seja de plano vedada. As circunstancias do caso concreto irão ditar a melhor solução. Assim nos parece. E quem nos socorre desse enrosco, em verdadeiro diálogo das fontes, é a LINDB. Trata-se do primado da realidade. Confira o leitor:
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
Logo, se há um obstáculo físico, qual seja, a ausência de casa de albergado ou outro estabelecimento adequado, similar, o primado da realidade impõe ao magistrado solução justa e consentânea com o caso a ser por ele analisado. É a nossa posição!
Instada a pronunciar-se sobre o tema, a Corte Cidadã, analisando um caso que envolvia um apenado que cumpria a limitação de final de semana - em regime domiciliar - por ausência de casa de albergado ou outro estabelecimento adequado e, exercendo a profissão de motorista durante os dias da semana, assim fazendo, o STJ achou por bem aplicar ao condenado o instituto da remissão pelos dias trabalhados, na condição de motorista. Confira o leitor trecho da decisão:
HC: 1560854.
EMENTA PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO CRIMINAL. REGIME SEMIABERTO. CUMPRIMENTO DA LIMITAÇÃO DE FINAIS DE SEMANA EM PRISÃO DOMICILIAR. AUSÊNCIA DE CASA DE ALBERGADO NA COMARCA. REMIÇÃO DA PENA PELO TRABALHO. POSSIBILIDADE. SÚMULA 562/STJ. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. Na hipótese, o reeducando progrediu ao regime intermediário e, diante da ausência de Casa de Albergado na comarca, foi-lhe deferido o regime domiciliar, com limitação de finais de semana, a fim de que ele exercesse o trabalho de motorista durante os dias úteis. 2. Não se vislumbra incompatibilidade alguma ou qualquer óbice em se conceder ao apenado a remição pelos dias trabalhados, pois tal direito se reveste de natureza pública e se insere no sistema progressivo, em que há uma flexibilização gradual da sanção, à medida que o reeducando vai se aproximando da liberdade. Negar ao sentenciado o benefício representaria inegável desestímulo à progressão de regime. 3. Uma vez presentes os requisitos legalmente exigidos, descabe ao intérprete opor empecilhos à remição pelo trabalho, uma vez que, ainda que o sentenciado esteja a cumprir a reprimenda em regime domiciliar, tal benefício lhe fora deferido em razão da própria falência do sistema carcerário. 4. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que os sentenciados que cumprem pena no regime semiaberto, como na presente hipótese, ou fechado, têm direito à remição da pena pelo trabalho, consoante a previsão legal do art. 126 da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei n. 12.433/2011, que prevê que "o condenado que cumpre pena em regime fechado e semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena". Entendimento em consonância com a dicção da Súmula n. 562/STJ. 5. Recurso especial desprovido.
Vamos além. Suponhamos que tenha sido imposta a um condenado qualquer uma condenação por uma pena restritiva de direitos – consistente na limitação de finais de semana, acompanhada de uma pena de multa. Na ausência de casa de albergado ou de estabelecimento adequado é licita a cumulação de duas penas de multa?
A resposta negativa se impõe. Em não havendo casa de albergado ou outro estabelecimento adequado na localidade o regime domiciliar se faz presente no caso em apreço, como solução prioritária em detrimento de nova imposição a pena pecuniária, por expresso mandamento legal. Assim nos ensina o Superior Tribunal de Justiça. Confira o leitor: Resp. 1716888:
EMENTA RECURSO ESPECIAL. PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE SUBSTITUIÇÃO POR DUAS RESTRITIVAS DE DIREITO OU UMA RESTRITIVA DE DIREITOS E MULTA. LITERALIDADE DO ART. 44, § 2º, DO CÓDIGO PENAL. FIXAÇÃO DE LIMITAÇÃO DE FIM DE SEMANA E MULTA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE LIMITAÇÃO DE FIM DE SEMANA POR MULTA. AUSÊNCIA DE CASA DE ALBERGADO. DUAS PENAS DE MULTA. IMPOSSIBILIDADE. CUMPRIMENTO EM ESTABELECIMENTO ADEQUADO. 1. Hipótese em que a pena privativa de liberdade imposta ao apenado foi substituída pelo juízo de primeiro grau por uma restritiva de direitos, consubstanciada na limitação de final de semana, e por uma de multa, nos exatos termos do art. 44, § 2º, do Código Penal. 2. O Tribunal a quo, considerando a inexistência na comarca de casa de albergado, acolheu o pedido da defesa para substituir a limitação de final de semana por outra pena de multa, cumulando duas penas substitutivas da mesma espécie. 3. Esta Corte detém entendimento no sentido da impossibilidade de imposição de duas penas pecuniárias, em obediência à regra contida na parte final do § 2º do art. 44 do Código Penal (AgRg no REsp 1449226/RN, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 02/06/2015, DJe 15/06/2015). 4. A letra da lei não permite margem a outra interpretação, devendo ser acompanhada a literalidade da disposição normativa contida na segunda parte do § 2º do art. 44 do Código Penal. 5. Nas situações em que não houver casa de albergado na localidade, esta Corte já entendeu que o cumprimento da pena de limitação de fim de semana deve se dar em outro estabelecimento adequado ou em regime domiciliar. Precedentes. 6. Recurso provido.
Acrescentamos, se o crime acima narrado envolver a prática de violência doméstica contra criança ou adolescente, na ausência de casa de albergado ou estabelecimento adequado, com maior razão, agora, não poderá ser imposta unicamente a pena de multa, ainda que em duplicidade. É o legislador que nos impõe tal restrição, nos termos do que preconiza o parágrafo segundo do art. 226 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Confira o leitor:
§ 2º Nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa." (NR)
1.3) Incursão da Lei Henry Borel no ECA ( Lei 8.069/90).
O ponto alto das modificações no Estatuto da Criança e do Adolescente, advindas da Lei 14.344/22 cinge-se ao seu art. 226 e seu parágrafo único que contempla vedação expressa de aplicação subsidiária da Lei 9.099/95, aos crimes nela inseridos.
Foi o mesmo que o legislador fez no tocante aos crimes cometidos contra a mulher em contextos de violência doméstica especificados na Lei Maria da Penha, e, assim procedeu, em seu art. 41.
Atente o leitor para o mesmo espírito de proteção do legislador. A violência é uma só. Violência é violência. O resto são rótulos! E, isso, ainda que a pena cominada em abstrato seja de até dois anos, de tal modo que se afasta a competência do rito comum sumaríssimo, até porque a violência doméstica - seja ela praticada contra a mulher ou contra crianças e adolescente - não se afinam com infrações de menor potencial ofensivo, dada a magnitude do bem jurídico lesado.
Confira o leitor o teor do texto normativo:
Art. 226.
§ 1º Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
O parágrafo segundo do mesmo art. 226 faz alusão expressa a vedação da penas de cesta básica. Vejamos:
§ 2º Nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa." (NR)
O parágrafo segundo acima narrado é um pedaço da Lei Maria da Penha, guardadas as suas peculiaridades. Reflexo da dignidade da pessoa humana, no sentido de vedar a banalização da coisificação de pessoa. O respeito, a honra, a integridade física e psicológica são bens jurídicos que não possuem preço.
Ilustrativamente:
Pedro Macarrão era casado com Lívia Mostarda. Amante dos vinhos, o homem sempre exagerava na dose e, o final da noite, nunca acabava bem. Dia sim, dia não, a mulher e os filhos menores levavam paulada na cabeça; além de que dia sim e, no outro também, o beberrão visitava a carteira de sua mulher, subtraindo-lhe dinheiro para comprar bebidas. Beneficiado pela escusa absolutória - quanto ao crime de furto, Pedro já encontrava óbice ao pagamento de cesta básica quanto ao crime de violência doméstica contra a mulher, por expressa vedação da Lei Maria Penha. Agora, após o advento da Lei Henry Borel, que tomou de empréstimo o espírito Maria da Penha, a vedação de cesta básica também se estenderá aos filhos menores que levarem pauladas do pai. Do contrário, se possível fosse compensar violência doméstica com gênero alimentício ficaria barato agredir. Não é esse o espírito!
1.4) Influência da Lei Henry Borel na Lei 13.431/17
Tal lei encampa um complexo de garantias de direitos em prol de crianças e adolescentes que se encontram na posição de vítimas ou testemunhas de violência. Igualmente objeto de modificação legislativa pela lei 14.344/22.
Há que se destacar que a Lei 13.431/17, tal qual a Lei Maria da Penha, também carrega em seu corpo formas de violência contra a criança e ao adolescente, inovando com a denominada violência institucional, que nada mais significa que a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando desaguar em revitimização.
A lei Henry Borel trouxe ao art. 4º da Lei 13.431/17 a violência patrimonial - que se traduz em qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluídos os destinados a satisfazer as suas necessidades, desde que a medida não se enquadre como educacional (que guarda regulamentação própria).
E, aqui, um caso ilustrativo a ser citado é o do João Penteado. Empresário bem sucedido e um eterno amante de si mesmo. Apaixona-se pelas mulheres com a mesma fugacidade das roupas que compra diariamente. Por vaidade, casou-se com Joaquina Belezura, a miss de sua cidade Natal. Casamento que não durou uma troca de estação do ano e, do qual, adveio Lívia, filha do casal. Fato é que após o desenlace, mesmo acumulando muitos recursos financeiros, Penteado nunca quis dividir o “pão”, fosse com a mulher ou com a filha menor, de modo que nunca pagou pensão alimentícia para a ex-mulher - que era paupérrima e, após um acidente de ônibus, tornou-se paralítica; tampouco pagou alimentos para a filha menor. O homem egoísta só pensava em comprar roupas! Caso patente de violência patrimonial. Já o era pela Lei Maria da Penha.
Agora, após o advento da Lei Henry Borel, o caso acima narrado também encontrará tipificação no art. 4º da Lei 13.431/17 - como um caso de violência patrimonial contra a criança e/ou adolescente.
Confira o leitor o dispositivo da Lei Maria da Penha acima citado, dispositivo esse que foi praticado copiado para Lei 13.431/17:
LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
1.6) Crimes Tipificados na Lei 14.344/22.
É importante que se diga que a Lei 13.431/17 elenca dois crimes, dos quais passaremos a discorrer. Vejamos:
DOS CRIMES
Art. 25. Descumprir decisão judicial que defere medida protetiva de urgência prevista nesta Lei:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a medida.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
Art. 26. Deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou o abandono de incapaz:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.
§ 1º A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta morte.
§ 2º Aplica-se a pena em dobro se o crime é praticado por ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima.
O art. 25 de seu texto, com a modificação legislativa promovida pela Lei em apreço, encampa o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, reverso da mesma moeda. Qual moeda? A moeda que traz no verso o art. 24, A, da Lei Maria da Penha. Confira o leitor:
Art. 24-A. Lei Maria da Penha: Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
Toc toc toc... Bate na porta a realidade do mundo fenomênico...Creolinda era mãe severa. Para ela, tudo se resolvia na base da pancadaria, que, em sua visão distorcida, era base da educação. Certa feita, com a desobediência de Tício, o seu filho menor, Creolinda pegou de empréstimo o cinto do marido e deu tanta cintada nas pernas de Tício que o menino, traumatizado, ficou três dias sem abrir a boca. Suponhamos que a sua conduta tenha sido praticada após 08 de julho de 2022, após o advento da Lei Henry Borel. O magistrado aplicou a ela uma medida protetiva de afastamento do lar - com vistas a proteção da criança. Creolinda, contudo, visitava a casa quando o marido saía, pois não suportava perder o controle sobre o filho. Diante de tal contexto, o magistrado poderá aplicar a ela o art. 25 da Lei 14.344/22.
Pergunta-se: Levando-se em consideração que a Lei 14.344/22 estipula em seu art. 25 que a pena de detenção variará de três meses a dois anos, sendo pena, portanto, inferior a quatro anos, será caso de aplicação do art. 322 do CPP (“A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.”)?
A resposta negativa se impõe. Aplica-se ao presente caso o princípio da especialidade e a Lei Henry Borel, por expressa vedação legal, proíbe o delegado de arbitrar fiança, independentemente da quantidade da pena ser inferior a quatro anos. É caso de aplicação da cláusula de reserva de jurisdição por expresso comando legal. A Lei Maria da Penha assim o fazia, caminhando o legislador, pois no mesmo passo, ao seu lado.
Repise-se: as duas hipóteses (violência doméstica contra a mulher e violência doméstica contra criança e/ou adolescente) revelam cláusula de reserva de jurisdição - no que toca ao instituto da fiança. Em tais casos, o delegado encontra óbice legal no arbitramento, que se dá unicamente por ato do juiz.
O pulo do gato, aqui, é que a cláusula de reserva de jurisdição - quanto ao arbitramento da fiança - somente ocorrerá quando do descumprimento de medida protetiva. O delegado poderá arbitrar fiança nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher - e entendemos que, de igual modo, poderá arbitrar fiança nos crimes que envolvam violência contra a criança e/ou adolescente. O que o delegado não poderá fazer é arbitrar fiança para o crime específico de descumprimento de medida protetiva (art. 25 da Lei 14.344/22) - atinente a violência perpetrada em face deles. Não confunda o leitor alhos com bugalhos!
Já o art. 26 trouxe um crime inédito. É a sociedade colocando os olhos na pessoa do infrator, funcionando como fiscal de condutas que acarretem violência contra as crianças e os adolescentes. E, para tanto, em casos de denúncias de crimes dessa natureza, os entes federativos, deverão premiar o denunciante que irá colaborar com a justiça, com o mesmo espírito do princípio do protetor-recebedor, em seara ambiental.
Contudo, o legislador resolveu criminalizar a omissão daquele que sabe e nada faz para minorar a violência doméstica praticada em desfavor da criança e adolescente. Quem cala consente e o consentimento, aqui, revelado pelo não agir, passou a ser crime.
Logo, a ausência de comunicação à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante, formas de violência de educação, correção ou disciplina ou mesmo o abandono de incapaz- irá configurar um crime omisso próprio, cujo dever de agir, por espírito de solidariedade, emana da norma.
Assim, se Mévio Limoeiro, lenhador que é protagonista da vida real da historinha em quadrinhos de João e Maria - que foram levados para a floresta pela segunda vez pela madrastra má, dessa vez, sem o miolo de pão para demarcarem o trajeto, sendo por lá abandonados – e, disso ele presenciar ou tiver conhecimento e nada comunicar à autoridade pública, após o advento do novo diploma legal, por faltar com o seu dever legal de agir, guardando para si a ciência do crime de abandono de incapaz, incidirá nas penas do art. 26 da Lei 14.344/22. Se as crianças se ferirem gravemente na floresta (lesão corporal de natureza grave), Mévio ainda terá a sua pena aumentada de metade e, triplicada, caso venham a perder a vida, bem como terá a sua pena fixada em dobro - por ser pai (ascendente) das vítimas. É a vida imitando a arte!
Conclusão
Durante décadas o autoritarismo imperou como forma de educação e correção às crianças e aos adolescentes. A violência psicológica, por não ser detectada em exame de corpo de delito, restava invisível aos olhos da sociedade. A violência física, enxergada como castigo justo, era desprezada aos olhos da família, da sociedade e do Estado. Muitas crianças, hoje, pessoas adultas acumulam traumas de maus tratos velados, outras tantas perderam a vida para que hoje os seus gritos fossem escutados. E do encontro da comoção social com sentir legislativo brotou a Lei 14.344/22.
Que o Direito Penal não poder ser encarado como um bom pai de família - sabemos disso, mas quando não se tem nenhuma luz, qualquer luz que reluz vira ouro.
Logo, ainda que essa seja apenas uma resposta do legislador à sociedade, alinhado ao Direito Penal Simbólico, que seja, ao menos, o pontapé inicial para a efetividade daquilo que denominamos de prevenção geral negativa e, não importa se imbuído de medo da reprimenda ou de valores éticos, se o homem pensar duas vezes antes agir, já terá valido a pena a razão de ser da própria pena.
Referências Bibliográficas
MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Trad.: Cláudia Vianna Garcia e José Carlos Nobre Porciúncula Neto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007;
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 4ª Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008;
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. 2ª Ed. Trad.: Diego-Manuel Luzon Peña et. al. Madrid: Editorial Civitas, 1997.
Ex Tabeliã pelo TJMG. Especialista em Compliance Contratual, pela Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de La Empresa – Montevideo – UY. Escritora. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAULA NAVES BRIGAGãO, . Um primeiro olhar ao enquadramento normativo da Lei 14.344/22 (Lei Henry Borel) ao mundo dos fatos. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2024, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59044/um-primeiro-olhar-ao-enquadramento-normativo-da-lei-14-344-22-lei-henry-borel-ao-mundo-dos-fatos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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Por: Helena Vaz de Figueiredo
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