RODRIGO SONCINI DE OLIVEIRA GUENA[1]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo possui como objetivo principal analisar a constitucionalidade da Emenda Complementar nº96/2017, delineando sobre a relação antropocêntrica do homem com o animal e sua origem. Analisando a natureza jurídica do animal nas legislações brasileiras e outros países que versem sobre sua proteção. Expondo os posicionamentos do STF em relação aos direitos dos animais não-humanos; relacionando a referida Emenda a estes posicionamentos e ao princípio da Proibição de Retrocesso do Direito Ambiental. A metodologia utilizada para a elaboração da pesquisa é a revisão bibliográfica, foram realizadas pesquisas na internet, consultas em doutrinas que dispõem sobre o assunto, análise de Leis e artigos acadêmicos. Inicialmente foi realizado um estudo quanto ao surgimento das ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) que ao proibirem certas manifestações formaram um movimento que desencadeou a criação da referida Emenda. Observou-se a inconstitucionalidade da Emenda Complementar 96/2017, devido aos inúmeros posicionamentos dos Tribunais, posicionamentos estes demonstrados principalmente pela aprovação de diversas ADIs que proibiam as práticas já reconhecidas como cruéis, foi observado também a falta de regulamentação dessas práticas, que abre lacunas, criando um conceito normativo de crueldade ao descaracterizar uma crueldade concreta por decreto normativo.
Palavras-chave: Crueldade. Prática Desportiva. Animal.
ABSTRACT: The main objective of this article is to analyze the constitutionality of Complementary Amendment No. 96/2017, outlineing the anthropocentric relationship of man with the animal and its origin. Analyzing the legal nature of the animal in Brazilian andother Latin American laws that see about its protection. Exposing the Supreme Court’s position in relation to the rights of non-humananimals; relating Co mplementary Amendment No. 96/2017 to these positions and to the principle of the Prohibition of Retrogression of the Right Ambiental. The methodology used for the preparation of the research is the literature review, internet research, consultations on doctrines on the subject, analysis of laws and academic articles were conducted. Initially, a study was carried out on the emergence ofThe ADIs (Direct Actions of Unconstitutionality) that by prohibiting certain manifestations formed a movement that triggersor the creation of said Amendment. It was observed the unconstitutionality of Complementary Amendment 96/2017, due to the numerous positions of the Courts, positions demonstrated mainly by the approval of several ADIs that prohibited practices already recognized as cruel, it was also observed the lack of regulation of these practices, which opens gaps,creating gaps, creating a normative concept of cruelty by mischaracterizing a concrete cruelty by normative decree.
Keywords: Cruelty. Sports Practice. Animal.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo ponderar a respeito da Emenda complementar nº 96 de 2017, avaliando se as práticas desportivas realizadas com animais, mesmo que abrangidas no rol de patrimônio cultural, ou seja, regulamentadas, que foram autorizadas pela Emenda são constitucionais.
Analisar a relação do ser humano com o animal, a origem e fundamentos para a visão do animal como objeto de uso para a realização das vontades do ser humanos, assim como as diferentes relações: conservadora, reformista e abolicionista.
Tratar brevemente sobre a evolução da legislação brasileira sobre os animais e uma comparação com outros países, o status jurídico dos não-humanos na legislação brasileira, principalmente na Constituição Federal, Código Civil e normas ambientais, comparando as diferentes proteções com algumas legislações estrangeiras.
Tem como objetivo analisar o texto da emenda complementar nº 96/2017 que determinou que as práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis, se consideradas bens de natureza imaterial do patrimônio cultural brasileiro.
Ponderar sobre as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) anteriores, que proibiram as manifestações culturais, de que trata a emenda, especialmente sobre a posterior reação à decisão do STF na ADI 4983 (que julgou inconstitucional a Lei nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado), que atuando como legislador constituinte e representante do povo, o Congresso Nacional brasileiro aprovou a Emenda nº 96/2017.
Diante disso, analisar sua incompatibilidade com o artigo 225 da Constituição Federal, que trata sobre o direito ao meio ambiente e a proteção aos dos animais, e com os entendimentos já consolidados pelo STF de proteção as garantias e direitos individuais relativos ao meio ambiente e a vedação dos maus tratos com os animais.
2 A RELAÇÃO ENTRE O SER HUMANO E O ANIMAL
A relação entre o homem e o animal é de predominância dos interesses humanos sobre a vida desses seres, desde os ensinamentos bíblicos, que colocam os animais como objetos de servidão as vontades humanas, até os pensamentos filosóficos como o do filósofo René Descartes (1596 a 1650), que em sua tese, o mecanicismo cartesiano, definia os animais como meras máquinas que não possuíam sentimentos, capacidade de raciocinar e de sentir dor ou prazer, a ideia é de que o papel do animal é de ser usado para satisfazer a vontade humana, mesmo que essa ultrapasse seu bem-estar.
Segundo Melo e Rodrigues (2019) há três formas de interação entre os seres humanos e os animais não-humanos: a dos conservadores, a dos reformistas e a dos abolicionistas.
A corrente conservacionista, é baseada na visão antropocêntrica de que todo direito é para o homem, que passa a ser referencial de medida para todas as coisas, os animais são tratados como meros objetos cujo objetivo único é servir a ele.
A corrente reformista afirma que o tratamento dado aos animais deve ser gradualmente alterado através de estudos científicos e alterações legislativas. Como animais são seres sencientes, Singer (2004) alega que estes possuem interesses, pelo menos o de viver sem sentir dor ou maus-tratos, de acordo com ele, seria o suficiente garantir um status ético.
A corrente abolicionista apoia a abolição total do uso de animais pelo ser-humano. Propõe o reconhecimento de seus direitos e assim sua libertação total. Tal corrente, apoiada por Tom Regan, pressupõe que os animais não humanos são detentores de direito e devem poder experimentar a vida de forma plena, ampliando os direitos fundamentais aos animais não-humanos. Segundo Regan, indivíduos que são sujeitos de uma vida merecem ser tratados com respeito, com o intuito de que seus bens mais importantes sejam protegidos (REGAN, 2006 apud SILVA, 2007).
3 O DIREITO DOS ANIMAIS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Para Ataíde Junior (2018), o direito animal é o conjunto de princípios e normas que estabelecem os direitos fundamentais dos animais, independentemente da sua função ecológica. Este conceito se baseia na apreciação da Constituição que assegura proteção aos animais e que não sejam sujeitados a tratamentos que ponham em risco os submetam a crueldade, possam provocar sua extinção ou prejudiquem sua função ambiental.
Quando se refere aos animais o artigo 1º, caput da Lei nº 5.197/67 (BRASIL, 1967), Lei de proteção à fauna, define os animais silvestres como bem de uso comum do povo. Já os animais domésticos são classificados pelo Código Civil (BRASIL, 2002) como semoventes suscetíveis de direitos reais, eles possuem direito à integridade física, mas não à vida e à liberdade.
Na Constituição Federal (BRASIL, 1988) tem-se o tratamento dos animais por duas visões: a de fauna, visão do Direito Ambiental, com base no valor ecológico e o valor enquanto indivíduo senciente, com dignidade própria, visão do Direito animal. Assim é possível distinguir o Direito Ambiental e o Animal, mesmo que com princípios e regras compartilhadas.
Em seu artigo 225, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) expressa o protecionismo animal, estabelecendo a proteção dos maus tratos e tratamentos cruéis aos mesmos e incentiva à educação ambiental, demonstrando uma contradição por garantir direitos a seres que são classificados como coisa, o princípio lógico é de que coisas não têm direito.
A necessidade do reconhecimento da dignidade animal vem do fato de ele ser senciente, ou seja, ter a capacidade de sentir dor e sofrimento, físico ou psíquico. Como a dignidade se enquadra nos direitos fundamentais é dever do Estado regulamentar meios de proteção a ela.
Os animais podem ser considerados objeto de direito ou sujeitos de direito, são considerados seres sensíveis ou sencientes e, por esta condição, merecem uma proteção diferenciada em nosso ordenamento jurídico.
A base legal para o posicionamento que os considera como seres sensíveis é o artigo 225, VI da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que proíbe toda e qualquer prática que submeta os animais à crueldade e artigo 32 da Lei nº 9.605/1998 (BRASIL, 1998) que considera crime todo comportamento que os submeta a maus-tratos.
Contudo, a exploração dos animais é permitida por outras Leis no Ordenamento Jurídico brasileiro, a exemplo temos o Código Civil (BRASIL, 2002), que em seu artigo 441, §2º, trata os animais como bens semovente, bem como o artigo 1.442 do mesmo Código, que permite que os animais sejam matéria de penhor agrícola.
A Lei nº 9.605/98 (BRASIL, 1998) permite que os animais sejam utilizados em experiências científicas quando não existirem recursos alternativos, considerando pelo senso comum como um “mal necessário” para promover inovações médicas que curem a sociedade.
Mesmo com essa atitude cruel, a Lei não admitia que os animais fossem tratados desta forma, ou seja, que a sua integridade física fosse violada apenas para satisfação e entretenimento de indivíduos.
As doutrinas que ainda se mostram apoiadoras destas atitudes geralmente se baseiam nos pensamentos de Immanuel Kant, que em sua tese alegava que os animais eram meras máquinas, que não sentiam sequer dor e que apenas os seres racionais teriam direitos inerentes a sua condição, os direitos humanos, porque o atributo da razão conferiria aos animais humanos uma superioridade jurídica em relação aos outros. Baseados neste pensamento fica o questionamento a respeito da situação dos bebês e de pessoas que não possuem condições mentais de demonstrar suas vontades claramente. Esses indivíduos, mesmo sem conseguir desenvolver um raciocínio complexo, não perdem a condição de humanos, nem os direitos advindos dela.
Em contrapartida aos pensamentos de Kant temos o pensamento Utilitarista, que é uma teoria ética caracterizada pela ideia de que as condutas adotadas devem promover a felicidade ou prazer do coletivo, de forma que o bem-estar de cada indivíduo importa. Os primeiros teóricos utilitaristas defenderam a consideração moral dos animais não humanos, afirmando que seus interesses deveriam ser respeitados tanto quanto os interesses dos humanos.
Para o utilitarismo, o uso de animais pode ser aceitável apenas se a felicidade causada pela sua exploração for maior do que o dano causado, o que não é possível, já que é necessário muito sofrimento para produzir prazeres momentâneos como o uso de animais para o entretenimento. Logo, não se pode considerar essa exploração moralmente legítima para o utilitarismo.
4 O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ANIMAIS NO DIREITO ESTRANGEIRO
Comparando a legislação brasileira com outros países percebe-se que apesar da evolução ocorrida recentemente, a legislação brasileira está atrasada, há a necessidade da criação de Lei específica para a proteção dos animais não-humanos, tutela diversa e mais adequada do que a do meio ambiente.
No Chile a proteção animal é regulamentada pela Lei 21.020 de 2017 – Lei de posse responsável de animais de companhia e também pelo artigo 291 do seu Código Penal. De acordo com o Código Penal chileno (CHILE, 1874) é possível que haja a inabilidade perpetua para possuir animais, também há a individualização do termo animal, podendo diferenciar o crime cometido contra uma ou mais animais e assim punir adequadamente Ainda assim, a Lei chilena não mudou o status legal do animal e assim como no Brasil são colocados como propriedade.
A Colômbia também possui Lei própria para a proteção animal, o Estatuto Nacional de Proteção dos Animais de 1989, que foi alterado pela Lei 1.774/16 (CHILE, 2016), que alterou também o Código Civil Colombiano, reconhecendo os animais como seres sencientes. A Lei colombiana descreve taxativamente as condutas consideradas como crueldade, mas classifica o crime de maus tratos como material. Semelhante a Lei brasileira e chilena, a Lei colombiana também mantem o status legal do animal como coisa.
Em 2015 a França alterou seu Código Civil, através da Lei 177, de 28 de janeiro de 2015, conferindo maior proteção aos direitos dos animais, rompendo com a teoria cartesiana do animal-máquina e estabelecendo um status jurídico intermediário para os animais, entre as pessoas e as coisas. “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime de bens” (FRANÇA, 2015).
A nova lei de bem-estar animal regulou temas como a proibição gradual do uso de animais em circos, a proibição da venda de cães e gatos em sites e pet shops, a exigência para novos donos de animais que devem assinar um certificado confirmando que entendem as responsabilidades e custos envolvidos, a lei também trouxe penalidades mais severas para o abandono de animais.
5 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E USO DE ANIMAIS NÃO-HUMANOS NO BRASIL
A carta magna promulgada em 1988 buscou efetivar a democracia, estabelecendo os direitos fundamentais. Um dos direitos elencados foi a proteção ao patrimônio cultural que estabelece um extenso conjunto de valores, princípios e normas que protegem à cultura, com o objetivo de garantir seu acesso, a liberdade de criação, a transmissão e a igualdade dos bens culturais.
Clifford Geertz (2006) conceitua a cultura como “a própria condição de existência dos seres humanos, produto das ações por um processo contínuo, através do qual, os indivíduos dão sentido à suas ações”.
A sociedade tem passado por modificações em todas as áreas do conhecimento ao longo da história. A cultura também sofreu com a influência de tais transformações que ocorreram de forma lenta e gradual. Podemos então assegurar que a cultura é passível de mudança.
No Brasil, com o desenvolvimento da cultura em diversas regiões foram criadas manifestações culturais que se utilizam de animais, a vaquejada, o rodeio e o laço são práticas rotineiras da sociedade brasileira, possuindo festas de expressões nacionais, como a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos com um público de 800 mil pessoas em 2019, movimentando cerca de R$ 900 milhões com o turismo. A tradicional Festa da Vaquejada em Serrinha, na Bahia, que ocorreu com um público de 300 mil pessoas em 2019.
Com a evolução do Direito animal muitas destas Manifestações foram proibidas por um período, através da criação de Leis, haja vista que em sua realização as atividades configuram crime de maus-tratos.
A Farra do Boi, por exemplo, consiste em perseguir e bater com uma vara no animal, boi, depois matá-lo e repartir a carne entre os participantes, mesmo que explicitamente se reconheça as barbaridades realizadas somente para o entretenimento humano, por estarem arraigadas a Cultura ainda há grupos que discutem e apoiam a legalidade de suas realizações, alegando que essa proibição fere o exercício dos direitos culturais, e que o dever do Estado é proteger as manifestações das culturas populares (art. 215, caput e § 1º CF).
É importante observar que a prática da vaquejada é uma realidade nacional e a maior crítica dos defensores desse “esporte” é que na tentativa do Estado de promover os devidos cuidados com os animais, ele dificulta a regulamentação, desenvolvendo um cenário com maior probabilidade de práticas ilegais e mais crueldade.
6 O POSICIONAMENTO DO STF E A CRIAÇÃO DA EMENDA COMPLEMENTAR Nº 96/2017
A Constituição é o conjunto de normas que trata sobre direitos e deveres do cidadão, a função dos entes federados, limita o poder do Estado de modo a impossibilitar sua arbitrariedade, estabelece as regras gerais para organizar a sociedade assegurando os direitos individuais, coletivos e difusos.
Deste modo, os dispositivos que compõem a Constituição no aspecto do direito positivo ganham status de normas constitucionais, que são dotadas de máxima hierarquia dentro do sistema.
Para regular o exercício das funções do Estado, especialmente para fins de promulgação e edição de Leis ou atos administrativos, foi instituído o denominado controle de constitucionalidade.
O artigo 103, § 2º, da Constituição (BRASIL, 1988) prevê eficácia vinculativa das decisões do Supremo Tribunal Federal, quando proferidas em ações de controle de constitucionalidade. Significa que todos os julgados proferidos através desta ferramenta passam a ter força obrigatória para toda a jurisdição brasileira.
Entretanto, a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade podem ser declaradas por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), ADO`s, que são as ADI`s por omissão, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e a ADI Interventiva.
Na análise da atual jurisprudência, da doutrina e dos julgados emitidos pelos tribunais temos observado mudanças no posicionamento jurídico, que passou a entender que a posse do animal não dá ao homem o poder de maltratar ou dispor da vida do animal.
Julgados como o que ocorreu agora em 2021 na 7ª Câmara Civil do TJ/ PR que proferiu uma decisão inédita ou o julgado na 17ª vara Cível de João Pessoa/PB, mostram essa mudança de posicionamento e o reconhecimento de que que os animais podem ser sujeitos de uma ação, como titulares.
No processo da 7ª Câmara Civil do TJ/ PR estava sendo discutido o pagamento de pensão mensal e indenização por dano moral pelos antigos donos para os cachorros Skype e Rambo pelos maus-tratos que sofreram. Os desembargadores foram unânimes em reconhecer o direito dos animais de serem autores de um processo, para que possam defender seus direitos.
Em João Pessoa/PB, 22 gatos ingressaram como titulares em uma ação contra o condomínio onde vivem, sendo assistidos por uma entidade de proteção animal. Segundo a inicial, a administração do condomínio tenta expulsá-los e proíbe que sejam alimentados nas áreas comuns. Os "autores" alegam que são animais sujeitos de direitos e, sendo assim, possuem o direito de ir a juízo, ainda que mediante representação ou assistência.
No Recurso Extraordinário 153.531/SC, julgado em 03 de junho de 1997, o Supremo Tribunal Federal analisou o caso da Farra do Boi, assegurando a inconstitucionalidade dessa prática cultural, alegando que ela confrontava a Constituição, pois ela expressamente rejeita a crueldade contra os animais.
Nas decisões das ADIs 2.514/SC e 1.856/RJ, em que se discutia a constitucionalidade de legislações estaduais sobre a exposição e competição de aves combatentes podemos encontrar o mesmo entendimento. Em 29 de junho de 2005 e 26 de maio de 2011, respectivamente, o STF, entendeu que a sujeição dos animais a experiências de crueldade não se apresentava compatível com a Constituição Federal.
Quando a Lei do Estado do Ceará, Lei nº15.299/2013, foi editada objetivando legalizar a Vaquejada, foi proposta uma ADI com a finalidade de declarara-la inconstitucional, uma vez que o art. 225, §1°, VII da CF/88 expressamente garante proteção aos animais:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (BRASIL, CF/88, online).
Como decisão que consolida a visão protecionista o STF julgou em 2016 a ADI 4983, ADI da vaquejada, que tratava do uso de animais em manifestações culturais, reafirmando o que os animais não-humanos são portadores de garantias individuais e não devem ser expostos aos maus tratos. Neste sentido foram as palavras do Min. Roberto Barroso em seu voto:
Reconheço que a vaquejada é uma atividade esportiva e cultural com importante repercussão econômica em muitos estados, sobretudo os da região Nordeste do país. Não me é indiferente este fato e lastimo sinceramente o impacto que minha posição produz sobre pessoas e entidades dedicadas a essa atividade. No entanto, tal sentimento não é superior ao que sentiria em permitir a continuação de uma prática que submete animais a crueldade. Se os animais possuem algum interesse incontestável, esse interesse é o de não sofrer. Embora ainda não se reconheça a titularidade de direitos jurídicos aos animais, como seres sencientes, têm eles pelo menos o direito moral de não serem submetidos a crueldade. Mesmo que os animais ainda sejam utilizados por nós em outras situações, o constituinte brasileiro fez a inegável opção ética de reconhecer o seu interesse mais primordial: o interesse de não sofrer quando esse sofrimento puder ser evitado (STF. Plenário. ADI 4.983/CE, 2016).
Entretanto, essa tutela protecionista desencadeou reações e provocou uma movimentação político-econômica contra essa decisão. A discussão se baseou na alegação da existência de conflito de normas previstas na Constituição: os direitos culturais (previstos nos artigos 215 e 216) e a vedação à crueldade aos animais (prevista no artigo 225), tornou-se então urgente uma pacificação sobre qual regra deve prevalecer.
Como forma de agradar quem buscava uma forma de permanecer exercendo as atividades envolvendo animais, foi proposta e aprovada a EC 96 que acrescentou o parágrafo 7º ao artigo 225 da Constituição Federal, para determinar que as práticas desportivas que utilizam animais não são consideradas cruéis. Seu texto passou então a permitir manifestações culturais desde que registradas como patrimônio imaterial, porém não houve regulamentação.
Art. 1º O art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 7º:
"Art. 225. .....
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos." (BRASIL, CF/88, online).
7 A INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA COMPLEMENTAR Nº 96/2017
De acordo com a emenda, toda e qualquer outra prática que envolva o uso de animais, desde que reconhecida como manifestação cultural e regulamentada, não será considerada como infração ao disposto no inciso VII do parágrafo 1º do artigo 225 da CF. Criou-se então uma abertura normativa para a crueldade, e para a ampliação pelo legislador infraconstitucional do rol de manifestações que se enquadram na nova regulamentação. Outro ponto inserido é a necessidade de regulamentação previa das atividades culturais, evidenciando que se as atividades não possuam esta regulamentação estariam constitucionalmente ilegais.
O direito ao meio ambiente equilibrado é um direito fundamental ligado ao direito à vida e à saúde, de modo que a poluição de um rio, pode comprometer a saúde da população. Por isso os direitos fundamentais devem ser previstos e garantidos, porque todos eles acabam impactando o fundamento de sua existência, a dignidade da vida.
O direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é um direito fundamental com status formal (art. 225, caput, CF) e material de cláusula pétrea, porque tem conteúdo imprescindível à dignidade humana (BELCHIOR, 2011, p. 104) e dos próprios animais (GORDILHO, 2018).
A emenda ofende também o art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF, este artigo prevê que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional inclinada a abolir cláusula pétrea, entre elas, o direito fundamental de proteção aos animais.
Há ainda a discussão quanto ao Princípio da proibição do retrocesso ambiental que também foi ferido pela referida emenda, pois parte da doutrina entende que, a garantia a um meio ambiente ecologicamente equilibrado ser categorizado como direito fundamental poderia se beneficiar desta teoria. O princípio é uma extensão do princípio da proibição do retrocesso social, segundo CANOTILHO (1998), o princípio da vedação do retrocesso social, estendido a questão ambiental, pode ser resumido da seguinte forma:
[…] o núcleo essencial dos direitos já realizado e efectivado através de medidas legislativas[...]deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado. CANOTILHO (1998, p.320).
Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça começou a consolidar o princípio da proibição do retrocesso ambiental no ordenamento jurídico, tomando-o como princípio do Direito Ambiental:
[…] 11. O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições urbanísticoambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico perfeito e o licenciamento do empreendimento, pressuposto geral que, no Direito Urbanístico, como no Direito Ambiental, é decorrência da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao princípio da não regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou negados pela geração atual ou pelas seguintes [...]. (REsp 302.906/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, publicado no DJe em 01.12.2010).
O artigo 60, parágrafo 4º, IV da Constituição Federal estabelece que os direitos fundamentais não podem ser violados, por materializarem cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas, de modo que se percebe claramente que esta norma viola a vontade do constituinte, que visa garantir aos indivíduos o direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado.
O controle de constitucionalidade está ligado a princípios superiores e a Constituição Federal está protegida material e formalmente pelo seu artigo 64, parágrafo 5º, uma vez que ela poderia ser violada formalmente ou materialmente, se as alterações infringirem alguma das suas cláusulas pétreas.
É evidente a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, uma vez que, no artigo 225, §1º, VII da CF, o constituinte demonstrou, o seu intuito de proibir atos de crueldade contra os animais, preservando assim a integridade física dessas criaturas.
Ao promulgar uma emenda complementar que institucionaliza a prática de atos de maus-tratos contra os animais, o legislador infringiu materialmente a Constituição, de modo que esta norma já nasce contaminada pelo vício da inconstitucionalidade.
8 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5.728/2017
A ADI 5.728 foi apresentada pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, para questionar a Emenda Complementar nº 96, que considerou não cruéis as práticas esportivas que utilizem animais, se consideradas manifestações culturais.
De acordo com a entidade, a emenda constitucional questionada foi aprovada para contornar a declaração de inconstitucionalidade, proferida em outubro 2016 pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou inconstitucional a Lei que legalizava a prática da vaquejada no Estado do Ceará. Alega tambem que a Emenda Complementar nº 96 violou o direito ao meio ambiente equilibrado, pois não garantiu a proibição de submissão de animais a tratamento cruel, previsto no art. 225, parágrafo 1º, inciso VII, da CF. Sustenta que a norma ofende também o art. 60, § 4º, inciso IV, da CF, segundo o artigo, não será objeto de deliberação a proposta de emenda disposta a abolir cláusulas pétreas, entre elas, se encontra o direito fundamental de proteção aos animais.
O Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, como autor da ADI, citou, como precedentes, as decisões anteriores do STF que julgaram inconstitucionais práticas como as brigas de galo e a vaquejada e pediu a concessão de liminar para suspender a eficácia da emenda.
O parecer apresentado pela Procuradoria Geral da República, através da então Procuradora Geral Raquel Dodge, foi no sentido de considerar inconstitucional a norma questionada:
A Emenda Constitucional 96, de 6 de junho de 2017, ao não considerar cruéis práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam “manifestações culturais” (e este é conceito extremamente vago, no qual múltiplas práticas podem ser inseridas), colide na raiz com as normas constitucionais de proteção ao ambiente e, em particular, com as do art. 225, § 1 o, VI, que impõe ao poder público a proteção da fauna e da flora e veda práticas que submetam animais a crueldade (inciso VII).
(…)
A norma promulgada pelo constituinte derivado contraria recente decisão do Supremo Tribunal Federal que assentou a inconstitucionalidade das vaquejadas e definiu que “a obrigação de o Estado garantir todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do art. 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade”. A estreita associação entre a tutela constitucional do ambiente (aí incluída, naturalmente, a proteção da fauna), os direitos fundamentais e a dignidade humana foi bem percebida por diferentes ministros nos votos que proferiram na ADI 4.983/CE.
(…)
A emenda constitucional ainda contém uma ilogicidade insuperável: define como não cruéis as práticas desportivas se forem reconhecidas como manifestação cultural. Ocorre que a crueldade intrínseca a determinada atividade não desaparece pelo fato de uma norma jurídica a rotular como “manifestação cultural”. A crueldade ali permanecerá, qualquer que seja o tratamento jurídico a ela atribuído e não há dúvida de que animais envolvidos em vaquejadas são submetidos a condições degradantes e sistemáticas de lesões e maus-tratos, as quais caracterizam tratamento cruel, que encontra vedação no art. 225, § 1o, VII, da Constituição da República.
(…)
Não há dúvida de que práticas cruéis como vaquejadas, brigas de galo, a farra do boi e atividades análogas colidem com a Constituição da República, principalmente com o art. 225, § 1º, VII. (Procuradora Geral Raquel Dodge, Procuradoria Geral da União, Relatório ADI 5728, online).
Desta forma, a PGR opinou pelo conhecimento da ADI 5728 e pela procedência do pedido formulado, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Emenda Complementar nº96/2017. O parecer expõe que não é porque entendemos que determinada prática é considerada manifestação cultural que ela deixa de caracterizar a crueldade.
A ADI 5728 encontra-se em tramitação no STF, aguardando julgamento.
9 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5.772
O procurador-geral da República Rodrigo Janot ajuizou, em setembro de 2017, outra ADI, de nº 5772, para questionar a mesma Emenda Complementar nº96/2017; a expressão “Vaquejada”, nos artigos 1º , 2º e 3º da Lei nº 13.364/2016, que eleva a prática de vaquejada à condição de patrimônio cultural imaterial brasileiro; e a expressão “as vaquejadas”, no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 10.220/2001, que institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio e o equipara a atleta profissional.
Além da Emenda Constitucional, a ação também visa impugnar as leis federais que regulamentam a prática da vaquejada. O PGR alega que, embora a Emenda figure a possibilidade de tratar como manifestações culturais as atividades desportivas que utilizam animais e as leis federais regulamentem as atividades que inevitavelmente sujeitem os animais a tratamentos violentos e cruéis, ainda que sejam manifestações culturais, são incompatíveis com a Constituição Federal, com os artigos. 1º, III (princípio da dignidade humana), e 225, § 1º, VII (proteção da fauna contra crueldade), e com as jurisprudências do STF.
A ADI 5772/2017 também está aguardando julgamento.
Como as ADIs questionam uma Emenda Constitucional só será considerada inconstitucional pela Corte se atentar, de forma evidente, contra os limites definidos na Constituição em seu art. 60 e seus parágrafos, caso contrário, a Emenda continuará surtindo efeito.
O Ministro Luiz Fux em um acordão proferido em 2015, explicou que a superação legislativa de precedentes da Suprema Corte é fruto dos diálogos institucionais que devem ser travados entre os Poderes, assim para ele:
Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e, por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde que, é claro, observados os balizamentos constitucionais. Da análise dos retromencionados arestos e da postura institucional adotada pelo STF em cada um deles, pode-se concluir, sem incorrer em equívocos, que (I) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (II) no caso de reversão jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60 e seus §§, da Constituição, e (III) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordinária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opções políticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer supremacia judicial nesta acepção mais forte. (Acordão, ADI 5105 - número único: 9958029-82.2014.1.00.0000, Rel. Ministro Luiz Fux, publicado no DJe em 16.123.2016).
Em abril de 2018, o Ministro Marco Aurélio julgou prejudicada a ADI 5713, ajuizada pela Procuradoria Geral da República contra a Lei nº 10.428/2015, do Estado da Paraíba, que autoriza a prática da vaquejada. O Ministro relator julgou que a ação perdeu seu objeto depois da promulgação da EC/96. De acordo com o ministro, com a edição da EC/96 alterou-se o tratamento constitucional conferido à vaquejada, ficando prejudicada a análise desta ação. Mas destacou que o Tribunal ainda discutirá a matéria nas duas ADIs em trâmite na Corte contra a emenda.
10 CONCLUSÃO
Desde a antiguidade os animais têm sido tratados de forma cruel pelo ser humano, que estabeleceu uma relação predominância ante a natureza. Com base na suposta irracionalidade animal, ao longo dos séculos esses seres têm sido utilizados para saciar as vontades humanas, seja em pesquisas cientificas, meios de locomoção ou para o seu simples entretenimento.
Apesar da evolução legislativa a visão antropocêntrica do animal como objeto e propriedade do homem se mantem. A utilização dos animais para fins de entretenimento em vaquejadas, rodeio, rinhas de galo e outras práticas, são vistas por muitos ainda como cultura.
A legislação brasileira trata o animal como coisa, mas houve um avanço nas leis de proteção, que apesar de não reconhecerem o animal como sujeito de direito, reconhecem sua dignidade e sua senciência.
Os posicionamentos dos tribunais mostram o reconhecimento da proteção dos animais contra os maus tratos mesmo frente ao interesse humano, mas contrário a esses entendimentos a aprovação da Emenda Complementar 96/2017 abriu uma brecha para a realização dessas atividades culturais que promovem a crueldade animal.
A definição das práticas caracterizadas como Manifestações Culturais, apesar de juridicamente afastar os maus-tratos, efetivamente apenas não pune o que está determinado no artigo 225 da Constituição, os maus-tratos não deixam de ser realizados e os animais não deixam de sofrer por ser reconhecido juridicamente estas práticas.
Infringem o Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao desobedecer a proibição constitucional de tratamento cruel aos animais, disposto no artigo 225, §1º, VII da Constituição, assim como o princípio do não retrocesso desse direito, ao expressamente autorizar atividades que promovem os maus-tratos.
É possível observar que a Emenda Complementar nº96/17 é um risco para os animais e está fadada a um iminente retrocesso constitucional. No tocante aos direitos de 3ª dimensão, que em um momento positiva um direito e em outro o limita, podemos concluir que como os animais são seres sencientes com capacidade de sentir assim como os seres humanos, submete-los a atividades cruéis, comprovadamente torturantes, com o único intuito de promover eventos festivos macula o que a Constituição se propôs a resguardar, sua proteção face à crueldade.
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Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul-SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JULIA THAINá GUIMARãES CUSTóDIO, . O direito animal e a inconstitucionalidade da Emenda Complementar nº96/2017 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 ago 2022, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59080/o-direito-animal-e-a-inconstitucionalidade-da-emenda-complementar-n96-2017. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Medge Naeli Ribeiro Schonholzer
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