RESUMO: Neste estudo, feito por intermédio de revisão bibliográfica, se analisou o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ acerca da relativização do § 3º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina que o adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando.
Palavras-chave: Relativização de dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente; idade do adotante; atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho possui o seguinte tema: a mitigação ou a relativização do artigo 42, § 3º da Lei 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
O objetivo principal é explicar o porquê de a Corte Especial não adotar, necessariamente, em todo e qualquer caso, a letra da lei, mas analisar o caso concreto e decidir, conforme a casuística, se o referido dispositivo legal se aplicará a cada uma das situações apresentadas ao Poder Judiciário.
Ademais, este estudo também explicará os fundamentos utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça para justificar a aplicação temperada do dispositivo legal em comento.
2 DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL
As doutrinas especializadas no assunto explicam que a proteção da criança e do adolescente passou por algumas fases, por exemplo, a fase da absoluta indiferença, em que esse grupo vulnerário era considerado apenas como mero objeto, sem qualquer proteção por parte do Estado. Já, num segundo momento, surge a doutrina da situação irregular (termo cunhado no Brasil) em que era alvo dessa política apenas aqueles jovens, crianças e adolescentes mais desfavorecidos, homenageando, então, uma política seletiva, que serviu para repreender pessoas pobres e em situação de rua.
Já a fase da doutrina da proteção integral, nascida com a Constituição Federal de 1988, reformula todo o estudo e compreensão da proteção às crianças e aos adolescentes, enxergando-os e tratando-os como verdadeiros sujeitos de direitos, ou seja, pessoas, numa situação peculiar de desenvolvimento, que devem receber tratamento e atendimento do Estado, da família e da sociedade de acordo como o postulado da dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, com previsão expressa no art. 1º, III da Constituição Cidadã (1988), é princípio fundamental da República Federativa do Brasil e deve ser o ponto de partida para a assimilação de todo o ordenamento jurídico, o que inclui o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Carta Magna foi promulgada em 5 de outubro de 1988 e a Lei nº. 8.069 é do ano de 1990, ou seja, já alcançada pelos vieses de dignidade da Lei Maior.
Por isso, desde a Nacional Constituinte, todo o arcabouço jurídico relativo às crianças e adolescentes passou por uma releitura e um novo espectro de entendimento para, prospectivamente, respeitar o mencionado grupo como pessoas que merecem uma vida digna, o que engloba o direito à convivência familiar e comunitária, lazer, educação, alimentação, estudo, trabalho, respeito à integridade física e mental e etc.
O início dessa nova concepção é feito a partir do artigo 227 da CF/88, cujos efeitos irradiam por toda a normativa brasileira:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)”.
Além disso, a própria Lei nº. 8.069/90 afirma em que seu art. 1º que:
“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.
Assim, fácil entender que está superada as fases da absoluta indiferença e da situação irregular, privilegiando-se, como medida de lídima justiça, a doutrina da proteção integral, porque a única capaz de atender de modo satisfatório e em compatibilidade com o bloco de constitucionalidade, os direitos do grupo formado por crianças e adolescentes.
Inúmeras mudanças positivas foram consolidadas com a doutrina da proteção integral, entre elas, as seguintes: crianças e adolescentes como sujeitos de direitos; prioridade a liberdade das crianças e adolescentes, que somente poderá ser tolhida em casos previstos na lei; prioridade absoluta em políticas públicas e também quanto à destinação de recursos públicos; permanência em família natural, sendo as diversas formas de acolhimento e colocação em família substituta medidas excepcionais; desjudicialização dos atendimentos dessas pessoas, ou seja, a tentativa de resolver problemas e controvérsias de forma extrajudicial e, por fim, a preferência de municipalização dos atendimento dessa área, mas sem prejuízo de colaboração dos outros entes federativos.
3 SIGNIFICADO LEGAL DE CRIANÇA E ADOLESCENTE
Sem adentrar no âmbito internacional, para o Estatuto da Criança e do Adolescente, criança é a pessoa de 0 a 12 anos de idade incompletos e adolescente a pessoa de 12 a 18 anos de idade incompletos.
Dessa forma, como regra, tal diploma legal aplica-se às crianças e adolescentes. Excepcionalmente, porém, conforme § único do art. 2º do Estatuto, nos casos expressos em lei, o mesmo será aplicado às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. Vejamos:
“Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade”.
Assim, diferente do que ocorreu na fase da situação irregular, o Estatuto da Criança e do Adolescente se aplica para toda e qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade e, excepcionalmente, aos maiores de 18, desde que menores de 21 anos de idade.
4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO SISTEMA NACIONAL DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Com a evolução da proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes também advieram princípios importantes que norteiam os estudos doutrinários que se debruçam sobre o tema, as políticas públicas elaboradas pelo Poder Executivo, os atos normativos do Poder Legislativo e também a atuação do Poder Judiciário por meio de novos entendimentos jurisprudenciais.
O princípio da generalidade significa que, na atualidade, os paradigmas legislativos da temática são aplicados a toda e qualquer pessoa que se enquadre nos conceitos de criança, adolescente e aqueles até 21 anos de idade, mas estes últimos apenas em raras hipóteses para fins de aplicação de medidas socioeducativas.
O princípio da prioridade absoluta quer dizer que o grupo vulnerável em questão terá sempre prioridade em relação à direitos, atendimento e prestação de serviços públicos ou privados, destinação de verbas públicas, tramitação processual e outros. Nesse sentido é a redação do art. 4º do Estatuto:
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”.
O princípio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento ensina que a criança e o adolescente não devem ser tratados como pessoas completamente maduras e adultas, mas deve ser respeitado o seu estágio de crescimento físico, mental e intelectual. As crianças e adolescente passam pela fase de amadurecimento, formação de convicções pessoais e concernentes ao mundo em que vivem, ainda estão em processo de aprendizado, inclusive sobre tópicos básicos como conhecimentos educacionais e também da vida cidadã, política, econômica, atividades de lazer, higiene, alimentação, atividades esportivas, ou seja, são verdadeiros descobridores do mundo ao seu redor. Dessa forma, o citado princípio determina seja levado em consideração justamente esse estado de aprendizado, não podendo da criança e do adolescente serem exigidos maturidade e discernimento tal qual de uma pessoa adulta.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente serve, na solução de casos lacunosos, como vetor interpretativo. Toda interpretação é realizada por um sujeito, que se vale de um método e tem como escopo atingir um objetivo final.
No caso do princípio em comento, o melhor interesse da criança e do adolescente deve ser utilizado por todos os atores envolvidos na garantia dos direitos desse grupo vulnerável, ou seja, seja pela própria família, creches, escolas, responsáveis pelas políticas municipais, estaduais e federais, a comunidade no geral e também os poderes da república.
Assim, toda e qualquer situação deve ser resolvida sempre se atentando para o que é, de fato, melhor para a criança e adolescente do caso, independentemente de estarem em situação de risco ou não.
Por fim, é necessário pontuar que existem diversos outros princípios que regem a matéria, entretanto, estes são considerados os mais importantes para a compreensão do presente trabalho.
5 O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A MITIGAÇÃO DA DIFERENÇA ETÁRIA ENTRE ADOTANTE E ADOTADO PREVISTA NO ART. 42, § 3º DO ECA
O art. 42, § 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente aduz que:
“Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando”.
Durante muitos anos, a regra literal prevaleceu nas decisões judiciais dos tribunais nacionais, sendo observada, na verdade, como uma regra proibitiva, ou seja, não seria possível a adoção caso a diferença de idade entre adotante e adotando fosse menor que 16 anos.
Entretanto, a Corte Especial teve a oportunidade de revisitar o assunto e dar novos contornos interpretativos ao dispositivo legal, justamente para que atendesse e respeitasse o princípio do melhor interesse da criança.
Nesse sentido, no REsp 1.338.616-DF, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que embora o texto do art. 42, § 3º do ECA atenda aos ditames do interesse público e seja exigível, não pode ser tratado como regra de natureza absoluta, mas pode e deve ser flexibilizado a luz do caso concreto, sob a luz do princípio da socioafetividade.
O STJ concluiu que a intenção do legislador ordinário, ao fixar tal idade, foi a de reproduzir da maneira mais exata possível o padrão de família protegida pelo texto constitucional e demais leis infraconstitucionais, impedindo que a adoção ocorresse por motivos não legítimos, baseados unicamente em interesses impróprios e indevidos.
Então, entendeu a Corte Especial que, analisado o caso concreto, diante a existência de reais vantagens aos interesses da criança e do adolescente, em situações específicas, é possível que a norma seja mitigada para se autorizar a adoção entre pessoas cuja diferença etária seja inferior a 16 anos.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgado citado, explicou que:
“O aplicador do Direito deve adotar o postulado do melhor interesse da criança e do adolescente como critério primordial para a interpretação das leis e para a solução dos conflitos. Ademais, não se pode olvidar que o direito à filiação é personalíssimo e fundamental, relacionado, pois, ao princípio da dignidade da pessoa humana”.
E mais:
“Diante do norte hermenêutico estabelecido por doutrina abalizada e da jurisprudência que se formou acerca da mitigação de regras constantes do ECA quando em ponderação com os interesses envolvidos, a regra prevista no art. 42, § 3º do ECA, no caso concreto, pode ser interpretada com menos rigidez, sobretudo quando se constata que a adoção visa apenas formalizar situação fática estabelecida de forma pública, contínua, estável, concreta e duradoura”.
Em outro julgado, o Tribunal Superior de destaque ainda leciona da seguinte maneira:
“Assim, a diferença etária mínima de 16 anos entre adotante e adotado é requisito legal para a adoção. Vale ressaltar, no entanto, que esse parâmetro legal pode ser flexibilizado à luz do princípio da socioafetividade.
A adoção é sempre regida pela premissa do amor e da imitação da realidade biológica, sendo o limite de idade uma forma de evitar confusão de papéis ou a imaturidade emocional indispensável para a criação e educação de um ser humano e o cumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar.
Dessa forma, incumbe ao magistrado estudar as particularidades de cada caso concreto a fim de apreciar se a idade entre as partes realiza a proteção do adotando, sendo o limite mínimo legal um norte a ser seguido, mas que permite interpretações à luz do princípio da socioafetividade, nem sempre atrelado às diferenças de idade entre os interessados no processo de adoção. STJ. 3ª Turma. REsp 1785754-RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 08/10/2019 (Info 658)”.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verifica-se, portanto, que os tribunais brasileiros proferem decisões para dar máxima interpretação e eficácia aos textos normativos, atendendo ao fim último da lei promulgada, que no caso em estudo é o Estatuto da Criança e do Adolescente, priorizando o melhor interesse das crianças e dos adolescentes.
No caso em apreço, trata-se da flexibilização da diferença etária entre adotante e adotando, considerando a grande relevância desta espécie de colocação em família substituta, que acaba por realizar o objetivo constitucional de dar a cada criança e adolescente um lar e uma família. Casos estes em que uma interpretação meramente gramatical ou literal pode ferir princípios de valor imensurável como isonomia, socioafetividade, parentalidade e etc.
Por fim, frisa-se que o STJ tem se utilizado dos mesmos princípios, adotando uma postura progressista para flexibilizar outras regras que, caso aplicadas na literalidade acabam, a depender do caso concreto, prejudicando crianças e adolescentes, como é a situação, por exemplo, da proibição da adoção avoenga, que já foi permitida algumas vezes e a excepcional hipótese de revogação da adoção, quando o adotando, depois da maioridade, manifesta seu desejo, de forma esclarecida, de não ter sido adotado por determinada pessoa (STJ. 3ª Turma. REsp 1.448.969-SC, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 21/10/2014 (Info 551) e STJ. 4ª Turma. REsp 1.587.477-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 10/03/2020 (Info 678).
Infere-se, enfim, que o paradigma legislativo é o início legal da proteção dos direitos das crianças e adolescentes, mas o ativismo judicial, baseado em doutrinas especializadas e a dinamicidade da situação fática contribuem para a evolução constante do sistema de proteção desse grupo de pessoas vulneráveis.
Assim, a tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, no informativo nº. 701, em 16/06/2021, é a seguinte:
“A regra que estabelece a diferença mínima de 16 (dezesseis) anos de idade entre adotante e adotando (art. 42, § 3º do ECA) pode, dada as peculiaridades do caso concreto, ser relativizada no interesse do adotando. STJ. 4ª Turma. REsp 1.338.616-DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 15/06/2021 (Info 701)”.
7 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <https://www.planato.gov.br> Acesso em 01 de setembro de 2022.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em <https://www.planato.gov.br> Acesso em 01 de setembro de 2022.
BRASIL. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e dá outras providências. Disponível em <https://www.planato.gov.br> Acesso em 01 de setembro de 2022.
ZAPATA, Fabiana Botelho. Coleção Defensoria Pública – Ponto a Ponto – Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva, 2016.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A diferença etária mínima de 16 anos entre adotante e adotado, prevista no art. 42, § 3º do ECA, não é absoluta. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/51fda174c360f4ea5d21de87c4c9a792>. Acesso em: 12/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A redação literal do ECA proíbe a adoção avoenga(adoção do neto pelos avós); no entanto, o STJ admite que isso ocorra em situações excepcionais. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/c570c225d1fb8a72ad79995dd17a77bc>. Acesso em: 12/09/2022.
Servidora Pública da Justiça Federal (SJTO)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROSO, LUDNE NABILA DE OLIVEIRA. O Superior Tribunal de Justiça e a relativização do § 3º do art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2022, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59164/o-superior-tribunal-de-justia-e-a-relativizao-do-3-do-art-42-do-estatuto-da-criana-e-do-adolescente. Acesso em: 22 nov 2024.
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