FERNANDA JOIA BARRETO LIMA[1]
(coautora)
RESUMO: O presente trabalho visa analisar, a partir do modelo teórico exposto pela criminologia crítica e pela necropolítica, a forma como a sistemática do Estado brasileiro atua. Definindo a necropolítica como o instrumento de poder que determina condutas e validações políticas, o estudo irá apresentar uma análise social do assunto frente aos dados expostos pelos próprios órgãos vinculados ao Estado Brasileiro. Ponto nevrálgico do presente artigo é a atestar a existência de um Estado omisso, que segmenta a aplicação de um direito penal repressivo frente às classes sociais menos honradas. Tais questões serão respondidas a partir de análises de referências bibliográficas.
PALAVRAS-CHAVE: Necropolítica, Criminologia Crítica, Desigualdade Social, Encarceramento Brasileiro.
ABSTRACT: The present work aims to analyze, from the theoretical model exposed by critical criminology and necropolitics, the way in which the systematics of the Brazilian State operates. Defining necropolitics as the instrument of power that determines conduct and validates policies, the study will present a social analysis of the subject against the data exposed by the bodies linked to the Brazilian State. The crucial point of this article is to attest to the existence of a silent State, which segments the application of a repressive criminal law against less honorable social classes. Such questions will be answered based on bibliographic references analyses
KEYWORDS: Necropolitics, Critical Criminology, Social Inequality, Brazilian Incarceration.
INTRODUÇÃO
Totalizando 773.151 presos até junho de 2019, conforme o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) o Brasil já é possuidor da terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas da China, que contém 1,6 milhões de presos, e dos Estados Unidos, que contém 2,1 milhões em população carcerária, segundo estudo mundial realizado e divulgado em setembro de 2018 – segundo dados da Luta antiprisional no mundo contemporâneo: um estudo sobre experiências em outras nações de redução da população carcerária, lançada em setembro de 2018, em São Paulo.(BRASIL, 2019; Pastoral Carcerária)
Resta dizer, ainda, que esses dados não são absolutos. Há uma clara e expressa confusão de dados quanto ao tocante da população carcerária no Brasil. Com o avanço da pandemia no país, a situação foi agravada, e os bancos de dados governamentais restam por desatualizados há mais de um ano. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o país detém 812.564 presos – conforme levantamento realizado em julho de 2019. (BRASIL, 2019)
Apesar do número relativamente alto no que concerne à população carcerária, ainda há um enorme déficit de vagas: problema que se alastra pelo país, conforme geográfico de inspeção penal disponível no site do CNJ. A situação é tão complexa, que o déficit chega a ser de 165.13% no Pernambuco, 139,45% em Roraima, 91,13% no Mato Grosso do Sul, 88,64% no Distrito Federal e 61,44% no Rio de Janeiro, estado que terá o enfoque maior no nosso estudo. (BRASIL, 2020)
Dessa forma, com uma superlotação que ultrapassa 160% das vagas, com presídios que não garantem o saneamento básico – ainda há outro fator que necessita ser mencionado: o fator social.
Não há como tratar do tema proposto sem mencionar a desigualdade social exorbitante que estruturalmente existe alastrada pelo país a fora, e que se expande com o passar dos anos. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o Índice de Gini – instrumento utilizado como medidor de desigualdade no Brasil – em 2018 a desigualdade alcançou o número de 0,509. O índice varia de zero a um, isso significa que quanto mais próximo do um, pior é a distribuição de renda no país e maior é a desigualdade social. (BRASIL, 2019; Carla Mereles para o site POLITIZE)
Atingidos pela desigualdade social, ilesos de oportunidades e passando longe do contato ideal com a educação, a população periférica é a mais atingida pelo cárcere.
A maior parte dos custodiados brasileiros é formada por: jovens, negros, pardos, e com baixa escolaridade. A educação, tratada como programa eventual de investimento do governo, está longe de atingir o “status” de educação prisional voltada para a ressocialização. Apenas 10% dos presídios garantem certa escolaridade, sendo a mesma insuficiente para o contingente esperado (segundo informações coletadas do Infopen). (BRASIL, 2017; Cida de Oliveira para o site RBA)
1. ENCARCERAMENTO E ESTIGMA
A concepção da finalidade existente no encarceramento lapidou-se aos longos dos anos, começou-se a pensar na humanização das penas, retirando o caráter punitivo corpóreo, inserindo restrição a direito subjetivo do homem - liberdade - (BECCARIA, 1995), porém garantindo o disciplinamento que a sociedade capitalista objetivava (FOLCAULT, 1986).
O cárcere perdeu a função de castigo físico expressamente previsto e legislado, passando a ter tal função apenas na prática. A seletividade, bem como a estigmatização causada pelo encarceramento não são desconhecidas, como é de se observar na série Prisões Brasileiras – Um Retrato sem Retoques, do Repórter Brasil, na qual constatou-se que apenas 20% dos detentos conseguem vínculo empregatício após o cumprimento de pena, objetificando a dificuldade da ressocialização.
O estigma apresentado por Goffman (1891) é vislumbrado no sistema penitenciário brasileiro, esse autor regressa à Grécia antiga para a explicação do que seria o estigma. Referindo-se a esse como um termo que visa a evidenciar sinais corporais que auxiliam a determinar o status moral do desconhecido apresentado. Tendo como contexto a Grécia antiga, esses sinais poderiam ser feitos por meio de cortes ou do fogo, que ajudariam a identificar a que categoria o novo indivíduo pertencia.
O estigma representado pela marca corporal é a realidade dos presídios brasileiros, haja vista a existência de tatuagens que classificam o indivíduo como pertencente à categoria de criminoso, como é capaz de apresentar, ainda, a personalidade dos detentos, bem como os seus delitos. (PAREDES, 2003).
Ocorre também o estigma entre os próprios detentos, como prediz a matéria elencada no Canal de Perícia, realizada em junho de 2019, os sentenciados utilizam da marca corpórea em outro sentenciado para ensejar o efeito de descrédito que este possui, a exemplo é o caso da tatuagem de arames farpados, que categorizam o seu portador como um sujeito não confiável, vulgarmente conhecido como X9.
Goffman (1891) trata em sua obra da existência de três estigmas nitidamente opostos entre si. Em primeiro lugar, observa-se os das abominações do corpo; em segundo, há o que o autor denominou como as culpas de caráter, esses não serão apreciados no presente estudo. E por último, elencou os estigmas tribais de raça, nação e religião; tal acepção promove a visualização da seletividade do sistema penal brasileiro. Esse fora construído com o viés de proporcionar a punição pela lesão ao bem jurídico tutelado e a ressocialização para o convívio social, obtendo uma prevenção de continuidade delitiva.
Ocorre que o sistema seleciona quem será atingido pelo seu jus puniendi, como leciona Zaffaroni; Pierangeli (2011, p. 73) em sua obra
Ao menos em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como também criminaliza certas pessoas segundo sua classe e posição social. [...] Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes incrementa a estigmatização social do criminalizado.
Pela leitura do relatório consolidado do Infopen referente ao estado do Rio de Janeiro, divulgado pelo DEPEN, realizado em junho de 2019, tendo abrangência de julho a dezembro do respectivo ano, as raças/etnias com maior número de detentos são as pardas e pretas, possuindo conjuntamente um quantitativo de 31.252 (trinta e um mil e duzentos e cinquenta e dois) detentos, sendo que o estado do Rio é portador de uma população carcerária de 51.029 (cinquenta e um mil e vinte nove) presos, representando tais etnias 61,2% (sessenta e um inteiros e dois décimos por cento) dessa população.
Quanto ao grau de escolaridade, 43,05% (quarenta e três inteiros e cinco centésimo por cento) ostentam o ensino fundamental incompleto, os delitos com o maior número de detentos são os crimes contra o patrimônio, principalmente o roubo majorado, e o crime previsto na Lei n° 11.343/06, na modalidade de tráfico de drogas.
Os crimes que têm como bem jurídico a fé pública e a administração pública, mesmo que envolvam quantias significativas, não são punidos com o mesmo rigor que os retratados acima. É a seletividade do sistema penal que elege quais crimes e quem deverá ser punido, a exemplo disso, tem-se matéria publicada no Jornal O Globo, em 28/08/2020, elencando os seis ex-governadores do estado do Rio de Janeiro - Moreira Franco, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Luiz Fernando Pezão, Sérgio Cabral e Wilson Witzel - todos envolvidos em sistema de corrupção, movimentando quantia que se aproxima de R$ 6,1 bilhões, sendo que apenas um ex-governador está cumprindo pena.
A resposta para a prática da seletividade está na necropolítica do sistema brasileiro, tema que passaremos a estudar com maior afinco.
2.NECROPOLÍTICA E O ESTADO BRASILEIRO
O termo “necropolítica” idealizado por Achille Mbembe surgiu com base nos estudos das obras de Michel Foucault. Sendo assim, para chegarmos na análise da necropolítica sob o viés da criminologia crítica, perpassaremos rapidamente pela obra de Foucault.
Foucault sustentou em suas obras, a partir dos termos “biopolítica” e “biopoder” que o poder foi sendo ajustado durante os séculos e foi influenciador das relações sociais e dos discursos – estes, acabaram sendo capazes de determinar condutas e validar políticas, como cita Julia Ignacio para o site POLITIZE (2020)
Assim, para Foucault, o discurso é o instrumento de poder que determina condutas e valida políticas. No entanto, como analisado pelo mesmo, é preciso cautela ao lidar com tal instrumento já que este acabou possibilitando práticas cruéis e políticas que reforçam estereótipos, segregações, inimizades e extermínios.
A biopolítica – poder de organizar as políticas em vida – é a força reguladora de grandes populações, práticas disciplinares. E o biopoder – faz referência ao poder que administra “tecnologias” e dispositivos controladores da população, ocupadores da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade, dos costumes, entre outros. A citar, Foucault; Microfísica do Poder (1978, p. 277 – 293)
Os instrumentos que o governo se dará para obter esses fins [atendimento às necessidades e desejos da população] que são, de algum modo, imanentes ao campo da população, serão essencialmente a população sobre o qual ele age.
Dessa forma, Mbembe sustenta que a necropolítica dita quem vive e quem morre. É um discurso de Estado que torna o “deixar morrer” aceitável. Para Mbembe, o parâmetro definidor primordial é o da raça. O corpo matável seria aquele que se encontra em risco de morte a todo instante. Dessa forma, ele delimita que existem estruturas criadas com o objetivo de provocar a destruição de alguns grupos, verdadeiras “zonas de morte”, eliminando os “inimigos do Estado” que, para Mbembe, é uma ideia que sempre esteve ligada ao período escravocrata. (BRASIL, 2018; Achille Mbembe; Necropolítica).
No Brasil, a obra de Mbembe se relaciona diretamente com a história do país, onde em diversos momentos, foi aceitável pela maioria da população a morte dos então determinados “inimigos” do Estado. Foi o que se sustentou nos 300 anos de escravidão e nos 21 anos de regime autoritário enquanto a ditadura estava vigente no país.
Conforme bem destacado por Julia Ignacio para o site POLITIZE (BRASIL, 2020) ainda hoje aceitamos a ideia de que vidas de determinados grupos subalternos da população podem ser tiradas. É o que acontece com as populações periféricas que vivem à margem dos grupos de facções armadas no Rio de Janeiro e com a situação carcerária do Brasil, que vive superlotada e não apresenta condições de higiene adequadas. E é nesse contexto que se insere a criminologia crítica.
Nesse mesmo sentido de marginalização de pessoas, existem discursos que fortalecem a ideia de que existem lugares subalternizados com alta criminalidade em que vidas podem ser tiradas em prol do bem comum. A guerra ao tráfico e à criminalidade no Brasil é um exemplo. Mas também há necropolítica nas prisões. O tratamento da população carcerária, com punições com foco na privação da liberdade, a superlotação das cadeias e baixas condições sanitárias são reflexos disso.
3.CRIMINOLOGIA CRÍTICA E SELETIVIDADE PENAL
A criminologia, em síntese, pode ser entendida como o conjunto de conhecimento que objetiva compreender o fato criminoso, o sujeito ativo do fato, os motivos que induzem a tal comportamento, bem como a possibilidade de ressocialização. (Edwin H. Sutherland, 1985). A análise sob o viés da criminologia tem a sua origem com o Iluminismo, sendo a primeira escola chamada de Escola Clássica, com pensadores como Beccaria e Carrara, o objetivo principal dessa primeira escola era a análise do sistema jurídico, principalmente no tocante às penas.
Houve uma profunda mudança no foco do estudo, visualizando o delinquente e as causas do crime, surgiu, assim, a Escola Positiva, com pensadores como Ferri e Lombroso. Diante dessa breve análise inicial da criminologia, adentramos a criminologia crítica vista sob o prisma da necropolítica.
A criminologia crítica tem o foco nos mecanismos e instâncias de controle social. Estuda a criminalidade como a própria criminalização, explicada por processo seletivo de construção do comportamento, moldados a partir dos grupos sociais dominantes, a própria criminalização se torna mecanismo utilizado pelos donos do poder. (André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves, 2017).
A vertente da criminologia crítica que teceremos mais comentários é a: o labelling approch, ou teoria do etiquetamento. Nessa vertente, a criminalidade não seria um dado ontológico único e imutável, contudo seria uma construção de justiça determinada para satisfazer um grupo social, da mesma forma que criminoso não seria um sujeito ontologicamente diferente dos demais, e sim um status social atribuído a um sujeito que garanta a aplicação da justiça. (BARATTA, página 7, 2002).
Neste campo que surge a estigmatização do sistema penal, é a sociedade que torna o agente criminoso, visto que é essa que elege quem será punido e quem não será. Dessa forma, as características pessoais, seu convívio social, sua residência, suas tatuagens, a espécie de crime e principalmente a raça do agente serão os fatores que ditarão a possibilidade de se ter ou não a justiça penal.
Assim, a criminalidade não é inerente ao sujeito, não basta simplesmente cometer o fato típico, ilícito e culpável, há o etiquetamento do sujeito ativo. O sistema penal elege quem será punido e quem não será. O labelling approch explica a estigmatização visível entre os crimes de “colarinho branco” e os crimes considerados como a “cifra negra”, os sujeitos ativos dos crimes de “colarinho branco” são muitas vezes os empresários e políticos, classes sociais detentoras de prestígio social e ausência de estereótipos que representam a repressão social e policial. (BARATTA, 2002).
Conforme Baratta (2002) enseja em sua obra:
A criminalidade como status atribuído a alguns sujeitos pelo poder de outros sujeitos sobre a criação e aplicação da lei penal, através de mecanismos seletivos estruturados sobre a estratificação social e o antagonismo de classes, refutaria o princípio de igualdade; a relação variável do processo de criminalização com a posição social do acusado indicaria a relatividade da proteção penal a bens jurídicos, atingindo o princípio de legitimidade;
Da mesma forma que Mbembe sustenta pela necropolítica que o Estado seleciona quem deve morrer, o labelling approch nas lições de Barata enseja que o direito e processo penal só pune quem pertence à camada social economicamente mais fragilizada.
Pelo relatório consolidado do DEPEN de 2019 realizado no Estado do Rio de Janeiro observamos que as espécies de tipos penais que detém um maior índice de encarceramento são os crimes contra o patrimônio e da legislação de drogas, possuindo conjuntamente um quantitativo de 3.213 (três mil e duzentos e treze) detentos. Em contrapartida, os crimes contra administração pública, que tem como sujeito ativo agente público, classe que não sofre represálias sociais, apresenta apenas 9 (nove) detentos. (BRASIL, 2019).
A explicação para tamanha discrepância de dados não está no fato dos crimes contra administração pública serem escassos e sim no fato de não existir por parte dos grupos dominantes a necessidade de punição, como elenca Baratta (2002) em sua obra:
Assim como fatores que explicam a escassa medida em que a criminalidade de colarinho branco é perseguida, ou escapa completamente, nas suas formas mais refinadas, das malhas sempre muito largas da lei, é uma tarefa que não pode ser enfrentada neste lugar. Bastarão, por isso, breves indicações. Trata-se, como se sabe, de fatores que são ou de natureza social (o prestígio dos autores das infrações, o escasso efeito estigmatizante das sanções aplicadas, a ausência de um estereótipo que oriente as agências oficiais na perseguição das infrações, como existe, ao contrário para as infrações típicas dos estratos mais desfavoráveis).
O sistema penal brasileiro tornou-se escasso da conotação de punição concreta e de ressocialização, conservando apenas a função de subjugar classes sociais, a comunidade carcerária tem características constantes, tem a criação do verdadeiro e próprio modelo de detento, diante da seletividade da aplicação da lei penal. O cárcere é contrário a todo modelo educacional, promove apenas a inclusão incessante do mesmo detento, a individualização e o antagonismo entre quem é punido e quem não é.
4.NECROPOLÍTICA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO:
É evidente que a real função do sistema penitenciário brasileiro é construir e manter uma marginalização, dirigindo-se a aplicação da lei penal apenas a quem a sociedade julga como merecedor, abandonando por completo a figura da ressocialização.
Assim, tendo por semelhança as lições de Mbembe, nas primícias da necropolítica, o Estado-Juiz elege a camada social que será o alvo da mais reprimida sanção, levando-se em consideração, antes de tudo, a condição social e a raça do agente, portanto, o Estado elenca quem detém o perfil de criminoso, selecionando quem faz parte da “população criminosa”, conforme assevera Baratta (2002):
As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da “população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.
Portanto, da mesma forma que Mbembe enseja que o Estado torna o “deixar morrer” aceitável para determinados grupos da sociedade, o nosso sistema penal escolhe os indivíduos mais vulneráveis para a incidência de suas normas, etiquetando o agente.
O etiquetamento da camada social mais vulnerável decorre da seletividade do nosso legislador ordinário, juntamente com a mídia classicista. Não é preciso muita análise para percebemos tal primícia, com uma análise supérflua de nosso Código Penal, observamos que o legislador ordinário protege com mais afinco os crimes contra o patrimônio, do que os crimes contra a integridade física, uma vez que o crime de furto (artigo 155 do Código Penal) detém patamar que varia de 1 (um) a 4 (quatro) anos de pena, ao passo que o crime de lesão corporal leve (artigo 129, caput, do Código Penal) detém patamar de 03 (três) meses a 01 (um) ano.
Assim, o legislador protege com mais prestígio o patrimônio, sendo que este é de titularidade das classes sociais superiores. Outro vetor que auxilia no etiquetamento dos subalternos é a mídia classicista, uma vez que é a raça e o status social do agente que ditam como a mídia a ele se refere, se o agente é de classe prestigiada ou de determinada raça, a mídia refere a ele como estudante, jovem ou influencer, mas nunca como criminoso, meliante, traficante, esses adjetivos são utilizados para etiquetar as classes sociais subalternas.
Por fim, o sistema penal brasileiro escolhe os grupos sociais que compõem a chamada “carreira criminosa”, sendo constituído pelos vulneráveis, pouco importando com a função reeducativa que o cumprimento de pena deve alcançar, funcionando apenas como estigmatizador das classes sociais mais baixas, impondo a essas a reincidência.
Demonstra a dependência causal da delinquência secundária, ou seja, das formas de reincidência que configuram uma verdadeira e própria carreira criminosa, dos efeitos que sobre a identidade social do indivíduo exerce a primeira condenação; isto coloca uma função reeducativa da pena. A teoria das carreiras criminosas desviante e do recrutamento dos “criminosos” nas zonas sociais mais débeis encontra uma confirmação inequívoca na análise da população carcerária, que demonstra a extração social da maioria dos detidos dos estratos sociais inferiores e o elevadíssimo percentual que, na população carcerária, é representada pelos reincidentes. (Baratta, 2002).
5.CONCLUSÃO
Dessa forma, ante o exposto, o presente trabalho sustenta a partir do modelo teórico abordado pela criminologia crítica e da necropolítica juntamente com o contexto social vivenciado no Brasil, e perante as análises bibliográficas que o sistema penal - esse abrangendo o direito material, processual e o executório - atua de forma direcionada, segmentando os grupos que são vítimas do sistema repressivo do Estado.
Não há como deixar de citar, ainda, as palavras da pesquisadora Rosane Borges para o Jornal Ponte, em 2019:
“A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que faz a divisão entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas periferias das grandes cidades brasileiras, nos rincões do país. Nossa polícia substitui o capitão do mato (...)”
“(...) discutir necropolítica e segurança pública brasileira é entender que os lugares subalternizados com licença para matar “têm endereço e densidade negra” - A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite.”
Sendo assim, não há coincidência quanto às qualidades e características dos grupos que são mantidos encarcerados. Como citado na introdução, em suma maioria os jovens pardos, negros e de baixa escolaridade sofrem com a repressão no Estado brasileiro há anos, e não só no que diz respeito ao cárcere, como também no que diz respeito aos índices de baixa educação e oportunidades.
Há um perigo explícito no comportamento existente na sociedade brasileira que vangloria a militarização como uma alternativa para acabar com a corrupção, a violência e a criminalidade brasileira.
Fomos ensinados, inclusive de forma histórica - no que concerne à colonização do Brasil - a observar com desconfiança todo e qualquer tipo de comportamento advindo do grupo, que por si só, já sofre o suficiente com a desigualdade social e a gritante falta de oportunidade, educação e emprego presente no nosso país e tende a sofrer ainda mais quando se adota um regime autoritário, segregacionista e regido pelos ditames militares. Conforme trecho publicado na revista Motrivivência:
“O que vemos hoje é um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política do ódio e do descaso para com a classe trabalhadora que vive na pobreza. Tudo isso pode ser visto, por exemplo, nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro, nas periferias das grandes e médias cidades brasileiras. Não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade. O que se tem, no liberalismo letal, é a perseguição daqueles considerados perigosos, tanto do ponto de vista de classe, gênero, geração (os velhos) e raça/etnia quanto ideológico; são aqueles que não têm valor e podem de ser descartados.A necropolítica reúne esses elementos letais, que são reflexíveis e têm desdobramentos na vida cotidiana e na chamada política de segurança. (Motrivivência, 2020)
A vanglória a militarização presente na nossa sociedade e no nosso contexto político atual só faz agravar o isolamento desse grupo, atestando ainda mais o que Mbembe (2018) sustenta: “[...] Matar ou deixar viver constituem os limites da soberania do sistema – seus atributos fundamentais”. Em suma, “[...] ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como implantação e manifestação do poder”.
Demonstra e evidencia, de forma explícita, o desinteresse do Estado em garantir o tratamento e proteção igualitários positivados na Constituição, além da falha sistemática jurídico-penal presente no Brasil.
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SOUZA, Francisco Higor de Abreu. A seletividade do sistema penal e a impossibilidade de ressocialização do detento. JUS.com.br, 2019. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/75161/a-seletividade-do-sistema-penal-e-a-impossibilidade-de-ressocializacao-do-detento> Acessado em 11/08/2020.
SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crimes. 2ª ed. apud André Estevam e Victor Eduardo Rios Gonçalves. Direito Penal Esquematizado, p. 56.
ZAFFARONI, Eugênio Raul, Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed.Rio de Janeiro, 2001.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à nossa orientadora, Prof. Me. Maria Luiza Carvalhido, pela dedicação e acolhimento ao nos instruir.
[1] Graduada em Direito pela URIRedentor
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UniRedentor - Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUTTERRES, Luiza de Oliveira. Apontamentos acerca da criminologia crítica, sistema jurídico-penal e necropolítica no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2022, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59198/apontamentos-acerca-da-criminologia-crtica-sistema-jurdico-penal-e-necropoltica-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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