RESUMO: Este trabalho teve como proposta o estudo da influência exercida pelo direito internacional sob a ordem jurídica brasileira. Procurou-se analisar os principais compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito externo que, de alguma forma, influenciaram na elaboração de leis, na instituição de políticas públicas, na interpretação e aplicação pela jurisprudência, seja pela ótica do controle difuso ou pela aplicação do concentrado de convencionalidade. Os resultados trazidos demonstram a importância da cooperação jurídica internacional entre os Estados para a tutela dos direitos humanos. Será evidenciado que esta proteção se dá não somente em virtude da celebração de tratados, mas também por decisões internacionais e recomendações, a exemplo daquelas emanadas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Portanto, torna-se imprescindível da atuação dos atores internacionais como forma de incrementar a aplicabilidade dos direitos humanos, paulatinamente, na ordem jurídica do país.
Palavras-chave: Direito Internacional. Tratados. Influência. Cortes Internacionais. Brasil.
Quando se fala em cooperação internacional para proteção dos direitos humanos, é importante ter em mente que os laços internacionais formados pelos Estados, nesse segmento, são recentes, considerando que até o início do século XX as normas internacionais sobre este tema eram bastante esparsas.
Entretanto, em razão dos desastres ocorridos na Segunda Mundial (1939 a 1945) e como resposta à barbárie nazista, foi criada a Organização das Nações Unidas – ONU (1945), na Conferência de São Francisco que estabeleceu, ademais, o respeito universal dos direitos humanos para todos (Art. 55, “c”).
A partir daí há efetivo aumento nos laços internacionais e o surgimento, segundo a doutrina, de pelo menos três eixos de proteção aos direitos e garantias fundamentais no âmbito jurídico internacional. Ramos (2019, p. 155) destaca o seguinte:
A proteção dos direitos essenciais do ser humano no plano internacional recai em três sub-ramos específicos do Direito Internacional Público: o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), o Direito Internacional Humanitário (DIH) e o Direito Internacional dos Refugiados (DIR).
Como fruto desse liame, passou a existir, além do Sistema Universal (ONU) também o Sistema Regional Americano de proteção dos direitos humanos, com a criação da Organização dos Estados Americanos – OEA (1948). Instituíram-se mecanismos de proteção, a exemplo da Corte Internacional de Justiça – CIJ, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH e a Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH.
Considerando que os Estados se associaram para atingir objetivos comuns, foram celebrados acordos relacionados aos mais diversos temas: abolição da escravatura, repressão ao genocídio, justiça de transição, proteção aos refugiados, repulsa à utilização de tortura, tráfico de pessoas, proteção aos direitos das crianças, erradicação da violência contra as mulheres, regras mínimas para tratamento dos presos, dentre outros infindáveis temas.
Após o estabelecimento no papel, dos direitos, buscaram-se meios para o gradual estabelecimento das medidas no âmbito interno de cada país. Diante disso, foram criados instrumentos para proteger, monitorar e fiscalizar a aplicação dos compromissos internacionais, tais como os conselhos, os comitês, os comissariados, a revisão periódica universal, dentre outros procedimentos.
No Brasil, os tratados podem ter as seguintes forças normativas: (a) lei ordinária, se tratados comuns; (b) norma especial, em relação à matéria tributária; (c) norma supralegal, se relativos a direitos humanos; ou (d) emenda constitucional, ao se tratar de direitos humanos e ser aprovado pelo rito do art. 5º, §3º da CF/88.
Aqui será destacado como tais compromissos influenciaram, positivamente, a ordem jurídica nacional. Na busca dos objetivos propostos utilizou-se como recurso metodológico a pesquisa bibliográfica, através de materiais já publicados na literatura, além de normas e jurisprudência. O texto final fundamentou-se nas ideias de autores como Ramos (2019), Portela (2017) e Dias (2019).
2.DESENVOLVIMENTO
O Brasil já celebrou mais de vinte tratados no âmbito da ONU e outros vários compromissos de âmbito regional, além de acordos bilaterais. A incorporação do tratado ao direito interno vai dependerá das regras de cada país. A doutrina divide em dois modelos: o dualismo, no qual há distinção e independência entre as ordens jurídicas do Direito Internacional e o Direito Interno e o monismo, no qual afirma-se que há apenas uma ordem jurídica. No Brasil, segundo Portela (2017, p. 50/53) é possível aspectos da doutrina dualista, em razão da exigência de decreto presidencial para incorporar tratado internamente; e monista nacional, nos casos em que a Constituição estabelece a norma que deve prevalecer em caso de conflito. Apesar do debate doutrinário, é firme o entendimento do STF no sentido de que solução deve ser verificada com base na Constituição (ADI-MC 1.480/DF).
Nos últimos anos constata-se uma crescente influência do direito internacional sob o direito interno. No Direito Empresarial, por exemplo, merece destaque a Lei Uniforme de Genebra (Decreto nº 57.663/66), que regula a matéria relativa a letras de câmbio e notas promissórias em âmbito mundial visando à segurança e a rapidez nas relações comerciais. Criou-se também a Organização Mundial do Comércio – OMC, principal órgão relacionado à promoção do livre comércio no mundo, do qual o Brasil é membro. Também é retrato da adaptação do país aos ditames internacionais a elaboração da Lei nº 9279/96, que regula os direitos e relações inerentes à Propriedade Industrial, atendendo ao estabelecido no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Decreto n° 1.355/94).
Ambientalmente o Brasil foi participante ativo das ações internacionais, sediando um dos primeiros e maiores encontros do mundo no que diz respeito à proteção ambiental, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (conhecida como Rio/Eco-92), destacando-se a agenda 21, um programa de ação que visa conciliar o desenvolvimento econômico com o respeito ao Meio Ambiente. Por influência disso, foram instituídas as Leis n° 12.187/09 (Plano Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC) e 11.105/02 (Lei de Biossegurança) trazendo, expressamente, o princípio da precaução, por influência da Convenção sobre Mudança do Clima e Convenção da Biodiversidade, das quais é signatário. Tal princípio é um dos fundamentos para a inversão do ônus da prova em favor do ambiente, conforme da Súmula 618 pelo STJ:
Súmula 618-STJ: A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental. STJ. Corte Especial. Aprovada em 24/10/2018, DJe 30/10/2018.
Especialmente no que toca ao direito consumerista, o principal debate jurídico refere-se sobre a aplicação do Código de Defesa do Consumidor – CDC ou da Convenção de Varsóvia no caso, por exemplo, do extravio de bagagens nas viagens internacionais. Vale ressaltar que a norma internacional é excessivamente prejudicial ao consumidor, pois contém prazo prescricional prejudicial ao passageiro (inferior àquele estabelecido na legislação interna), além de limitar o ressarcimento de danos pelas empresas aéreas – adotando o princípio da indenizabilidade restrita/tarifada.
Nada obstante a grande proteção instituída ao consumidor na ordem brasileira, tanto o STF, quanto o STJ, têm decidido pela aplicabilidade da norma internacional em desfavor do CDC. Aquela corte fixou a seguinte tese no Tema 210:
"Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor"
Ainda que sob o argumento de ser ele regra especial em relação ao CDC com base no art. 178 da CF, o tratamento estabelecido é não é justo. A título de exemplo, caso determinado passageiro de vôo internacional perda a mala de viagem por culpa da prestadora do serviço, com todos os seus bens, terá limitada indenização ao valor máximo de 1.200 euros por mala (aproximadamente R$ 5.592,27) – ainda que comprove ter nela bens em valor superior, o que fere a proporcionalidade.
Já em relação aos direitos dos jovens, têm-se adotado no país alterações legislativas positivas, conforme princípio do melhor interesse da criança, previsto no art. 227 da CF/88 e intensificado pela promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710/90). O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, portanto, afastou a cultura de internação estabelecida pelo antigo “Código de Menores” (Lei n° 6.697/79). Segundo Barros (2018, p. 21),
Percebe-se que o Código de Menores de há muito já estava em dissonância com a compreensão jurídica e social sobre a forma de tratamento da peculiar situação de crianças e adolescentes. A Constituição da República claramente trilha um novo rumo ao mencionar que a infância e a juventude têm de ser tratadas com absoluta prioridade.
Atendendo ao Protocolo Facultativo referente à Venda de Crianças, à Prostituição Infantil e à Pornografia Infantil (Decreto n° 5.007/04), foi inserido no ECA a possibilidade de infiltração de agentes da polícia para investigação de crimes contra a dignidade sexual da criança e do adolescente, com o aumento à proteção.
Merece elogio, igualmente, o atendimento (ainda que tardio e impositivo) da recomendação estabelecida pela CIDH, para adoção de medidas visando simplificar e agilizar processos baseados em violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal fato ocorreu na condenação do país no Caso 12.051 (Maria da Penha v. Brasil). A consagrada autora Maria Berenice Dias (2019, p. 16/17) esclarece que:
Apesar de, por quatro vezes, a Comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu nenhuma resposta. Em 2001 o Brasil foi condenado internacionalmente. (...) Só então o Brasil resolveu dar cumprimento às convenções e tratados internacionais que segue. Daí a referência, na ementa da Lei, à Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – a chamada Convenção de Belém do Pará.
Não fosse a ordem internacional, talvez jamais o tratamento diferenciado contra a violência à mulher seria alterado pela lei. Num legislativo de maioria masculina em um país eminentemente machista, a violência contra a mulher dificilmente seria pauta. Tanto isso é verdade que a Lei n 11.340/06 foi de iniciativa do Poder Executivo, em colaboração com outras de cinco Organizações Não Governamentais – ONGs atuantes nas causas dessa esfera. Este novo regramento alterou a compreensão jurisprudencial acerca do tema, buscando o judiciário aplicar a lei, com suas peculiaridades, de forma a combater a violência doméstica e acelerar os atos praticados na persecução penal, principalmente em acerca da adoção de medidas protetivas de urgência. Ainda que não tenha eliminado, serviu a lei para reduzir (ou tentar reduzir) os números de violência contra a mulher.
Outros avanços devem ser reconhecidos, como a implementação do Estatuto dos Refugiados, por meio da Lei n° 9.474/97; a proteção da apatridia estabelecida pela nova Lei de Migração, atendendo à Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas e, especialmente, a promulgação de três tratados de direitos humanos com força de emendas constitucionais (Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, Convenção dos Direitos das Pessoas Com Deficiência e seu Protocolo Facultativo).
Por fim, merece destaque recente decisão do STF, que estendeu a aplicação da Lei n° 7.716/89 (Crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) para punição de condutas homofóbicas e transfóbicas, em virtude da ausência de proteção legal às referidas minorias, por evidente inércia do legislativo (ADO 26/DF e MI 4733/DF). Esta decisão atende aos Princípios de Yogykarta sobre orientação sexual, principalmente o de nº 5, referente ao segurança pessoal e proteção do Estado contra violência por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero.
3. CONCLUSÃO
A influência da dos compromissos internacionais celebrados pelo Brasil na ordem jurídica interna não somente é benéfica ao país, como necessária e atual. Todavia, deve-se recordar que o Brasil está em descompasso com diversos compromissos internacionais, principalmente em termas relacionados à: justiça de transição, por adotar uma Lei de Anistia (Lei n° 6.683/79) impeditiva à punição de violadores de direitos humanos, o que é inadmissível pela CIDH e incompatível com a Convenção (Caso n. 11.552 – Caso Guerrilha do Araguaia); sistema prisional, tendo o STF reconhecido um Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 3447MC/DF); violência policial, com crescente aumento de mortes decorrentes de intervenções policiais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (p. 66).
São grandes os avanços estabelecidos pelo peso do direito internacional, especificamente no eixo dos direitos e garantias fundamentais, por normas impositivas (jus cogens), sugestivas (soft law) ou decisões e petições apresentadas às cortes, comissões e comitês dos sistemas de proteção.
Esses avanços, entretanto, são insuficientes para afirmar que o país esteja, de fato, cumprindo com o seu papel. Não obstante isso, a adesão a instrumentos que permitem a fiscalização do Estado por organismos internacionais, como revisões periódicas, monitoramento pelos pares (peer review), Revisão Periódica Universal, a autorização da entrada de peritos no território, dentre outros instrumentos, são fortes indicativos de esforços pelo Estado na busca pela consagração dos direitos humanos fundamentais internamente e perante a sociedade internacional.
REFERÊNCIAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Direito da Criança e do Adolescente. 7 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: JusPodivm, 2018.
BRASIL. Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2019. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1480/SP. Rel: Min. Celso de Mello. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347083>. Acesso em: 17 jan. 2020.
_____________________________. ADO n. 26/DF. Rel: Min. Celso de Mello. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26votoMAM.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2020.
_____________________________. RE n. 636.331/RJ. Rel: Min. Gilmar Mendes. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14028416>. Acesso em: 17 jan. 2020.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, Caso 12.051, Relatório 54/01, Maria da Penha Maia Fernandes v. Brasil, 2001.
______________________________________________, Caso 11.552, Relatório 33/01, Julia Gomes Lund e outros v. Brasil, 2001.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 6 ed. rev., e atual. – Salvador: JusPodivm, 2019.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 5 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: JusPODIVM, 2017.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 6 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
Graduação em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione - FACDO (2018), Pós Graduação em Direito Constitucional (2020) e Penal e Processual Penal (2020) pela Faculdade Única de Ipatinga - GM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Matheus Eurico Borges. A influência do direito internacional na ordem jurídica brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2024, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59227/a-influncia-do-direito-internacional-na-ordem-jurdica-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Guilherme Waltrin Milani
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