RESUMO: A usucapião é um instituto que objetiva conceder a aquisição do domínio de um bem particular a um determinado sujeito, por consequência do tempo de posse desse indivíduo com o bem. A função social da propriedade por sua vez, se configura por ser a observação do proprietário, sobre sua conduta, que não pode se contradizer com o interesse social da coletividade, isto é, deve-se por observância a este instituto, o proprietário utilizar o seu domínio sobre o bem para que este atenda a sua função social, sempre objetivando uma harmonia social. Observando que a legitimadora da usucapião é a função social da propriedade, devemos questionar qual a conduta adotada pelo proprietário do bem usucapido que contrariou a função social da propriedade ao ponto de fazê-lo perder o domínio sobre o bem. A resposta é, a conduta negligente de quem dominava o bem, a atitude negligente do proprietário que, não toma nenhuma providência quando alguém invade sua posse, deixando que uma pessoa fique na posse do bem, por tempo suficiente para adquirir o direito de usucapir, faz com que a legislação entenda que ele não se importa com sua propriedade, enquanto possuidor usucapiente, por estar nesta propriedade se importa e a utiliza, cumprindo, portanto, sua função social.
PALAVRAS-CHAVE: Usucapião. Posse. Função Social.
ABSTRACT: The prescription is an institute which aims to grant the acquisition of the domain of a very particular to a given subject, therefore the time of possession that individual with good. The social function of property in turn, appears to be the observation of the owner, about his conduct, which can not contradict with the social interest of the community, that is, it should be for compliance with this institute, the owner use his dominion over the well so that it meets its social function, always aiming at a public. The harmony that the legitimating of adverse possession is the social function of property, which must question the conduct adopted by well owner who bucked the social function property as to make him lose the grip on the right. The answer is, the negligent conduct of those who dominated the good, the negligent attitude of the owner who takes no action when someone breaks into your possession, allowing individuals are in possession of good, long enough to acquire the right to It makes the legislation to understand he does not care about their property, to be in this property care and use, therefore fulfilling its social function.
KEYWORDS: Adverse possession. Possession. Public function.
1 introdução
Ao se analisar a usucapião, devemos observância a um instituto que a sua ausência tornaria irrelevante ou até mesmo injusto todo o mecanismo da usucapião, pois a falta deste instituto não legitimaria a própria existência da usucapião.
A usucapião é um instituto que objetiva conceder a aquisição do domínio de um bem particular a um determinado sujeito, por consequência do tempo de posse desse indivíduo com o bem. A função social da propriedade por sua vez, se configura por ser a observação do proprietário, sobre sua conduta, que não pode se contradizer com o interesse social da coletividade, isto é, deve-se por observância a este instituto, o proprietário utilizar o seu domínio sobre o bem para que este atenda a sua função social, sempre objetivando uma harmonia social.
O instituto do usucapião, é em síntese é a aquisição da propriedade decorrente do uso de certo bem por um tempo determinado em lei, em conjunto, abordaremos a função social da propriedade, que se resume por ser a observância dos sujeitos que atuam na sociedade em propiciar um uso adequado de sua propriedade, prezando pelo interesse coletivo em detrimento do individual.
Este instituto de tanta valia e inerente a usucapião é a função social da propriedade; a função da propriedade se baseia na ideia de que todo aquele que habita em sociedade deve contribuir para preservar o bem-estar social, elevando a proteção ao bem comum e rebaixando os interesses indivíduas que chocam com os coletivos. E ainda, os aspectos constitucionais e infraconstitucionais que compõe a usucapião e a função social da propriedade, bem como as espécies de usucapião existentes no nosso ordenamento.
Sob esse enfoque, a questão agrária brasileira, longe de ter sido resolvida, tem trazido à baila uma constante busca por soluções que atendam à grande demanda pela distribuição da terra aos agricultores. O presente trabalho visa analisar esta problemática tendo como escopo uma espécie de bens públicos, as terras devolutas, com o instituto da Usucapião Pro Labore como mecanismo jurídico possível a corroborar no processo de distribuição e regulamentação das terras aos agricultores familiares.
Apesar de ter sido um avanço, no sentido de garantir que pequenos agricultores pudessem ter acesso à propriedade das terras que ocupassem, após a Constituição Federal de 1988 que vedou a possibilidade de usucapião sobre bens públicos, a usucapião pro labore deixou de afetar as terras devolutas em pleno desacordo com o princípio da função social da propriedade, também inserido na Carta Magna.
Esta proibição, na verdade, foi um retrocesso com relação a legislação anterior, contrariando as constituições pretéritas e leis infraconstitucionais que possibilitavam a regularização do pequeno agricultor, ocupante de terras devolutas, por meio dessa exceção à imprescritibilidade das terras públicas.
Embora seja uma questão passível de discussão e merecedora de amplo debate tendo em vista sua repercussão social, econômica e jurídica, o tema não costuma ser aprofundado pela grande maioria dos doutrinadores que, ao tratar do assunto, o faz de forma superficial, pois apenas afirma ser proibida a usucapião de bens públicos após a Constituição de 1988, sem problematizar, especificamente, em relação à pro labore para trazer uma justificativa para seu retrocesso impeditivo.
A escassez referente ao assunto mostrou-se uma das dificuldades para o presente trabalho, posto que as faltas de abordagens específicas inerentes ao tema fizeram com que a discussão fosse feita por intermédio de estudos que tangenciassem o assunto, sem que houvesse fontes doutrinárias com teses diretamente voltadas à temática.
A metodologia utilizada foi mediante pesquisa bibliográfica, embasada em obras de autores e especialistas que enfocam a temática, pesquisa na internet, artigos, periódicos e dispositivos legais, sendo a Lei de Terras (Lei nº 601, de 1850); o Estatuto da Terra; a Constituição da República Federativa do Brasil; dentre outros. Procurando assim, compreender os fenômenos referentes ao tema, com opiniões de diferentes especialistas tendo como pano de fundo a legislação.
2 usucapião e a funçÃo social da propriedade
A etimologia da palavra “usucapião” já nos remete a uma breve conclusão da definição do termo; em latim usucapio - capio: “tomar”, uso: “pelo uso”, ou seja, tomar pelo uso. A usucapião é conceituada por nossa doutrina, segundo Farias e Rosenvald (2016, p. 258) como “modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais”; por essa definição observamos dois requisitos essências à usucapião, a posse, e está por um tempo prolongado; a usucapião é então uma ferramenta utilizada com o escopo de fazer a posse prolongada de algo se tornar propriedade do possuidor, a usucapião é portanto, um modo de aquisição de propriedade.
Os doutrinadores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2015) acrescentam ainda quando conceituam o tema, que a usucapião pode ser utilizada como meio de aquisição de outros direitos reais, isto é, pode-se usucapir não só bens móveis e imóveis, mas outros direitos reais como por exemplo o usufruto, uso, habitação e servidões prediais. A usucapião deve observância a todos os requisitos legais, e havendo a subsunção de tais requisitos, o possuidor já faz jus a propriedade do bem ou do direito real, afirmação está confirmada pelo ilustre professor de direito civil Carlos Roberto Gonçalves (2015, p.275) que ao abordar a natureza da ação de usucapião nos traz a seguinte redação: “A ação de usucapião é de natureza meramente declaratória.
Na sentença o julgador limita-se a declarar uma situação jurídica preexistente”; sendo a usucapião apenas um modo de tornar a propriedade devidamente declarada, destarte, observa-se que a sentença da ação de usucapião tem caráter declaratório, e não constitutivo ou condenatório, pois ao atender aos requisitos legais destinados a usucapião, o possuidor já se torna proprietário da coisa no mundo dos fatos, servindo a ação de usucapião apenas como um instrumento declaratório dessa realidade, a fim de tornar essa propriedade real também no mundo jurídico formal para efeitos de registro imobiliários (no caso de imóvel) ou demais providencias necessárias a propriedade.
Serão analisados neste capítulo as quatro espécies de usucapião, previstas na legislação nacional atual: a usucapião extraordinária e a ordinária e as especiais, urbana e rural (ou pro labore).
2.2.1 Usucapião extraordinária
Abordaremos como primeira espécie de usucapião, a mais decorrente delas nos processos nacionais e também pelo fato de esta espécie estar prevista no primeiro dos artigos que abordam o instituto da usucapião; a usucapião extraordinária, está presente no capítulo II, seção I (Da usucapião) do Código Civil; destarte, a inteligência do artigo 1.238 e o seu parágrafo único disciplinam que:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Sendo, portanto, características da usucapião extraordinária) A posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; instituto este obrigatório para qualquer espécie de usucapião, visto ser a posse um elemento intrínseco ao instituto da usucapião. b) A decorrência do prazo de 15 anos, ou se de acordo com o parágrafo único, de 10 anos. c) dispensa-se justo título e boa-fé
Na usucapião extraordinária, como observou-se, existe a previsão de dois prazos, o primeiro de 15 (quinze) anos, e o segundo de 10 (dez) anos explanado no parágrafo único do artigo 1.238. Como regra utiliza-se o prazo de 15 anos previsto no caput do artigo, porém se o possuidor cumprir a função social da propriedade nos ditames que a lei prescreve esse prazo é reduzido em cinco anos, portanto, há redução do prazo quando o possuidor usucapiente houver estabelecido no imóvel sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Vemos, portanto, que a usucapião e a função da propriedade não se separam, não servindo agora a função social da propriedade apenas como legitimadora para usucapião, mas também como ferramenta redutora do prazo de aquisição do direito de usucapião (VENOSA, 2019).
Quando a usucapião se enquadra no parágrafo único, ela é denominada de usucapião extraordinária abreviada, pelo fato óbvio de ser seu prazo para aquisição abreviado; o professor Carlos Roberto Gonçalves (2015, p.260) ao disciplinar a usucapião extraordinária abreviada faz um importante comentário, quanto ao a redução do prazo:
Para que ocorra a redução do prazo não basta comprovar o pagamento de tributos, uma vez que, num país com grandes áreas despovoadas, poderia o fato propiciar direito a quem não se encontre em situação efetivamente merecedora do amparo legal. Pareceu mais conforme aos ditames sociais, situar o problema em termos de “posse-trabalho”, que se manifesta por meio de obras e serviços realizados pelo possuidor ou de construção, no local, de sua morada.
O professor faz uma importante observação, dizendo que para utilizar-se da usucapião extraordinária abreviada o que se leva em consideração não é apenas o cumprimento de uma obrigação tributária, mas o contexto social da propriedade no tocante a posse e o trabalho (obras, construções, serviços de benfeitoria etc.) realizado por decorrência dessa posse.
A usucapião ordinária está disciplinada no artigo 1.242 do Código Civil, com a seguinte prescrição:
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
São, então as características da usucapião ordinária:
a) A posse mansa, pacífica e ininterrupta, exercida com a intenção de dono;
b) O decurso do tempo de 10 (dez) anos ou de 5(cinco) anos, conforme os ditames do parágrafo único.
c) Justo título formalizado e devidamente registrado.
Para que falemos de usucapião ordinária, necessariamente, ao contrário da usucapião extraordinária, deve existir justo título e boa-fé e, por conseguinte, o prazo para usucapir é de dez anos, menor do que o prazo previsto na usucapião extraordinária (quinze anos), que não possui existe justo título ou boa-fé.
Ainda, o parágrafo único, dispõe a respeito da redução do prazo para usucapir, que será reduzido para cinco anos quando, o imóvel for adquirido onerosamente, com base no registro em cartório, e posteriormente cancelado por consequência da presença de algum vício, destarte, se os possuidores estabelecerem sua moradia ou realizarem investimentos que atendam a interesses sociais e econômicos poderão utilizar do prazo reduzido previsto no parágrafo; mais uma vez Observou-se na legislação uma proteção diferenciada para atitudes que atendam a função social da propriedade, neste caso, reduzindo o prazo de 10 (dez) para 5 (cinco) anos. Por conta da redução prevista, a usucapião que atenda a subsunção do parágrafo único é denominada de usucapião ordinária abreviada, ou conforme preferem alguns doutrinadores, denominada de usucapião ordinária social (DINIZ, 2016, p.184).
Por todo o nosso estudo, depara-se com a usucapião e a função social da propriedade, e já há muito, nos convencemos que os dois institutos são casados e inseparáveis, não existindo razão de haver a usucapião, ao não ser, para atender a função social da propriedade.
Acontece que, mesmo estes institutos estando unidos em todo caso de usucapião, existem situações em que a função social da propriedade é tão relevante que a lei entende que devesse utilizar o instituto da usucapião de um modo especial, em prol dessa função social atinente a propriedade. Destarte, a Constituição Federal disciplina dois tipos de usucapião, denominados e conceituados pela doutrina como especiais, sendo, a usucapião especial rural ou pro labore, e a usucapião especial urbana.
2.2.3.1 Usucapião especial urbana
Como dito, os modos de usucapião especiais são disciplinados por nossa Carta Magna, sendo a usucapião especial urbana uma novidade introduzida pela Constituição Federal de 1988, estando esta espécie de usucapião preceituada no artigo 183 da constituinte, e nos seus respectivos parágrafos, in verbis:
Art. 181. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
A usucapião especial urbana é também denominada pela doutrina de pró-moradia, para o habitatione, ou habitacional (DINIZ, 2016, p.186), sendo, portanto, claro seu objetivo direto, que é propiciar de modo célere, habitação a quem necessite.
Sob o prisma de que o solo urbano não deve ficar sem o devido aproveitamento, a Constituição Federal, preceitua o direito de o possuidor adquirir imóvel urbano, desde que este imóvel não seja público (183, §3º, CF/88), que tenha sua dimensão limitada a até 250 m², seja destinado para sua moradia ou de sua família, e o usucapiente não possua outro imóvel. Vale ressaltar, que esta espécie de usucapião não se aplica ao terreno urbano sem construção, tendo em vista a necessidade expressa no caput do artigo 183 da CF/88, de ser requisito a utilização do imóvel para sua moradia ou de sua família; ainda se ressalta que a usucapião especial urbana, não necessita de justo título ou boa-fé (GONÇALVES, 2015, p.264).
Como em todas as espécies de usucapião abordadas até esse momento, existe também a possibilidade de uma alteração no prazo necessário para legitimar essa espécie de usucapião, neste caso, o prazo de 5 (cinco) anos, sofre alteração e é reduzido para 2 (dois) anos.
A usucapião especial urbana, também conhecida pela doutrina coma usucapião familiar, é aquela cujo prazo necessário soma dois anos, estando prevista no artigo 1.240-A do Código Civil de 2002, verbis:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural
Portanto, se um cônjuge vier a abandonar um imóvel onde residia com sua família, que era proprietário ou pertencia ao casal, poderá o ex-cônjuge ou ex-companheiro que sofreu o abandono, passado o prazo de 2 (dois) anos, requerer o domínio do bem, se após o abandono tiver permanecido no imóvel e contando que este imóvel possua a metragem máxima de 250 m².
Perceba que a lei é muito clara ao definir a metragem necessária para a composição da usucapião especial urbana, portanto, se um imóvel possui 300 m², mesmo que só tendo ultrapassado 50 m² do estipulado nos artigos, o possuidor terá que recorrer aos preceitos da usucapião extraordinária ou ordinária, mas conforme a lei dita, além dos outros requisitos, deve o imóvel, necessariamente, ter até 250 m² para manter seu caráter de aquisição especial.
2.2.3.2 Usucapião especial rural
O professor Carlos Roberto Gonçalves (2015, p. 262) traz uma análise histórica da usucapião rural ou pro labore, que foi introduzida no direito brasileiro pela Constituição Federal de 1934, permaneceu na constituinte de 1937 e de 1946, tendo tido sua eficácia reduzida pela Emenda Constitucional de 1969, que conduziu sua matéria ao aguardo de promulgação de lei ordinária.
Até ser sancionada lei ordinária atinente a usucapião pro labore, aplicou-se a Lei n.4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), dezessete anos depois foi sancionada a Lei n.6.969, datada de 10 de dezembro de 1981, sancionada especialmente para reger a usucapião especial rural. Atualmente, a Constituição Federal de 1988, regula este modo especial de usucapião, estando em seu artigo 191 e no parágrafo único respectivo, os preceitos que norteiam esta usucapião.
Portanto, a usucapião especial rural é destinada a áreas rurais de até 50 (cinquenta) hectares, e o prazo necessário para a concepção do direito de usucapir é de 5 (cinco) anos, não sendo possível, assim como em qualquer outra espécie de usucapião, mas é necessário reafirmar, por conseguinte do parágrafo único do artigo 191 que trata da usucapião especial rural, a usucapião de imóveis públicos. Acontece que, para se utilizar o instituto da usucapião rural especial, não basta haver a posse cumprida pelo prazo legal estipulado, sobre uma área da metragem ditada, mas exige-se uma ocupação produtiva deste imóvel, devendo o usucapiente não só morar, mas trabalhar neste imóvel rural. Depara-se novamente com a importância da função social da propriedade, visto aqui ser ela aqui observada para existir ou não esta espécie de usucapião, pois se ela não atuar do modo esperado pelo ordenamento jurídico, se quer existe a usucapião especial rural.
Outro importante requisito, também relacionado à função social da propriedade é a necessidade de, para caracterização deste modo especial rural de usucapião, existir a morada do usucapiente e de sua família, fato este que impede, por exemplo, pessoas jurídicas utilizarem desta espécie, por consequência de não terem família nem morada (GONÇALVES, 2015, p.263); não havendo, assim como vimos na usucapião especial urbana, a necessidade de justo título e boa-fé.
Portanto, atendendo a função social da propriedade rural, que o artigo 191 da Constituição Federal sintetiza por ser o trabalho rural do usucapiente na propriedade, de até 50 (cinquenta) hectares, pode o usucapiente que ininterruptamente, por 5 (cinco) anos possuir a propriedade, a adquirir por esta modalidade de usucapião.
2.3 a função social da propriedade e a usucapião
Decorrente da enorme significância inata à função social da propriedade, a nossa Constituição Federal de 1988, lhe concedeu um caráter de especial importância, estando o tema no bojo das cláusulas pétreas, classificada entre os Direitos e Garantias Fundamentais, no artigo 5°, inciso XXIII, por consequência a função social da propriedade nunca poderá passar sem ser observada, devendo estar presente em todas as situações que envolvam o tema, propriedade.
Além desta já suficiente previsão constitucional citada no parágrafo anterior, a nossa Constituição Federal trouxe o tema em diversos outros artigos, fazendo com que este instituto exista em várias esferas jurídicas (constitucional, civil e também tributária). Os demais artigos constitucionais que aludem a função social da propriedade estão elencados do seguinte modo: 153, § 4° e 156, §1 – relacionado à contribuição tributária; 170, II – a função social aparece como princípio atinente a justiça social; 182, § 2 – alude a função social da propriedade urbana; 184 e 185 – versa a respeito da desapropriação em prol da função social da propriedade; 186 – alude a função da propriedade urbana
Todos esses dispositivos se preocupam diretamente em explanar a função social da propriedade, demonstrando que não basta ao proprietário preencher apenas os requisitos meramente formais (registro imobiliário, escritura e outros instrumentos formais) para garantir sua propriedade de modo perpétuo, mas há a necessidade de fazer com que sua propriedade alcance os preceitos sociais adequados a coletividade para que ele não a perca.
Ao analisar a usucapião, de primeira mão verifica-se que a atitude presente na usucapião parece ser um ato antijurídico, visto que o ato inicial da usucapião pode ser caracterizado como uma ação ilícita, se não veja-se, a usucapião pode ser iniciada por uma invasão decorrente até de violência a uma propriedade alheia, porém o Código Penal não tipifica essa ação como criminosa e portanto, esse ato pode ser considerado legítimo, tudo isso decorre por conta da função social da propriedade, isto é, se houver uma conduta antissocial do proprietário possuidor dessa propriedade, o invasor pode tê-la para si de modo legítimo (FIGUEIREDO, 2018).
Quando se relaciona a função social da propriedade com o instituto da usucapião, devemos lembrar que há um elemento primordial para legitimar a função social da propriedade, pois quando se fala que um indivíduo pode perder a sua propriedade por consequência da necessidade de se atender uma função social, é necessário responder à pergunta: qual a ação antissocial adotada pelo proprietário é caracterizada como antissocial ao ponto de legitimar que outro (um invasor) a retire? Eis que Troplong (1852, p. 43) já respondia a muito tempo a essa questão do seguinte modo:
Há interesse social de que a lei se aproveite da negligência do proprietário para conceder uma anistia àquele que, durante anos de trabalho, de atividade e esforço, pagou suficiente a violação de um direito não reclamado.
Portanto, verifica-se que a negligência do proprietário é a atitude antissocial legitimadora da usucapião, isto é, a nossa legislação entende que a negligência possui tamanho suficiente para fazer uma propriedade se tornar de outrem, e, portanto, em regra, a usucapião inexiste na falta da negligência do dono da coisa, sendo no caso da usucapião, a ação negligente a responsável pela concepção da função social da propriedade. Existe, portanto um segmento iniciado pela negligência que conduz a posse à usucapião, conforme demonstrado a seguir: Negligência concebe → a função social da propriedade que legitima → a usucapião.
Por esse ponto observa-se que o direito a usucapião nasce, não quando o indivíduo conquista a posse da coisa por um tempo determinado tempo, mas a usucapião é concebida pela negligência do dono da coisa, isso significa que a responsabilidade principal pela usucapião não está nas mãos do possuidor “invasor”, mas nas mãos do proprietário, portanto o próprio proprietário que cria as condições que conduzirão à usucapião de seu próprio bem ou do direito real.
A função social da propriedade, como já dito neste capítulo, consiste na observação pelo indivíduo que compõe uma sociedade a fazer com que sua propriedade atenda ao bem-estar social, sendo por consequência, uma ferramenta necessária para o resultado de uma harmonia social entre os sujeitos desta coletividade. Estando, portanto, claro o objetivo da função social da propriedade, verifica-se ainda que ela é a legitimadora da usucapião, isto é, não haveria motivo para a existência da usucapião, senão para atender a função social da propriedade.
Essa ferramenta social da propriedade é muito extensa e como sabemos legitima a usucapião, porém ela não é cega, e tendo em vista o seu caráter principal que é a harmonia social, ela também enxerga situações que não cabem a usucapião, ou seja, existem situações que para se manter uma segurança jurídica, a harmonia social, enfim, para atender a função social da propriedade, se faz necessário não permitir a usucapião, pois pelo contrário haveria uma injustiça e, por conseguinte uma desarmonia social. Veja-se, portanto, quando a função social da propriedade se opõe a usucapião. A fim de se evitar a utilização abusiva da ferramenta da usucapião, fato este considerado como uma atitude contra a função social da propriedade, a lei e doutrina não permitem, a utilização da usucapião de bens, nas circunstâncias a seguir apontadas pela ilustre professora Maria Helena Diniz (2016, p.176):
a) Coisas fora de comércio, decorrente de sua natureza, por não serem suscetíveis de apropriação pelo homem: a lei obsta de modo terminantemente a aquisição de bens que por sua natureza não podem ser apropriados pelo homem, como por exemplo, o vento e o ar, bens. Imaginemos, em um exemplo hiperbólico, o absurdo que seria alguém querer ser proprietário da luz solar, e como proprietário cobrar para que pessoas a utilizassem em determinada região, sem dúvidas é algo impensável tendo em vista a natureza desse bem (luz solar), e mesmo que bens desta natureza fossem passíveis de usucapião, pensemos em quantas pessoas iriam requerer sua propriedade pelo fato de terem utilizado o vento, o ar ou a luz, por exemplo, por tempo suficiente para usucapir. Destarte a lei sabiamente proíbe a usucapião de bens que por sua natureza, não são suscetíveis de apropriação.
b) os bens públicos: os bens públicos não passíveis de apropriação, por se tratar de coisa comum da sociedade, ou seja, um não pode requerer como seu algo que pertença a toda uma sociedade. Há algum tempo, esse tema gerava grande controvérsia entre os juristas, e parte destes pregava que os bens públicos poderiam ser usucapidos se houvesse posse tranquila pelo período de 40 anos, porém com o advento do Decreto n.22.785/33 esta controvérsia foi resolvida, conforme ditado do texto do artigo 2° deste decreto “os bens públicos, seja qual for sua natureza, não estão sujeitos a prescrição”, neste sentido nenhum bem público pode ser usucapido, por não correr prazo de prescrição sobre ele.
c) Bens que, por seu caráter subjetivo, mesmo estando em comércio, dele são excluídos, necessitando que o possuidor invertesse o seu título possessório: emprestando o exemplo de Diniz, podemos citar o caso do condômino que deseja usucapir em face dos demais comunheiros; a doutrina e a jurisprudência (RTTJSP, 45:184) entendem ser impossível a usucapião entre condôminos, enquanto perdurar o estado indivisível do bem, visto que não pode haver usucapião de área incerta. Para ser possível a usucapião nesse caso, seria necessário o comportamento de proprietário exclusivo ou o condômino inverter sua posse, abrangendo o todo, pois ao possuir o todo cessará o estado de comunhão do bem.
Não havendo, portanto, a possibilidade de se adquirir quaisquer dos bens supracitados por meio da usucapião, em síntese os bens se resumem em bens fora de comércio não suscetíveis de apropriação, bens públicos e bens que necessitam da inversão do título possessório para a usucapião, visto seu caráter subjetivo. Ainda por resultado social da propriedade, a legislação aponta sujeitos que mesmo se tratando de bem suscetível a usucapião, não poderão usucapir por conta de uma condição que a legislação entende que causaria um desconforto social.
O artigo 1.244 do Código Civil traz o texto que trará luz a quem são estes sujeitos, dizendo o texto do artigo “ estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”, sendo, conforme elencado por Diniz (2016, p.175), os seguintes sujeitos cuja usucapião não é passível:
a) Entre cônjuges na constância do casamento
b) Entre ascendentes descendentes, durante o poder família
c) Entre tutelados e tutores, curatelados e curados, durante a tutela ou curatela
d) em favor de credor solidário nos casos dos artigos 201 e 204, §1° do Código Civil, ou herdeiro do devedor solidário.
e) contra absolutamente incapazes (artigo 3° do Código Civil)
f) contra ausentes do País em serviço público a ente (s) federativo (s)
g) contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra
h) pendendo condição suspensiva
i) não estando vencido o prazo
j) pendendo ação de evicção
k) Antes da sentença que julgará fato que deva ser apreciado na esfera criminal
l) havendo citação feita ao devedor
m) havendo protesto
n) se houver apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores
o) se houver ato judicial que constitua em mora o devedor
p) havendo qualquer ato inequívoco que importe em reconhecimento do devedor, alcançando inclusive o fiador.
Eis que insta reafirmar, que os bens podem ser suscetíveis de usucapião, porém para estes sujeitos a usucapião não surtirá efeitos, a não ser que se extinga a relação que os coloca nas condições supracitadas. O prazo para estes indivíduos tem caráter suspensivo, sendo, portanto, suspensos quando o sujeito se encontra condicionado a uma destas situações e, por conseguinte, ao não mais estar em uma destas condições reinicia-se a contagem do prazo para a usucapião.
3 O USUCAPIÃO RURAL SOB O ENFOQUE DA REGULARIZAÇÃO DA POSSE DE PEQUENOS PRODUTORES EM TERRAS DEVOLUTAS
3.1A FUNÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE E O USUCAPIÃO RURAL (TERRAS DEVOLUTAS)
Oportunamente, buscou-se apresentar o processo histórico da constituição da propriedade rural no Brasil, demonstrando como foi possível chegar a um nível tão acentuado de concentração da propriedade em um país com dimensão continental. Esse processo deixou uma massa de trabalhadores à mercê de um pedaço de chão para dele tirar seu sustento e poder participar de forma ativa da construção de uma nação rica, igualitária e justa, onde, a conquista desse espaço, na maioria das vezes, se dá com “sangue, suor e lágrimas”.
A seguir tratar-se-á a respeito do mecanismo existente com potencial para ajudar a reverter o quadro caótico em que se encontra a estrutura fundiária brasileira.
Consequentemente, como reflexo dessa reorganização fundiária, também é possível solucionar problemas sociais que afligem os grandes centros como o inchaço urbano e o avanço da violência. Afinal, ao dar condições dignas, garantindo uma área mínima, suficiente para nela trabalhar e progredir, os atuais despossuídos sairão desta situação de ônus social para a autossuficiência podendo gerar renda para si e riqueza para o país. Deixando evidente a importância da agricultura familiar no processo de fomento da economia para o país (CAMPOS, 2016).
Esses mecanismos passam pela aplicação do princípio da função social da propriedade, mais especificamente da propriedade pública por estar se tratando de terras devolutas. Ao ampliar o uso desta espécie de bem o poder público cumpre o dever de possibilitar o uso dos bens públicos atendendo ao interesse da coletividade da forma mais ampla possível.
A respeito da função social da propriedade, Silva (2017) afirma que sua noção surge, no mundo jurídico, no final do século XIX, como fruto do trabalho de Léon Duguit. Tal conceito contrapõe-se à concepção da propriedade como um direito absoluto como era visto na antiga Roma e como havia sido consagrado no início do século, refletindo o individualismo jurídico vigente. O Código Civil de Napoleão no art. 544 evidencia essa ideia ao dispor que “a propriedade é o direito de gozar e dispor da coisa da maneira mais absoluta”. Para Dogue (1911 apud GOMES, 2015), a propriedade tende a se tornar a função social de quem detém a riqueza mobiliária e imobiliária, deixando de ser o direito subjetivo do indivíduo. Para ele, a propriedade acarreta para todo detentor de uma riqueza o dever de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só podendo o proprietário executar uma certa tarefa social. Cabendo a ele aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria. Dessa forma, a propriedade não é, de modo algum, um direito intocável e sagrado, mas um direito em constante mudança que se deve adaptar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.
Logo, essa nova concepção da propriedade privada sendo vista de forma relativizada em função da relação e dos limites impostos pelos reflexos na sociedade, trazendo consigo responsabilidades ao proprietário que condicionam o seu poder sobre a coisa. De modo a usar ou não usar, ou mesmo de devastar, de forma irresponsável, agora se mostra limitado para atender esse princípio em que a propriedade deve cumprir com suas funções sociais, sendo um poder dever, sob pena de perda da propriedade, caso não produza ou o faça de forma a afetar negativamente a sociedade a que pertença.
Apesar de ser visto como uma limitação principalmente à propriedade privada, a função social da propriedade também diz respeito aos bens públicos. Para Di Pietro (2016), não existe motivo para excluir os bens dominicais da aplicação das normas constitucionais que asseguram a função social da propriedade para enquadrá-los aos planos de reforma agrária, até porque a C.F. contém norma expressa a esse respeito, determinando, no art. 188, que a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.
Com respeito às terras devolutas, estas compõem os bens dominicais do Estado. Estes bens são definidos pelo art. 99, inciso III, do Código Civil Brasileiro, como sendo aqueles que “constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades”. Eles fazem parte do patrimônio público disponível, são os bens do Estado que podem ser vendidos, permutados ou cedidos, ou com os quais se possam fazer operações financeiras em virtude de disposições legais especiais de autorização.
De acordo com Di Pietro (2016), muito embora o poder público possa dispor desses bens do mesmo modo que o particular, existem normas de direito público que derrogam, parcialmente, o direito privado. Tem-se como exemplo as normas que impedem a penhora, a usucapião ou exigem licitação para contratos que envolvam bens públicos. Não sendo possível se afastar completamente do direito público quando o patrimônio esteja envolvido em uma relação jurídica de qualquer natureza.
A referida autora acredita estar superada a tese que atribuía aos bens dominicais uma função puramente patrimonial ou financeira. Afirma que muito embora essa função permaneça, podendo constituir importante fonte de recursos para o erário público, não há dúvida de que a esses bens possa e deva ser dada finalidade pública, aplicando o princípio da função social da propriedade.
Salienta ainda que, por ser sujeito ativo do poder de desapropriar para fins de reforma agrária (art. 184 da CF), a União pode exercer seu poder sobre bens públicos estaduais e municipais. Sendo assim, a ideia de função social não é incompatível com a propriedade pública, afinal, relacionado ao dever de utilização, esta já tem uma finalidade pública que lhe é inerente e que deve ser fomentada para que melhor atenda ao interesse público, principalmente com relação aos objetivos constitucionais direcionados ao pleno desempenho das funções sociais da propriedade garantindo a dignidade da pessoa humana.
Portanto, com relação aos bens dominicais, mais especificamente às terras devolutas, a função social obriga o poder público a garantir seu uso para que atenda às demandas sociais dentre as quais, o acesso à propriedade rural para agricultores sem-terra através da distribuição delas, implementando a reforma agrária.
Buscando atender à demanda social pela distribuição da propriedade rural foi instituída na Constituição de 1934 a usucapião pro labore aplicável tanto à propriedade privada quanto à pública. Dessa forma, de acordo com Silva (2017), esse texto constitucional, seguindo o movimento do constitucionalismo social, assegura ao cidadão direitos econômicos, sociais e culturais além dos direitos civis e políticos clássicos, oferecendo um novo enfoque ao direito de propriedade de forma a atender sua função social.
Importante destacar como essa postura estatal se adequa ao que Carvalho (205) dispôs fazendo uma análise histórica brasileira, no que diz respeito aos direitos civis, políticos e sociais, demonstrando que essa jornada rumo à cidadania pode ser uma das razões para as dificuldades existentes no Brasil. Para ele, houve uma inversão na cronologia e na lógica da sequência descrita por Marshall (2011). Argumenta que primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular, como ocorreu em relação à Constituição de 1934.
O autor continua sua proposição afirmando que os direitos políticos vieram depois, também de maneira bizarra, pois a maior expansão do direito do voto deu-se em outra ditadura, onde os órgãos de representação política tornaram-se peças decorativas do regime. Afirma, ainda que a base da sequência de Marshall, muitos dos direitos civis, continuam inacessíveis à maior parte da população, mesmo atualmente, gerando uma sensação de mal-estar devido sua incompletude.
Criado pela Constituição de 1934 a usucapião pro labore representou grande mudança em relação às anteriores políticas agrícolas por incentivar a pequena propriedade em detrimento ao latifúndio improdutivo. Pela primeira vez era positivado em um texto legal o direito de usucapir um imóvel estatal possibilitando a criação de pequenas propriedades.
O art. 125 da referida Constituição determinava que:
Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra de até dez hectares, tornando-o produtivo por seu talento e tendo nele sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória, devidamente transcrita. Conforme se verifica, o dispositivo legal traz alguns requisitos específicos a esta forma de usucapião, dentre os quais a necessidade de que o usucapiente seja brasileiro, sem ter distinguido se nato ou naturalizado; deve ocupar o trecho por dez anos contínuos, sem oposição. Ou seja, de forma ininterrupta e com ânimo de proprietário, posto que não pode haver reconhecimento de domínio alheio; a área ocupada deve se limitar a dez hectares; deve ter tornado a propriedade produtiva além de nela residir; o usucapiente não pode possuir propriedade urbana ou rural.
A Constituição de 1937 manteve a mesma redação. Porém a Carta de 1946 traz algumas modificações quanto à possibilidade de o usucapiente ser estrangeiro e em relação à extensão que passa a ser de vinte e cinco hectares a limitação da área a ser usucapida. Em 1964, após o Golpe Militar é promulgada a Emenda Constitucional nº 10, de 09-11-1964 alterando o art. 156, § 3º da Constituição de 1946.
Com a referida Emenda a regulamentação da usucapião pro labore ficou a cargo de lei infraconstitucional, estando disciplinada no art. 98 do Estatuto da Terra e na lei nº 6.969 de 1981. Estes dispositivos legais trouxeram consigo a preocupação em garantir uma área mínima usucapível capaz de garantir a subsistência e o progresso econômico familiar.
A Constituição de 1967 silencia com relação à usucapião pro labore ficando a cargo exclusivamente do ET a normatização de tal instituto e, posteriormente, da Lei nº 6.969/81 que trata especificamente da usucapião especial de imóveis rurais.
A Constituição de 1988 eleva novamente o instituto ao seu texto trazendo-o no art. 191, porém de forma genérica exclui os imóveis públicos da possibilidade de serem usucapidos, o que vem sendo interpretado pela maio rparte da doutrina e da jurisprudência como um impedimento à usucapião pro labore sobre terras devolutas. Entretanto, é importante ressaltar que essa interpretação não é unânime, há doutrinadores que defendem a ideia de que permanece a possibilidade dessa modalidade de usucapião, nessa espécie de bens dominicais.
3.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A VEDAÇÃO À USUCAPIÃO PRO LABORE.
A atual Constituição vetou a possibilidade da usucapião de bens públicos, se alinhavando ao entendimento da súmula 340 do STF aprovada em 1963 que dispõe o seguinte: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Atitude louvável do constituinte, posto que o patrimônio público deve ser resguardado por ser um direito coletivo. Mesmo em se tratando dos bens dominicais, apesar desse termo não constar no art. 183, §3º, nem do art. 191, parágrafo único, onde consta a referida proibição.
Apesar de serem bens do Estado que não estão afetados diretamente por alguma função pública, exercendo uma função social evidente, observou-se no decorrer deste trabalho que estes bens, especificamente no que diz respeito às terras devolutas, trata-se de relevante reserva patrimonial, no que tange a possibilitar o Estado na consecução de políticas públicas, seja na comercialização dessas terras, seja na sua implementação para a reforma agrária. Portanto, entende-se que a vedação à usucapião de bens públicos é salutar, entretanto é necessário que se faça uma ressalva com relação à usucapião pro labore (CAMPOS, 2016).
A preocupação em preservar o patrimônio estatal das terras devolutas, evitando a formação de grandes propriedades rurais às custas do empobrecimento público, se prolonga na história brasileira desde o governo Vargas. Contudo, se por um lado essa limitação ao latifúndio foi uma constante a partir de então, do mesmo modo tem início nesse mesmo período a busca por mecanismos capazes de reverter a grande concentração de terras visando sua distribuição de forma mais equânime pelas diversas vantagens que isso acarreta a vida dos camponeses, na questão da urbanização dos grandes centros e na riqueza da nação.
Verifica-se, portanto, que foi a partir do governo Vargas que se teve uma normatização de forma direta impedindo a usucapião de terras devolutas pelo Decreto nº 19.924 de abril de 1931. Por outro lado, objetivando concretizar uma política de fixação do homem no campo e de popularização da propriedade rural, foi criada a usucapião pro labore na Constituição de 1934. Ou seja, com isso o Governo brasileiro se propôs a dispor de seu patrimônio buscando tais objetivos sociais.
Essas diretrizes foram mantidas desde então permanecendo historicamente durante os diversos governos e regimes, inclusive ditatoriais, por se mostrarem adequadas a possibilitar que o Estado conserve seus bens frente a possíveis dilapidações e, ao mesmo tempo, possibilite a efetivação do acesso à propriedade rural ao pequeno produtor que vive em terras devolutas. Por essa análise verifica-se que, ao proibir a usucapião de terras públicas de forma genérica, o legislador constituinte regrediu em termos de garantia aos direitos fundamentais por não deixar uma ressalva quanto à usucapião pro labore deterras devolutas, tendo em vista ser uma conquista social revogada pela Constituição Cidadã.
Por outro lado é importante ressaltar a possibilidade de uma interpretação alternativa em relação a esta norma, interpretação defendida por alguns doutrinadores levando em conta o princípio da função social da propriedade.
Nesse contexto, Farias e Rosenvald (2016) fazem uma distinção entre os bens formalmente e materialmente públicos. Quanto aos primeiros, seriam os bens registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, mas sem uma ocupação direta, não exercendo nenhuma atividade produtiva ou mesmo servindo de moradia. Ao contrário, os bens materialmente públicos dizem respeito àqueles que preenchem os critérios de merecimento e legitimidade, bens que cumprem alguma função social. Nessa linha os autores entendem equivocada a impossibilidade de usucapião sobre bens públicos de forma absoluta, sendo uma ofensa ao princípio da função social da posse e da proporcionalidade. Analisam que se o bem for formalmente público, há possibilidade de ser usucapido, desde que satisfeitos os demais requisitos; sendo materialmente público, haveria óbice à usucapião. Concluem afirmando que enquanto o bem privado “tem” função social, o bem público “é” função social.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Fortini (2014) argumenta que a Constituição não dispensa os bens públicos do dever de cumprir função social. Para ela não seria possível uma interpretação que fuja ao propósito da norma constitucional. Afirma que além da clareza constitucional, não é sustentável a concepção de que somente os bens privados se dediquemao interesse social, desobrigando-se os bens públicos dessa função. Acredita que cabe aos bens públicos maior dever de atender à função social (MARQUES, 2019).
A autora justifica ainda que, ao impedir a possibilidade de usucapião de bens públicos, a Constituição buscou proteger os bens que exijam proteção pela função a que se destinam, sendo estes os bens materialmente públicos, visando preservar o interesse público. Desse modo, para a autora, entendimento diverso se distancia da correta interpretação da Constituição Federal, porque implica a redução da exigência constitucional no cumprimento da função social por parte da propriedade pública e da privada (MACHADO, 2018).
Não se busca aqui defender a ideia da possibilidade total e irrestrita de usucapião de terras devolutas, afinal isso já foi possível conforme se verifica em nossa jurisprudência e os resultados não foram benéficos ao Estado, por não terem favorecido a democratização da terra e por terem desfalcado o patrimônio público de reservas tão importantes.
O que se questiona, e os argumentos dos autores acima citados corroboram nesse pensar, é o entendimento que se consolidou jurisprudencialmente amparada pela doutrina majoritária quanto à impossibilidade da usucapião pro labore de terras devolutas por uma interpretação literal do art. 191, parágrafo único e do art. 183, § 3º da constituição em que em ambos se lê o seguinte: “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”, deixando de lado uma interpretação mais ampla que leve em consideração o princípio da função social da propriedade.
A respeito do que vem a ser princípio, Bandeira de Mello (2014) o entende como sendo o mandamento nuclear de um sistema, servindo como alicerce dele, definidor da lógica e da racionalidade do sistema normativo, lhe dando sentido harmônico por ser preceito fundamental que se irradia sobre as diferentes normas.
De acordo com Bonavides (2015, p.288) “é graças aos princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem normativa”. Nessa linha, se os princípios garantem essa unidade, ao se interpretar essa regra de forma literal, sem levar em conta o princípio fundamental da função social da propriedade constitucionalmente estabelecido, se estará, no mínimo, pecando contra a unidade da constituição. Sem falar que no caso específico, por se tratar de princípios fundamentais diretamente relacionadas ao Estado, haverá um afastamento do próprio sentido constitucional de dar garantias ao cidadão frente ao poderio estatal.
Para o autor acima, ferir um princípio é sem dúvida a mais grave das inconstitucionalidades, não havendo ordem constitucional sem princípio e, por conseguinte, não havendo ordem constitucional não existe garantia para as liberdades, posto que só seja possível seu exercício fora do arbítrio e dos poderes absolutos. Segundo o mesmo autor ao se atropelar um princípio constitucional, de grau hierárquico superior, ataca-se o fundamento de toda a ordem jurídica. Desse modo o doutrinador evidencia a importância do respeito aos princípios constitucionais por serem a base do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o autor argumenta que ao levar em consideração apenas o que está escrito quanto à proibição da usucapião de bens públicos, sem ponderar com o princípio da função social da propriedade, o julgador acaba por se distanciar do sentido renovador constitucional. Ainda que se faça a crítica de que as terras devolutas tenham uma função social por se tratarem de um bem público, um patrimônio público, uma reserva estatal visando sua comercialização para gerar divisas ao Estado, há que se ponderar pela proporcionalidade entre os benefícios atingidos com a venda desse patrimônio e sua aquisição por parte do camponês que nela poderá produzir melhor para si e sua família, caso tenha sua posse regularizada possibilitando o acesso ao crédito, fundamental para o progresso econômico da propriedade.
Para Barroso (2017 ) o princípio da proporcionalidade trata-se de um parâmetro de valoração em relação aos atos do Poder Público visando verificar se estão eles informados pela justiça, valor superior característico a todo ordenamento jurídico.
Recente matéria do periódico O Popular (ANO 75 – nº 22.031) demonstra a relevância do tema ao constatar que 4,6 mil famílias ocupam 820 mil hectares de terras devolutas só no Estado de Goiás. Essas famílias aguardam títulos oficiais para terem acesso a crédito e desenvolverem as propriedades.
Portanto, verifica-se a relevância em ampliar a discussão sobre a atual blindagem dada às terras devolutas, por deixarem a cargo do Estado a regularização dessas posses, sem que o pequeno agricultor tenha a chance de buscar no judiciário, guarida aos seus direitos. É preciso rever esse retrocesso que extinguiu o direito do agricultor familiar de regularizar sua posse em terras devolutas por meio da usucapião pro labore. Podendo, assim, ter acesso ao crédito, ao progresso e à segurança tão almejada da propriedade da terra.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observou-se nesta pesquisa que a usucapião e a função social da propriedade são dois institutos casados, e proporcionam à sociedade, o direito de propriedade de bens particulares, como também protegem todos de eventuais abusos decorrentes de um proprietário.
A usucapião, em tese, seria uma ação criminosa, tendo em vista ela decorrer da posse exercida por um indivíduo sobre uma propriedade alheia, e que certas vezes pode resultar até de violência, porém o ordenamento jurídico nacional não criminaliza a usucapião, e pelo contrário a protege e legitima; isso decorre, por consequência da função social da propriedade, ou seja, a lei entende que o proprietário anterior por não atender a função social da propriedade, deva perder seu domínio para outro que observe esta função social da propriedade, sendo, portanto, a função social da propriedade a legitimadora da usucapião, destarte, não existiria, ou seria injusto existir, o instituto da usucapio, senão em virtude da função social da propriedade.
Observando que a legitimadora da usucapião é a função social da propriedade, devemos questionar qual a conduta adotada pelo proprietário do bem usucapido que contrariou a função social da propriedade ao ponto de fazê-lo perder o domínio sobre o bem. A resposta é, a conduta negligente de quem dominava o bem, a atitude negligente do proprietário que, não toma nenhuma providência quando alguém invade sua posse, deixando que uma pessoa fique na posse do bem, por tempo suficiente para adquirir o direito de usucapir, faz com que a legislação entenda que ele não se importa com sua propriedade, enquanto possuidor usucapiente, por estar nesta propriedade se importa e a utiliza, cumprindo, portanto, sua função social.
Ainda, as funções sociais da propriedade a usucapião integram um conjunto de extrema importância para o bem-estar social, visto eles resguardarem garantias de propriedade, moradia, habitação e até mesmo terra rurais que servirão como morada, além de serem trabalhadas; são, portanto, dois grandes institutos que tem como principal escopo, e alcançam quando devidamente observados e utilizados a harmonia social de toda uma sociedade.
A absurda concentração de renda e da terra, no Brasil, é fato inquestionável, por isso o que se buscou no presente trabalho foi analisar historicamente as origens dessa concentração, o que levou o país à tamanha desigualdade na distribuição das riquezas e, de forma específica de terras, para que fosse possível fundamentar a relevância da discussão sobre a atual vedação da usucapião pro labore em terras devolutas.
Pode-se verificar por meio da bibliografia estudada, e das argumentações apresentadas, que foi constante o incentivo maternal por parte do Estado aos interesses das elites econômicas que sempre tiveram o governo brasileiro a seu serviço, em detrimento do próprio desenvolvimento nacional. Isso se deu com os financiamentos, com a tributação, com a repressão aos movimentos sociais e, principalmente, com a distribuição das terras sempre concedidas aos mais abastados em detrimento de grandes grupos de lavradores obrigados a ocuparem as periferias das cidades robustecendo os problemas de ordem social.
Verificou-se, por outro lado, que ocorreram tentativas, por parte de alguns governos e da sociedade organizada, para reverter este quadro, como as investidas por uma reforma agrária, a instituição da usucapião pro labore, as ligas camponesas, dentre outras. Entretanto a constante pressão latifundiária no sentido de manter o status quo impediu maiores mudanças.
Tais averiguações não foram difíceis de serem constatadas, afinal a bibliografia relacionada ao assunto é vasta. Por outro lado, ao buscar trabalhos que tratassem essencialmente da atual proibição constitucional à usucapião pro labore de terras devolutas observou-se que não há um questionamento especificamente direcionado ao problema, o que o torna passivo de ser ainda mais investigado como forma de popularizar e amenizar as injustiças verificadas nesse campo.
De um lado, tem-se quase que um consenso por parte da doutrina majoritária que simplesmente afirma não ser possível a usucapião sobre bens públicos de forma genérica, sem se aprofundar na questão. De outro, uma minoria discute ser questionável a vedação da usucapião sobre bens dominicais, mas sem adentrar ao tema da pro labore. Dessa forma, foi preciso fazer um apanhado da bibliografia tangencial ao tema para que fosse possível discutir a emblemática proibição desta espécie de aquisição das terras devolutas por parte de pequenos posseiros, posto que houve um retrocesso nas garantias sociais com a atual vedação desse instituto, que tem verdadeiro caráter de proteção à função social da propriedade.
Assim, o presente trabalho se propõe, não a esgotar a temática, mas a evidenciá-la para uma reflexão mais ampla, afinal o direito é dinâmico, socialmente construído e interpretado e, ao que parece, é no mínimo frustrante que uma obstrução tão grave a uma garantia social seja feita sem que haja um debate mais aprofundado sobre o tema, sem que se discuta se tal lei é realmente justa, se está de acordo com os princípios constitucionais da função social da propriedade e da proporcionalidade, bases do ordenamento jurídico brasileiro.
Em suma, o presente trabalho buscou ampliar as discussões acerca do instituto da usucapião pro labore sobre terras devolutas, como forma de rever sua proibição desde a promulgação da atual Constituição. Afinal, o Direito não é algo estático, acabado, pelo contrário, trata-se de uma criação humana amplamente dinâmica, que deve se adequar à sociedade, atendendo a suas necessidades.
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Bacharel em Direito
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, SANDRO VESCOVI MOZER. O usucapião e a função social da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2022, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59301/o-usucapio-e-a-funo-social-da-propriedade. Acesso em: 23 dez 2024.
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