RESUMO: O Direito da Execução Penal pode ser conceituado, consoante se extrai do item nº 9 da Exposição de Motivos da Lei nº 7.210/84 (LEP), como um conjunto de normas jurídicas que regulam a execução das sanções penais. A aplicação e interpretação de tais normas são regidas por princípios, contidos ou extraídos do ordenamento jurídico pátrio, bem como de Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos ou de Direito Penal. Tais princípios, contudo, não raras as vezes, quando da edição de leis que visam recrudescer o tratamento conferido aos apenados, acabam por sofrer severas violações. Sob uma análise crítica, é o que se pode detectar em diversos dispositivos trazidos ou alterados pela Lei 13964/2019, o chamado “Pacote Anticrime”, no que tange à Lei de Execução Penal.
Palavras-Chave: Direito da Execução Penal – Lei 7.210/84 - Princípios Regentes da Execução Penal – Lei 13964/19 – Pacote Anticrime - Violação aos Princípios Regentes da Execução Penal.
ABSTRACT: The Law of Criminal Execution can be conceptualized, as extracted from item 9 of the Explanatory Memorandum of Law 7.210 / 84 (LEP), as a set of legal rules that regulate the enforcement of criminal sanctions. The application and interpretation of such rules are governed by principles, contained or extracted from the national legal system, as well as from International Human Rights or Criminal Law Treaties and Conventions. Such principles, however, are not uncommon, when laws are enacted that aim to increase the treatment given to convicts, end up suffering severe violations. Under a critical analysis, it is what can be detected in several devices brought or changed by Law 13964/2019, the so-called “Anti-Crime Package”, with regard to the Law of Penal Execution.
Key words: Criminal Execution Law - Law 7.210 / 84 - Principles Governing Criminal Execution - Law 13964/19 - Anti-Crime Package - Violation of the Principles Governing Criminal Execution.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1.PRINCÍPIOS DA EXECUÇÃO PENAL. 1.1. A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DE PRINCÍPIOS JURÍDICOS E SUA IMPORTÂNCIA NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO PENAL. 1.2 PRINCÍPIOS EM ESPÉCIE. 1.2.1 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE. 1.2.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1.2.3 PRINCÍPIO DA NÃO MARGINALIZAÇÃO (OU NÃO DISCRIMINAÇÃO) DAS PESSOAS PRESAS. 1.2.4 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. 1.2.5 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA.1.2.6 PRINCÍPIO DA LESIVIDADE.1.2.7 PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA. 1.2.8 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. 1.2.9 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE. 1.2.10 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 1.2.11 PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO PENAL. 2.ANÁLISE CRÍTICA ÀS ALTERAÇÕES DA LEP TRAZIDAS PELA LEI 13.964/19 DIANTE DA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS REGENTES DA EXECUÇÃO PENAL 2.1. BREVE PANORAMA SOBRE A LEI 13.964/19 . INOVAÇÕES LEGISLATIVAS E VIOLAÇÕES AOS PRINCÍPIOS REGENTES DA EXECUÇÃO PENAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva o estudo, não exaustivo, de alguns dos principais princípios regentes da Execução penal, bem como a demonstração de sua importância prática e uma análise crítica sobre suas aparentes violações trazidas pela Lei 13.964/19, no que tange aos dispositivos da LEP.
Primeiramente, será apontado um breve histórico dos princípios, até se chegar a uma visão constitucional-contemporânea sobre sua concepção, em que lhes são conferidos status de norma jurídica vinculante, bem como caráter de verdadeiros mandamentos nucleares e fundamentais de um sistema jurídico. Nesse contexto, procura-se demonstrar sua aplicabilidade âmbito da Execução Penal e as consequências de sua inobservância.
Então, serão explanados os princípios em espécie - apontando-se a fundamentação jurídica, na órbita interna e internacional - e sua incidência específica no âmbito da execução penal.
Nesse passo, debruçar-se-á, especialmente, na obra do Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro Rodrigo Roig Duque Estrada, que confere uma visão redutora de danos ao abordar os princípios tratados no presente trabalho.
Ao final, no capítulo 2, será feito, sob um viés crítico, um breve panorama a respeito da Lei 13.964/19, também conhecida por “Pacote Anticrime”, publicada em 24 de dezembro de 2019. Especificamente quanto às alterações promovidas na LEP, serão abordadas as aparentes violações aos princípios trabalhados no capítulo 1 por esses novos dispositivos legais. Como consectário lógico, será trazido à baila o questionamento acerca da própria constitucionalidade dessas novas normas jurídicas.
1: OS PRINCÍPIOS DA EXECUÇÃO PENAL
1.1. A concepção contemporânea de princípios jurídicos e sua importância no âmbito da execução penal
Consoante entendimento contemporâneo majoritário, os princípios são considerados normas jurídicas que refletem valores aceitos e incorporados em determinado sociedade ao longo do tempo. Nesse sentido, os princípios jurídicos são valores erigidos à categoria de norma jurídica pelo legislador, que servem de fundamento para o ordenamento jurídico e atuam como vetores para a aplicação das demais normas.
Diante do atual contexto interpretativo-constitucional, os princípios jurídicos alcançaram o reconhecimento de elevado grau de juridicidade, de modo que deixaram de desempenhar papel meramente secundário para exercerem papel de protagonismo dentro do ordenamento – sendo a eles atribuído verdadeiro status de norma jurídica, por possuírem positividade e vinculatividade.
De tal sorte, os princípios jurídicos são mandamentos nucleares e fundamentais de um sistema jurídico, atuando como verdadeira base de todo o ordenamento e irradiando comandos que influenciam na composição e aplicação de outras normas jurídicas.
Ressalte-se que nem sempre os princípios foram considerados como normas jurídicas. Em verdade, os princípios só alcançaram a hegemonia axiológica-normativa com o advento do pós-positivismo, no final do século XX, após uma nova concepção, perpassadas as Escolas do jusnaturalismo e o juspositivismo.
Na fase jusnaturalista, cujo advento se deu no século XVI, os princípios possuíam papel meramente informativo, valorando como certo ou errado, mas sem qualquer papel normativo. Os princípios jurídicos eram alocados em uma esfera metafísica e abstrata, em que eram vistos como inspiradores de um ideal de justiça, cuja eficácia não passava da dimensão ético-valorativa do Direito.
Já em meados do século XIX, com o advento do Estado Liberal, diversos preceitos jusnaturalistas passaram a ser incorporados ao texto escrito. Foi, então, que com a promulgação de diversos Códigos, o Direito racional foi transposto para estes, de modo que passou a se considerar o recurso a princípios, ou a qualquer outra norma extrínseca ao direito positivo, como ilegítimo.
Observava-se o surgimento do juspositivismo ou Positivismo Jurídico, em que se buscava a criação de uma Ciência jurídica, com objetividade científica, e com a separação entre Direito e Moral.
Diante de tal contexto, os princípios possuíam papel meramente subsidiário, sendo utilizados apenas como forma de suprir lacunas, ante a possibilidade de destruição do dogma da completude do então sistema normativo. Assim, sem que lhes fossem atribuídos força normativa, serviam, meramente, para suprir vácuos normativos que as leis não conseguissem fazê-lo.
Ocorre que o juspositivismo acabou por legitimar, ainda que de modo camuflado, uma série de autoritarismos que conduziram a verdadeiras barbáries em nome da lei. De tal sorte, ao final da II Guerra Mundial, a concepção de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, não era mais aceita[1].
Assim, diante de um contexto em que o homem começou a perceber que a lei nem sempre é legítima e correspondente à vontade social, a sua observância fria começou a sofrer severas críticas.
Observava-se, então, a queda do positivismo jurídico e o nascimento do pós-positivismo. Diante do novo cenário, em que pensadores como Ronald Dworkin ganharam força, passou a ser atribuída não apenas importâncias às leis, mas também aos princípios.
Foi, então, que os princípios passaram a ser vistos como espécie de norma, deixando de possuir a função meramente integratória e adquirindo status de norma jurídica vinculante.
Assim, a valorização dos princípios, sua incorporação (explícita ou implícita) por textos constitucionais, bem como o reconhecimento de sua normatividade, são, justamente, o reflexo entre a reaproximação do Direito e da Ética [2].
No âmbito da Execução Penal, da mesma forma, os princípios assumem papel importante na aplicação e interpretação das normas. Diante de todo o exposto, bem como de uma visão penal-constitucional contemporânea, pode-se afirmar que os princípios regentes não atuam somente como elementos informadores ou programáticos, mas sim com força normativa capaz de tutelar, concretamente, os direitos fundamentais daqueles que estão condenados[3].
Diante de um contexto de grave crise no sistema penitenciário brasileiro, bem como da observância do incremento do chamado “populismo penal”, em que a população cada vez mais clama pelo aumento do punitivismo, legitimando-o sob a falaciosa ideia de garantia de segurança pública, os princípios da execução penal devem ser vistos, em sua essência, como “meios de limitação racional do poder executório estatal sobre as pessoas” (ROIG, 2018: p. 31).
Então, os princípios se apresentam como verdadeiros “escudos protetores” do apenado face ao arbítrio Estatal. Neste diapasão, conforme leciona Rodrigo Roig[4], há duas premissas fundamentais que devem permear todos os princípios: i) um princípio da execução não poderá, em hipótese alguma, ser invocado com o objetivo de restringir ou permitir recrudescimento punitivista sobre aqueles que estão presos, pois que não são instrumentos que se prestam à pretensão punitiva Estatal; ii) a intepretação dos princípios regentes da execução penal, bem como demais normas jurídicas, deve ser pro homine, ou seja, conforme a análise do caso concreto, deve-se buscar a aplicação da solução que mais amplia o usufruto e o exercício de um direito, liberdade ou garantia. Tal regramento se extrai do disposto no art. 29, item 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos[5] e do art. 5º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos[6].
Assim, diante de todo o exposto, consoante os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello[7], conclui-se que:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa, não só a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”
1.2. Princípios em espécie
1.2.1. Princípio da Humanidade
O princípio da humanidade, na ordem jurídica internacional, se encontra convalidado em diversos Diplomas Normativos, dentre os quais: Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 5º[8]; Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, na regra de nº 43, item 1[9]; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, em seu art. 10, item 1[10]; Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 5º, itens 1 e 2[11]; dentre outros.
Já na órbita jurídica interna, o referido princípio decorre da cláusula geral de tutela da Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos da República Federativa Brasileira, previsto no art. 1º, III, CF/88[12], bem como do princípio da prevalência dos direitos humanos, previsto no art. 4º, II, CF/88[13].
Outrossim, a CF/88 consagra o princípio em tela em seu art. 5º, XLVII[14], ao vedar as penas de: morte (como regra), caráter perpétuo, trabalhos forçados, banimento, degredo, desterro e cruéis, em seu art. 5º, XLIX[15], ao garantir o respeito à integridade física e moral do preso, dentre outros tantos dispositivos.
Ressalte-se que, diante da chamada Constitucionalização do Direito, em que se busca conferir uma leitura Constitucional a todos os ramos do Direito, tendo-se a Constituição Federal como a matriz de todo o ordenamento jurídico brasileiro, o Direito da Execução Penal também desse ser visto sob essa ótica, aplicando-se a ele todos os princípios constitucionais consagrados.
Nesta toada, deve-se tutelar para que o Direito da Execução Penal seja aplicado em consonância com os alicerces constitucionais fundados, bem como em observância aos valores e princípios de proteção da pessoa humana.
As penas, há muito, deixaram de ter o simples caráter de castigo ou suplício - como ocorria na época das Ordálias, na Idade Média – de modo que, atualmente, é preciso que seja lançado um olhar social e valorativo sobre a pena, não se perdendo de vista que, por mais repugnante que seja o crime cometido, o apenado, ainda assim, é um ser humano. Nas palavras de Michel Foucault “no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua humanidade” (FOUCAULT, 1987: p. 95).
No âmbito da execução penal, especificamente, o referido princípio encontra-se materializado, por exemplo, no art. 45, §§ 1º e 2º[16]:, da LEP.
Diante do com contexto em tela, tal princípio, conforme ensinamentos de Rodrigo Roig, ganha especial relevância em 4 (quatro) diferentes frentes[17]:
Como corolário do princípio da humanidade, surge o princípio da secularização, responsável por afirmar a separação entre direito e moral. De tal sorte, resta vedado na execução penal a imposição de determinado padrão moral ao apenado, assim como qualquer tipo de ingerência sobre a vida íntima deste.
Ademais, consoante uma visão redutora da execução penal, a humanidade tem íntima correlação com o imperativo da alteridade. Isso significa que se exige do magistrado da execução, no seu atuar, que seja capaz de reconhecer a pessoa presa como verdadeiro sujeito de direitos, sob uma perspectiva social e humana.
Por seu turno, ainda sob um viés redutor de danos, o princípio da humanidade desponta como ferramenta essencial à vedação ao retrocesso humanizador penal, de modo que uma legislação ampliativa ou concessiva de direitos, em matéria de execução penal, não pode sofrer retrocessos que debilitem a humanidade das penas. Nesse ponto, conforme o referido doutrinador, faz-se uma analogia ao disposto no art. 60, § 4º, IV, CF/88[18].
Por fim, pode-se afirmar que o princípio da humanidade, além de tutelar pela incolumidade física e psíquica das pessoas presas – garantindo que os efeitos da pena não produzam danos físicos e morais desnecessários – “(...) representa, também a barreira jurídica, interpretativa, discursiva e ética à utilização da teoria da reserva do possível como pretexto para desassistência estatal na execução penal” (ROIG, 2018: p. 40). Nesse sentido, vide a tese de repercussão geral[19] aprovada pelo Plenário do STF no ano de 2015 (RE 592581/MS, j. 13/08/2015).
1.2.2. Princípio da Legalidade
No âmbito jurídico interno, o princípio da legalidade encontra previsão no art. 5º, XXXIX, CF/88[20] e no art. 1º[21], do Código Penal. Já no que diz respeito especificamente à execução penal, o referido princípio se encontra materializado no item 19[22]da Exposição de Motivos e nos arts. 2º[23] e 45[24], todos da Lei de Execução Penal (LEP).
Na órbita internacional, o referido princípio se encontra disciplinado em diversos instrumentos jurídicos, tais como: Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art. 11, item 2[25]; Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, em suas regras 37[26] e 39, item 1[27]; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, em seu art. 9º, item 1[28]; Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 9º[29] e no Conjunto de Princípio da ONU para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, em seu princípio de nº 2[30].
O princípio da legalidade advém do preceito latino nullum crimen, nulla poena sine lege (nulo o crime, nula a pena sem lei), que, por seu turno, divide-se em 4 (quatro) diferentes funções, quais sejam:
1ª – Nullun criminem, nulla poena sine lege previa (nulo o crime, nula a pena sem lei prévia): essa primeira função do princípio da legalidade impõe a regra da irretroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu de um processo penal ou disciplinar.
2ª – Nullum crimem, nulla poena sine lege certa (nulo o crime, nula a pena sem lei certa): essa segunda função do princípio da legalidade institui a proibição da criação e aplicação de topos penais e disciplinares vagas ou indeterminados. Isso significa que os tipos penais e disciplinares devem possuir redação clara e precisa, e não fórmulas genéricas e imprecisas, de modo a se evitar o arbítrio estatal, discricionariedade fora dos limites estabelecidos, bem como a própria insegurança jurídica.
3ª - Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (nulo o crime, nula a pena sem lei estrita): essa terceira função objetiva vedar a utilização de analogia para criar crimes e faltas disciplinares, bem como sua utilização na aplicação e execução de penas ou sanções disciplinares. Isso quer dizer que, no âmbito da Execução Penal, a analogia não pode ser utilizada para agravar a condição das pessoas condenadas e, no mesmo sentido, a interpretação de todo dispositivo capaz de impor tratamento penal mais gravoso deve ser feita de forma restritiva, sendo vedada a analogia ou interpretações extensivas em desfavor do apenado. Assim, deve a lei prever, com exatidão, determinada falta ou sanção disciplinar, não podendo a analogia fazê-lo.
4ª – Nullum crimen, nula poena sine lege scripta (nulo o crime, nula a pena sem lei escrita): essa última função consiste na proibição da criação de infrações penais, faltas disciplinares, penas ou sanções disciplinares pelos costumes.
O princípio em tela merece especial atenção no âmbito da Execução Penal, na medida em que, no Brasil, ele nem sempre é bem recebido ou aplicado como deveria. Infelizmente, não são raras as vezes que nos deparamos com disposições normativas e entendimentos jurisprudenciais consolidados que violam a legalidade em suas múltiplas facetas.
Assim, pode-se afirmar que a observância ao princípio em tela busca coibir a arbitrariedade estatal, na medida em que impõe que os direitos das pessoas penalmente condenadas só sejam limitados/restritos consoante previsão legal. Numa visão deturpada, em que os presos são vistos pela sociedade, de modo geral, como cidadãos marginalizados e de menor valor, a inobservância do referido princípio permite que, na prática, os apenados sofram graves violações aos seus direitos humanos.
1.2.3. Princípio da não marginalização/discriminação das pessoas presas ou internadas
Com o passar do tempo, a percepção da pessoa presa foi sendo alterada, de modo que esta deixou de ser vista como mero objeto da execução penal, para passar a ser percebida como verdadeiro sujeito de direitos. Entretanto, em que pese a atual consolidação da jurisdicionalização e o reconhecimento dos direitos e garantias constitucionais das pessoas presas, ainda hoje, é possível que se sinta a herança histórica deixada pelas teorias da supremacia especial, bem como o senso comum do preso como um não sujeito de direitos.
O que se observa é que jamais restou extirpada do imaginário da sociedade a ideia de que os presos devem experimentar grau de sofrimento necessariamente maior do que àquele vivenciado pelas pessoas livres.
Esse pensamento tem como origem o princípio da less eligibility, segundo o qual as condições de trabalho e disciplina nas chamadas “Casas de Correção” (workhouses) deveria ser menos elegível do que a condição oferecida pelo pior dos empregos fora desses estabelecimentos. Com o decurso do tempo, contudo, esse mesmo discurso foi sendo deturpado para legitimar um discurso punitivista de que o tratamento conferido aos presos deve ser, necessariamente, pior do que as condições dos trabalhadores extramuros.
Assim, com base nessa ideologia de inferiorização da pessoa presa, bem como da relativização do princípio da legalidade, eclodiram as chamadas teorias da supremacia especial do Estado (ou das relações especiais de sujeição).
Consoante tais teorias, a situação especial de sujeição das categorias expostas à supremacia estatal, dentre as quais se situariam as pessoas presas, possibilitaria a violação de direitos fundamentais e a inobservância do princípio da legalidade. Dentro dessa lógica, essa redução ou violação de direitos fundamentais seria justificada com base na primazia do direito estatal.
Nesse sentido, nas exatas palavras de Rodrigo Duque Estrada Roig:
“(...) seguindo-se uma visão moderna e democrática da execução penal (pautada pela precedência e ascendência do ser humano sobre o Estado), é possível concluir que a combinação mais danosa aos direitos das pessoas presas tem como ingrediente o senso comum da retribuição, catalisado pela ideia da less eligibility e “juridicamente justificado” pelas teorias das relações especiais de sujeição (supremacia especial do Estado). É possível então sustentar que não há mais espaço para legados das ideias de retribucionismo, less eligibility ou de supremacia especial do Estado”. (ROIG, 2018: p. 58).
Assim sendo, os efeitos da condenação devem ser adstritos aos gravamos legais ou judiciais, sendo ilegítima qualquer outra restrição ou sanção ao apenado, sob pena de desvio de execução – consoante previsto na própria LEP, em seu art. 185[31].
1.2.4. Princípio da individualização da pena
O princípio da individualização da pena possui assento constitucional, conforme art. 5º, XLVI, CF/88[32].
Tem-se que a individualização da pena ocorre em 3 (três) diferentes estágios, quais sejam: no plano legislativo, no momento da cominação legal; no plano da aplicação judicial e na execução penal.
Especificamente em relação à execução da pena, é de suma importância que o julgador esteja atento às peculiaridades de cada indivíduo submetido à sanção penal imposta, de modo a apreciar o caso concreto, sem lançar mão de considerações genéricas ou de índole preventiva.
Ainda, consoante leciona Rodrigo Roig[33], partindo-se de uma visão moderna e não positivista, a individualização da pena não pode ter servir de pretexto para violação ao princípio da isonomia, disfarçando tratamento de índole discriminatória a determinadas pessoas. Ainda, o princípio impõe que as autoridades responsáveis pelas execução penal olhem em percebam o preso sob um prisma humanitário, enxergando suas reais necessidades enquanto sujeitos de direitos.
1.2.5. Princípio da intervenção mínima
O princípio da intervenção mínima impõe que a solução penal deve ser utilizada somente como ultima ratio. Ou seja, em razão dos malefícios e estigmatização gerados por uma punição penal, esta só deve ocorrer em caso de impossibilidade de resolução do problema por outros ramos do Direito.
Na esteira do que leciona Rodrigo Roig, a aplicação do princípio em tela pode ser vislumbrada em diversos aspectos da execução penal, os quais se seguem[34].
Um dos grandes exemplos é sua aplicação na medida disciplinar de isolamento, pois que este deve ser utilizado apenas quando outras sanções disciplinares menos gravosas se mostrarem inviáveis. Isso porque, fazendo uma analogia com o que ocorre em relação às medidas alternativas à pena privativa de liberdade, de igual modo, devem ser estabelecidas alternativas ao isolamento.
Ainda, o referido princípio ganha relevo no que tange à regressão de regime. Isso porque, preferencialmente, deve-se procurar aplicar sanções menos aflitivas que sejam substitutivas a essa medida tão drástica.
O princípio da intervenção mínima também deve permear a questão da revogação facultativa do livramento condicional. Então, com fulcro na excepcionalidade do encarceramento, deve-se dar preferência, ao invés da revogação do LC, à aplicação de advertência e, subsidiariamente, agravamento das condições do LC após audiência admonitória. No mesmo sentido, aplica-se o referido entendimento no caso de perda do período de prova em caso de cometimento de crime ou descumprimento das condições do LC.
Por fim, o próprio tratamento do preso deve ser permeado pelo princípio em tela, na medida em que o uso de algemas ou meio de coerção análogos devem ser medidas excepcionais, não se revelando como recursos válidos em caso de meios de contenção menos danosos.
1.2.6. Princípio da lesividade
O princípio da lesividade, também conhecido como princípio da ofensividade, prevê que apenas condutas exteriorizadas e capazes de lesionar ou ameaçar um bem jurídico tutelado podem ser puníveis.
No âmbito da execução penal, quando a LEP trata de “presos de alto risco”, para justificar, por si só, a imposição do regime disciplinar diferenciado, verifica-se uma nítida afronta ao princípio em tela. Isso porque há a legitimação da punição de apenados com base em mera suposição do que sejam, e não pela análise do que efetivamente fizeram[35].
De igual modo, quando o art. 57 da LEP traz a utilização da pessoa do faltoso como critério para agravamento da punição disciplinar, o que se verifica é uma nova ofensa ao princípio da lesividade, na medida em que valida a culpabilidade do autor em detrimento da culpabilidade pelo fato[36].
1.2.7. Princípio da intranscendência
Previsto no art. 5º, XLV, CF/88[37] e no art. 5º, item 3 da CADH[38], o princípio da intranscendência preconiza que a sanção penal deve incidir, exclusivamente, em relação àqueles que praticaram ou concorreram para prática de determinado tipo penal. Entretanto, uma vez que, na prática, os efeitos da pena acabam por afetar demais pessoas, o referido princípio também recebe o nome da transcendência mínima.
Na dinâmica social, o que se verifica é que familiares e amigos do apenado acabam sendo impactados antes, durante a após o processo penal.
Antes do processo penal, a mera instauração de inquérito policial é capaz de gerar constrangimentos a familiares e amigos do investigado, pois que a desconfiança passa a pairar sobre eles também.
Já durante o seu curso, antes do trânsito em julgado da decisão, aqueles que se preocupam sobre o futuro do acusado ficam em uma posição de angústia, especialmente em razão da morosidade do processo no Brasil.
Especificamente em relação à fase de execução da pena, os entes do apenado são ainda mais severamente afetados pelos efeitos jurídicos da pena. O emprego da restrição de visita como forma de sanção disciplinar, a limitação injustificada de visita periódica à família, a restrição ao direito de visita íntima de presos, o recolhimento do preso em locais distantes de onde possui vínculo social estabelecido e o procedimento vexatório de revista ao qual os visitantes dos presos são submetidos são apenas alguns exemplos de violação do princípio da intranscendência da pena.
Além do supracitado, ainda se verifica que o status de miserável conferido ao apenado acaba por ser transferido a seus familiares. As relações sociais desses terceiros, que não cometeram qualquer crime, acabam sendo modificadas também, pois a condição de criminoso acaba por ser projetada para as pessoas próximas daquele que efetivamente cometeu o delito. Então, por exemplo, os vizinhos se distanciam dos parentes do condenado, uma senhora que antes era vista como “mãe” passa a ser vista como “mãe do criminoso”, etc.
Por fim, quando o processo penal termina, mesmo após o cumprimento efetivo da pena, os efeitos da pena continuarão sendo sentidos por familiares e amigos. Primeiramente, aquele que sai do cárcere, em razão de todo o sofrimento infligido, dificilmente será o mesmo. De tal sorte, os parentes e amigos irão se deparar e ter que conviver com um sujeito modificado psicologicamente, refletindo a verdadeira mortificação do eu (Goffman) em razão da instituição total que é a penitenciária. Por fim, o estigma daquele que é condenado ultrapassa sua própria pessoa, e, perversamente, não vai embora.
1.2.8. Princípio da presunção de inocência
No âmbito internacional, o princípio da presunção de inocência se encontra presente na Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art. 11, item 1[39]; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, em seus arts. 10, item 2, alínea a[40], e 14, item 2[41] e na Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 8º, item 2[42].
Já no plano interno, o princípio decorre do postulado constitucional previsto no art. 5º, LVII, CF/88, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
No âmbito da execução penal, em sentido semelhante, a presunção de inocência também deve se aplicar àqueles que já se encontram definitivamente condenados.
Segundo os ensinamentos de Roig, há diversas ocorrências no curso da execução penal que se relacionam, de maneira direta ou indireta, com a presunção de inocência (como, por exemplo, quando apenados são submetidos a processo administrativo pela acusação de cometimento de falta disciplinar). [43]
Ainda, afirma o autor que, sob uma nova perspectiva da relação entre indivíduo e Estado, o princípio da presunção de inocência implica na correspondente responsabilidade Estatal por atos que atentem contra a dignidade dos presos. Nesse sentido, o ônus de provar fatos atentatórios à dignidade dos presos deve ser invertido em favor destes, toda vez que o Estado for o único detentor de informações capazes de corroborar ou invalidar as denúncias apontadas. Outrossim, também caberia ao próprio Estado o ônus de provar eventuais fatos impeditivos da concessão de liberdade da pessoa presa, quando já atendidos os requisitos objetivos legalmente estabelecidos. [44]
Por fim, defende a ideia de que o princípio em tela leva à conclusão inevitável sobre a necessidade de exclusão total, nos Registros dos Órgãos de Identificação, dados que sejam relativos a inquéritos arquivados, ações penais trancadas e processos em que tenha sido reconhecida a extinção da punibilidade em razão da prescrição punitiva ou absolvição por sentença transitada em julgado[45].
1.2.9. Princípio da culpabilidade
A apuração da responsabilidade penal depende da análise de um comportamento típico, antijurídico e culpável, sendo a culpabilidade o terceiro substrato do delito. Há uma verdadeira interdependência entre os requisitos para que a conduta seja prevista no ordenamento jurídico como injusto penal, dotado de reprovabilidade.
De tal sorte, para que haja a sanção penal, é imprescindível que a ação humana seja dotada de dolo ou culpa. E, dentro da análise da culpabilidade, deve se verificar a presença de 3 (três) elementos: imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude.
O princípio da culpabilidade, então, se apresenta como verdadeira barreira ao jus puniendi do Estado, pois que dele decorre a proibição da responsabilidade penal objetiva, pela simples produção do resultado.
Na execução penal, o princípio em tela foi taxativamente incorporado pela LEP, que, em seu art. 45, § 3º[46], coíbe a aplicação de sanções coletivas. Ora, o objetivo é, justamente, impedir a punição disciplinar daqueles que não atuaram com dolo ou culpa para determinada infração. De tal sorte, não sendo possível a individualização de determinada conduta, os habitantes das cela/galeria devem ser absolvidos por força do princípio da culpabilidade – pois que, admitir qualquer solução em sentido contrário, seria legitimar a aplicação da responsabilidade penal objetiva.
Ainda, como decorrência do princípio em tela, deve ser afastada a responsabilidade do preso por atos praticados por seus visitantes, na medida em que não seja possível a prova do conluio entre eles. Isso porque, não há que se falar na presunção desse arranjo, pois que, conforme visto anteriormente, deve incidir o princípio da presunção de inocência[47].
Na mesma esteira, quando o preso cometer determinada falta disciplinar em razão de coação moral irresistível, a culpabilidade deverá ser afastada em razão da inexigibilidade de conduta diversa. Outrossim, quando o preso deixar de receber as devidas informações sobre o rol de faltas e recomendações disciplinares, e acabar por cometer infração disciplinar, a culpabilidade também deverá ser afastada, uma vez que ausente a potencial consciência da ilicitude da conduta, por erro de proibição[48].
Por fim, em observância ao princípio da culpabilidade, não devem ser realizados juízos sobre a culpabilidade do autor, ou seja, juízos valorativos negativos sobre a pessoa presa, em detrimento da culpabilidade pelo fato em si.
1.2.10. Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade é ínsito ao próprio Estado Democrático de Direito, na medida em que protege o indivíduo de intervenções Estatais desnecessárias ou excessivas, que possam vir a gerar danos mais gravosos do que o necessário à proteção do interesse público. Nesse sentido, abriga um verdadeiro juízo de ponderação entre os interesses individuais e coletivos, devendo-se ter como norte o princípio constitucional da dignidade humana.
Consiste em um princípio constitucional implícito, que tem por objetivo limitar a atuação do Estado frente aos direitos fundamentais dos indivíduos. Inerente à própria observância destes direitos, ganha especial relevância quando se trata do direito de liberdade do cidadão.
Assim, especificamente no âmbito do Direito Penal, o princípio cumpre o importante papel de limitar a atuação do legislador, bem como o âmbito de atuação do intérprete. Outrossim, aponta para um cuidado especial, no sentido de que qualquer limitação imposta aos direitos e garantias individuais deve ser, necessariamente, ponderada com outros valores constitucionais.
Adentrando no Direito da Execução penal, a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade é analisada, conforme sua tríplice dimensão, pelo doutrinador Rodrigo Roig[49].
Consoante o autor, é preciso que se lance um novo olhar sob a proporcionalidade na execução penal, partindo-se de um viés redutor de danos. Isso significa que seu alcance deve ser reinterpretado segundo a óptica da CF/88 e do próprio condenado.
Nesse sentido, a “adequação” deve ser vista como a imposição de que a execução da pena vá ao encontro da vontade do constituinte, sob pena de inconstitucionalidade. Portanto, será considerado adequado, levando-se em conta o próprio princípio da humanidade das penas, o meio de execução penal que melhor concorra para o fim de redução de danos.
Já a “necessidade” tem como função primordial determinar que o Poder Público, ao lançar mão de normas sobre execução penal, se atenha aos limites mínimos de intervenção em direitos do sentenciado. Ou seja, será instrumento necessário da execução aquele que, dentre os viáveis, cause menos prejuízo possível ao preso.
Por fim, a “proporcionalidade em sentido estrito” impõe que, sob pena de inconstitucionalidade, o gravame decorrente da norma/medida seja inferior ao benefício.
Assim, a essência da proporcionalidade é fazer com que a execução da pena seja a menos onerosa possível ao preso. Inclusive, leciona Roig que um dos maiores esforços desse princípio é conseguir transpor diversos institutos benéficos do Direito Penal e do Direito Processual Penal para o âmbito da Execução Penal, pois que não há justificativa plausível para não fazê-lo[50].
1.2.11. Princípio da razoável duração do processo de execução penal
O princípio da razoável duração do processo encontra previsão em diversos instrumentos jurídicos internacionais, tais como: Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, em seu art. 9º, item 3[51]; Convenção Americana de Direitos Humanos, em seus arts. 7º, item 5[52] e 8º, item 1[53] e no Conjunto de Princípios da ONU para a proteção de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão, em seu princípio nº 38[54].
Já no Brasil, está consagrado no art. 5º, LXXVIII, CF/88, ao dispor que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”.
Importante que se ressalte que o princípio em tela deve incidir não apenas no processo de conhecimento, mas, igualmente, no âmbito da execução da pena. Tal fato se justifica pela aplicabilidade dos princípios constitucionais em âmbito de execução penal, mas também pelo fato de a Constituição Federal não ter feito qualquer ressalva em relação à natureza do processo, não cabendo ao legislador ordinário ou ao intérprete fazê-lo.
Entretanto, infelizmente, o que se observa, por todo nosso país, são queixas de presos em relação à morosidade judicial para análise dos pleitos feitos em sede de execução penal; presos que já alcançaram o lapso temporal que garante jus aos “benefícios” da execução (que, em verdade, são direitos subjetivos), mas não conseguem gozá-los.
Nesse cenário, ganha força a utilização do habeas corpus como um meio de sanar ilegalidades ou abuso de poder relacionados ao direito de locomoção do preso, que acaba sofrendo indevida postergação de seu processo de execução.
Assim, o ponto chave do referido princípio em sede de execução penal é, justamente, fazer com que o apenado não seja prejudicado pela morosidade processual, caso a ela não tenha dado causa.
2: ANÁLISE CRÍTICA ÀS ALTERAÇÕES DA LEP TRAZIDAS PELA LEI 13.964/19 DIANTE DA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS REGENTES DA EXECUÇÃO PENAL
2.1. Breve panorama sobre a Lei 13964/19
A recente Lei 13964/19, também conhecida por “Pacote Anticrime”, foi responsável por expressivas modificações na legislação penal, processual penal e na legislação da execução penal.
Especificamente quanto a esta última seara, pode-se afirmar que a nova normativa apresenta notáveis retrocessos, indo na contramão do sistema progressivo da pena, do objetivo de ressocialização da pena (declarado na LEP) e violando diversos princípios regentes da execução penal.
A nova legislação parece ter emergido de um apelo social, do chamado “populismo penal”, que se baseia na falaciosa ideia de que o recrudescimento da lei penal tem o potencial de diminuir a criminalidade. Então, como consequência, aumentou o tempo de aprisionamento, e, consequentemente, o gasto público com a execução penal.
Contudo, o novo regramento, por meio de suas alterações que serão abordadas adiante, passou por cima da decisão de força normativa prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2015, nos autos da ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro.
Tendo-se em vista o quadro de superlotação das prisões, as condições desumanas de encarceramento e a violação massiva e contínua de direitos humanos dos presos, o STF determinou a adoção de medidas que visem a diminuição do encarceramento.
De tal sorte, o que se observa é que a Lei 13.964/19, ao instituir significativo aumento do tempo de prisão, aumento de período para obtenção de progressão de regime, novas hipóteses de vedação ao livramento condicional, dentre outras modificações na LEP, deixou de observar o catastrófico quadro do sistema penitenciário brasileiro e colaborou, em última análise, para o cenário de superencarceramento.
Outrossim, resta evidente que o aumento do tempo de prisão impacta diretamente no orçamento público, gerando altos gastos, em especial quando se trata do regime fechado.
Nesse sentido, o Min. Fux alegou violação ao art. 113 ADCT[55], dentre outros argumentos, para suspender a eficácia das novas previsões normativas que tratavam sobre o “juiz de garantias”. Ocorre que, nessa mesma esteira, as normas que aumentam o tempo de cumprimento de pena, as que aumentam o tempo para progressão de regime e que vedam a concessão do livramento condicional, também violam o referido dispositivo constitucional[56].
Assim, diante de todo o exposto, bem como da patente violação a diversos princípios que regem a execução penal, questiona-se a constitucionalidade da Lei 13.964/19 no que diz respeito aos artigos que alteraram a Lei de Execução Pena, trazendo um endurecimento no sistema progressivo, incremento do rigor intracarcerário, bem como a tipificação de mais uma falta disciplinar.
2.2. Inovações legislativas e violações aos princípios regentes da execução penal
O art. 9º-A, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) trata sobre identificação do perfil genético. Vejamos o referido dispositivo legal, com as alterações trazidas pela Lei 13.964/19 destacadas em itálico:
Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor
§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
§ 1º-A. A regulamentação deverá fazer constar garantias mínimas de proteção de dados genéticos, observando as melhores práticas da genética forense. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.
§ 3º Deve ser viabilizado ao titular de dados genéticos o acesso aos seus dados constantes nos bancos de perfis genéticos, bem como a todos os documentos da cadeia de custódia que gerou esse dado, de maneira que possa ser contraditado pela defesa. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º O condenado pelos crimes previstos no caput deste artigo que não tiver sido submetido à identificação do perfil genético por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional deverá ser submetido ao procedimento durante o cumprimento da pena. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 5º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 6º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 7º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 8º Constitui falta grave a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
O dispositivo, por si só, já deveria ser considerado inconstitucional, na medida em que representa nítida afronta ao princípio da presunção de inocência, pois que impõe ao condenado a obrigatoriedade de identificação do perfil genético, fazendo com que, consequentemente, seja violada a vedação a não autoincriminação.
No que diz respeito aos novos postulados normativos, pode-se observar violação aos princípios da humanidade da pena e da não marginalização das pessoas presas.
O que se verifica é que, em que pese o acréscimo do §1º-A, por meio do qual se pretende conferir uma falsa roupagem garantista ao artigo, os direitos individuais dos presos são totalmente violados em prol de um suposto bem da coletividade.
Os novos dispositivos chancelam um direito penal do autor, e representam uma nítida afronta à dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, reduzem o preso à categoria de não pessoa, desrespeitam direitos humanos e ancoram-se na antiga lógica das relações especiais de sujeição, em que com fundamento na primazia do direito Estatal, legitima-se a redução ou supressão dos direitos fundamentais dos presos.
Outrossim, ao prever a negativa do preso em se submeter ao perfil genético como falta grave, o § 8º infringe frontalmente, além dos princípios supracitados, os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade.
Isso porque, numa perspectiva redutora de danos, conforme já abordado anteriormente, devem ser estabelecidas alternativas às sanções disciplinares, em razão dos malefícios que podem gerar ao apenado. Ainda, sob uma mesma perspectiva, mostra-se a nova sanção disciplinar desproporcional, na medida em que não respeita as vertentes da “adequação” e da “necessidade”.
De tal sorte, o art. 50, da LEP, que traz o rol taxativo de faltas graves, passou a contar com o inciso VIII, acrescido pela Lei 13.964/19:
Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:
VIII - recusar submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
No que diz respeito ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), o Pacote Anticrime conferiu-lhe um tratamento muito mais severo, passando a dispor o art. 52 da LEP da seguinte redação:
Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou condenado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - duração máxima de até 2 (dois) anos, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie; (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - recolhimento em cela individual; (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - visitas quinzenais, de 2 (duas) pessoas por vez, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, com duração de 2 (duas) horas; (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV - direito do preso à saída da cela por 2 (duas) horas diárias para banho de sol, em grupos de até 4 (quatro) presos, desde que não haja contato com presos do mesmo grupo criminoso; (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
V - entrevistas sempre monitoradas, exceto aquelas com seu defensor, em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, salvo expressa autorização judicial em contrário; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VI - fiscalização do conteúdo da correspondência; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VII - participação em audiências judiciais preferencialmente por videoconferência, garantindo-se a participação do defensor no mesmo ambiente do preso. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 1º O regime disciplinar diferenciado também será aplicado aos presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - sob os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta grave. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 3º Existindo indícios de que o preso exerce liderança em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, ou que tenha atuação criminosa em 2 (dois) ou mais Estados da Federação, o regime disciplinar diferenciado será obrigatoriamente cumprido em estabelecimento prisional federal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º Na hipótese dos parágrafos anteriores, o regime disciplinar diferenciado poderá ser prorrogado sucessivamente, por períodos de 1 (um) ano, existindo indícios de que o preso: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - continua apresentando alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal de origem ou da sociedade; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - mantém os vínculos com organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, considerados também o perfil criminal e a função desempenhada por ele no grupo criminoso, a operação duradoura do grupo, a superveniência de novos processos criminais e os resultados do tratamento penitenciário. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 5º Na hipótese prevista no § 3º deste artigo, o regime disciplinar diferenciado deverá contar com alta segurança interna e externa, principalmente no que diz respeito à necessidade de se evitar contato do preso com membros de sua organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, ou de grupos rivais. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 6º A visita de que trata o inciso III do caput deste artigo será gravada em sistema de áudio ou de áudio e vídeo e, com autorização judicial, fiscalizada por agente penitenciário. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 7º Após os primeiros 6 (seis) meses de regime disciplinar diferenciado, o preso que não receber a visita de que trata o inciso III do caput deste artigo poderá, após prévio agendamento, ter contato telefônico, que será gravado, com uma pessoa da família, 2 (duas) vezes por mês e por 10 (dez) minutos. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
A nova redação consubstancia-se em um verdadeiro “show de horrores” no que diz respeito à violação dos princípios que regem a execução penal.
Primeiramente, verifica-se nítida violação aos princípios da humanidade das penas e da não marginalização do preso. O recrudescimento do RDD impõe inúmeras restrições ou supressões aos direitos fundamentais do preso, colocando em perigoso sua incolumidade física e psíquica, em nome de uma pretensa segurança pública. A pessoa presa não é encarada como sujeito de direitos, mas sim reduzida à figura do “inimigo”, aplicando-se a ela uma pena desumana, capaz de gerar profundos danos humanos e sociais.
Ainda, viola-se o princípio da humanidade das penas na medida em que, sob o prisma de redução de danos, descumpre com o mandamento de vedação ao retrocesso humanizador penal. Nesse sentido, conforme visto no capítulo 1 na abordagem do referido princípio, a matéria de execução penal deve se tornar imune a retrocessos que tendam a prejudicar a humanidade das penas. Assim, ao invés de caminhar para a extinção do RDD, o Brasil deu um passo no sentido contrário, ampliando seu espectro.
Já ao prever termos como “subversão da ordem ou disciplina internas “e “risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade” o artigo viola o princípio da legalidade, em sua vertente nullum crimen, nulla poena sine lege certa, na medida em que se utiliza de termos vagos e indeterminados, dando azo ao arbítrio estatal, para aplicação do instituto.
Em seu § 1º, II, ao prever a aplicação do RDD para aqueles sob os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta grave, há evidente afronta ao princípio da presunção de inocência. Isso porque o preso não pode ser submetido ao RDD apenas em razão de fundadas suspeitas, sem que haja um juízo de certeza sobre o fato. No mesmo sentido, encontra-se o § 3º, ao tratar da obrigatoriedade do RDD em estabelecimento penal federal em razão de meros indícios.
No § 4º, II, ao considerar a análise do “perfil criminal” do preso para possibilitar a prorrogação sucessiva do RDD, o art. vai de encontro ao princípio da culpabilidade, na medida em que há imposição de juízo negativo sobre a pessoa do preso, sem a vinculação com o fato concreto, de modo a chancelar o direito penal do autor.
Finalmente, a previsão do § 6º, além de afrontar o direito constitucional à intimidade e privacidade do preso (art. 5º, X, CF/88), também, em última análise, viola o princípio da instrancendência da pena, na medida em que todos aqueles que tiverem contato com o preso nessa situação sofrerão os efeitos da medida.
No que tange à progressão de regime, a Lei 13.964/19 trouxe radicais mudanças. Assim, passou o art. 112 da LEP contar com a seguinte redação:
genético. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
No que diz respeito ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), o Pacote Anticrime conferiu-lhe um tratamento muito mais severo, passando a dispor o art. 52 da LEP da seguinte redação:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV - 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
V - 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VIII - 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 1º Em todos os casos, o apenado só terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º A decisão do juiz que determinar a progressão de regime será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor, procedimento que também será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 5º Não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 6º O cometimento de falta grave durante a execução da pena privativa de liberdade interrompe o prazo para a obtenção da progressão no regime de cumprimento da pena, caso em que o reinício da contagem do requisito objetivo terá como base a pena remanescente. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 7º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
O maior rigor trazido para a progressão de regime, bem como novas hipóteses de vedação à concessão do livramento condicional, representam um visível retrocesso em matéria de legislação concessiva de direitos e garantias individuais na execução penal, sendo, neste ponto, uma patente violação ao princípio da humanidade das penas.
Ainda, a alteração trazida implica na submissão dos presos, por mais tempo, a um cenário de superlotação carcerária, já abordado anteriormente, com imposição de penas verdadeiramente desumanas e violadoras de direitos fundamentais básicos. Nesse sentido, o legislador, novamente, não considerou o cenário de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro.
Observa-se, igualmente, em razão das novas hipóteses de proibição do livramento condicional, um sério atentado ao princípio da individualização da pena.
A uma porque, conforme visto no capítulo 1, deve-se partir da premissa de que o referido princípio tem impõe um verdadeiro dever jurídico-institucional de minimizar os danos. Assim, a individualização da pena só será constitucional quando emprega sob a vertente de redução de danos.
Outrossim, essa proibição genérica viola o dever do magistrado de proceder com a análise das reais necessidades do preso, enxergando-o como sujeito de direitos, bem como desconsidera todas as circunstâncias do caso concreto.
Por fim, o Pacote Anticrime trouxe uma nova hipótese de proibição à saída temporária, acrescendo o § 2º ao art. 122 da LEP:
§ 2º Não terá direito à saída temporária a que se refere o caput deste artigo o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Mais uma vez, incidiu o legislador em violação ao princípio da humanidade das penas e, em especial ao princípio da intranscendência da pena – na medida em que as famílias dos presos em regime semiaberto, que cometeram crime hediondo com resultado morte, ficarão privadas de receber visita, gerando essa norma nefastos efeitos sociais e sem qualquer justificativa plausível.
CONCLUSÃO
Os princípios jurídicos ganham especial relevância no ordenamento jurídico, a partir da visão pós-postivista. No âmbito da execução penal, igualmente, os princípios norteiam a aplicação das normas e sua violação pode implicar em patente inconstitucionalidade, ou até mesmo inconvencionalidade, das normas legais. A Lei 13.964/19, ao prever uma série de mudanças na LEP, que confeririam um recrudescimento do tratamento conferido aos presos, tem sua constitucionalidade questionada, na medida em que inobserva diversos princípios regentes da execução da pena.
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SIMÃO, Diogo de Azevedo. Inconstitucionalidade das novas regras para progressão de regime na lei "anticrime". Publicado em janeiro de 2020. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jan-29/tribuna-defensoria-inconstitucionalidade-novas-regras-progressao-regime>. Acesso em: 20/06/2022
JÚNIOR, Sidio Rosa de Mesquita. Uma nova execução criminal confusa: tendência de mais uma declaração de inconstitucionalidade. Publicado em fevereiro de 2020. Disponível em: < https://conteudojuridico.com.br/coluna/3037/uma-nova-execuo-criminal-confusa-tendncia-de-mais-uma-declarao-de-inconstitucionalidade>. Acesso em: 21/06/2022.
[1] BARROSO, Luis Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. A nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Argumentação e Papel dos Princípios. In: LEITE: George Salomão. Dos Princípios Constitucionais. Malheiros: 2003. p. 107. (conforme citado por Leonardo Tovar, em O papel dos princípios no ordenamento jurídico, disponível em < https://jus.com.br/artigos/55291/introducao-ao-direito-de-execucao-penal-e-seus-principios/1>).
[2] Op. cit. p. 108 (conforme citado por Leonardo Tovar, em O papel dos princípios no ordenamento jurídico, disponível em < https://jus.com.br/artigos/55291/introducao-ao-direito-de-execucao-penal-e-seus-principios/1>).
[3] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 31.
[4] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 31/32.
[5] Art. 29, item 2, CADH: “ Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados”
[6] Art. 5º, PIDCP: “1. Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas. 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.”
[7] MELLO, 1996. p. 545-546, conforme citado por Graziele Martha Rabelo, em O princípio da proporcionalidade no direito penal, disponível em < https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/o-principio-da-proporcionalidade-no-direito-penal/>
[8] Art. 5º, DUHD: “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
[9] Regra de nº 41, item 1, das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Presos: “1. Em nenhuma hipótese devem as restrições ou sanções disciplinares implicar em tortura ou outra forma de tratamento ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes. As seguintes práticas, em particular, devem ser proibidas: (a) Confinamento solitário indefinido; (b) Confinamento solitário prolongado; (c) Encarceramento em cela escura ou constantemente iluminada; (d) Castigos corporais ou redução da dieta ou água potável do preso; (e) Castigos coletivos.”
[10] Art. 10, item 1, PIDCP: “ Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.”
[11] Art. 5º, itens 1 e 2, CADH: “ 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeito sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”
[12] Art. 1º, III, CF/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana”.
[13] Art. 4º, II, CF/88: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos”.
[14] Art. 5º, XLVII, CF/88: “Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”.
[15] Art. 5º, XLIX, CF/88: “XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
[16] Art. 45, §§ 1º e 2º, LEP: “§ 1º As sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado. § 2º É vedado o emprego de cela escura.”.
[17] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 35, 40 e 41.
[18] Art. 60, § 4º, IV, CF/88: “§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais.”
[19] “É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes”.
[20] Art. 5º, XXXIX, CF/88: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”.
[21] Art. 1º, CP: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”.
[22] Item 19 Exposição de Motivos da LEP: “O princípio da legalidade domina o corpo e o espírito do Projeto, de forma a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal.”.
[23] Art. 2º, LEP: “A jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais da Justiça ordinária, em todo o Território Nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal.”.
[24] Art. 45, LEP: “Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar.”.
[25] Art. 11, item 2, DUDH: “Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso”.
[26] Regra 37, das Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Presos: “Os seguintes pontos devem ser determinados por lei ou por regulamentação emanada pela autoridade administrativa competente: (a) Conduta que constitua infração disciplinar; (b) O tipo e a duração das sanções disciplinares que podem ser aplicadas; (c) Autoridade competente para pronunciar essas sanções; (d) Qualquer forma de separação involuntária da população prisional geral, como o confinamento solitário, o isolamento, a segregação, as unidades de cuidado especial ou alojamentos restritos, seja por razão de sanção disciplinar ou para a manutenção da ordem e segurança, incluindo políticas de promulgação e os procedimentos que regulamentem o uso e a revisão da imposição e da saída de qualquer forma de separação involuntária.”.
[27] Regra 39, item 1, das Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Presos: “Nenhum preso pode ser punido, exceto com base nas disposições legais ou regulamentares referidas na Regra 37 e nos princípios de equidade e de processo legal; e nunca duas vezes pela mesma infração.”.
[28] Art. 9º, item 1, PIDCP: “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.”.
[29] Art. 9º, CADH: “Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.”.
[30] Princípio nº 2, do Conjunto de Princípio da ONU para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão: “A captura, detenção ou prisão só devem ser aplicadas em estrita conformidade com disposições legais e pelas autoridades competentes ou pessoas autorizadas para esse efeito”.
[31] Art. 185, LEP: “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares.”.
[32] Art. 5º, XLVI, CF/88: “XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.”.
[33] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 65.
[34] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 68/70.
[35] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 76.
[36] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 76.
[37] Art. 5º, XLV, CF/88: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.
[38] Art. 5º, item 3, CADH: “A pena não pode passar da pessoa do delinqüente.”
[39] Art. 11, item 1, da DUDH: “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
[40] Art. 10, item 2, alínea a, PIDCP: “As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoa não-condenada”.
[41] Art. 14, item 2, PIDCP: “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”.
[42] Art. 8, item 2, CADH: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. (...)”.
[43] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 84.
[44] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 86.
[45] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 87.
[46] Art. 45, § 3º, LEP: “São vedadas as sanções coletivas”.
[47] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 71.
[48] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 72.
[49] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 90/91.
[50] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal Teoria Crítica. 4ª. ed. Saraiva jur, 2018. p. 87.
[51] Art. 9º, item 3, PIDCP: “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. (...)”.
[52] Art.7º, item 5, CADH: “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, á presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condiciona a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”.
[53] Art.8º, item 1, CADH: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”.
[54] Princípio 38, do Conjunto de Princípios da ONU para a proteção de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão: “A pessoa detida pela prática de infração penal tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de aguardar julgamento em liberdade.”.
[55] Art. 113, ADCT: “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.”.
[56] SIMÃO, Diogo de Azevedo. Inconstitucionalidade das novas regras para progressão de regime na lei "anticrime". Publicado em janeiro de 2020. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jan-29/tribuna-defensoria-inconstitucionalidade-novas-regras-progressao-regime>.
advogada formada pela UERJ e pós-graduada pela UCAM
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAROLINE AUSTREGESILO DE ATHAYDE PESSôA, . Os princípios regentes da execução penal e suas aparentes violações na Lei de Execução Penal com o advento da Lei 13.964/19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2022, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59389/os-princpios-regentes-da-execuo-penal-e-suas-aparentes-violaes-na-lei-de-execuo-penal-com-o-advento-da-lei-13-964-19. Acesso em: 23 dez 2024.
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