RESUMO: O presente artigo analisará os princípios e principais cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados que tratam da responsabilidade civil objetiva na Lei N. 10.406/2002 (Código Civil) com o objetivo de compreender o grau de vagueza de tais enunciados e como tais conceitos abertos têm sido preenchidos. Para tanto, é feito um recorte histórico da evolução da responsabilidade civil no âmbito internacional, tendo como marco a Segunda Revolução Industrial; no caso da legislação brasileira o estudo inicia na década de 1910 até a promulgação do Código Civil/2002; e, ao final, faz-se uma análise dos enunciados normativos pertinentes em que se descrevem os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais. Conclui-se que tais mecanismos, ao trazerem maior abrangência para a cobertura do ordenamento jurídico, servem como importante meio para combater a impunidade de agentes que expõem a coletividade a riscos e danos demasiados em razão da natureza de suas operações.
Palavras chave: responsabilidade civil objetiva, cláusula geral, princípio, norma, conceito jurídico indeterminado.
ABSTRACT: This article will analyze the principles and main general clauses and undetermined legal concepts that regulate strict liability under Law N. 10.406/2002 (Civil Code) in order to comprehend the degree of vagueness of these provisions and how such vague concepts have been interpreted. For that, a historical clipping of the evolution of civil responsibility in the international scope is made, adopting as milestone the Second Industrial Revolution; in the case of Brazilian legislation, the study begins in the 1910s until the enactment of the Civil Code/2002; and, finally, an analysis is made of the pertinent normative provisions in which the doctrinal and jurisprudential understandings are based on. It is concluded that such mechanisms, by granting some vagueness to the coverage of the legal system, serve as important means to prevent impunity of agents that expose the community to too high risk or damage due to the nature of their operations.
Keywords: strict civil liability, general clause, principle, general rule, indeterminate legal concept.
INTRODUÇÃO
No âmbito global, a responsabilidade civil objetiva obteve sua ascensão na segunda metade do século XIX, com a Segunda Revolução Industrial. Neste momento histórico, em razão do aumento dos acidentes trabalhistas e urbanos causados, principalmente, pelo maquinismo e novas tecnologias, a sociedade viu-se diante da dificuldade das vítimas em buscar reparação pelos danos em razão da falta de provas. Com isso, iniciou-se um movimento legislativo e doutrinário na França e, posteriormente, no mundo, de modo a flexibilizar os meios de responsabilização dos agentes causadores de danos com o intuito de garantir a reparação em determinados casos.
No Brasil, a responsabilidade objetiva, até 2002, encontrava-se esparsa em diversas leis específicas e, no Código Civil (BRASIL, 1916) vigente, possuía pouca expressividade em detrimento da prevalência da responsabilidade subjetiva. Entretanto, no Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), este instituto passou a ter mais destaque, com a implementação de uma série de enunciados prevendo hipóteses de responsabilização do agente sem necessidade de comprovação de sua culpa. Dentre os enunciados normativos, verifica-se a adoção de cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados e princípios os quais, em razão de relativa vagueza, demandam do intérprete sua valoração de modo a adequá-lo ao caso fático.
Nesse sentido, o presente artigo visa a compreender tais técnicas legislativas considerando seus limites e objetivos no regramento da responsabilidade objetiva. Trata-se de um estudo bibliográfico em que se faz um recorte histórico da responsabilidade civil. Para tanto, primeiramente, será feita uma conceituação das normas, regras, princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados com o propósito de compreender essas técnicas legislativas e os elementos diferenciadores entre elas. Na sequência, passaremos a analisar o histórico da responsabilidade objetiva, no âmbito global, desde a Segunda Revolução Industrial.
Superado o recorte internacional, passaremos a analisar a evolução da responsabilidade civil objetiva na legislação brasileira, a partir do Decreto N. 2.681 de 2012 que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro. Finalmente, concluiremos com o levantamento e estudo dos princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados implementados pelo Código Civil de 2002.
1. NORMAS, REGRAS, PRINCÍPIOS, CLÁUSULAS GERAIS E CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS
Inspirado pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002) veio dotado de uma série de modelos jurídicos abertos. Tal estrutura, como bem esclarece a autora Judith Martins-Costa (2009), reflete o universo da Pós-Modernidade, no qual:
não tem sentido, nem função, o código total, totalizador e totalitário, aquele que, pela interligação sistemática de regras casuísticas, teve a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos devidos na esfera privada (MARTINS-COSTA, 2009, p. 131).
Para melhor compreensão dos enunciados legais que regulam a responsabilidade objetiva no Código Civil (BRASIL, 2002), vale uma prévia elucidação quanto aos conceitos de norma, princípios, cláusula geral e conceitos jurídicos indeterminados, técnicas empregadas pelo Legislador quando da elaboração do código.
Primeiramente, no que tange às normas, como esclarece Alexy (2006, p. 54), estas são os significados dos enunciados normativos e, por isso, uma mesma norma pode ser expressada por mais de um enunciado normativo. Assim, todo enunciado que expressa um dever ser é um enunciado normativo. Tomando-se o caput art. 927 do Código Civil (BRASIL, 2002) brasileiro como exemplo[1], podemos concluir que se trata de um enunciado normativo, já que abriga a norma de que ninguém pode causar dano a outrem (dever ser).
Enquanto espécies de normas, existem as regras e os princípios que, igualmente, estabelecem o dever ser e podem ser expressas através de enunciados normativos. Para Humberto Ávila (1999, p. 164), por sua vez, “os princípios jurídicos não se identificam com valores, na medida em que eles não determinam o que deve ser, mas o que é melhor”.
Há diversos critérios para diferenciar regras de princípios. O primeiro é o da abstração e generalidade, que classifica os princípios como normas dotadas de alta generalidade, ou seja, que são “dirigidos a um número indeterminado de pessoas e a um número indeterminado de circunstâncias” (ÁVILA, 1999, p. 156), enquanto as regras são menos genéricas ao serem direcionadas a um grupo mais restrito de sujeitos. Outros critérios de diferenciação consistem no fato do princípio ser a razão para a regra e no enquadramento como normas de argumentação ou normas de comportamento. Ainda, segundo Alexy (2006, p. 91), “o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”, ao passo que as regras são sempre satisfeitas ou não, ou seja, precisam ser observadas na sua integridade.
Na mesma linha, Humberto Ávila defende que os princípios são normas incondicionais e categóricas, tendo em vista que não precisam descrever uma realidade com respectiva consequência normativa. Para este doutrinador, em razão dessa abstração, os princípios consistem em normas finalísticas, que estabelecem atividades necessárias para atingir o fim devido, enquanto as regras são normas de conduta. Assim, o autor define princípios como:
normas imediatamente finalísticas, para cuja concretização estabelecem com menor determinação qual o comportamento devido, e por isso dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e dos atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida (ÁVILA, 1999, p. 167).
Enquanto as regras seriam:
normas imediatamente finalísticas, para cuja concretização estabelecem com maior determinação qual o comportamento devido, e por isso dependem menos intensamente da sua relação com outras normas de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida (ÁVILA, 1999, p. 167).
Por fim, passamos à análise das técnicas legislativas de cláusula geral e conceito jurídico indeterminado, empregadas pelo legislador para permitir, em razão de sua vagueza, uma melhor adequação do texto normativo à realidade social. Para Gustavo Tepedino, as cláusulas gerais:
não prescrevem uma certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para aplicação de demais disposições normativas (NALIN, 2005, p. 93, apud TEPEDINO, 2002, p. XIX).
Alinhada com esse argumento, Judith Martins-Costa esclarece que as cláusulas gerais:
constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civil. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos meta-jurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo (MARTINS-COSTA, 1998, p. 131 – Grifo da autora).
Considerando o esclarecimento da doutrinadora, essa técnica legislativa é característica da segunda metade do século XX, quando predominou o modo de legislar casuístico, segundo o qual a lei deveria ser clara, uniforme e precisa (MARTINS-COSTA, 1998, p. 132). Assim, “nas normas formuladas casuisticamente, percebe-se que o legislador fixou, do modo o mais possível completo, os critérios para aplicar uma certa qualificação aos fatos normados” (MARTINS-COSTA, 1998, p. 134). Ademais, pelo fato de limitar a interpretação jurisdicional, “a técnica casuística torna-se o principal fator gerador de rigidez dos Códigos Civis” (MARTINS-COSTA, 1998, p. 134). Em contraposição, as cláusulas gerais trazem mobilidade, em razão de sua imprecisão causada, por sua vez, pela intenção de não trazer respostas para todas as questões sociais, “uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência” (MARTINS-COSTA, 1998, p. 134).
Assim, as cláusulas gerais possuem caráter genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz e, portanto, permitem “pela abrangência da formulação, a sua aplicação a um número indeterminado de situações diferentes” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 215). Esse autor acrescenta que “essa técnica jurídica permite que o Direito seja atualizado sem a necessidade de alteração legal” (p. 215). Em outras palavras, no caso das cláusulas gerais, o antecedente (hipótese fática) possui termos vagos enquanto o consequente (efeito jurídico) é indeterminado (SCHWERZ, 2017, p. 285).
Distinguem-se dos conceitos jurídicos indeterminados, pois estes, após devida valoração do juiz, estão inseridos em enunciados que possuem a consequência legal pré-determinada, devendo o magistrado aplicar a solução. Em outros termos, a atividade criadora do juiz é muito maior nas cláusulas gerais, “já que deverá analisar axiologicamente a norma, verificar a sua aplicação à espécie, imprimir efeitos ao ato praticado, ou, ainda, graduá-los, no caso de existir previsão legal” (RODRIGUES, 2013, p. 188). Assim, nos dispositivos que contém conceitos jurídicos indeterminados, haverá a subsunção do fato ao enunciado normativo, sendo que caberá ao juiz valorar apenas o termo vago, uma vez que sua consequência está previamente determinada.
Concluída essa conceituação, a seguir exploraremos os principais princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados empregados no Código Civil (BRASIL, 2002) no que diz respeito à responsabilidade civil objetiva.
2. A ORIGEM DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Desde a Lex Aquilia, a responsabilidade subjetiva deteve um protagonismo no sistema de responsabilidade civil. Por volta de 286 a.C., a lei surgiu com o objetivo de “assegurar aos plebeus o pagamento dos danos causados a seus bens pelos patrícios”, nesse sentido, “prescrevia, a cargo do autor do dano, o pagamento de uma sanção pecuniária a favor da vítima” (FATTORI, 1997). Segundo Caio Mário, sua maior contribuição reside no fato de ter substituído multas fixas por penas proporcionais ao dano causado (PEREIRA, 2018, p. 8). A Lex Aquilia abrangia apenas os danos causados por atos do ofensor (culpa comissiva) e, como esclarecido por Sara Fattori, trouxe três requisitos para configuração do delito de dano (damnum iniuria datum) (FATTORI, 1997):
a) Iniuria: dano deve decorrer de ato ilícito;
b) Culpa: dano deve ser fruto de um ato comissivo do agente, praticado com dolo ou culpa;
c) Damnum: a coisa deve sofrer lesão em razão da ação do agente.
Portanto, foi com a Lex Aquilia que surgiu o conceito de culpa extracontratual ou aquiliana, base da responsabilidade subjetiva. Tal conceito ficou refletido no Código Napoleão, que influenciou os Códigos modernos. Apenas no século XIX, que esta modalidade de responsabilidade deu espaço para a responsabilidade objetiva, que, ao invés de fundar-se na culpa, se baseia, principalmente, no risco inerente à atividade exercida.
Distinto da responsabilidade civil subjetiva, que demanda a apuração da culpa do agente para eventual responsabilização, a responsabilidade extracontratual objetiva, também denominada responsabilidade pelo risco (CAVALIERI FILHO, 2020), dispensa tal aferição, bastando a existência de um nexo causal entre o dano e o ato ilícito do responsabilizado. Dessa forma, a existência da culpa não é um elemento necessário para configuração da responsabilização, cujas hipóteses são trazidas pela legislação.
A ascensão da responsabilidade objetiva foi impulsionada, principalmente, pelo progresso científico e explosão demográfica característicos da Segunda Revolução Industrial. Nesse momento histórico, “as cidades cresceram, fábricas se espalharam e a vida das pessoas passou a ser regulada pelo relógio ao invés do sol” (NILLER, 2019). A realidade trazida por essa revolução era composta por um movimento populacional das zonas rurais para os grandes centros urbanos, em que as pessoas se submetiam a longas jornadas de trabalho nas fábricas sem a devida segurança. Isso justifica o grande número de acidentes de trabalho na época. Além disso, a evolução tecnológica também proporcionou o surgimento de inventos, como veículos, que foram outra fonte de acidentes.
Foi, principalmente, no ambiente laboral que a responsabilidade aquiliana ou subjetiva se mostrou insuficiente. Isto pois, na análise de Sérgio Cavalieri Filho, “o operário ficava desamparado diante da dificuldade – não raro, impossibilidade – de provar a culpa do patrão” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 191), mesma lógica ocorreu com os transportes coletivos, com os quais os acidentes aumentavam e as vítimas encontravam-se desamparadas. É nessa realidade que os juristas passam a questionar a exigibilidade de culpa para imputação da responsabilidade civil.
Inicialmente, os tribunais passaram a flexibilizar a prova da culpa e, em seguida, adotou-se a culpa presumida, que implicava na inversão do ônus da prova, de inexistência de culpa ao causador do dano. Em seguida, evoluiu-se para a ampliação dos casos de responsabilidade contratual e, por fim, admitiu-se a responsabilidade objetiva, sem exigibilidade de culpa por parte do agente que gerou o dano (CAVALIERI FILHO, 2020).
De acordo com esse autor, são apontados como principais precursores da teoria do risco, que fundamenta a responsabilidade objetiva, os franceses Raymond Saleilles e Louis Josserand (CAVALIERI FILHO, 2020). A obra de Saleilles “les acidentes de travail et la responsabilité civile: essai dúne théorie objetctive de la responsabilité délictuelle” é considerada um marco e nela o autor defende que “o princípio da imputabilidade vem substituído por um princípio de simples causalidade, a prescindir da avaliação do comportamento do sujeito causador do dano” (MARCHI, 2016). Para R. Saleilles, após análise da jurisprudência francesa, os tribunais vinham alargando o conceito de culpa a fim de proteger os trabalhadores e, com isso, se afastaram da teoria subjetiva tradicional e se aproximaram do posicionamento de que os prejuízos de uma atividade deveriam ser absorvidos por quem a executa (PÜSCHEL, 2005). Com base neste movimento, surgiu a teoria do risco.
Segundo a teoria do risco, concebida pelos juristas, em especial franceses, do século XIX, “todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 191). Oriunda da teoria do risco, surgiu uma série de outras teorias visando a delimitar o conceito de risco.
De início, temos a teoria do risco-proveito, que identifica como sendo responsável aquele que se aproveita da atividade que causou o dano. Sergio Cavalieri Filho, nos esclarece, “a dificuldade desta teoria reside na definição do que seria proveito e, consequentemente, no fato da sua aplicação se restringir a comerciantes e industriais, excluindo agentes de atividade das quais não foi obtido um proveito” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 143).
Outra teoria é a do risco profissional, que entende que há a obrigação de indenizar quando o dano é gerado pela atividade profissional do lesado. Essa teoria busca sustentar, principalmente, a responsabilidade do empregador em caso de acidentes de trabalho.
Os defensores da corrente teórica do risco excepcional, por sua vez, entendem que haverá responsabilização, apenas, quando o risco for excepcional, ou seja, que escape às atividades comuns da vítima como, por exemplo, os riscos inerentes às redes de alta tensão e às atividades nucleares (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 192).
De forma mais abrangente, a teoria do risco criado entende que deve ser responsabilizado todo aquele que optou por exercer uma atividade que trouxesse algum risco para a coletividade, não sendo necessário que esse risco seja excepcional. De acordo com essa teoria, por exemplo, as empresas de transporte seriam responsáveis, independentemente de culpa, pelos danos causados por sua frota de veículos, assim como uma indústria química, igualmente, seria objetivamente responsável pelos danos causados por seus produtos. Nesse sentido, como bem sumariza Caio Mário, "aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo" (MÁRIO, 1992, p. 24).
Por fim, a teoria do risco integral amplia ainda mais o rol de agentes passíveis de responsabilização ao dispensar a necessidade de nexo causal. Assim, na hipótese de o agente de uma atividade criar um risco e ter sido causado um dano, ainda que tal dano não tenha sido originado da atividade em si, mas sim de fatores externos, tal agente deverá ser responsabilizado. Logo, bastará que a atividade de risco tenha sido a ocasião, mera causa mediata ou indireta do evento, ainda que este tenha tido por causa direta e imediata fato irresistível ou inevitável, como a força maior e o caso fortuito.
Situada a origem da responsabilidade objetiva, no tópico seguinte dissertaremos brevemente acerca de sua evolução no arcabouço jurídico brasileiro.
3. BREVE HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
No Brasil, a evolução da responsabilidade objetiva deu-se de forma bastante espaçada por meio de leis especiais até sua adoção pelo Código Civil, de 2002. A responsabilização de agentes independentemente de culpa foi introduzida na legislação a partir de 1912, quando o Decreto N. 2.681 (BRASIL, 1912) trouxe a responsabilização das estradas de ferro por todos os danos causados aos proprietários marginais.
Outra esfera jurídica na qual a responsabilidade objetiva foi implementada é a trabalhista. Conforme antecipamos acima, a reflexão quanto à necessidade de se revisar a responsabilidade dos empregadores em casos de acidentes de trabalho emerge de uma demanda oriunda da realidade criada pela Segunda Revolução Industrial, em meados do Século XIX. Por aqui, o primeiro corpo legal que tratou da responsabilização em acidentes laborais foi criado apenas em 1919, através do Decreto Legislativo N. 3.724 (BRASIL, 1919). Com base na teoria do risco, o art. 2 do referido diploma atribui ao empregador a responsabilidade de indenizar o empregado ou seus familiares por danos causados em razão de acidentes relacionados ao exercício do trabalho. A esta responsabilidade objetiva, excetuam-se apenas casos de força maior ou quando o acidente decorrer de dolo do empregado.
Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, foi promulgada a segunda lei tratando de acidentes laborais do Brasil, o Decreto-lei N. 24.637 de 1934 (BRASIL, 1934), que manteve a responsabilidade objetiva do empregador exceto para os acidentes decorrentes de força maior ou por dolo do empregado, conforme disposto em seu art. 2. Dentre suas inovações, esta lei trouxe o conceito do seguro de acidente do trabalho, pelo qual o empregador deverá contratar seguro ou prover seguro bancário de modo a garantir a indenização do empregado.
Em 1944, por meio do Decreto-lei N. 7.036 (BRASIL, 1944), aperfeiçoou-se o sistema mediante a implementação do seguro de acidente de forma compulsória, conforme estabelecido no art. 94 de tal dispositivo. Aqui, a instituição da previdência social passa a figurar como responsável perante as responsabilidades da lei. Assim, da mesma forma que o seguro obrigatório para a responsabilização do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), prevê indenização independente de culpa do agente, em 1974, a Lei n. 6.194 (BRASIL, 1974) implementou outra hipótese de responsabilização de natureza objetiva, o seguro obrigatório de responsabilidade civil para proprietários de veículos automotores – DPVAT. Cavalieri Filho, esclarece, tratar-se de um “seguro social em que o segurado é indeterminado, só se tornando conhecido quando da ocorrência do sinistro, ou seja, quando assumir a posição de vítima de um acidente automobilístico” (CAVALIEIRI FILHO, 2020, p. 201).
Com a evolução da legislação acidentária, atualmente, ao empregador, é atribuída a responsabilidade subjetiva, devendo este, para fins de obrigação de reparação de danos, incorrer em dolo ou culpa nos termos do art. 7, XXVIII da Constituição Federal (BRASIL, 1988), exceto quando se remeter a atividade de risco, conforme posicionamento pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho[2] e pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário - RE 828040/DF (STF, 2020) de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
Na esfera ambiental, a responsabilização do poluidor por danos ambientais é regrada pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) e pela Lei N. 6.938/1981 (BRASIL, 1981). A Lei ordinária em tela adotou a responsabilidade objetiva no parágrafo primeiro do seu art. 14 ao determinar que:
sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
Posteriormente, em 1988, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) recepcionou essa modalidade de responsabilização por meio do seu art. 225, parágrafo terceiro ao estabelecer que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Ainda, vale ressaltar que a responsabilidade por danos ambientais é auferida com base na teoria do risco integral, haja vista que grande parte dos casos de poluição ambiental são causados por casos fortuitos e de força maior, como rompimento de barragens, vazamento de oleodutos. Tal posicionamento encontra-se pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em um dos acórdãos que tratam do tema, no Recurso Especial - REsp 114.398, o decidiu-se que “a alegação de culpa exclusiva de terceiro pelo acidente em causa, como excludente de responsabilidade, deve ser afastada, ante a incidência da teoria do risco integral e da responsabilidade objetiva ínsita ao dano ambiental” (STJ, 2009).
Além das previsões acima, há outras leis especiais e dispositivos constitucionais que preveem a responsabilização do agente independente de culpa:
(i) Responsabilidade por dano oriundos de atividades nucleares, conforme disposto no art. 21, XXIII, da Constituição Federal/1988;
(ii) Responsabilidade por danos causados pela atividade de lavra, conforme disposto no art. 47, VIII do Decreto-lei N. 227 de 1967 (Código de Minas) (BRASIL, 1967);
(iii) Responsabilidade causada pela aeronave a terceiros na superfície, conforme disposto nos arts. 268 e 269 da Lei N. 7.565 de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica) (BRASIL, 1986);
(iv) Responsabilidade pelos danos causados nas relações de consumo, conforme Lei N. 8.078 de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
No Código Civil de 2002, a responsabilidade civil fundada na culpa, consoante seu art. 159, abandonou seu protagonismo mediante o destaque dado pelo legislador à responsabilidade civil objetiva que passou a ser prevista por uma série de dispositivos. Como pontua Sergio Cavalieri Filho, o Código Civil de 2002:
embora tenha mantido a responsabilidade subjetiva, optou pela responsabilidade objetiva, tão extensas e profundas são as cláusulas gerais que a consagram, tais como o abuso do direito (art. 187), o exercício de atividade de risco ou perigosa (parágrafo único do art. 927), danos causados por produtos (art. 931), responsabilidade pelo fato de outrem (art. 932, c/c o art. 933), responsabilidade pelo fato da coisa e do animal (arts. 936, 937 e 939), responsabilidade dos incapazes (art. 928) etc” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 214).
A seguir, avaliamos os princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados adotados pelo Código Civil de 2002 para regular a responsabilidade civil objetiva.
4. A RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO CÓDIGO CIVIL
Após esse breve recorte histórico, passaremos agora a analisar como a responsabilidade civil objetiva foi regulada pelo Código Civil de 2002. Primeiramente, faremos uma análise dos princípios adotados e, na sequência, das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados empregados pelo legislador brasileiro.
4.1. Princípios norteadores da responsabilidade objetiva
Conforme explanado acima, o princípio é uma espécie de norma caracterizada por sua generalidade e universalidade. Ainda, os princípios podem ou não ser traduzidos por meio de enunciados normativos, porém sempre buscarão um dever ser. Neste sentido, Barroso pontua que “Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que consagram valores ou indicam fins a serem realizados, sem explicitar comportamentos específicos” (BARROSO, 2010, p. 11).
No que tange à responsabilidade objetiva, conforme recorte histórico feito no presente estudo, seu surgimento e desenvolvimento devem-se, principalmente, à demanda social por uma nova forma de responsabilização frente à exposição e vulnerabilidade de algumas pessoas e da dificuldade de se provar a culpa do agente em alguns casos, o que acabavam deixando as vítimas desamparadas. Dentre os princípios que norteiam, principalmente, a responsabilidade objetiva, alguns merecem destaque.
Quando se fala em responsabilização em razão do risco, independente de culpa, busca-se tutelar a integridade física e patrimonial da sociedade como um todo, trazendo ao potencial causador do dano o prévio dever de segurança. Como esclarece Cavalieri Filho, se o causador do dano
pode legitimamente exercer uma atividade perigosa, a vítima tem direito (subjetivo) à incolumidade física e patrimonial, decorrendo daí o dever de segurança [...] cuja violação justifica a obrigação de repararem nenhum exame psíquico ou mental, sem apreciação moral da conduta do autor do dano” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 233).
Assim, é clara a ponderação do princípio da dignidade da pessoa humana pelo legislador ao optar pela adoção de um sistema que garanta a segurança e a inviolabilidade física e patrimonial dos cidadãos. Barroso (2010) destaca que a dignidade é composta por três conteúdos essenciais: valor intrínseco da pessoa humana, valor comunitário e autonomia da vontade. O primeiro está fundado em uma série de direitos fundamentais, dentre eles o da vida, da integridade física e da integridade psíquica. É perseguindo a defesa desses direitos que surge o conceito do dever de segurança e, como consequência, a responsabilização independente de culpa para as atividades que representam risco para sua garantia.
Paralelamente, temos o princípio da causa do risco, que determina que “a responsabilidade deve ser atribuída a quem deu causa ao dano, mediante criação do risco” (PÜSCHEL, 2005, p. 98). Como apontamos, uma das teorias do risco, a do risco integral, é totalmente embasada na causalidade, haja vista que defende que quem criar o risco, ainda que sem nexo de causalidade imediata com o dano deve ser responsabilizado.
Na mesma linha do princípio da causa do risco, temos o princípio da prevenção, que atribui a responsabilidade ao “sujeito em melhores condições para controlar e reduzir os riscos de dano” (PÜSCHEL, 2005, p. 98). Aqui vale uma distinção entre “prevenção e precaução, enquanto aquele cuida de um risco certo e conhecido a ser evitado, o último abrange riscos incertos, não-confirmados, mas que, na dúvida, deve ser evitado” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 212). Para esse autor, a adoção desse princípio na responsabilidade civil representa uma transição de um posicionamento repressivo para um proativo/preventivo.
Outro princípio é o da distribuição de danos, segundo o qual o prejuízo deve ser assumido por quem tem melhores condições de absorvê-lo, reduzindo o fardo individual. Na mesma linha, “o princípio da equidade busca a responsabilização daquele que tem as melhores condições econômicas para suportar os prejuízos advindos do dano” (PÜSCHEL, 2005, p. 99).
4.1.1 Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados que regem a responsabilidade objetiva
Cavalieri Filho (2020, p. 214) destaca que o Código Civil de 2002:
embora tenha mantido a responsabilidade subjetiva, optou pela responsabilidade objetiva, tão extensas e profundas que são as cláusulas gerais que a consagram, tais como o abuso do direito (art. 187), o exercício de atividade de risco ou perigosa (parágrafo único do art. 927), danos causados por produtos (art. 931), responsabilidade pelo fato de outrem (art. 932, c/c o art. 933), responsabilidade pelo fato da coisa e do animal (arts. 936, 937 e 939), responsabilidade dos incapazes (art. 928), etc.
A seguir, analisaremos alguns dos enunciados normativos acima citados, de modo a compreender sua estrutura e natureza bem como apontar e analisar os termos vagos neles contidos.
(i) Art. 187 cominado com Art. 927: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Avaliando-se a estrutura desse enunciado normativo, cominado com o art. 927, a princípio, pode-se concluir que há uma série de expressões dotadas de vagueza que demandam sua valoração pelo intérprete legal (“manifestamente”, “fim econômico ou social”, “boa-fé”, “bons costumes”). Apesar de tais conceitos vagos, há um consequente claro e pré-determinado, ou seja, se preenchidos os requisitos trazidos na hipótese legal, haverá a configuração de um ato ilícito, que, nos termos do art. 927, implicará na obrigação de reparação. Assim, não estamos diante de uma cláusula geral propriamente dita, mas sim de uma regra contendo conceitos jurídicos indeterminados dada a limitação de sua vagueza.
A natureza objetiva da responsabilidade trazida por este dispositivo depreende-se pelo fato de que “não é necessária a consciência de que se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do direito” bastando-se o excesso para que seja configurada a responsabilização (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 218). Como bem salientado por Cavalieri Filho, aqui há de se considerar o excesso, abuso no exercício do direito e não no direito em si, que sempre será dotado de legalidade.
Essa responsabilização objetiva busca, principalmente, “vedar um exercício antissocial do direito e que este sirva como forma de opressão, evitando que o seu titular utilize seu poder visando a uma finalidade distinta da que se destina” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 217). Neste sentido, o Enunciado nº 37 da Jornada de Direito Civil estabelece que “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. Assim, verificado o abuso, este configura ilícito e, nos termos do art. 927, implicará na responsabilização do agente. Ainda, na hipótese do abuso de direito, o dano não é um requisito para sua configuração.
Passando-se à análise dos termos vagos, inicialmente, tem-se o requisito do “excesso manifesto” do abuso no exercício do direito. Aqui, não basta que o exercício do direito cause um dano a outrem, caso contrário, o exercício de muitos direitos ficaria prejudicado, haja vista que é natural e lícito que eles impliquem no prejuízo de terceiro. Dessa forma, por “excesso manifesto” deve-se entender, apenas, o exercício anormal do direito, que não seja norteado por um fim legítimo.
Os demais conceitos indeterminados do artigo (“fim econômico ou social”, “boa-fé” e “bons costumes”) são os limitadores do exercício do direito. Por “fim econômico”, entende-se o “proveito material ou vantagem que o exercício de um direito trará para o seu titular, ou a perda que suportará pelo seu não exercício” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 221), enquanto o “fim social deve estar alinhado com os objetivos que são buscados por toda sociedade, incluindo, da paz, ordem, solidariedade, etc” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 226).
Com relação à “boa-fé”, aqui identificamos a adoção do princípio da boa-fé objetiva como um dos norteadores da execução do direito. Esclarecemos, anteriormente, que os princípios são normas caracterizadas por sua generalidade e por nortearem o atingimento de um dever ser; no caso da “boa-fé”, o princípio é pautado pelo “padrão de conduta necessário à convivência social para que se possa acreditar, ter fé e confiança na conduta de outrem” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 227). No art. 187, o princípio da boa-fé objetiva exerce uma função de controle, uma vez que limita o exercício de direitos subjetivos, que deve ocorrer com base no “padrão ético de confiança e lealdade indispensável para a convivência social” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 228).
Por fim, com relação ao conceito de “bons costumes” este deve ser valorado no sentido de abranger o “conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas praticam” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 230). Assim, o conceito de bons costumes é alinhado com o de boa-fé.
Como exemplo de aplicação deste enunciado, temos o acórdão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.467.88-GO (STJ, 2014), de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, pelo qual reconheceu-se a responsabilização do recorrido que impetrou habeas corpus para impedir a interrupção da gestação da recorrente, interrupção esta que se encontrava devidamente autorizada judicialmente. Entendeu o tribunal que se tratou de um abuso do direito da tutela de urgência, o que causou danos físicos e psicológicos à gestante, que se viu obrigada a parir um feto portador da síndrome de Body Stalk e que faleceu logo após o parto.
(ii) Art. 927, parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Segundo Judith Martins-Costa (2009), o parágrafo único do art. 927 consiste em importantíssima cláusula geral de responsabilidade objetiva pelo risco. Entretanto, se observarmos a estrutura do enunciado, verificaremos que em que pese a existência de termos vagos, pendentes de valoração, há uma hipótese e um consequente definidos e pré-determinados qual seja a obrigação de reparação de dano, independente de culpa.
Relativamente aos termos vagos, também denominados pela Judith Martins-Costa, a saber: “conceito jurídicos indeterminados”, encontramos as palavras “normalmente”, “natureza” e, como termo central dessa hipótese normativa, “risco”. Em razão de sua vagueza, tais expressões demandam que o intérprete defina o que consistiria numa atividade de risco normalmente executada, que, se gerar um dano, implicará na responsabilização de seu agente de forma objetiva.
Em primeiro lugar, no que se refere à habitualidade da atividade, conforme consagrado pela legislação e doutrina, deve-se entender como atividade normalmente desenvolvida o serviço reiterado, habitual, organizado para realizar fins econômicos (CAVALIERI FILHO, 2020). Com relação ao conceito de “natureza de risco”, mencionado anteriormente, há diversas teorias para definir o que seria risco para fins de responsabilização objetiva. Ressalta-se que, no Brasil, “adotou-se a teoria do risco criado, que estabelece que haverá a responsabilização, sem necessidade do elemento culpa, quando a atividade exercida, em razão de sua natureza, gerar risco para direitos de outrem” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 230).
Ainda segundo esse autor, a doutrina distingue o risco da atividade em duas naturezas: “o risco inerente e o risco criado''. Enquanto o primeiro, é inerente à natureza, qualidade e modo de execução da atividade o segundo é eventual, isto é, surge de modo acidental durante a execução da atividade” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 233). Além disso, a previsão do parágrafo único do art. 927 engloba, apenas, a hipótese do risco inerente, que está alinhado com a teoria do risco criado, pela qual, conforme já explorado, haverá a responsabilidade objetiva quando o agente optar por executar uma atividade que é naturalmente arriscada (CAVALIERI FILHO, 2020).
(iii) Art. 931: Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.
Por conseguinte, outro dispositivo apontado como uma cláusula geral de responsabilidade objetiva pela doutrina é o art. 931 (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 936). Aqui, mais uma vez, temos um resultado pré-definido e claro, que independe de valoração pelo intérprete. Entretanto, a sua hipótese causadora detém maior vagueza haja vista que deverá ser definido qual o limite do dano causado pelo produto bem como o universo de agentes passíveis de responsabilização. Uma arma de fogo que cause a morte de um transeunte poderia implicar na responsabilidade do seu comerciante? O fabricante de um produto químico poderia ser responsabilizado por um produto que foi revendido por um de seus distribuidores com embalagem violada?
Por meio deste enunciado normativo, o Código Civil (BRASIL, 2002) adotou a teoria do risco empresarial, pelo qual o empresário responde pelos defeitos dos produtos postos em circulação, devendo garantir sua segurança e qualidade. Assim como para as atividades de risco, a responsabilização pelos danos causados pelo produto não decorre de sua natureza, mas sim dos defeitos que venham a ser causados na sua fabricação ou funcionamento. Dessa forma, uma empresa fabricante de armas de fogo não pode ser responsabilizada por todos os danos causados pelos seus disparos, mas tão somente pelos originados de defeito no seu funcionamento, dada a inerente periculosidade deste bem. Para Sergio Cavalieri Filho (2020, p. 239):
Embora se mostre capaz de causar acidentes, a periculosidade desses produtos é normal e conhecida – previsível, em decorrência de sua própria natureza -, em consonância com a expectativa legítima do usuário. Em suma, normalidade e previsibilidade são as características do risco inerente, pelo qual não responde o fornecedor por não ser defeituoso um bem ou serviço nessas condições. Cabe-lhe apenas informar o usuário a respeito desses riscos inevitáveis.
Portanto, com relação aos “agentes responsáveis por eventual dano causado pelo defeito do produto, estariam englobados os empresários que tiverem comercializado o produto, incluindo fabricantes e vendedores” (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 239). Quanto a esse ponto, pode haver entendimento diverso, limitando a responsabilização aos fabricantes com base no disposto pelo art. 13 do Código de Defesa do Consumidor (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 239).
A título de exemplo, citamos o acórdão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.644.405-RS (STJ, 2016), de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, pelo qual se reconheceu a existência de dano moral no caso de venda de uma aliança no recheio dos biscoitos vendidos. Aqui, entendeu o Tribunal que houve ofensa ao direito fundamental da alimentação adequada que é uma das bases do princípio da dignidade da pessoa humana.
5. CONCLUSÃO
O Código Civil (BRASIL, 2002) inspirado pela estrutura da nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988), adotou uma série de enunciados e conceitos vagos de modo a permitir uma maior flexibilidade da aplicação da norma conforme contexto e realidade social vigentes. Tal técnica fez uso de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados sendo que, enquanto as primeiras são caracterizadas por sua total indeterminação, os últimos são parte de um enunciado que possui um consequente determinado e que independe de valoração judicial. Tal técnica legislativa foi utilizada também nos dispositivos que regulam a responsabilidade civil objetiva, que dispensa o elemento de culpa para configuração da responsabilidade do agente.
Para nortear a aplicação da responsabilidade objetiva, o legislador incorporou uma série de princípios, que refletem a origem deste instituto. Os princípios da dignidade da pessoa humana, da causa do risco, da prevenção, da precaução e da distribuição dos danos visam a garantir a responsabilização daqueles agentes que, em razão de sua natureza ou da atividade que conduzem, põem em risco a segurança e integridade da coletividade como um todo. Mediante tal técnica, o legislador busca afastar a impunidade e garantir a reparação das pessoas lesadas.
Aliado à adoção de tais princípios, o legislador do Código Civil de 2002 também adotou uma série de enunciados vagos que permitem a valoração do intérprete em consonância com tais princípios. Em que pese a comum referência doutrinária às cláusulas gerais de responsabilidade civil objetiva, ao avaliarmos os enunciados dotados de vagueza que regulam tal matéria (Art. 187, Art. 927, parágrafo único e Art. 931), verificamos que o consequente trazido por estes é claro e pré-definido, aproximando-os, portanto, de regras contendo conceitos jurídicos indeterminados e não de cláusulas gerais propriamente ditas.
Nesse sentido, é importante que a interpretação da vagueza de tais enunciados ocorra de modo a respeitar os princípios norteadores da responsabilidade objetiva. Nota-se na avaliação dos três artigos supramencionados, que os conceitos jurídicos indeterminados neles contidos, ao mesmo tempo dão liberdade ao intérprete para que este os valore, demandam certa limitação em tal atividade interpretativa de modo que a hipótese criada esteja alinhada com o contexto social existente e, principalmente, com os princípios e objetivos da responsabilidade objetiva.
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Bacharel em Direito (2011), formado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Mestre em direito empresarial internacional pela Central European University - Hungria (2014) e mestrando em direito comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENDES, Hugo Cavalcanti Vaz. Princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados de responsabilidade objetiva no Código Civil brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 out 2022, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59416/princpios-clusulas-gerais-e-conceitos-jurdicos-indeterminados-de-responsabilidade-objetiva-no-cdigo-civil-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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