LETÍCIA DE JESUS PEREIRA[1]
(coautora)
RESUMO: O presente artigo científico consiste em uma análise jurídica dos efeitos causados pela pandemia do coronavírus nas relações de consumo contratuais. Partindo do fato de que há uma disparidade de forças na relação jurídica de consumo entre fornecedor e consumidor, evidencia-se a intensificação desta desproporcionalidade durante o atual quadro pandêmico, haja vista a posição de hipossuficiência que os consumidores ocupam. Nesse sentido, surge a seguinte problemática: quais foram os impactos causados nas relações de consumo contratuais em razão da pandemia do novo coronavírus no país e quais são as alternativas para amenizar as consequências desta crise excepcional? O método de pesquisa utilizado para tanto, possui natureza qualitativa e revisão bibliográfica, visto que o estudo foi realizado a partir da legislação vigente, da doutrina jurídica, revistas e artigos jurídicos publicados na Internet. Assim, ao longo do desenvolvimento do trabalho, firmou-se o entendimento de que a defesa do consumidor no mercado de consumo caracteriza e delineia a ordem constitucional econômica brasileira e por esta razão, suas normas de ordem pública e interesse social devem ser preservadas mesmo nos momentos de crise e circunstâncias extraordinárias.
Palavras-Chave: Relações de consumo. Pandemia. Coronavírus. Contratos.
Abstract: This scientific article consists of a legal analysis of the effects caused by the spread of contamination caused by the new coronavirus in contractual consumer relations. Based on the fact that there is a disparity of forces in the legal relationship of consumption between supplier and consumer, the intensification of this disproportionality during the current pandemic situation is evident, given the position of hyposufficiency that consumers occupy. In this sense, the following problem arises: what were the impacts caused on contractual consumer relations due to the new coronavirus pandemic in the country and what are the alternatives to mitigate the consequences of this exceptional crisis? The research method used for this, has a qualitative nature and bibliographic review, since the study was carried out from the current legislation, legal doctrine, magazines and legal articles published on the Internet. Thus, throughout the development of the work, the understanding was established that consumer protection in the consumer market characterizes and outlines the Brazilian economic constitutional order and for this reason, its norms of public order and social interest must be preserved even in the moments of crisis and extraordinary circumstances.
Keywords: Consumer relations. Pandemic. Coronavirus. Contracts.
1 INTRODUÇÃO
A disseminação e o índice global de mortes causadas pelo novo coronavírus (SARS-COV-2) conduziu, em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) a formalizar a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) em virtude da alta percentualidade de infecção humana (OPAS, 2020). Observada a gravidade da situação, foi decretado no Brasil em 20 de março de 2020, o Estado de Calamidade Pública, visto que, no atual cenário brasileiro confirmam-se mais de 685 mil mortes e 34,6 milhões de casos de contaminação ao redor do país (JHU CSSE, 2022).
A crise sanitária ocasionada pelo número de contaminações reascendeu uma série de discussões jurídicas que envolveu as relações trabalhistas, a livre-concorrência, a saúde pública, a segurança sanitária, as questões econômicas e sociais brasileiras, assim como, a vulnerabilidade dos consumidores frente às relações contratuais. Dessa forma, o Código de Defesa do Consumidor, atua como uma tutela legislativa que reconhece a fragilidade do consumidor, que se refere à um princípio fundamental das relações de consumo, disposto no artigo 4º, inciso I, da Lei nº 8.078/90, considerando que há uma grande desproporcionalidade de forças evidentemente acentuada durante o quadro pandêmico.
Nesse sentido, surge a seguinte problemática: quais foram os impactos causados nas relações contratuais de consumo, observados durante a pandemia do coronavírus no país? Para responder tal enigma, fez-se necessário um estudo aprofundado nesta seara, com o intuito de apresentar alternativas para mitigar os efeitos negativos decorridos da pandemia nas relações de consumo.
A abordagem utilizada para tanto é a qualitativa, visto que foi necessário conhecer o fenômeno social estudado e os aspectos subjetivos do tema, como a aplicabilidade dos princípios gerais do Código de Defesa do Consumidor e a função social do contrato. Assim, a sustentação teórica foi fundamentada por meio de uma revisão literária bibliográfica e documental, em virtude da pesquisa ter sido realizada a partir da legislação vigente, da doutrina jurídica, revistas e artigos científicos publicados na Internet.
Além desta introdução e da conclusão, o trabalho está dividido em três seções. Na primeira delas abordar-se-á primeiramente, considerações iniciais acerca do cenário causado pela COVID-19, os princípios básicos que norteiam a relação jurídica entre consumidor e fornecedor, bem como, a função social do contrato e a tutela da vulnerabilidade do consumidor frente aos contratos de consumo. Em seguida, será possível discutir os reflexos causados nas relações de consumo contratuais, no que diz respeito ao inadimplemento dos contratos de consumo em razão da pandemia e por fim, abordar-se-á possíveis soluções para amenizar a crise superveniente vivenciada atualmente, por meio da renegociação, revisão ou resolução contratual.
2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA COVID-19
A pandemia causada pelo COVID-19 impôs inúmeros rearranjos nas relações de consumo, uma vez que a edição de leis e decretos que tiveram como finalidade amenizar e combater situações desfavoráveis aos consumidores foram extremamente importantes, tendo em vista que estes foram intensamente afetados. Diante disso, órgãos vinculados à Segurança Pública e Ministério da Justiça, buscaram, desde o início, soluções junto ao setor privado e outros órgãos do governo para se antecipar, prevenir ou remediar problemas que se relacionam a relação de consumo e o funcionamento das relações sociais e consumeristas no âmbito mercadológico.
Os primeiros infortúnios ocasionados pela pandemia, conforme Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), referem-se ao mercado turístico e aéreo, visto que a quarentena, medida política de isolamento adotada para conter o contágio do COVID-19, afetou diretamente na dinâmica econômica destes setores, posto que não restou quase nenhuma possibilidade de receita, em razão de serem atividades que geram trabalhos em muitas faixas de renda no país, principalmente nos setores de menor nível de especialização. Assim, a paralisação destas atividades trouxe consequências negativas à economia do país e diversos prejuízos aos consumidores.
Observa-se a possibilidade de uma redução do PIB das economias nacionais em até US $ 2,3 trilhões, mesmo que a crise sanitária seja mantida no nível intitulado por especialistas de “low-end” (SOUZA, 2020, p.136). Os países, inclusive o Brasil, editaram atos normativos destinados a tratar os efeitos devastadores e nefastos da pandemia que atingiram milhares de pessoas.
Nota-se uma alteração drástica nas relações interpessoais, jurídicas, socioeconômicas, que escancararam a fragilidade do sistema público de saúde e impulsionam a promulgação de diversas leis e diplomas cujo objetivo era reduzir os graves impactos da pandemia, haja vista o contágio desacelerado do vírus.
Mas para que se possa compreender o âmbito de incidência do CDC, primeira deve-se analisar quais são as partes envolvidas nessa relação. Assim, faz-se necessário esclarecer inicialmente que, consumidor é todo indivíduo que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, conforme preceitua o art. 2º do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990). Dessa forma, de acordo com os ensinamentos de Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem:
(...) Destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência – é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção (MARQUES; BENJAMINE; MIRAGEM, 2019).
Evidencia-se que as relações de consumo demandam que o polo mais vulnerável entre as partes contratuais tenha uma proteção ativa, considerando que o consumidor sempre será a parte mais suscetível a infortúnios perante os fornecedores de bens e serviços, os quais possuem o capital e acabam, não raras vezes, deliberando a sua vontade na relação de consumo que podem ser desproporcionais e excessivas, motivo pelo qual, verifica-se um desequilíbrio nas relações de consumo contratuais.
Os primeiros impactos imediatamente observados desde o início da pandemia, segundo Guilherme Mucelin, dizem respeito ao aumento de preços, os quais decorreram diretamente da lei da oferta e da procura:
O aumento abusivo de preços de produtos, principalmente os de prevenção ao Coronavírus, como álcool gel 70%, máscaras e luvas, e, as preocupaçõesdos consumidores com relação a viagens, pacotes turísticos, eventos e demais compromissos já assumidos antecipadamente. Após as determinações de isolamento, contudo, o foco se deu na impossibilidade de os consumidores adimplirem seus contratos relativos a suas necessidades básicas e de sua família, como água, luz, internet, gás encanado e outros serviços essenciais (MUCELIN, 2020, n.p.).
Sabe-se que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) veda a prática oportunista do aumento abusivo de preços sem racionalidade e necessidade econômica. As práticas abusivas estão elencadas no art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, o qual veda ao fornecedor, o aumento excessivo sem justa causa do preço de produtos e serviços, constatadas em maior incidência durante a pandemia.
Tal conduta também pode ser caracterizada como abuso de direito, consoante a definição do ato ilícito contido no artigo 187 do Código Civil, dispõe que: “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).
Todavia, faz-se relevante diferenciar um ajuste de mercado a uma situação de crise da prática de estocar produtos adquiridos a preços reduzidos com o propósito de revender mais caro, aproveitando-se excessivamente dos consumidores em um momento de crise. Ressalta-se ainda que, a circunstância econômica ocasionada pós-Covid-19 modificou as prioridades de compra dos consumidores. Restritos à quarentena, os consumidores criaram o hábito de adquirir com mais frequência, produtos essenciais como alimentos, medicamentos e itens de higiene e limpeza, tais como: álcool-gel, luvas e máscaras de proteção facial.
As práticas abusivas são, portanto, negociações irregulares que acabam, por vezes, ferindo os pilares da ordem jurídica e das relações de consumo. Espera-se que as relações negociais tenham resultados positivos, entretanto, nem sempre isso ocorre, haja vista os casos em que a vantagem em prol de uma das partes passa a ser exagerada e ultrapassa limites razoáveis. Diante disso, cumpre ressaltar que o § 1º do art. 51 do CDC também prevê sobre a vantagem exagerada como causa geradora da abusividade em cláusulas contratuais (BRASIL, 1990).
Denota-se que essa disparidade de forças é, sobretudo, observada por meio da desigualdade entre o consumidor e fornecedor que ocupam posições distintas na relação consumerista, razão pelo qual o Direito do Consumidor exerce um papel fundamental para amenizar tal situação, visto que os preceitos que o envolvem possuem a finalidade de defender o cidadão, que configura-se como parte hipossuficiente e vulnerável, de práticas ilícitas e abusivas nas relações de consumo, no que diz respeito ao artigo 4, I do CDC. Assim, torna-se oportuno discutir os princípios que regem a relação jurídica de consumo consoante ao tópico que se subsegue.
2.1 Os princípios básicos que regem a relação jurídica entre consumidor e fornecedor
Diante da necessidade em estabelecer uma tutela legislativa ao polo mais vulnerável da relação jurídica de consumo em nosso ordenamento jurídico pátrio, surgem com a Lei 8.078/1990, os fundamentos normativos específicos para a relação entre consumidor/fornecedor com fulcro nos artigos 5º, XXXII e 170, V da Constituição Federal de 1988, que versam sobre a defesa ao consumidor, os meios de garantia aos direitos à vida, liberdade, segurança e propriedade, os quais possuem direta relação com o consumo e o princípio da ordem econômica.
Assim, por meio da imposição ao Congresso Nacional pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), origina-se conforme o art. 48 do dispositivo, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e interesse social, nos termos de seu artigo 1º. Com vistas a organizá-lo, implementa-se a defesa do consumidor mediante a criação de um conjunto de normas para melhor regê-la.
Dessa forma, o artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor dispõe acerca da Política Nacional das Relações de Consumo, que possui o objetivo de atender às necessidades dos consumidores, observado seus direitos básicos como a saúde, segurança, dignidade, informação e a melhoria da qualidade de vida tanto do consumidor como do fornecedor, de modo a preservar os interesses econômicos, a fim de promover a harmonia e transparência nas relações de consumo (BRASIL, 1990).
Para tanto, a Política Nacional das Relações de Consumo fundamenta-se em princípios, os quais destinam-se a preencher as omissões existentes na busca incessante pela estabilidade nas relações consumeristas, em que é possível elencar: a vulnerabilidade do consumidor, princípio disposto no artigo 1º, inciso I, do CDC, originário da isonomia razão pelo qual possui a igualdade como finalidade, visto que, o consumidor situa-se à mercê do fornecedor por configurar-se na posição mais fraca da relação, por este possuir menos conhecimento técnico e econômico ante o fornecedor.
Em conformidade com a professora Claudia Lima Marques, a vulnerabilidade do consumidor se constitui em “presunção legal absoluta, que informa e baliza a sua aplicação e a hermenêutica – sempre a favor do consumidor – de suas normas” (MARQUES, 2011, p. 304). Assim, o ponto de partida do Código de Defesa do Consumidor é a afirmação deste princípio, que se configura em um mecanismo que visa garantir a igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica do consumo (BRASIL, 2016).
Em segundo plano, observa-se o princípio do dever governamental, previsto no artigo 4º, incisos II, VI e VII do Código de Defesa do consumidor, originário da Constituição Federal de 1988, em que se atribui ao Estado Democrático de Direito a responsabilidade de proporcionar recursos para que a proteção do consumidor se efetive, especialmente por meio da fiscalização.
Faz-se necessário também que haja a garantia de adequação ao consumidor, princípio que diz respeito à absoluta adequação dos produtos e serviços dispostos no mercado de consumo, observado sua segurança e qualidade, objetivo primordial reiterado pelo sistema protetivo consumerista, de modo a respeitar os interesses econômicos das partes e melhor qualidade de vida (BRASIL, 1990).
Ressalta-se ainda, o princípio da boa-fé nas relações de consumo, regulamentado no artigo 4º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor, no qual relaciona-se à cooperação e lealdade entre as partes da relação consumerista, a fim de combater quaisquer abusos praticados durante o processo de consumo. Este princípio foi criado para evitar que interesses particulares fossem priorizados diante dos interesses sociais.
Dessa forma, o princípio da boa-fé atua como uma direção que deve ser observado pelas partes da relação consumerista, que se fundamenta consequentemente, no dever de conduta que naturalmente se espera das partes, com o propósito de prevenir eventuais condutas abusivas.
Ao conjugar à conduta, segundo a boa-fé, o equilíbrio das posições do polo fornecedor e do polo consumidor, e ao prever expressamente (art. 51, inc. IV) a nulidade de cláusulas abusivas, pois desbordam da boa-fé, atingindo tal equilíbrio, a normativa consumerista atribui ao princípio da boa-fé uma função corretora do desequilíbrio contratual com caráter geral (MARTINS-COSTA, 2018, p. 325).
Diante disso, o princípio da boa-fé reforça e fundamenta o princípio do equilíbrio contratual na relação jurídica de consumo, que orienta o intérprete a buscar a equivalência entre a prestação originariamente assumida pelo consumidor e a devida execução do contrato. De acordo com Claudia Lima Marques, o princípio do equilíbrio contratual é cogente, visto que é aceita conscientemente pelo consumidor, mas se traz vantagem excessiva para o fornecedor, se é abusiva, o resultado é contrário à ordem pública, contrário às normas de ordem pública de proteção do Código de Defesa do Consumidor e a autonomia de vontade não prevalecerá (MARQUES, 2011).
Ressalta-se ainda que, o referido princípio pode decorrer de fato contemporâneo a sua formação, como se observa nos casos de vício de vontade, ou por fato superveniente, como a pandemia provocada pela Covid-19. Por sua vez, o princípio da informação, evidenciado no artigo 4º, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor, apresenta-se como o dever de esclarecer os direitos e deveres dos consumidores e fornecedores, com a finalidade de que haja transparência e harmonia entre as partes da relação de consumo.
Em conformidade com o CDC, evidencia-se a ilegalidade de qualquer produto, serviço ou ato que viole o direito à informação do consumidor, visto que, a informação deve ser repassada amplamente acerca de todos os aspectos do produto ou serviço a ser inserido no mercado de consumo.
Destaca-se, por fim, o princípio do acesso à justiça, exposto no artigo 6º VII e VIII do Código de Defesa do Consumidor. Trata-se de um direito consagrado a todos aqueles que possuem a necessidade de acionar o Estado contra quaisquer atos ou procedimentos que venham contrariar ou desrespeitar seus direitos e garantias assegurados na Carta Magna.
Nesse sentido, ao elaborar o referido dispositivo, o legislador teve o propósito de conceder subsídios que facilitassem o acesso à justiça a todos os cidadãos, a fim de que fosse possível viabilizar a defesa de direitos para que houvesse o reequilíbrio e a redução de desigualdade que existe entre o consumidor e o fornecedor.
Diante do exposto, constata-se que o Código do Consumidor ocupa uma posição de visibilidade no ordenamento jurídico, por ser uma norma supralegal, que detém uma malha principiológica própria. Assim, na eventualidade de um conflito aparente de normas, aplica-se aquela que melhor protege e tutela o consumidor, conforme a determinação da teoria do diálogo das fontes, prevista no artigo 7º do mesmo Código.
Depreende-se, dessa forma, que os princípios contidos no referido dispositivo atuam como transmissores para todo ordenamento jurídico, que possui como objeto de estudo a proteção e defesa do consumidor, sendo, portanto, todo o alicerce e base deste importante manual (MIRANDA, 2017). Ademais, visando dar continuidade à sustentação teórica do referido trabalho, torna-se oportuno discutir na seguinte subseção, a função social do contrato e tutela da vulnerabilidade do consumidor frente aos contratos de consumo.
2.2 A função social do contrato e a tutela da vulnerabilidade do consumidor frente aos contratos de consumo
Compreende-se por função social, a tutela que o ordenamento jurídico brasileiro assegura aos hipossuficientes e desamparados, a partir da adoção de métodos que proporcionem uma repartição equilibrada das riquezas (FILHO, 2005). Relaciona-se, dessa forma, a aplicabilidade do princípio da igualdade.
A igualdade possui um aspecto formal e material, em que o primeiro se refere à abstenção do Estado sob qualquer forma de tratamento desigual, caracterizado por atos discriminatórios e arbitrários, rompendo claramente com o pensamento medieval em que os indivíduos deveriam ser tratados conforme os estamentos e castas a que pertenciam. Assim, ao prestar a tutela jurisdicional, o Estado deve ser cego diante das desigualdades e impedir a preponderância de privilégios entre as partes (MORAES, 2015).
Por outro lado, o aspecto material da igualdade relaciona-se às condições de oportunidades aos grupos socialmente excluídos a fim de inseri-los na sociedade, proporcionando-lhes assim, a igualdade formal e material. A concretização da igualdade material é implementada por meio da realização de políticas de discriminação positivas pautadas em ações destinadas a suprir as desvantagens impostas historicamente por condições étnicas, religiosas, econômicas e classistas. Vê-se, dessa maneira, que o princípio possui o objetivo de tratar os desiguais igualmente na medida de suas igualdades (NERY JUNIOR, 2014).
Nesse sentido, a função social do contrato possui o objetivo de conferir aos contratantes medidas ou mecanismos jurídicos capazes de coibir qualquer desigualdade dentro da relação contratual (FERREIRA, 2011). Assim, para que a relação contratual seja justa, a liberdade entre os contratantes deve ser conferida de forma igualitária, ligada aos interesses sociais, reconhecendo como valor absoluto, a dignidade humana. O desequilíbrio entre consumidor e fornecedor é natural, exigindo justamente uma forma capaz de colocar os contratantes em posição de igualdade.
A partir desta concepção, a função social do contrato é reconhecida como uma forma de harmonizar a autonomia privada e o bem estar-social. Se o contrato fosse pautado apenas na liberdade individual, com força obrigatória, estaria fora dos parâmetros da ideia contemporânea de Estado. Dessa forma, é a partir da função social que o Estado deve impedir a opressão do mais forte ao mais fraco. O Código Civil enfatiza em seu art. 421 que: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (BRASIL, 2002).
Faz-se necessário, portanto, que o poder público se atente a sua função fundamental que é garantir o bem-estar social. Sabe-se que a Carta Magna não admite contratos que não realizem sua função social, visto sua real preocupação em promover uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, capaz de proporcionar a todos condições essenciais para o exercício de direitos, tendo como alicerce o Estado Democrático de Direito, elegendo a justiça como um dos valores supremos, conforme enfatiza o preâmbulo constitucional.
De acordo com Lôbo (2017), enquanto houver ordem econômica e social haverá Estado Social; enquanto houver Estado Social haverá função social do contrato. Em suma, a função social contratual conceitua-se, portanto, como uma harmonização entre os interesses individuais das partes contratantes e os interesses sociais. Em caso de conflito, prevalecerá o interesse social. O artigo 170 da Carta Magna prevê que toda atividade econômica, incluindo o contrato, que é um instrumento que promove a economia no país, deve buscar com prioridade a justiça social.
Este princípio possui o poder de impor condutas, restringir a liberdade de imposição dos direitos e as obrigações, que se caracteriza como uma norma puramente restritiva. Diante disso, o doutrinador Orlando Gomes corrobora com este entendimento e assevera que a função social do contrato funciona em meio à circulação de riquezas, com o objetivo de regular a riqueza de cada pessoa em forma de representação jurídica, mormente às inovações no mundo financeiro, visando à solidariedade social (GOMES, 2007). Assim sendo, de acordo com Gomes (2007, p. 105) “A função social do contrato funciona em meio à circulação de riquezas, com o objetivo de regular a riqueza de cada pessoa em forma de representação jurídica, mormente às inovações no mundo financeiro visando à solidariedade social.”
Em síntese, vê-se que a função social do contrato se configura como um dos princípios mais importantes da atualidade, por ser considerado uma inovação do direito na área contratual. O modelo clássico de contrato tornou-se cada vez mais ineficaz ao longo da história, tendo em vista a permissão que este concedia, a acordos com grandes desvantagens para uma das partes.
Todavia, a defesa do consumidor no mercado de consumo caracteriza e delineia a ordem constitucional econômica brasileira, de acordo com o que dispõe o art. 170, inciso V da Constituição Federal e por esta razão, suas normas de ordem pública e interesse social devem ser preservadas mesmo nos momentos de crise e circunstâncias extraordinárias. Dessa forma, a proteção contratual conferida pelo Código de Defesa do Consumidor neste cenário, revela a importância da aplicabilidade dos seus princípios.
Se, por um lado, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não prevê de forma explícita a hipótese de força maior como uma das excludentes da responsabilidade do fornecedor, objetivamente restritas às hipóteses do art. 14, § 3º, certo é que, diante da imprevisibilidade da situação caótica instalada em nosso país e no mundo, da boa-fé objetiva que deve nortear as relações contratuais e dos já consagrados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e da vedação ao enriquecimento sem causa, deverão as partes envolvidas buscar o entendimento objetivando, sempre que possível, a manutenção dos contratos ou sua adequação, de modo a evitar-se a excessiva onerosidade a apenas uma das partes, encorando a aplicação do princípio da conservação do negócio jurídico (STROEHER, 2021, on-line).
Embora o CDC não tenha explicitado a função social do contrato, todo o seu corpo normativo assegura a regulamentação da função social nas relações consumeristas. Essa função social é evidentemente notada no tratamento em que é dado às partes de forma unânime, transparente, equilibrada e com boa-fé, sempre em busca da justiça contratual. Evidentemente, nem todos os casos originados desta pandemia serão solucionados de forma harmônica e equilibrada, e nessas hipóteses, a intervenção judicial fatalmente se fará necessária, cabendo às partes, desde logo, reunir organizadamente a documentação que entendam respaldar seus direitos (PEREIRA, 2020).
Diante da imprevisibilidade da situação de vulnerabilidade a que estão sujeitas ambas as partes da relação de consumo em virtude da pandemia, faz-se necessário que os contratos sejam pautados no espírito colaborativo e em concessões mútuas, sendo altamente recomendo que as partes envolvidas busquem a orientação e acompanhamento de profissionais especializados na condução e mediação de acordos, quando necessário.
Tanto empresas quanto consumidores são – e continuarão a ser – fortemente impactados pelas medidas estatais intervencionistas decorrentes da decretação de estado de calamidade pública frente ao Coronavírus, e a legislação que atualmente conhecemos e sobre a qual até então nos debruçamos para regular estas relações consumeristas tende a ser relativizada diante deste cenário de caos social e econômico, de modo que a balança não penda apenas para um dos lados, e que se possa distribuir os ônus e prejuízos entre toda a cadeia de consumo (STROEHER, 2021, on-line).
Portanto, os tempos de pandemia são, verdadeiramente, de solidariedade e de colaboração em prol da saúde pública e, por isso, os impactos gerados pelas fortes restrições às atividades econômicas, fruto da decretação de estado de calamidade pública, acabarão sendo suportados com maior intensidade pelas empresas. Perante o exposto, torna-se oportuno discutir no tópico seguinte, o inadimplemento dos contratos de consumo em razão da pandemia, que se trata de hipótese de força maior, conforme se observará.
3 O INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS DE CONSUMO EM RAZÃO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Em virtude da pandemia ocasionada pelo COVID-19, muitas discussões e desdobramentos jurídicos acerca da vulnerabilidade do consumidor frente aos contratos de consumo foram evidenciados, tendo em vista que a situação excepcional vivenciada atualmente afetou consideravelmente o cenário econômico do país, razão pelo qual fez-se necessária a edição de diversas leis e dispositivos que amenizassem a inadimplência de contratos tanto por parte dos consumidores como de fornecedores.
Nesse viés, cumpre esclarecer que quando a causa do descumprimento do contrato tiver sido em razão da pandemia do coronavírus ou das medidas elaboradas para preveni-lo, não se caracteriza, como regra, erro ou culpa do fornecedor na prestação de serviço. Assim, não se tipificam defeito ou vício do produto conforme dispõe os arts. 12 a 14, 18 a 20 do Código de Defesa do Consumidor, justamente por não haver a possibilidade de considerar que o fornecedor seja responsabilizado pela inadimplência do dever de prestar.
A incapacidade do cumprimento contratual por fato alheio à conduta do fornecedor, caracteriza a hipótese de força maior ou caso fortuito, circunstância prevista no art. 393, parágrafo único, do Código Civil, que assim dispõe: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir” (BRASIL, 2002). Dessa forma, os efeitos desse evento jurídico são: a inércia quanto à responsabilidade do consumidor pelo inadimplemento a que tenha dado causa, conforme o disposto no art. 393, caput, do Código Civil, e ainda, as rescisões contratuais a que tenha tornado impossível o cumprimento, de acordo com os arts. 234, 248 e 250 todos do Código Civil.
Ressalta-se ainda que, a leitura do artigo 393 deve ser feita em conjunto com o artigo 399 do mesmo dispositivo, que assim dispõe: “O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada” (BRASIL, 2002).
Se, de um lado, afasta-se a responsabilidade do devedor sobre a obrigação quando inadimplida por força de fato externo, imprevisível e inevitável, por outro lado, deve-se observar o status do devedor como bom pagador antes da ocorrência do evento. O devedor em mora não pode se socorrer da exceção legal nem se aproveitar de fato superveniente para se eximir de descumprimentos anteriores.
Soma-se a estes pressupostos a aplicação do princípio da boa-fé objetiva como cláusula não escrita de todos os contratos, impondo ao devedor que tome todas as medidas cabíveis a seu alcance para mitigar os danos causados ao credor pelo inadimplemento da obrigação, nos termos do artigo 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (BRASIL, 2002).
Não basta, portanto, a constatação do evento sem qualquer reação ou iniciativa por parte daquele que sofreu seus impactos. A conduta de boa-fé normatizada exige do devedor pro-atividade para reduzir os riscos que a pandemia causou à sua ocupação empresarial. Vale lembrar também que:
Para além das obrigações de pagar, tem-se, os casos em que, a pandemia impossibilitar o cumprimento das obrigações de fazer. Por força de atos governamentais, a circulação de pessoas ficou bastante restrita, com impactos não só na prestação de serviços presencial e diretamente como também nas cadeias de produção e distribuição de bens, em virtude das cautelas quanto à aglomeração de indivíduos num mesmo ambiente. As normas de emergência determinam que a quarentena e o isolamento se impõem a todos os estabelecimentos comerciais não-essenciais. Tal isolamento social retirou a população do polo produtivo, gerando a impossibilidade de cumprimento de uma série de contratações (D'HANENS; LINO, 2020, on-line).
Desse modo, evidencia-se que a hipótese de força maior ocorre durante uma situação excepcional ao cumprimento das obrigações em geral, em que se aplica da mesma forma às relações de consumo, como um fato externo, superior e de consequências imprevisíveis, a romper o nexo causal existente entre o dano e a própria relação de consumo, como é o que se observa no caso de uma pandemia e o estado de calamidade pública como consequência desta. Observa-se no presente caso, a relação de causa e efeito entre a pandemia, assim como as consequências associadas diretamente a ela e a impossibilidade do cumprimento contratual por parte do consumidor, de forma inevitável.
Contudo, em qualquer caso, ressalta-se que a impossibilidade de cumprimento da prestação principal não dispensa o fornecedor do atendimento de outros deveres acessórios ou anexos que lhe sejam imputáveis. Exemplifica-se, o caso das companhias aéreas, as quais possuem o dever de assegurar alimentação e estadia aos consumidores nas hipóteses em que há a interrupção ou cancelamento da viagem, bem como, os deveres de esclarecimento e informação ao consumidor, cujo descumprimento pode caracterizar danos indenizáveis.
Em geral, as leis de emergência podem incidir para limitar o direito de resolução ou seus efeitos. Conforme fora evidenciado no Brasil no que se refere as Medidas Provisórias relacionadas ao setor aéreo (MP 925/2020) e aos cancelamentos de serviços, reservas e eventos dos setores de turismo e cultura (MP 948/2020). As circunstâncias excepcionais que caracterizam a legislação de emergência sobre contratos, historicamente, admitem exceções a seus efeitos típicos. Tais exceções, contudo, subordinam-se ao controle de sua equivalência material (equilíbrio contratual), o que mais se evidencia quando se trata dos contratos de consumo nos quais incidem normas de proteção de um dos contratantes (MIRAGEM, 2021, p. 12).
As razões que autorizam excetuar efeitos típicos dos contratos e de seu inadimplemento fundamentam-se, especialmente, na extensão dos prejuízos daí decorrentes, e do caráter sistêmico da sua causa, afetando amplos setores, e podendo levar à ruína uma das partes contratantes. Deve o intérprete distinguir as hipóteses de inadimplemento, entre a impossibilidade definitiva e a temporária, em razão das repercussões da pandemia, sempre sob o critério de preservação do interesse útil do consumidor. Esta impossibilidade se caracteriza na falta de condições de satisfação do interesse legítimo do consumidor (MIRAGEM, 2020).
Diante da condição inevitável de descumprimento contratual por parte do consumidor, em virtude da pandemia do coronavírus e das medidas instauradas para combatê-la, cumpre examinar as alternativas propostas pelo Código Civil que preservam o negócio jurídico, mas reestabelecem o equilíbrio entre as prestações e contraprestações das partes, por meio da renegociação, revisão ou resolução contratual.
4 A POSSIBILIDADE DE RENEGOCIAÇÃO, REVISÃO OU RESOLUÇÃO CONTRATUAL POR FATO SUPERVENIENTE
Não obstante a decretação do estado de calamidade por diversos entes da federação em decorrência da pandemia do Covid-19, as medidas, principalmente as interventivas (previstas também no art. 4º, II do Código de Defesa do Consumidor) não serão suficientes para realocar as relações e o mercado de consumo brasileiro no status quo a chegada do vírus mortal no país.
Diante disso, compreende-se que grande parte dos contratos em geral terão que ser renegociados, revisados ou rescindidos e todas as partes envolvidas terão que ceder, perante a situação, seus graus de responsabilidade/risco, sempre primando pela boa-fé objetiva e manutenção da relação contratual. Há, nas relações de consumo, total ciência do risco integral da atividade por parte dos fornecedores, visto que, é adotado como regra pelo Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade objetiva pura. Soma-se a isso, a presunção prevista no art. 4º, I do CDC que dispõe sobre a vulnerabilidade do consumidor no mercado, conforme comentado anteriormente.
Acontece que, o mesmo dispositivo também possui como princípio positivado, a busca pela harmonização dos interesses entre os participantes da relação com fundamento na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (art. 4º, III do CDC). Em condições normais, os princípios mencionados eram constantemente evocados em face das práticas e condutas abusivas por parte de fornecedores de má-fé, entretanto, na situação da calamidade do Covid-19, estes deverão ser aplicados para harmonizar e tentar reequilibrar as relações entre consumidores e fornecedores, sopesando sempre o grau de responsabilidade de cada um.
Dentre as soluções a serem adotadas em razão da crise extraordinária causada pela pandemia, encontra-se primeiramente, a renegociação contratual, que poderá ocorrer a partir do interesse comum das partes, isto é, as partes devem buscar a renegociação como forma de satisfazer da melhor forma possível seus interesses e preservar o contrato. Na hipótese de não ser possível, a parte prejudicada na relação possui a possibilidade de pleitear judicialmente a sua revisão, inclusive com a redução equitativa de multas pactuadas (art. 413, Código Civil) ou a resolução do contrato por onerosidade excessiva
Dessa forma, cabe aos intérpretes, em destaque os juízes, uma releitura do Código de Defesa do Consumidor e uma nova interpretação para harmonizar as diversas relações de consumo, afetadas por tal fato superveniente (art. 6º, inciso V). Embora a previsão legislativa assegure a modificação de cláusulas contratuais como direito básico apenas ao consumidor, compreende-se que a disposição deve ser interpretada sistematicamente com o princípio do art 4º, inciso III do CDC, aliado a regra geral do art. 478 do Código Civil, que assevera em síntese, onerosidade para ambas as partes.
Busca-se, por meio da regra geral adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, a manutenção da base objetiva do negócio jurídico. Assim, na hipótese de desequilíbrio desta base ou até desaparecimento da base objetiva, cabe ao intérprete (judiciário) por meio da revisão contratual, buscar o reequilíbrio e a manutenção da base objetiva. Ressalta-se ainda que, não é necessário que o fato superveniente seja imprevisível, basta que este interfira no cumprimento dos termos acordados, provando onerosidade excessiva às partes (BRASIL, 2002).
Nas relações de consumo, a mera superveniência do fato já é por si só, suficiente para propor uma revisão contratual, como é o caso da excepcionalidade da pandemia do Covid-19. Além da previsão mencionada, o Estado Juiz deve fazer uso da qualificação de “norma de ordem pública” (art. 1º do CDC) e criar a melhor solução para as partes, podendo agir até sem qualquer provocação destas (ex officio). Em conformidade com Nelson Nery e Rosa Maria, entende-se por fato superveniente, em apertada síntese:
(...) um fato ocorrido após a adesão do contrato que tornou seu cumprimento praticamente impossível, ou seja, exige-se um esforço excessivo para que uma das partes cumpra o que foi firmado. Além disso, a base objetiva do negócio jurídico é alterada, de modo a desequilibrar ou até desaparecer. É algo que desequilibra ou quebra a base do negócio jurídico por fatores alheios às vontades das partes, fatores exógenos. A quebra da base objetiva pode ensejar, dessa forma, a resolução do negócio jurídico ou a revisão do contrato (art. 478, do Código Civil de 2002) (NERY, MARIA, 2005, p. 305).
Vale dizer, portanto, conforme o raciocínio dos autores, que haverá a quebra da base do negócio, quando houver por exemplo, perturbações extraordinárias da prestação. Isto é, onerosidade excessiva, que impossibilita o devedor ou fornecedor a cumprir a prestação. Em suma, para que a situação superveniente ou até “imprevista” suscite uma revisão contratual com o fito de reequilibrar as relações e estabelecer novamente a base objetiva do negócio jurídico, caberão aos intérpretes da norma, aplicar previsões legais e doutrinárias já existentes para uma melhor justiça.
Nesta situação, evoca-se o Estado Juiz, de modo a construir a melhor alternativa para as partes, dialogando com as fontes e até fazendo o uso da “ordem pública” da norma consumerista.
O esforço para o redescobrimento do Código de Defesa do Consumidor faz-se inevitável, norma esta que apesar de 30 (trinta) anos de vigência, dado seu microssistema dinâmico com cláusulas gerais, princípios e conceitos legais indeterminados (além das regras), tornam-se elementos indispensáveis para a construção e efetivação de um melhor direito para ambas as partes (SILVA, 2020, on-line).
Ademais, dentre as repercussões da pandemia, faz-se necessário que haja também, o combate a especulação de preços, por meio de instrumentos positivados pelo Código de Defesa do Consumidor que tenham esta finalidade, principalmente no que diz respeito à repressão a práticas abusivas de aumento arbitrário, que interessam tanto a consumidores quanto a demais agentes do mercado.
Assim, conclui-se que a defesa do consumidor se caracteriza e delineia por meio da ordem constitucional econômica brasileira (art. 5º, XXXII e art. 170, V, da CRFB). Em virtude disso, suas normas de ordem pública e interesse social (art. 1º do CDC) devem ser preservadas mesmo nos momentos de crise e circunstâncias extraordinárias. As normas de emergência terão legitimidade na medida em que sua intepretação e aplicação sejam coerentes com esta determinação constitucional, de modo que se dirijam à proteção dos interesses legítimos dos consumidores, considerados nas suas dimensões individual e coletiva (MIRAGEM, 2020).
5 CONCLUSÃO
O advento da pandemia do COVID-19 ocasionou uma série de discussões jurídicas que envolvem as relações trabalhistas, a livre-concorrência, a saúde pública, a segurança sanitária, as questões econômicas e sociais brasileiras, e principalmente, o crescimento evidente da vulnerabilidade dos consumidores frente às relações contratuais. Assim, os impactos negativos imediatamente observados desde o início da pandemia, relacionam-se ao aumento de práticas abusivas e o paralisação do mercado turístico, aéreo, artístico e outras diversas atividades comerciais, visto que a quarentena, medida política de isolamento adotada para conter o contágio do COVID-19, afetou diretamente a dinâmica econômica destes setores.
Neste cenário, o Código de Defesa do Consumidor, atua como uma tutela legislativa que reconhece a fragilidade do polo mais fraco da relação de consumo e versa sobre sua defesa, os meios de garantia aos direitos à vida, liberdade, segurança e propriedade, visto que, os consumidores são responsáveis por desenvolver a economia do país. A proteção contratual conferida pelo CDC revela a importância da aplicabilidade dos seus princípios, como a isonomia, o dever governamental, a boa-fé objetiva, o equilíbrio contratual na relação jurídica de consumo, entre outros.
A defesa do consumidor no mercado de consumo caracteriza e delineia a ordem constitucional econômica brasileira, de acordo com o que dispõe o art. 170, inciso V da Constituição Federal e por esta razão, suas normas de ordem pública e interesse social devem ser preservadas mesmo nos momentos de crise e circunstâncias excepcionais. Apesar do CDC não ter explicitado a função social do contrato, todo o seu corpo normativo garante a regulamentação da função social nas relações consumeristas. Essa função social é evidentemente notada no tratamento em que é dado às partes de forma unânime, transparente, equilibrada e com boa-fé, sempre em busca da justiça contratual.
Evidentemente, nem todos os casos originados desta pandemia serão solucionados de forma harmônica e equilibrada, e nessas hipóteses, a intervenção judicial fatalmente se fará necessária, cabendo às partes, desde logo, reunir organizadamente a documentação que entendam respaldar seus direitos e buscar o aconselhamento jurídico com profissionais de sua confiança. Diante da indesejada e imprevisível situação de vulnerabilidade a que estão sujeitas ambas as partes – consumidor e fornecedor –, em maior ou menor grau, faz-se necessário que os contratos sejam pautados no espírito colaborativo e em concessões mútuas.
Dentre as soluções a serem adotadas em razão da crise extraordinária causada pela pandemia, encontra-se primeiramente a renegociação contratual, que poderá ocorrer a partir do interesse comum das partes, isto é, as partes devem buscar a renegociação como forma de satisfazer da melhor forma possível seus interesses e preservar o contrato. Na hipótese de não ser possível, a parte prejudicada na relação possui a possibilidade de pleitear judicialmente a sua revisão, inclusive com a redução equitativa de multas pactuadas (art. 413, Código Civil) ou a resolução do contrato por onerosidade excessiva.
Assim, depreende-se que, tanto os fornecedores quanto os consumidores foram, e continuarão sendo fortemente impactados pelas medidas de intervenção do Estado decorrentes do decreto de estado de calamidade pública em face da pandemia. Diante deste cenário de caos social e econômico, faz-se necessário que a legislação consumerista seja relativizada de acordo com cada caso, cabendo aos intérpretes buscar o reequilíbrio e a manutenção da base objetiva, de modo a construir a melhor alternativa para as partes, dialogando com as fontes e até fazendo o uso da “ordem pública” da norma consumerista.
REFERÊNCIAS
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[1]Advogada. Assessora Jurídica (PGE/MA). Mestra pelo Programa de Pós Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas (UFMA). Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito (UNIMAR). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus). Professora do Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão (IESMA/UNISULMA).
Acadêmico do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão (UNISULMA/IESMA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCAS SALES HERÊNIO, . Os efeitos da pandemia do covid-19 nas relações de consumo contratuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59480/os-efeitos-da-pandemia-do-covid-19-nas-relaes-de-consumo-contratuais. Acesso em: 23 dez 2024.
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