RESUMO: O presente trabalho versa sobre a possibilidade de retratação da vítima de violência doméstica e familiar sob o bojo da Lei Maria da Penha. O objetivo geral é analisar a retratação da vítima na Lei Maria da Penha mediante os novos parâmetros definidos pela jurisprudência dos Tribunais brasileiros. Quanto aos objetivo específicos tem-se, apontar os índices de violência contra a mulher no Brasil, abordar os aspectos gerais envolvendo a Lei Maria da Penha como a sua contextualização histórica e investigar a dicotomia entre legislação e jurisprudência sobre a possibilidade de retratação da vítima. Utiliza-se o método dedutivo, com técnica exploratória bibliográfica. Em relação aos resultados, verifica-se que há um confronto entre a atualização da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça e o imposto na Lei Maria da Penha. Portanto, é possível a retratação da vítima, porém, a audiência de retratação apenas será exigível na hipótese em que a mulher manifestar interesse pela retração ou houverem indícios nesse intuito no bojo processual.
Palavras-chave: Audiência; Lei Maria da Penha; Mulher; Violência; Retratação.
ABSTRACT: The approach of the present work is based on the analysis of the possibility of retraction of the victim of domestic and family violence under the Maria da Penha Law. The general objective is to analyze the victim's retraction in the Maria da Penha Law through the new parameters defined by the jurisprudence of the Brazilian Courts. As for the specific objective, one has to point out the rates of violence against women in Brazil, to address the general aspects involving the Maria da Penha Law as its historical context and to investigate the dichotomy between legislation and jurisprudence on the possibility of recanting the victim. The research problem encompasses the divergence between legislation and jurisprudence on the possibility of retraction of women victims of domestic and family violence. The deductive method is used, with a bibliographic exploratory technique. In relation to the results, it appears that there is a confrontation between the update of the matter by the Superior Court of Justice and the tax in the Maria da Penha Law. Therefore, the victim's retraction is possible, however, the retraction hearing will only be required in the event that the woman expresses interest in the retraction or there are indications to that effect in the procedural context.
Keywords: Audience; Maria da Penha Law; Women; Violence; Retraction
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL. 3 ASPECTOS JURÍDICOS DA LEI MARIA DA PENHA. 4 ANÁLISE DA RETRATAÇÃO DA VÍTIMA NA LEI MARIA DA PENHA ANTE AO ENTENDIMENTO DO TRIBUNAIS BRASILEIROS. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1.INTRODUÇÃO
O foco do trabalho é investigar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, na atual circunstância do ordenamento brasileiro, analisando o embate entre doutrina e jurisprudência relativo a retratação da vítima. A Lei 11.340/2006 batizada de Lei Maria da Penha foi editada pelo legislador brasileiro para coibir a violência contra a mulher no Brasil, perante o âmbito doméstico e familiar, tendo em conta que a legislação era omissa quanto a punição dos agressores.
Pode-se destacar que a possibilidade de retratação da vítima na Lei Maria da Penha é atrelada ao um contexto de muitos debates, sendo dúvida recorrente, já que a Lei Maria da Penha tem procedimento próprio no que corresponde a possibilidade de retratação da vítima ao disciplinar em seu artigo 16 que apenas será admitida renúncia à representação perante ao juiz por meio de audiência.
A problemática do estudo está sustentada pela divergência entre o previsto na Lei Maria da Penha ao disciplinar em seu artigo 16 que apenas será admitida renúncia à representação perante ao juiz por meio de audiência e a decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 1.946.824/SP (no informativo 743) firmando o entendimento que a realização de audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha somente é necessária se a vítima manifestar o interesse em desistir da representação, anteriormente ao recebimento da denúncia.
Vale destacar que até o julgamento do Recurso Especial 1.946.824/SP, a depender do crime e o enquadramento do tipo penal (ação penal), a mulher poderia se retratar, mas com ocorrência da realização de audiência para analisar o fato.
Desse modo, se vislumbra que há um paradoxo criado pela jurisprudência que pode ir em desencontro com a Lei Maria da Penha, a respeito da vontade de retratação da vítima. O motivo que ensejou a escolha do tema do respectivo estudo consiste em compreender a razão pela qual muitas vítimas se retratarem da violência sofrida. Também se faz necessário compreender como está ocorrendo a aplicação da Lei 11.340/2006, pois muitas mulheres já sofreram e ainda sofrem violência doméstica e familiar, e tem receio de procurarem as autoridades para reivindicar seus direitos pelo medo de serem desacreditadas ou sofrerem mais humilhações.
Assim, como objetivo geral, o trabalho analisará a possibilidade de retratação da vítima na Lei Maria da Penha mediante os novos parâmetros definidos pela jurisprudência dos Tribunais brasileiros.
Essa pesquisa utiliza-se a metodologia do trabalho jurídico que é “voltada ás instruções práticas para a formatação e a compreensão da engrenagem de técnicas de organização do trabalho jurídico científico” (BITTAR, 2015, p. 53).
O método é o dedutivo que “corresponde a extração discursiva do conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis a hipóteses concretas” (BITTAR, 2015, p. 34). Procedendo do geral para o particular (BITTAR, 2015, p. 34). A técnica utilizada é exploratória bibliográfica.
De modo a resolver a problemática, foram sistematizados objetivos específicos que condizem com os capítulos do estudo, o primeiro se remete a apontar os índices de violência contra a mulher no Brasil, em seguida, trata-se dos aspectos gerais envolvendo a Lei Maria da Penha como a sua contextualização histórica e no terceiro ponto se aborda a dicotomia entre legislação e jurisprudência sobre a possibilidade de retratação da vítima.
2.A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL
A violência contra a mulher, embora seja um assunto bastante discutido atualmente, é algo que aflige o contexto social, desde o início das civilizações, conforme será demonstrado neste capítulo. Além do mais, será abordado o cenário da violência contra a mulher no Brasil nos últimos anos.
Nas sociedades mais primitivas, os homens utilizavam da força como meio de sobrevivência e defesa perante a sociedade. Sendo as mulheres consideradas como meros objetos voltadas somente para criação dos filhos e o cuidado do lar. Essa era primitiva, intitulada como sociedade patriarcal, em que o homem exercia sobre toda família um poder de superioridade (PORTO, 2007).
Com isso, a história mostra que a violência contra a mulher é prática tão antiga quanto a construção da sociedade. Após anos de submissão, repressão aos desejos íntimos, e desvalorização no mercado de trabalho, as mulheres conseguiram elevar-se ao patamar jurídico-normativo, em relação ao que já era previsto para os homens (BRASIL, 2018).
Direcionando para contexto histórico da violência no Brasil. No período colonial, o poder do homem sobre a mulher era absoluto, “tanto que ele possuía autorização legal para utilizar de violência, como medida para manter sua esposa submissa, sendo permitido que os maridos utilizassem da chibata para castigar suas companheiras” (GIORDANI, 2006, p. 68).
A temática de proteção a mulher, contra a violência, passou a ter relevância no Brasil, a partir da década de 1970, resultado da abordagem no contexto mundial. Com o advento da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher em 1994 (Convenção de Belém do Pará), qualquer ação ou conduta, pautada no gênero, que ocasione morte, dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico contra a mulher, passou a ser criminalizada (COSTA, 2021).
Relativamente a isso, o artigo 3º da Convenção de Belém do Pará, pressupõe que “Artigo 3º. Toda mulher tem direito a ser livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1994, não paginado).
A edição da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Organização das Nações Unidas (1979), foi quem respaldou as novas garantias normativas destinadas as mulheres:
Artigo 1º - Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Artigo 2º - Os Estados-parte condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a:
(...) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979, p. 8)
No contexto histórico do cenário internacional, a punição a violência contra a mulher está ancorada em convenções de organizações internacionais. Já quanto as legislações destinadas a proteção da mulher contra a violência, serão descritas apenas no segundo capítulo. Como pressuposto da violência sofrida pela mulher, ao longo da construção da sociedade brasileira, cita-se ainda a antiga disposição do Código Criminal do Império do Brasil:
Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos. A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente.
(BRASIL, 1830, não paginado)
Os mencionados artigos tratavam da questão do adultério, criminalizando a conduta da mulher, e impondo pena de prisão com trabalho. Para que o homem fosse punido com o mesmo crime, o Código dispunha a necessidade de reconhecimento de concubinato publicamente (BRASIL, 1830).
Vale mencionar que a Constituição Federal de 1988, pode ser qualificada como um marco para evolução normativa de proteção as mulheres, ao dispor sobre a igualdade entre homens e mulheres, possuindo o mesmo patamar de direitos e deveres ante o ordenamento pátrio (BRASIL, 2022).
Esse arcabouço constitucional é sinônimo da luta por igualdade, tem destaque à medida que rompe com a sociedade patriarcal, da figura da mulher como submissa ao homem como chefe da família (SARDENBERG; TAVARES, 2016).
No entanto, “a promulgação da Constituição Federal de 1988, não foi suficiente para alterar a cultura e o modo como a mulher era tratada pela sociedade, especialmente por seus companheiros, que continuam a práticas violência contra suas mulheres” (LIMA et al, 2016, p. 142).
Deste modo, até então, imperava no país, uma política sexista, deixando impunes muitos assassinados de mulheres, sob o argumento da legítima defesa da honra, ou seja, predominava grande impunidade à violência impetrada contra as mulheres (PINAFI, 2007). A respeito disso, recentemente, a tese da legítima defesa da honra, foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF):
REFERENDO DE MEDIDA CAUTELAR. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. ARTIGOS 23, INCISO II, E 25, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO PENAL E ART. 65 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. “LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA”. 1. “Legítima defesa da honra” não é, tecnicamente, legítima defesa. A traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência. Quem pratica feminicídio ou usa de violência com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa. O adultério não configura uma agressão injusta apta a excluir a antijuridicidade de um fato típico, pelo que qualquer ato violento perpetrado nesse contexto deve estar sujeito à repressão do direito penal. 2. A “legítima defesa da honra” é recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões. Constitui-se em ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988. 3. Tese violadora da dignidade da pessoa humana, dos direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III , e art. 5º, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. (STF-ADPF 779/DF- DISTRITO FEDERAL, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Julgamento: 15/03/2021, Publicação: 20/05/2021).
Assim, por unanimidade, no julgamento do Referendo na Medida Cautelar na Arguição De Descumprimento de Preceito Fundamental n. 779/DF, o Tribunal firmou como inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, frente a violência dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, e da igualdade de gênero (BRASIL, 2021).
Com a evolução da sociedade, as regras e costumes, passam a ser relativizados, e a violência contra a mulher deixa de ser aceita, assim, a legitimidade do marido sobre as agressões contra a mulher, passa a ser criminalizada (BRASIL, 2018). Todavia, a cada ano que passa, os índices de violência contra a mulher no Brasil aumentam (ENGEL, 2015).
Conforme o Atlas da Violência 2021, ao analisar as taxas de homicídio de 2009 a 2019, apesar do Brasil ter apresentado uma redução de 18,4% nas mortes entre 2009 e 2019, em 14 das 27 unidades federativas, a violência contra a mulher aumentou. Em 2019 aproximadamente 3.737 mulheres foram assassinadas no país. Outras 3.756 foram mortas de forma violenta, no mesmo ano, mais sem indicação da causa da morte, os casos maiores de taxas de homicídio ocorreram em Roraima, Acre e Amazonas (CERQUEIRA, 2021).
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), quanto aos homicídios de mulheres e feminicídios no Brasil e Unidades da Federação, em 2020 o quantitativo de mulheres assassinadas foi de 3.999, (com taxa de 3,7%, dentro do comparativo de 100 mil mulheres). Em 2021, contabilizou-se cerca de 3.878 mulheres vítimas de violência, a taxa de homicídios foi de 3,6%.
Na pesquisa Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, realizada pelo Instituto Data Senado, lançado em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos, o estudo realizado a cada dois anos, desde 2005, revela na edição de 2021, um crescimento de 4% na percepção das mulheres sobre a violência, comparados as edições anteriores, o estudo ouviu 3 mil mulheres entre 14 de outubro a 5 de novembro, de acordo com os dados colhidos, cerca de 18% das mulheres entrevistadas e agredidas, relataram que convivem com o agressor. Para 75% o medo faz com o que a mulher não denuncie. O estudo demonstra ainda que 68% das mulheres brasileiras, conhecem vítimas de violência doméstica ou familiar e 27% declaram já ter sofrido algum tipo de agressão por parte do companheiro (SENADO FEDERAL, 2021).
Com relação aos impactos da pandemia na violência doméstica e familiar. De acordo com o Relatório Visível e Invisível: a Vitimização das mulheres, realizado em 2021, elaborado pelo Fórum de Segurança Pública com parceria do Data Folha:
(...) 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, durante a pandemia de covid-19. Isso significa dizer que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. Na comparação com a pesquisa de 2019, verificamos um leve recuo do percentual de mulheres que relataram ter sofrido violência, mas dentro da margem de erro da pesquisa, que é de 3 pontos para mais ou para menos (27,4% em 2019 e 24,4% em 2021), configurando estabilidade. (VISÍVEL E INVISÍVEL: A VITIMIZAÇÃO DE MULHERES NO BRASIL, 2021, p. 10)
O Relatório dispõe ainda que cerca de 73,5% da população brasileira, acredita que a violência contra as mulheres cresceu durante a pandemia do Covid-19 e 51,1% dos entrevistados relatam ter visto uma mulher sofrer algum tipo de violência no seu bairro ao longo dos últimos doze meses.
Desse modo, a evolução histórica da violência contra a mulher, embora sendo difícil de ser exemplificada, ao ser comparada com as estatísticas de homicídios e números de agressões atuais, torna-se algo alarmante do ponto de vista social e jurídico, e que necessita de uma análise mais abrangente.
3.ASPECTOS JURÍDICOS DA LEI MARIA DA PENHA
Conforme visto no capítulo inicial, em conformidade com o cenário internacional, o Brasil adotou vários mecanismos legais de proteção a violência contra a mulher, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas da Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Isso posto, a Constituição Federal de 1988, estabelece no artigo 226 que o Estado deverá assegurar a assistência à família, protegendo cada um dos integrantes, e criar mecanismos para prevenir a prática de violência no âmbito das relações familiares e domésticas (BRASIL, 2022).
A violência é classificada como fenômeno mundial, presente em diferentes relações sociais que incluem questões políticas, filosóficas, psicológicas, antropologias e religiosas. É algo que transcende as épocas, e foi perpetuado na história, estando presente nos dias atuais, representa um problema complexo e que gera grande impacto social (COELHO; SILVA, 2020).
É aparente, tanto no cenário internacional, como no regional, a proteção aos direitos que visam garantir um bem-estar a mulher. Não obstante, em razão dessas previsões, o legislador brasileiro, conduziu a instituição da chamada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
Essa denominação a lei, é uma homenagem a Maria da Penha Fernandes que ficou paraplégica, em decorrência de uma tentativa de homicídio praticada por seu marido:
Em uma simulação de assalto, na cidade de Fortaleza, em 1983. Decorridos alguns dias, ele tentou eletrocutá-la durante o banho, mas não conseguiu ceifar a vida dela. Passados mais de 19 anos, em 2002, o algoz foi preso, cumprimento apenas dois anos de prisão, após a anulação do julgamento e interposição de recurso. Em razão desse quadro caótico, o caso Maria da Penha foi levado à Comissão Internacional dos Direitos Humanos. Em 2001, essa comissão reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro na omissão relacionada a violência doméstica, sendo-lhe aplicadas recomendações para o cumprimento dos compromissos previstos nos tratados e convenções que cuidam da matéria. (GARCIA, 2019, p. 44)
Nota-se que o Brasil, foi praticamente obrigado a editar uma norma específica que tratasse com mais seriedade a violência doméstica e familiar contra a mulher, diante disso, a Lei Maria da Penha é implementada.
Apesar das garantias impostas na Constituição de 1988, ainda existiam resquícios da imagem da mulher como alguém que necessitava de maior proteção legal. Logo, essa lei representa, símbolo do movimento contra os abusos cometidos a mulher, pois criou-se mecanismos para endurecer o rigor das penalidades contra as agressões físicas e psicológicas contra a mulher, além de orientar ações punitivas para os agressores (PERSEGUINI, 2015). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, declarou a constitucionalidade dos artigos previstos na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2012).
O artigo 5º da Lei Maria da Penha conceitua a violência doméstica e familiar, dentro dos efeitos legais, como sendo:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
BRASIL, 2006)
Vale acrescentar que o artigo 6º dessa mesma norma jurídica, expõe que a violência doméstica e familiar contra a mulher, é qualificada como uma das formas de violação aos direitos humanos, e por consequência, aos direitos fundamentais expresso na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2006).
Além do mais, o artigo 7º dispõe sobre as formas de violência contra a mulher, em rol totalmente exemplificativo. O inciso I, expõe como sendo violência física, qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher (BRASIL, 2006). No inciso II, tem-se a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que cause a mulher dano emocional, esse conceito foi modificado pela Lei 13.772/2018, incluindo-se a violência a intimidade da mulher, como a divulgação de vídeos, imagens, e informações pessoas, sem o consentimento (BRASIL, 2018).
Já o inciso III do artigo 7º, prevê que a violência sexual, como a conduta que constranja a mulher a manter, presenciar, ou participar de relações sexuais contra a sua vontade, mediante uso de força, que a induza a comercializar a sexualidade, impedi-lá de tomar remédios contraceptivos, limitações de seus direitos sexuais e reprodutivos de qualquer natureza, como forçá-la a ficar grávida, fazer aborto, ou a entrar para o mundo da prostituição (BRASIL, 2006).
Por fim, os incisos IV e V, do artigo 7º, determinam, respectivamente, sobre a violência patrimonial, que é reiterada por condutas que restringem, subtraiam, ou destituíam a mulher de seus bens, objetivos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, valores, direitos, e recursos econômicos. Por pressuposto, a violência moral se configura quando a mulher é caluniada, difamada e injuriada (BRASIL, 2006).
A partir desse contexto, destaca-se como violência contra a mulher, qualquer ato de violência no gênero que produza ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais, ou mentais a mulher, nessas determinações também devem ser incluídas, as restrições, ameaças, coerções ou privação da vida pública e privada da mulher (COSTA; COSTA; SILVA, 2021).
Para cumprir a finalidade para qual foi criada, ou seja, barrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ao longo da disposição de seus artigos, concede as mulheres providências de assistências e prevenção, bem como medidas protetivas de urgência, elencando ainda a atuação do Ministério Público, e da Defensoria Pública, promovendo alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal, e o atendimento especial em sede de Polícia Judiciária (GARCIA, 2019).
A Lei Maria da Penha, provocou também a criação de outras regras normativas, como a Lei 13.104/2015, que prevê o feminicídio como circunstância qualificadora por crime de homicídio, incluindo o feminicídio no rol de crimes hediondos (BRASIL, 2015).
Além das alterações no âmbito penal, nos últimos anos, a Lei Maria da Penha modificou e ao mesmo tempo, impôs outras legislações, como a Lei 13.505/2017 para dispor sobre o direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar ao atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por servidoras do sexo feminino (BRASIL, 2017).
Estabelecendo ainda Lei 13.641/2018 para tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência (BRASIL, 2018). A Lei 13.894/2019 que alterou a Lei Maria da Penha, definindo a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, no foro de residência das mulheres, nas ações de divórcio, anulação de casamento, dissolução de união estável, garantindo ainda a prestação de assistência judiciária as vítimas de violência (BRASIL, 2019).
Em importante alteração, a Lei 13.984/2020 estabelece entre as medidas protetivas, a frequência do agressor em centro de educação, reabilitação e acompanhamento psicossocial (BRASIL, 2020). A Lei 14.188/2021 permitiu o afastamento imediato do agressor do lar, do domicilio ou outro local de convivência que este detinha com a vítima (BRASIL, 2021). Em conclusão, a Lei 14.310/2022 determinou que após a concessão das medidas protetivas de urgência, essas seriam imediatamente registradas no banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2022).
Por conseguinte, as medidas protetivas de urgência “são medidas provisionais instauradas por procedimento cautelar, mas apresentam conteúdo satisfativo, ou seja, são medidas satisfativas cobertas pelo procedimento cautelar em sua concessão” (SILVA, 2017, p. 80).
As medidas protetivas de urgência estão previstas no artigo 22 da Lei Maria da Penha, e são delineadas como:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 ;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI - comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e VII - acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
(BRASIL, 2020)
Logo, em decorrência da entrada em vigor da Lei Maria da Penha, as mulheres vítimas de violência, passaram a ter o direito de requerer as medidas protetivas de urgência, que se dividem em duas:
As medidas contra o agressor e as medidas em benefício da mulher. No que tange às medidas contra o agressor, tem-se: o afastamento do agressor do local ou do lar onde convive com a agredida; proibição de aproximar-se ou frequentar determinados lugares, como o local de trabalho ou até mesmo a residência da vítima; proibição de aproximar-se ou manter contato com a vítima, familiares e testemunhas da agressão; restrição ou suspensão das visitas aos filhos, assim como pagamento de alimentos provisórios a estes como também para a vítima; restrição do porte de arma ou apreensão de arma de fogo. Tais medidas estão elencadas no artigo 22 da Lei nº 11.340/06. Já as medidas em benefício da mulher são as seguintes: encaminhamento a programas de proteção e atendimento a mulher em situação de violência doméstica, tanto a vítima quanto seus dependentes; garantia de retorno ao lar, juntamente com seus filhos, após ser determinado o afastamento do agressor; direito da vítima sair do lar com seus filhos, no caso de perigo ou de permanecer, com o afastamento ou prisão do agressor; ainda, determinar a separação de corpos. De acordo com o artigo 23 da Lei nº 11.340/06. (OLIVEIRA, 2015, p.56-57)
As medidas de urgência contra o agressor e em benefício da mulher, tem como finalidade afastar o agressor da vítima, possibilitando com que se evite a continuidades das agressões e também o agravamento dessa violência, que pode resultar na morte da vítima (OLIVEIRA, 2015).
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, fomenta a importância das medidas protetivas de urgência:
APELAÇÃO CRIMINAL. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. ABSOLVIÇÃO POR EXCLUDENTE DE ILICITUDE. LEGÍTIMA DEFESA. INVIABILIDADE. PLEITO ABSOLUTÓRIO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. PROVA ORAL COLIGIDA NOS AUTOS. DOSIMETRIA REDIMENSIONADA. CULPABILIDADE. CONFISSÃO PARCIAL. ATENUANTE. FRAÇÃO. PROPORÇÃO. MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA. DURAÇÃO. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. "(...) No que tange às medidas protetivas de urgência, o viés da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é assegurar a integridade física e psicológica da vítima, de forma integral, estando tal fato atrelado a um juízo de necessidade, ou seja, devem ser aplicadas enquanto forem necessárias... Com efeito, é claro que a proteção a ser fornecida pelo Estado às mulheres, que se encontram em situação como a dos autos, é integral. Sendo assim, as medidas protetivas devem perdurar enquanto estiver mantido o ânimo do agressor na prática da conduta violenta, cabendo a ele demonstrar que mudou a sua atitude. A análise sobre o assunto é feita caso a caso, de modo que reste provado que o agressor não mais irá atentar contra a dignidade física e psíquica da ofendida". (Grifo nosso). (TJDFT-Acórdão 1265728, 00005410420188070011, Relator: Robson Barbosa De Azevedo, Segunda Turma Criminal, data de julgamento: 16/7/2020, publicado no PJe: 29/7/2020).
Fazendo uma breve discussão. No que corresponde, a efetividade da Lei Maria da Penha, a doutrina sustenta que embora a legislação tenha mais de uma década de vida, e contribua para o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda há muito a ser feito, especialmente considerando os índices de violência contra a mulher. Somente com a evolução legislativa, mudança de ideologia social, elaboração de políticas públicas eficientes, se conseguirá reduzir os números vergonhosos e desumanos da violência contra a mulher (GARCIA, 2019).
É fato que, a lei traz um cunho social, e sua aprovação promoveu e estimulou as mulheres as denunciarem violências sofridas, as crescentes denúncias evidenciam que as mulheres se sentem respaldadas, e constata que tais fatos, mesmo comuns no contexto social, não recebiam a devida atenção (PERSEGUINI, 2015).
Além disso, “a morosidade dos procedimentos legais, aliados à falta de estrutura física, dos órgãos responsáveis pela adequada fiscalização no cumprimento destas medidas, são fatores que contribuem para que as finalidades objetivadas na lei não sejam alcançadas” (AQUINO, 2019, p. 56).
Não restam dúvidas, que além de coibir a violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha, consequentemente, legislou sobre a atuação dos órgãos de segurança pública em relação a adoção de medidas preventivas, com a possibilidade de integralização das instituições, atuando em conjunto no combate a violência contra a mulher (CARVALHO, 2017).
Conquanto, a Lei Maria da Penha foi elaborada pelo legislador brasileiro, após uma interferência de órgãos internacionais, que forçaram a implementação de norma que punisse aqueles que cometessem violência contra a mulher, de forma mais severa. É certo que, desde a entrada em vigor, a referida lei é considerada marco regulatório do combate e proteção a violência contra mulher, ao deliberar sobre medidas protetivas que acompanham a mulher a contar do momento da denúncia.
4.ANÁLISE DA RETRATAÇÃO DA VÍTIMA NA LEI MARIA DA PENHA ANTE AO ENTENDIMENTO DO TRIBUNAIS BRASILEIROS
Posteriormente ao entendimento sobre as vertentes jurídicas envolvendo a violência contra a mulher no Brasil e as disposições da Lei Maria da Penha, se passa a abordagem da possibilidade de retratação da vítima de violência doméstica e familiar no contexto da Lei Maria da Penha e da jurisprudência dos Tribunais brasileiros.
No Direito Penal, a depender da natureza do crime praticado, será aplicada uma ação penal específica ao caso. Os crimes podem ser classificados como sendo de ação penal pública ou ação penal privada. Assim, e importante se realizar doutrinariamente a diferenciação das ações penais, ou seja, entre a ação penal pública (condicionada ou incondicionada) e a ação privada:
A ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou seu representante legal, o oferecimento da denúncia quanto a conclusão do processo, será feito pelo Ministério Público, que ao receber o inquérito policial, deverá oferecer a denúncia. Na ação penal incondicionada, o bem jurídico violado é de interesse público, e consequentemente, o titular da ação penal é o próprio Estado, personificado pelo Ministério Público. Em regra, a ação penal será sempre publica incondicionada, salvo em casos que a lei expressamente prever. (LECHENAKOSKI, 2021, p. 243-255)
Destarte, quando o delito atinge o bem jurídico tutelado de interesse da vítima, a ação será privada, é fundamentalmente regida por princípios, entre eles o princípio da oportunidade, da disponibilidade e da indivisibilidade. Portanto, a ação penal apenas se procederá com a provocação da vítima, e caso está seja menor de 18 anos, será nomeado curador, na circunstância de não existir representante legal. (LECHENAKOSKI, 2021).
Na regra geral, nos casos de violência doméstica, aplicam-se a ação penal pública em suas espécies, incondicionada e condicionada a representação da ofendida. Frisa-se que a Lei Maria da Penha tem procedimento próprio quando se trata de possibilidade de retratação da mulher que foi agredida. O artigo 16 dispõe que:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
(BRASIL, 2006)
Logo, nas ações penais públicas condicionada à representação da vítima, ao qual se trata o artigo 16 da Lei Maria da Penha, a renúncia será admitida somente perante o juiz, com a realização de audiência, antes do recebimento da denúncia pelo Ministério Público (BRASIL, 2006).
Cita-se que entre os tipos penais condicionados a representação, estão o perigo de contágio venéreo (artigo 130 do Código Penal), crime de ameça (artigo 147 do Código Penal), perseguição (artigo 147-A do Código Penal) e furto de coisa comum (artigo 156 do Códgio Penal). O prazo do direito de queixa ou representação tem vigência de seis meses contados da data do crime (BRASIL, 1940).
No mesmo seguimento a doutrina afirma que a desistência nas ações penais públicas condicionadas à representação dispostas no artigo 16 poderá ocorrer:
(...) desde que a vítima a formalize perante a autoridade judiciária em audiência própria e desde que ocorra antes do recebimento da denúncia pelo juiz, ouvido o Ministério Público. Para alguns doutrinadores, a realização da audiência objetiva dificultar a desistência da vítima, reforçando o investimento estatal já promovido para a proteção destas mulheres desde o momento em que ela buscou o aparato jurídico-policial. (SOUZA, 2017, p. 23)
Desse modo, defende-se o disciplinamento do artigo 16 da Lei Maria da Penha, devendo-se marcar a audiência, com presença do magistrado e ouvido o Ministério Público, visando garantir que a desistência não seja constante, frente a pressão ou ameaça do agressor a vítima (SOUZA, 2017).
Com isso, a retratação da vítima é admitida se feita perante o juízo, aquelas retratações feitas na delegacia não serão consideradas. Essa previsão é interessante, pois permite um contato direito entre vítima, Juiz e representante do Ministério Público, que poderão conscientizar a mulher sobre a necessidade de prosseguimento dos autos. Se a vítima não comparecer em juízo, o Ministério Público, poderá dar prosseguimento no processo (CAVASSI, 2022).
Então, sob a égide do artigo 16 da Lei Maria da Penha, é possível que a mulher desista da denúncia, mas somente nos casos de ação penal pública condicionada a representação, e desde que essa retratação ocorra antes do recebimento da denúncia e após ouvido o Ministério Público em audiência especialmente realizada para deferir sobre a questão. Nos crimes de violência doméstica, que envolvam lesão corporal, mesmo que leve, serão regidos pela ação pública incondicionada, e haverá o prosseguimento da acusação, mesmo se a mulher não desejar (SOUZA, 2022).
Nesse seguimento, em 2012, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.424 assegurou que:
AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações. (STF- AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4424/DF, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Julgamento: 09/02/2012, Publicação: 01/08/2014).
Assim, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, segue o exposto no artigo 16 da Lei Maria da Penha, conquanto, a renúncia a representação, não é possível nos casos de violência contra a mulher, processados por meio de ações penais incondicionadas à representação da vítima.
A Súmula nº 542 do Superior Tribunal de Justiça, consolida o posicionamento da jurisprudência ao prevê que “a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada” (BRASIL, 2015).
Entretanto, o Informativo nº 743 do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 1.946.824/SP, firma novo entendimento:
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. ART. 16 DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA PARA RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. MANIFESTAÇÃO DA VÍTIMA EM MOMENTO ANTERIOR AO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. NECESSIDADE. (STJ- AgRg no Resp 1.946.824-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 14/06/2022, DJe 17/06/2022).
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça passou a entender que a realização da audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha, será necessária, apenas se a vítima manifestar interesse pela realização, de qualquer maneira, em momento anterior ao oferecimento da denúncia pelo representante do Ministério Público. Isso torna a audiência facultativa, exigindo-se que a vítima informe nos autos interesse pela desistência (BRASIL, 2022).
Por consequência, o magistrado de primeiro grau deve designar a audiência prevista no artigo 16, quando surgir algum indício, antes do recebimento da denúncia, e desde que comprovada a intenção da vítima em se retratar da representação (BRASIL, 2022). Em outra ocasião, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão de março de 2022, a corte assentou que:
(...) II - Assente nesta Corte que, 'Nos termos do art. 16 da Lei nº 11.340/06, 'nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público (...)' (HC n. 196.592/DF, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 4/5/2011). III - Soma-se a isso que, nos casos de crime de estupro praticado mediante violência real, mesmo se praticado antes das alterações trazidas pela Lei n. 12.015/09 ao Código Penal, a ação penal ainda será pública incondicionada, tendo em vista a aplicação, na hipótese, do enunciado da Súmula 608/STF: 'No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada'.(...) (STJ-RHC n. 161.470/RJ, Relator : Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT) Recorrente : J C C O, Recorrido: Ministério Público Do Estado Do Rio De Janeiro, Julgado em 29/03/2022).
Neste caso, no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 161470 – Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça, assentia suas deliberações, com base na disposição legal, fundamentando sua decisão conforme ao estrito especificamente no artigo 16 da Lei 11.340/2006 (BRASIL, 2022).
Porém, anterior ao Informativo nº 743, com nova disposição pelo Superior Tribunal de Justiça, a matéria de retratação em sede de Lei Maria da Penha, já era suprida pela jurisprudência pátria:
PENAL E PROCESSO PENAL. APELACÃO CRIMINAL. CRIME DE AMEACA EM CONTEXTO DE VIOLENCIA DOMESTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. PRELIMINARES DE NULIDADE. RETRATAÇÃO DA VÍTIMA. CERCEAMENTO DE DEFESA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. PRELIMINARES REJEITADAS. ABSOLVIÇÃO. INCABÍVEL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PALAVRA DA VITIMA. RELEVANCIA ESPECIAL. RECURSO CONHECIDO. PRELIMINARES REJEITADAS. APELO DESPROVIDO. 1. Segundo o artigo 16 da Lei nº 11.340/2006, nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público?. Isso implicar dizer que a retratação após o recebimento da denúncia não impede o prosseguimento da ação penal. (TJDF-Classe do Processo: 07022439720208070002-(0702243-97.2020.8.07.0002 - Res. 65 CNJ), Registro do Acórdão Número: 1371068, Data de Julgamento: 09/09/2021, Órgão Julgador:3ª Turma Criminal, Relator: Demetrius Gomes Cavalcanti, Data da Intimação ou da Publicação: Publicado no PJe: 22/09/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada).
O entendimento já consolidado presumia que a vítima se retratasse da representação ofertada, antes do recebimento da denúncia, somente com a realização da audiência de retração. Devido à disposição no Informativo nº 743, essa audiência apenas será realizada se a ofendida se manifestar pelo interesse da retratação ou houverem indícios nesse intuito.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão da violência contra a mulher, vem se refletindo no contexto social, por vários séculos. No Brasil, o combate a violência contra a mulher, foi consolidado apenas com a criação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) que estabelece uma proteção jurídica, e punitiva a violência doméstica e familiar.
De modo a cumprir sua finalidade, no transcorrer de seus dispositivos, a Lei Maria da Penha permite que as mulheres possam utilizar de medidas de assistência e prevenção a violência, como é o caso das medidas de urgência, que ao serem instauradas cautelarmente, visam afastar o agressor da vítima, e impedir a reincidência do crime, que pode levar a mulher a morte.
Contudo, a morosidade presente no sistema Judiciário, em conjunto com a precariedade de fiscalização dos órgãos de proteção à mulher, não contribuem para que as objetividades da Lei Maria da Penha, possam cumprir seu papel de forma plena, representando cada vez mais, o crescente índice da violência contra a mulher no território brasileiro.
Além disto, observa-se que a construção normativa da violência contra a mulher, mesmo que atualmente seja revestida de tutela jurídica bastante abrangente, ao se comparar com os índices de homicídios e agressões, é algo alarmante e que necessita de maior efetividade no combante por parte do Estado, e sociedade.
Conforme visto, pelo pressuposto que no Direito Penal incidem vários tipos de ações penais. Na Lei Maria da Penha aplicam-se a ações penais em duas modalidades, a ação pública incondicionada e condicionada a representação.
Nessa premissa, surgem conflitos normativos e doutrinários, como ocorreu no julgamento do Recurso Especial 1.946.824/SP do Superior Tribunal de Justiça (Informativo nº 743), firmando entendimento que a realização de audiência de representação prevista na Lei Maria da Penha no artigo 16, é necessária somente em casos que a vítima manifestar o interesse pela realização, de qualquer maneira, ou quando houverem indícios disso no processo, devendo manifestar seus interesses, antes do oferecimento da denúncia pelo douto representante do Ministério Público.
Desse modo, verifica-se confronto entre a atualização da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça e o imposto na Lei Maria da Penha.
Conclui-se que em decorrência dos avanços sociais, a legislação vai se adequando as realidades da população, como conclusão disso, ocorre uma relativização do disposto na lei. Portanto, verifica-se que é possível a retratação da vítima de violência doméstica e familiar, porém, a audiência de retratação apenas será exigível na hipótese em que a mulher manifestar interesse pela retração ou existir algum indício da sua vontade no bojo processual.
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VISÍVEL E INVISÍVEL: A VITIMIZAÇÃO DE MULHERES NO BRASIL. Colaboradores:Samira Bueno, Juliana Martins, Amanda Pimentel, Amanda Lagreca, Betina Barros, Renato Sérgio de Lima. Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Data Folha. 3. ed. 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp- content/uploads/2021/06/relatorio-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf. Acesso em: 03 set. 2022.
Graduanda do curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Isadora Tavares. A possibilidade de retratação na Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59604/a-possibilidade-de-retratao-na-lei-maria-da-penha. Acesso em: 23 dez 2024.
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