RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar as repercussões das modificações implementadas pela Lei nº 14.230/2021 no instituto da improbidade administrativa no âmbito do Direito Administrativo Brasileiro. Sua origem, elementos e notadamente a ponderação acerca dos avanços e retrocessos da novel legislação. A relevância do estudo consiste em perceber a evolução do instituto ao longo do tempo, a compatibilidade com os princípios constitucionais e administrativos e suas implicações no mundo real, notadamente para as partes do processo. A metodologia utilizada foi a análise descritiva. Este artigo objetiva contribuir para o estudo deste importante instituto do Direito pátrio.
Palavras-Chave: Lei nº 14.230/2021. Improbidade Administrativa. Princípios Administrativos.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the repercussions of the changes implemented by Law nº 14.230/2021 on the institute of administrative improbity in the scope of Brazilian Administrative Law. Its origin, elements and notably the consideration of the advances and setbacks of the novel legislation. The relevance of the study is to understand the evolution of the institute over time, the compatibility with constitutional and administrative principles and its implications in the real world, especially for the parts of the process. The methodology used was the descriptive analysis. This article aims to contribute to the study of this important institute of national Law.
Key – words: Law nº 14.230/2021. Administrative improbity. Administrative principles.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 2.1. BREVE HISTÓRICO NO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO, CONCEITO E FINALIDADE. 2.2. ELEMENTOS DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 3. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI Nº 14.230/21. 3.1. ELEMENTO VOLITIVO EXIGÍVEL PARA CONFIGURAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 3.2. ROL DO ART. 11 DA LIA PASSOU A SER TAXATIVO. 3.3. PRESCRIÇÃO. 3.4. CARGO ALCANÇADO PELA SANÇÃO DE PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. 3.5. (I)LEGITIMIDADE DO ENTE PÚBLICO INTERESSADO PARA AJUIZAR A AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 3.6. (I)LEGITIMIDADE DO ENTE PÚBLICO INTERESSADO PARA CELEBRAR O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL. 3.7. IMPOSIÇÃO REPRESENTATIVA DOS AGENTES ÍMPROBOS PELA ADVOCACIA PÚBLICA. 3.8. REEXAME NECESSÁRIO NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. 3.9. AS DISPOSIÇÕES DA NOVA LEI RETROAGEM PARA ALCANÇAR FATOS OCORRIDOS ANTES DA SUA ENTRADA EM VIGOR? 4. CONCLUSÃO.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda a análise das modificações realizadas pela Lei nº 14.230/2021 no instituto da improbidade administrativa, sob o prisma doutrinário e jurisprudencial, haja vista sua inegável importância como ferramenta de combate à corrupção na seara administrativa.
A partir da pesquisa doutrinária e jurisprudencial, o estudo tem como objetivo analisar a evolução do instituto ao longo do tempo, suas principais características, requisitos, bem assim suas repercussões práticas, notadamente para as partes do processo.
Também será estudada a relação existente entre as modificações introduzidas no ordenamento pátrio pela novel legislação e alguns princípios administrativos e constitucionais.
O objetivo principal é que, ao final deste trabalho, seja possível ter uma visão panorâmica acerca das novidades trazidas pela Lei nº 14.230/2021 e se estas consistem em avanços ou retrocessos no combate aos atos praticados com desrespeito a probidade administrativa.
2. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
2.1. BREVE HISTÓRICO NO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO, CONCEITO E FINALIDADE
Inicialmente, emerge oportuna a realização de um breve histórico da disciplina legal da ação civil pública de improbidade administrativa.
A base normativa fundamental da ação de improbidade encontra-se no § 4º do art. 37 da Constituição Federal de 1988 (CF/88)[1], que dispõe: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
Atendendo ao mandamento constitucional o legislador pátria editou a Lei nº 8.429/92, a qual define os sujeitos e as espécies de atos de improbidade, com as respectivas sanções, as normas processuais, entre outros aspectos.
Portanto, como conhecida no direito atual, a ação de improbidade administrativa encontra seu marco normativo inaugural na CF/88. Antes disso, José Armando da Costa defende que a improbidade só existia no âmbito do Direito do Trabalho, como delito disciplinar, nos termos previstos no art. 482, “a”, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
A partir da análise da previsão constitucional e dos dispositivos legais, o autor Rafael Oliveira conceitua esta importante ação como “o instrumento processual que tem por objetivo aplicar sanções aos agentes públicos ou terceiros que praticarem atos de improbidade administrativa.”
Um ponto que gerou muitas discussões no meio acadêmico se refere à natureza jurídica da ação de improbidade administrativa. Em breve síntese, discutiu-se se seria estritamente cível, penal ou híbrida. Entretanto, atualmente, a doutrina e a jurisprudência amplamente majoritárias são contundentes em afirmar que se trata de instituto de natureza cível. Um dos fundamentos adotados por essa corrente é exatamente o que consta na parte final do §4º do art. 37 da CF/88 transcrito acima “sem prejuízo da ação penal cabível”. Assim, o ato de improbidade não é ilícito penal, mas sim civil.
Logo, pode-se afirmar que a principal finalidade da ação de improbidade administrativa é a disciplina e o julgamento de atos ilícitos cíveis praticados por agentes públicos, ou privados no exercício de atividade pública, que venham a causar lesão ao patrimônio público, enriquecimento ilícito ou afronta aos princípios que regem a Administração Pública.
2.2. ELEMENTOS DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Segundo a doutrina majoritária, para que um ato seja enquadrado como ímprobo e acarrete a aplicação das sanções constantes na Lei nº 8.429/92 é imprescindível a presença dos seguintes elementos: a) sujeito ativo; b) sujeito passivo; c) ato danoso de improbidade; d) elemento subjetivo – dolo (após as mudanças trazidas pela Lei 14.230/21).
O sujeito ativo, ou seja, aquele que pratica o ato de improbidade administrativa, pode ser: agente público; particular que gere recursos públicos por força de contrato, convênio ou afins; e terceiro que induza ou concorra para prática do ato ímprobo.
Quanto a esse ponto, a Lei nº 14.230/21 alterou a redação do art. 2º da LIA, o qual ficou com o seguinte texto:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei.
Parágrafo único. No que se refere a recursos de origem pública, sujeita-se às sanções previstas nesta Lei o particular, pessoa física ou jurídica, que celebra com a administração pública convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente. (Grifei)
Verifica-se que, mesmo que o vínculo com a Administração Pública seja transitório ou sem remuneração, o agente poderá ser enquadrado como sujeito ativo para os fins da aplicação da lei de improbidade administrativa.
Uma modificação significativa trazida pela novel legislação quanto ao sujeito ativo foi a retirada da parte final do art. 3º - que trata sobre o terceiro estranho à Administração - da expressão “ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”, permanecendo apenas a possibilidade de enquadramento daquele que induz ou concorre dolosamente para a prática do ato de improbidade.
Quanto à possibilidade de submissão do terceiro à Lei de Improbidade deve-se registrar que a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça é no sentido que essa só é possível se algum agente público também estiver envolvido no ato ímprobo sob análise. Ou seja, a Colenda Corte não admite o ajuizamento de ação de improbidade exclusivamente contra o particular. Nesse sentido:
Para que o terceiro seja responsabilizado pelas sanções da Lei nº 8.429/92 é indispensável que seja identificado algum agente público como autor da prática do ato de improbidade.
Assim, não é possível a propositura de ação de improbidade exclusivamente contra o particular, sem a concomitante presença de agente público no polo passivo da demanda. (STJ. 1ª Turma. REsp 1.171.017-PA, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 25/2/2014 - Info 535).
Registre-se, porém, que em recentíssima decisão, o mesmo STJ admitiu que uma ação de improbidade continuasse tramitando apenas contra o particular, após a rejeição da ação contra os agentes públicos, em virtude de já estarem respondendo a outra ação pelos mesmos fatos, nos termos do seguinte excerto jurisprudencial:
É viável o prosseguimento de ação de improbidade administrativa exclusivamente contra particular quando há pretensão de responsabilizar agentes públicos pelos mesmos fatos em outra demanda conexa. (STJ. 1ª Turma. AREsp 1.402.806-TO, Rel. Min. Manoel Erhardt, julgado em 19/10/2021 - Info 714). (Grifei)
Destaque-se que o entendimento consolidado do STJ se baseia na imprescindibilidade da participação de agente público para a configuração do ato de improbidade e não na obrigatoriedade de que este e o particular sejam litisconsortes na mesma ação. Assim, o posicionamento mais recente não afasta a jurisprudência consolidada da Corte Superior, pois deixa claro que houve a participação de servidores públicos no ato ímprobo, residindo a única novidade no fato destes estarem respondendo pelos seus atos em outro processo, conexo ao ajuizado contra o terceiro.
Já o sujeito passivo é o ente prejudicado pelo ato de improbidade administrativa.
A doutrina majoritária diferencia os sujeitos passivos em absolutos e relativos. Aqueles seriam os constantes no §5º do art. 1º da LIA e são qualificados como absolutos porque podem ser vítimas de improbidade em qualquer porção de seu patrimônio (aqui está a administração direta e indireta dos entes políticos e dos territórios). Já os sujeitos passivos relativos recebem esse predicado porque só podem ser vítimas de atos ímprobos se o ilícito repercutir sobre a parte do seu patrimônio originária do erário (se enquadram nesse grupo as entidades privadas para cuja criação ou custeio tenha sido destinada verba pública - §6º do referido art. 1º).
Além dos sujeitos ativo e passivo, para que um ato seja qualificado como ímprobo, é necessário que se enquadre em uma das três modalidades previstas nos arts. 9, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92, os quais, enumeram, respectivamente, os atos que importam enriquecimento ilícito, os que causam prejuízo ao erário e, por fim, os que atentam contra os princípios da Administração Pública. Nesse ponto, oportuno registrar que, após a Lei nº 14.230/21, os róis dos sobreditos artigos passaram a ser taxativos, conforme se extrai da análise do §1º do art. 1º da LIA. Por fim, quanto a esse aspecto, importante destacar que tanto as condutas comissivas, quanto as omissivas, podem ser enquadradas como ímprobas.
O último componente do ato ímprobo é o elemento volitivo, ou seja, a vontade do agente de praticar a conduta.
Antes da Lei nº 14.230/21, doutrina e jurisprudência majoritárias entendiam que, enquanto os atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito e os que atentam contra os princípios da Administração Pública admitiam apenas a modalidade dolosa, os atos causadores de dano ao erário admitiam tanto a modalidade dolosa quanto a culposa. Entretanto, com a novel legislação, houve uma significativa mudança nesse aspecto, o qual será objeto de considerações mais aprofundadas no tópico 2.1 deste trabalho.
3. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA Lei nº 14.230/21
3.1. ELEMENTO VOLITIVO EXIGÍVEL PARA CONFIGURAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Antes da entrada em vigor da Lei nº 14.230/21 para que um ato ilícito fosse enquadrado como ato ímprobo exigia-se o elemento volitivo dolo: para os preceitos dos arts. 9º (que importam em enriquecimento ilícito) e 11 (que atentam contra os princípio da Administração Pública); ou culpa: para os atos que se enquadrassem nas previsões do art. 10 da referida lei (atos que causam prejuízo ao erário).
A jurisprudência dos tribunais superiores, notadamente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é dominante nesse sentido. Aqui, emerge oportuna a transcrição de trecho de exceto jurisprudencial da Edição 38 da Jurisprudência em Teses do STJ:
É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei n. 8.429/1992, exigindo-se a presença de dolo nos casos dos arts. 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário. (Ed. 38 STJ em TESES) (Grifei)
Adotando entendimento totalmente contrário ao da jurisprudência consolidada, a Lei 14.230/21 trouxe as seguintes disposições:
Art. 1º (...)
§ 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.
Art. 17-C (...)
§ 1º A ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade. (Grifei)
Essa posição é reforçada pela revogação do art. 5º da Lei nº 8.429/92 que trazia a modalidade culposa para os atos que gerassem lesão ao patrimônio público.
As vozes que defendem a mudança de paradigma sustentam que o intuito do legislador foi de conferir nova definição do ato de improbidade administrativa, de modo a restringi-lo ao agente público desonesto, não o inábil. Assim, o equívoco ou o erro, bem assim a omissão decorrente de negligência, imprudência ou imperícia não pode ser considerada como ato de improbidade.
Antes da Lei nº 14.230/21, a jurisprudência amplamente majoritária do STJ se posicionava no sentido de que o dolo genérico era suficiente para configuração da conduta ímproba. Vejamos:
A configuração do ato de improbidade por ofensa a princípio da administração depende da demonstração do chamado dolo genérico ou lato sensu. STJ. 2ª Turma. REsp 1383649/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 05/09/2013. (Grifei)
Ressalte-se que não se exige dolo específico (elemento subjetivo específico) para sua tipificação. (STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 307583/RN, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 18/06/2013) (Grifei)
Porém, há defensores no sentido de que tal entendimento também foi superado pela nova redação do § 2º do art. 1º da LIA, o qual dispõe:
Art. 1º (...)
§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. (Incluído pela Lei nº 14.230/2021) (Grifei)
Logo, para essa corrente, para configuração do ato de improbidade, a novel legislação exige não apenas o dolo, mas também o elemento subjetivo especial (dolo “específico”), o que, sem sombra de dúvida, torna muito mais difícil o enquadramento da conduta praticada como sendo ímproba.
Reforçando essa conclusão, o § 3º do mesmo art. 1º e os §§ 1º e 2º do art. 11 do referido diploma legal vão no mesmo sentido. Senão vejamos:
Art. 1º (...)
§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.
Art. 11 (...)
§ 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.
§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei. (Grifei)
Por outro lado, existe outra corrente, defendida pelo autor Renério de Castro Júnior, ao qual me alinho, que defende que quando a lei quis exigir o dolo específico o fez expressamente, como nos dispositivos acima transcritos, sendo, portanto, o dolo genérico suficiente nas demais hipóteses. Se assim não for, o enquadramento de condutas irregulares como ímprobas restara sobremaneira difícil.
Os defensores da reforma realizada argumentam que o paradigma anterior de enquadramento dos atos políticos resultou no que a doutrina intitula de direito administrativo do medo e no “apagão das canetas”. Segundo o prof. Renério de Castro Júnior, citando Rodrigo Valgas Santos, o direito administrativo do medo decorre do “controle externo disfuncional” e seria uma “externalidade negativa das múltiplas instâncias de controle estabelecidas pelo constituinte (tribunais de contas, controladorias internas, Ministério Público, Judiciário, procuradorias etc).” Nesse ponto, emerge oportuna transcrição de trecho do livro do Prof. Renério sobre o assunto:
Assim, um cenário que já era desafiador ficou ainda mais grave com a pandemia da Covid-19, afinal, em tal cenário, decisões devem ser tomadas com urgência e o risco de responsabilização dos agentes públicos é imenso, levando a uma ‘fuga da responsabilização dos agentes públicos’. Desse modo, ao invés de buscar soluções para resolver os problemas, os agentes públicos buscam soluções para não serem responsabilizados.
Nas palavras de Francisco Arlem de Queiroz, os gestores são transformados em meros robôs aplicadores da lei, se omitindo para proteger seu nome e seu patrimônio, perante a possibilidade de tomarem decisões de boa-fé e, mesmo assim, virem a ser condenados ao pagamento de multas, dentre outras sanções.
Do cenário acima descrito surge o que a doutrina moderna denominou ‘apagão das canetas’: é a paralisia decisões decorrente do medo que o agentes públicos têm do controle externo de suas decisões, optando por nada decidir, de modo a evitar riscos decisórios. O que há é uma adoção deliberada da técnica de nada decidir para não expor-se ao risco decisório, com graves consequências à boa gestão pública.
Diante desse cenário, algumas alterações trazidas pela Lei nº 14.230/21 contribuem, repise-se, para uma maior segurança jurídica e tendem a encorajar o gestor a assumir uma posição mais proativa na tomada de decisões. Aqui, não só o fim da modalidade culposa do art. 10, mas também a transformação do rol do art. 11 em taxativo, a legitimidade exclusiva do Ministério Público para o ajuizamento das ações de improbidade (o que, em tese, tende a diminuir o ajuizamento de ações motivadas por disputas entre adversários políticos), o estabelecimento de prazos para a conclusão das investigações por suposto ato ímprobo e a possibilidade de aplicação da prescrição intercorrente, são algumas das mudanças nesse sentido e que serão abordadas adiante.
3.2. ROL DO ART. 11 DA LIA PASSOU A SER TAXATIVO
Antes da reforça promovida pela Lei nº 14.230/21 o rol do art. 11 da Lei nº 8.429/92 era exemplificativo, ou seja, permitia o enquadramento de outras condutas, não expressas nos seus incisos, como ato de improbidade administrativa. Tal constatação, dentre outros pontos, depreende-se da expressão “e notadamente” que constava na parte final de sobredito dispositivo. Entretanto, a reforma recente substituiu referido termo por “caracterizada por uma das seguintes condutas”, o que – aparentemente - restringe o alcance do artigo às hipóteses selecionadas pelo legislador.
Uma das principais consequências dessa mudança é a impossibilidade de enquadramento nas previsões da LIA de várias condutas anteriormente consideradas como ato ímprobo pela jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores. A título de exemplo, tortura realizada por autoridade policial em delegacia, assédio moral e assédio sexual. Vejamos:
A tortura de preso custodiado em delegacia praticada por policial constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública. (STJ. 1ªSeção. REsp 1177910-SE, Rel. Herman Benjamin, julgado em 26/08/2015 - Info 577) (Grifei)
O assédio moral, mais do que provocações no local de trabalho – sacarmos, crítica, zombaria e trote -, é campanha de terror psicológico pela rejeição. A prática de assédio moral enquadra-se na conduta prevista no art. 11, caput, da Lei nº 8.429/92, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém. (STJ. 2ª Turma. REsp 1286466/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 03/09/2013) (Grifei)
Cinge-se a questão dos autos a possibilidade de prática de assédio sexual como sendo ato de improbidade administrativa previsto no caput do art. 11 da Lei n. 8.429/1992, praticado por professor da rede pública de ensino, o qual fora condenado pelas instâncias ordinárias à perda da função pública.
É firme a orientação no sentido da imprescindibilidade de dolo nos atos de improbidade administrativa por violação a princípio, conforme previstos no caput do art. 11 da Lei n. 8.429/1992 - o que foi claramente demonstrado no caso dos autos, porquanto o professor atuou com dolo no sentido de assediar suas alunas e obter vantagem indevida em função do cargo que ocupava, o que subverte os valores fundamentais da sociedade e corrói sua estrutura. (STJ. 2ª Turma. REsp 1255120-SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 21/5/2013 - Info 523).
Tal impossibilidade de enquadramento se dá porque, indiscutivelmente, a temática da improbidade administrativa se situa na porção da disciplina chamada de direito administrativo sancionador, que não permite interpretação extensiva ou analogia para prejudicar o réu. O § 4º do art. 1º da LIA dispõe: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.”.
Aqui emerge oportuna transcrição de didático trecho da obra do autor Renério de Castro Júnior, in verbis:
O direito administrativo sancionador é fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, sendo um ramo que congrega distintos segmentos pelos quais operaria o poder punitivo do Estado (de contas, fiscal, regulatório, ambiental, administrativo, concorrencial etc), devendo ser conferidas aos cidadãos algumas garantias em face desse poder sancionador estatal.
Assim, embora seja um tema do direito administrativo, quando falamos de sanções devemos aplicar alguns princípios constitucionais típicos do direito penal.
Isso nos leva a concluir, de imediato, que no âmbito dos processos de improbidade administrativa: aplicam-se os princípios da retroatividade da norma penal mais benéfica e da intranscendência subjetiva das sanções; admitem-se hipóteses de abolitio criminis; veda-se o emprego da analogia in malam partem; e admite-se a invocação do estado de necessidade como excludente de ilicitude. (Grifei)
Já quanto ao nepotismo, como a Lei nº 14.230/21 incorporou o teor da Súmula Vinculante 13 do STF ao texto da LIA (§5º do art. 11), não deixou de ser considerado ato de improbidade administrativa, mas passou a exigir dolo específico, o que, convenhamos, dificultou – e muito – a condenação por tal prática, ante a baixa probabilidade de se conseguir provar que praticar a ilicitude constituiu-se no especial fim de agir do agente.
3.3. PRESCRIÇÃO
A Lei 14.230/21 ampliou o prazo prescricional para 8 (oito) anos, o que, a princípio, pode soar como positivo, haja vista que o prazo anterior era de 5 (cinco) anos, em regra. Entretanto, como fixou o termo inicial da contagem desse prazo no momento da ocorrência do ato ímprobo, a chance de alcance da prescrição, notadamente nos casos em que o réu é agente político reeleito, aumenta bastante. Explica-se.
Antes da alteração legal, a LIA acolhia, como regra, a teoria da “actio nata” (segundo a qual o início do prazo se dá com o conhecimento acerca da existência do ato). Ou seja, se o agente praticasse um ato de improbidade hoje e tal fato só viesse a ser conhecido depois de 10 anos, o prazo prescricional só se iniciaria a partir de referida descoberta.
Já no caso de ocupantes de mandato político reeleito, a jurisprudência consolidada do STJ era no sentido de que o termo inicial da prescrição seria apenas ao final do segundo mandado. Vejamos:
O prazo prescricional em ação de improbidade administrativa movida contra prefeito reeleito só se inicia após o término do segundo mandato, ainda que tenha havido descontinuidade entre o primeiro e o segundo mandato em razão da anulação de pleito eleitoral, com posse provisória do Presidente da Câmara, por determinação da Justiça Eleitoral, antes da reeleição do prefeito em novas eleições convocadas.
O fato de o Presidente da Câmara Municipal ter assumido provisoriamente, conforme determinação da Justiça Eleitoral, até que fosse providenciada nova eleição, não descaracterizou a legislatura.
Assim, também neste caso peculiar deverá ser aplicado o entendimento jurisprudencial do STJ no sentido de que a contagem do prazo prescricional inicia-se com o fim do segundo mandato. (STJ. 2ª Turma. REsp 1.414.757-RN, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 6/10/2015 - Info 571). (Grifei)
Atualmente não mais, pois se no primeiro dia do primeiro mandato o prefeito comete um ato ímprobo, mas esse não chega ao conhecimento do Ministério Público, após 8 (oito) anos esse fato estará prescrito, o que não aconteceria na sistemática anterior.
Além disso, antes da reforma legislativa, o STJ tinha jurisprudência amplamente majoritária no sentido de que não havia prescrição intercorrente no âmbito da ação de improbidade administrativa:
O STJ firmou entendimento de inaplicabilidade da prescrição intercorrente às ações de improbidade administrativa. (STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1872310/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 05/10/2021)
Esta Corte Superior possui jurisprudência consolidada no sentido de que não há falar em prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa, pois a Lei 8.429/92 somente prevê a existência de prazo prescricional para o ajuizamento da ação. (STJ. 2ª Turma. AgInt nos EDcl no REsp 1860617/MS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 23/11/2020). (Grifei)
Indo totalmente de encontro ao posicionamento consolidado na Colenda Corte, a Lei 14.230/21 trouxe previsão expressa da aplicação da prescrição intercorrente para o texto da Lei nº 8.429/92. Aqui, antes da análise da nova precisão legal, emerge oportuno tecer algumas considerações sobre referido instituto jurídico.
A prescrição intercorrente, como o próprio nome sugere, é a perda do direito de exigir o pronunciamento judicial que ocorre em virtude de uma inércia do autor no curso do processo.
A Lei 14.230/21 acrescentou, no §4º do art. 23, várias hipóteses de interrupção da prescrição, as quais cingem-se ao ajuizamento da ação de improbidade e a publicação de sentença condenatória ou acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência. Ocorrendo uma dessas hipóteses, o prazo prescricional recomeça a correr a partir do dia da interrupção, pela metade do prazo prescricional padrão, ou seja, por quatro anos. Esgotado este prazo, sem que o processo tenha chegado ao seu fim, deverá o órgão julgador reconhecer, de ofício, a prescrição intercorrente:
Art. 23 (...)
§ 8º O juiz ou o tribunal, depois de ouvido o Ministério Público, deverá, de ofício ou a requerimento da parte interessada, reconhecer a prescrição intercorrente da pretensão sancionadora e decretá-la de imediato, caso, entre os marcos interruptivos referidos no § 4º, transcorra o prazo previsto no § 5º deste artigo. (Grifei)
Depreende-se, sem muito esforço, que as alterações acima esposadas contribuem para que a prescrição ocorra com mais facilidade, pois se o ato ímprobo não chegar logo ao conhecimento das autoridades responsáveis pela investigação/ajuizamento e/ou o processo não tramitar rapidamente (e, registre-se, que boa parte dos feitos de improbidade possui um considerável grau de complexidade) fulminado estará o direito.
3.4. CARGO ALCANÇADO PELA SANÇÃO DE PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA
Dentre as sanções previstas para o agente que comete atos de improbidade de causem lesão ao erário ou importem em enriquecimento ilícito está a perda da função pública.
Aqui, tem-se outro ponto em que a reforma da LIA foi totalmente de encontro à jurisprudência majoritária dos tribunais superiores, qual seja, o cargo alcançado pela sanção de perda da função pública.
Apesar de haver uma divergência entre a 1ª e a 2ª turmas do STJ, a doutrina majoritária defendia que embora o agente público, quando do trânsito em julgado da sentença, estivesse ocupando cargo diferente daquele que ocupava quando da prática do ato de improbidade, deveria perder o cargo atual, haja vista que o objetivo dessa espécie de sanção era retirar da Administração Pública o agente que não possuía habilitação moral e ética para o exercício da função pública.
Nesse sentido:
O agente perde a função pública que estiver ocupando no momento do trânsito em julgado, ainda que seja diferente daquela que ocupava no momento da prática do ato de improbidade.
A penalidade de perda da função pública imposta em ação de improbidade administrativa atinge tanto o cargo que o infrator ocupava quando praticou a conduta ímproba quanto qualquer outro que esteja ocupando ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo no momento do trânsito em julgado da condenação. (STJ. 1ª Seção. EREsp 1701967/RS, Rel. para acórdão Min. Francisco Falcão, julgado em 09/09/2020. STJ. 2ª Turma. REsp 1.813.255-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 03/03/2020). (Grifei)
Entretanto, o § 1º do art. 12 traz o seguinte texto:
Art. 12. (...)
§ 1º A sanção de perda da função pública, nas hipóteses dos incisos I e II do caput deste artigo, atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração, podendo o magistrado, na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e em caráter excepcional, estendê-la aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração.
Ou seja, como regra geral, se no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória o agente estiver ocupando cargo diverso daquele que detinha na época do cometimento da infração, não lhe será aplicável a sanção de perda da função pública. Tal conclusão gera, no mínimo, uma incongruência, pois é como se o réu condenado não fosse moral e eticamente apto para ocupar o cargo do qual era titular na época do cometimento do ato ilícito, mas o fosse para ocupar um outro cargo, muitas vezes, inclusive, de maior hierarquia dentro da estrutura da Administração Pública.
Aparentemente, essa opção do legislador não está alinhada com os princípios da moralidade e da probidade administrativas e, em última análise, com o princípio da supremacia do interesse público, pois alguém condenado, após regular processo judicial, pela prática de um ato de improbidade que comprovadamente causou lesão ao erário ou resultou em enriquecimento ilícito, continuará a desempenhar suas atribuições no âmbito da Administração Pública.
3.5. (I)LEGITIMIDADE DO ENTE PÚBLICO INTERESSADO PARA AJUIZAR A AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Até a reforma implementada pela Lei nº 14.230/21 havia legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e a pessoa jurídica afetada pelo ato ímprobo.
A novel redação do art. 17 da LIA restringiu tal legitimidade apenas ao Ministério Público, facultando ao ente público interessado apenas a possibilidade de representar ao Parquet ou de intervir no processo. Vejamos:
Art. 17. A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei.
(...)
§ 14. Sem prejuízo da citação dos réus, a pessoa jurídica interessada será intimada para, caso queira, intervir no processo.
Ante tal restrição, a Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (ANAPE) e a Associação Nacional dos Advogados Públicos Federal (ANAFE) ajuizaram duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), respectivamente de nºs 7042 e 7023, arguindo a inconstitucionalidade de vários dispositivos da Lei nº 14.230/21, dentre eles o caput e o §14 do art. 17.
Nas citadas ações, a ANAPE e ANAFE apresentaram, entre outros fundamentos, a ofensa à autonomia da Advocacia Pública, ao direito fundamental à probidade, ao pacto federativo e aos princípios administrativos da eficiência, da segurança jurídica e da moralidade.
O relator, Min. Alexandre de Morais, concedeu medida cautelar na ADI 7042, emergindo oportuna a transcrição de trecho do excerto abaixo:
O art. 129, § 1º, da Constituição Federal – diferentemente da previsão constitucional do inciso I, do artigo 129 da Constituição Federal, que prevê a privatividade da ação penal pública ao Ministério Público – dispõe, expressamente, que a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas nesse artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto na própria Constituição e na lei. A norma constitucional em questão deixa certa margem de conformação ao legislador infraconstitucional para a disciplina e regulamentação da legitimação desses terceiros – o que não significa, em absoluto, a inexistência de um dever de coerência e racionalidade nesse exercício, buscando eficiência no combate à corrupção e proteção ao patrimônio público. O aperfeiçoamento do combate à corrupção no serviço público foi uma grande preocupação do legislador constituinte, ao estabelecer, no art. 37 da Constituição Federal, verdadeiros códigos de conduta à Administração Pública e aos seus agentes, prevendo, inclusive, pela primeira vez no texto constitucional, a possibilidade de responsabilização e aplicação de graves sanções pela prática de atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da CF). Tratou-se de verdadeira evolução legislativa, pois o Decreto-Lei Federal 3.240, de 8 de maio de 1941, previa somente o sequestro e a perda dos bens de autores de crimes que resultavam em prejuízo para a Fazenda Pública, desde que acarretassem locupletamento ilícito, e subsidiariamente, a reparação civil do dano e a incorporação ao patrimônio público de bens de aquisição ilegítima de pessoa que exercesse ou tivesse exercido função pública.
(...)
Nesse contexto, portanto, o combate à corrupção, à ilegalidade e à imoralidade no seio do Poder Público, com graves reflexos na carência de recursos para a implementação de políticas públicas de qualidade, deve ser prioridade absoluta no âmbito de todos os órgãos constitucionalmente institucionalizados (RE 976.566, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, DJe 26/09/2019), o que sugere a inserção dos órgãos e entes diretamente atingidos pela conduta desviante do padrão constitucional de moralidade e, por consequência, dos agentes constitucionalmente incumbidos da sua representação, pois, como bem destacado por JOSÉ AFONSO DA SILVA (Comentário Contextual à Constituição. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 618): ‘A Advocacia Pública assume, no Estado Democrático de Direito, mais do que uma função jurídica de defesa dos interesses patrimoniais da Fazenda Pública, mais até mesmo do que a defesa do princípio da legalidade, porque lhe incumbe igualmente, e veementemente, a defesa da moralidade pública, que se tornou um valor autônomo constitucionalmente garantido. Não é que essa defesa lhe escapasse antes do regime constitucional vigente. Mas, então, o princípio da moralidade tinha uma dimensão estritamente administrativa, quase como simples dimensão da legalidade, ligada aos problemas dos desvios de finalidade. Agora não, porque a Constituição lhe concedeu um sentido próprio e extensivo, e abrangente da ética pública.’
O eminente Ministro afirma que a subtração da legitimidade ativa das pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação de improbidade administrativa pode representar grave limitação ao amplo acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF), com ofensa ao princípio da eficiência (art. 37, caput, da CF) e “no limite, obstáculo ao exercício da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para ‘zelar pela guarda da Constituição’ e ‘conservar o patrimônio público’ (art. 23, I, da CF), bem como, um significativo retrocesso quanto ao imperativo constitucional de combate à improbidade administrativa.”
Destaca, ainda, o relator que:
Em respeito às citadas normas constitucionais, a previsão do §1º, do art. 129 da Constituição Federal parece indicar um comando impeditivo à previsão de exclusividade por parte do Ministério Público nas ações civis por ato de improbidade administrativa, impondo, assim, a necessidade de uma interpretação teleológica do texto constitucional, como bem ressaltado pelo Min. ILMAR GALVÃO no julgamento do Recurso Extraordinário 208.790 (Tribunal Pleno, DJ de 15/02/2000): Na verdade, o art. 129, III, da CF, ao legitimar o Ministério Público para agir na proteção do patrimônio público, por via da ação civil pública, não fez senão instituí-lo substituto processual de toda a coletividade, posto que agirá na defesa de um interesse que toca a todos, indistintamente, revestindo, consequentemente, a natureza de interesse difuso. Essa legitimação, de caráter extraordinário, […] não afasta a iniciativa do próprio ente público interessado, como previsto no primeiro dispositivo citado [CF, art. 129, § 1º].
Mais recentemente, ao apreciar a restrição constitucional que veda ao Ministério Público a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (CF, art. 129, XI, in fine), a mesma conclusão (extensível, a contrario sensu, para os casos sob análise) foi reafirmada pelo Min. LUIZ FUX no julgamento do Recurso Extraordinário 409.356 (Tribunal Pleno, DJe de 29/07/2020), nos seguintes termos: A referida restrição, todavia, deve ser interpretada em consonância com os demais dispositivos da Carta Magna que atribuem ao parquet ampla atribuição no campo da tutela do patrimônio público, interesse de cunho inegavelmente transindividual. Afinal, o próprio art. 129, III, da Constituição exorta o Ministério Público ao ajuizamento da ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social”, “e de outros interesses difusos e coletivos”. Rememore-se que a atuação do parquet na proteção do patrimônio público não afasta a atuação do próprio ente público prejudicado, conforme prevê o art. 129, § 1º, da Constituição: […]. No plano infraconstitucional, a Lei nº 8.429/92 confere ao Ministério Público legitimidade para promover a ação de improbidade, a qual possui dentre seus objetivos a reparação ao Erário. Em casos tais, o parquet não age como representante da entidade pública, e sim como substituto processual de uma coletividade indeterminada, é dizer, a sociedade como um todo, titular do direito à boa administração do patrimônio público. […] Noutras palavras, o combate em juízo à dilapidação ilegal do Erário configura atividade de defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e do patrimônio público, sendo todas essas funções institucionais atribuídas ao Ministério Público pelos artigos 127 e 129 da Constituição. Entendimento contrário não apenas afronta a textual previsão da Carta Magna, mas também fragiliza o sistema de controle da Administração Pública, visto que deixaria a persecução de atos atentatórios à probidade e à moralidade administrativas basicamente ao talante do próprio ente público no bojo do qual a lesão ocorreu.
A supressão da legitimidade ativa das pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa caracteriza uma espécie de monopólio absoluto do combate à corrupção ao Ministério Público, não autorizado, entretanto, pela Constituição Federal, e sem qualquer sistema de freios e contrapesos como estabelecido na hipótese das ações penais públicas (art. 5º, LIX, da CF). Diante do exposto, com fundamento no art. 10, § 3º, da Lei 9.868/1999, e no art. 21, V, do RISTF, DEFIRO PARCIALMENTE A CAUTELAR, ad referendum do Plenário desta SUPREMA CORTE, para, até julgamento final de mérito: (A) CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ao caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, do artigo 17 da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, no sentido da EXISTÊNCIA DE LEGITIMIDADE ATIVA CONCORRENTE ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E AS PESSOAS JURÍDICAS INTERESSADAS PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA; (...) (STF. ADI 7042. Relator Min. Alexandre de Moraes, julgado em 17/02/22). (Grifei)
Louvável a decisão do eminente Ministro. A uma porque, como bem abordado no excerto acima, o § 1º do art. 129 da CF/88 deixa claro que, diferentemente do que ocorre no âmbito da ação penal, a legitimação do Ministério Público para as ações civis não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses. A duas, pois é inegável que Advocacia Pública, incumbida constitucionalmente de representar os entes federativos, é instituição indispensável à consolidação do Estado Democrático de Direito, haja vista que suas funções destinam-se, também, à preservação de direito e garantias fundamentais.
Não por acaso, a Advocacia Pública foi localizada constitucionalmente no capítulo “das funções essenciais à justiça”, ao lado do próprio Ministério Público, sendo responsável pelo controle interno e defesa da juridicidade dos atos estatais.
Como bem asseverado pelos professores Luís Manoel Borges do Vale e Rafael Carvalho Rezende Oliveira:
(...) diante da legitimidade ativa concorrente, fortalecia-se o sistema protetivo da coletividade, impedindo que pretensões penalizatórias fossem fulminadas com a prescrição. Afinal de contas, a capacidade de trabalho do Ministério Público não consegue açambarcar todas as eventuais situações que possam vir a colocar em risco a integridade social.
(...)
Perceba-se que, se o interesse do Poder Público é diretamente atingido, é fundamental dotá-lo de legitimidade para postular a responsabilização daqueles que lhe impuseram dano. Entender em sentido contrário é obstaculizar a efetiva tutela jurisdicional, abrindo caminho para uma atuação que, por certo, acabará se tornando deficitária. Malgrado o exposto, a atual redação do art. 17 da Lei nº 8.429/1992 propugna que a ação para a aplicação de sanções oriundas da prática de atos de improbidade administrativa é de titularidade exclusiva do Ministério Público, mesmo que, no art. 1º, §5º, sejam apontadas, por exemplo, as pessoas jurídicas de direito público como sujeitos passivos. A escolha do Legislativo é deveras questionável e abre espaço para o enfraquecimento do sistema de proteção à probidade administrativa, pois, nos moldes do que fora prelecionado em linhas pretéritas, a concentração da iniciativa apenas no Ministério Público levará, inevitavelmente, à ausência de responsabilização de diversos agentes. A afirmativa é fundada no cenário pré-reformista, tendo em conta que inúmeras ações foram ajuizadas apenas pelos entes federativos, os quais atuaram, tempestivamente, na busca pela proteção do interesse público. Ademais, registre-se que a Constituição Federal não atribuiu, em caráter exclusivo, a adoção de medidas protetivas de proteção do patrimônio público apenas ao órgão ministerial, pois, é preciso lembrar que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência comum para conservar o interesse da coletividade, na forma do art. 23, I, do texto constitucional. Sob tal ótica, admitir a exclusão dos entes federativos do rol de legitimados para a propositura da ação de improbidade administrativa configuraria afronta direta ao delineamento de atribuições da Advocacia-Geral da União e das Procuradorias dos Estados (arts. 131 e 132 da Constituição Federal), que devem atuar na defesa dos interesses dos respectivos entes federativos, seja na esfera judicial ou extrajudicial, mormente quando está em xeque o debate acerca da violação ao regime de probidade administrativa. (Os impactos da reforma da Lei de Improbidade Administrativa na Advocacia Pública. Revista Brasileira de Direito Público (RBDP), Belo Horizonte, ano 20, n. 76, p. 9-29, jan./mar. 2022.) (Grifei)
Assim, existem vários e contundentes fundamentos a inquinar de inconstitucionalidade a alteração realizada no caput do art. 17 da LIA, retirando a legitimidade ativa do ente federativo interessado para ajuizamento da ação de improbidade administrativa.
3.6. (I)LEGITIMIDADE DO ENTE PÚBLICO INTERESSADO PARA CELEBRAR O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL
O acordo de não persecução civil pode ser definido como o negócio jurídico celebrado entre o Ministério Público e as pessoas (físicas ou jurídicas) investigadas pela prática de improbidade administrativa, devidamente assistidas por advogado.
Segundo o § 4º do art. 17-B, tal acordo pode ser celebrado no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou momento da execução da sentença condenatória.
A novel legislação trouxe várias balizas para celebração do acordo de não persecução civil, o que, certamente, trouxe mais segurança jurídica para concretização desse importante instituto jurídico. Entretanto, a alteração que atribuiu exclusividade ao Ministério Público para sua celebração (como uma espécie de consectário lógico da exclusividade do Ministério Público para ajuizamento da ação de improbidade), parece ir de encontro com os preceitos norteadores da melhor doutrina administrativista moderna.
A chamada “era da consensualidade administrativa” é realidade no ordenamento jurídico pátrio e vem sendo cada vez mais consolidada com inúmeras previsões legislativas nesse sentido. A título de exemplo, cite-se: a) Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação – possui uma seção própria para tratar da autocomposição envolvendo o Poder Público); b) Código de Processo Civil (dentre outros dispositivos, o art. 174 estabelece a necessidade de a União, os Estados e os Municípios implementarem Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos); c) Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº 4.657/42 (o art. 26 é tratado como verdadeira cláusula geral de consensualidade administrativa); d) Decreto-Lei nº 3.365/41 (foi recentemente alterado, através da Lei nº 13.867/2019, com vistas a consignar o uso da mediação como via de resolução de conflitos nas demandas desapropriatórias); e) Lei nº 13.988/2020 (Firma os parâmetros para a realização de transação tributária, no âmbito federal); f) Lei nº 14.133/2021 (a lei Geral de Licitações e Contratos, que possui capítulo próprio para tratar dos meios adequados de resolução de conflitos).
Logo, retirar do ente público prejudicado a possibilidade de celebrar o acordo de persecução civil, deixando-lhe como únicas opções (todas heterocompositivas, registre-se) a representação ao Ministério Público, a manifestação de interesse ou, ainda, a tutela judicial, via ação - a qual, nos termos da redação proposta pela Lei nº 14.230/21 ao caput do art. 17, não poderia ser a ação de improbidade administrativa – é ir totalmente de encontro ao arcabouço legislativo atual e aos princípios que regem a Administração Pública moderna; bem assim fechar os olhos para a existência de meios consensuais que podem ser mais eficientes e menos onerosos para o erário.
Os meios autocompositivos, ordinariamente, resultam na redução direta (juros, multas, honorários etc) e indireta (movimentação das máquinas administrativa e judicial) dos custos para os entes públicos.
Por essas e outras razões, não só no Brasil, mas na maioria dos paises do ocidente, tem-se valorizado cada vez a justiça multiportas (ou sistema multiportas). Explica-se.
Até o advento do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), a conciliação, a mediação e a arbitragem eram tradicionalmente intituladas de métodos alternativos de resolução de conflitos. Porém, a doutrina majoritária sustenta que, a partir da novel lei processual, tais institutos não devem mais ser chamados de “alternativos”, pois sobredito termo remete à ideia de algo acessório ao meio “principal” de resolução das demandas, que, em tese, seria a jurisdição.
Pelo contrário, a partir do CPC/2015 os métodos tradicionais de autocomposição passaram a integrar, ao lado da jurisdição e de outros institutos inovadores (como, por exemplo, o “dispute board”), um novo modelo chamado de justiça “multiportas”.
A ideia principal desse sistema é a de que a atividade jurisdicional do Estado não é a única – nem a principal – opção das partes para resolução dos litígios. Defende-se que para cada tipo de litígio existe uma forma adequada de solução, sendo a jurisdição apenas uma dessas.
Nessa mesma linha foi que o CPC/2015 passou a prevê, no seu art. 334, caput, a obrigatoriedade da designação de audiência conciliação ou mediação, como regra geral.
Sobre o assunto, emerge oportuna a transcrição de trecho da doutrina de Leonardo Carneiro da Cunha, in verbis:
Costumam-se chamar de ‘meios alternativos de resolução de conflitos’ a mediação, a conciliação e a arbitragem (Alternative Dispute Resolution - ADR).
Estudos mais recentes demonstram que tais meios não seriam ‘alternativos’: mas sim integrados, formando um modelo de sistema de justiça multiportas. Para cada tipo de controvérsia, seria adequada uma forma de solução, de modo que há casos em que a melhor solução há de ser obtida pela mediação, enquanto outros, pela conciliação, outros, pela arbitragem e, finalmente, os que se resolveriam pela decisão do juiz estatal.
Há casos, então, em que o meio alternativo é que seria o da justiça estatal. A expressão multiportas decorre de uma metáfora: seria como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação, ou da conciliação, ou da arbitragem, ou da própria justiça estatal.
O direito brasileiro, a partir da Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça e com o Código de Processo Civil de 2015, caminha para a construção de um processo civil e sistema de justiça multiportas, com cada caso sendo indicado para o método ou técnica mais adequada para a solução do conflito. O Judiciário deixa de ser um lugar de julgamento apenas para ser um local de resolução de disputas. Trata-se de uma importante mudança paradigmática. Não basta que o caso seja julgado; é preciso que seja conferida uma solução adequada que faça com que as partes saiam satisfeitas com o resultado.
Partindo desse novo paradigma, a Administração Pública assume uma feição mais consensual e dialógica do que impositiva e inacessível. Nesse sentido, não havia mais sentido admitir-se instrumentos consensuais, inclusive no sistema penal (delação premiada e acordo de não persecução penal), e impedir a utilização de tal modelo no âmbito da improbidade administrativa – como previsto na redação originária do §1º do art. 17 (que vedava a transação, acordo ou conciliação nessa espécie de ação).
Centralizar, pois, a legitimação para celebração de supramencionado acordo apenas no Ministério Público, excluindo a pessoal jurídica afetada seria, no mínimo, paradoxal, pois retira do ente diretamente lesado a possibilidade de resolver o entrave diretamente com a parte que praticou o ato ímprobo causador do dano.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de medida cautelar, nas ADI’s 7042 e 7043, concedendo interpretação conforme a CF/88 ao caput do art. 17, para preservar a legitimidade ativa concorrente entre Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para propositura da ação por ato de improbidade administrativa, nos termos delineados no subtópico anterior, robustece a falta de razoabilidade da atribuição exclusiva ao Parquet para celebração dos acordos de não persecução cíveis.
3.7. IMPOSIÇÃO REPRESENTATIVA DOS AGENTES ÍMPROBOS PELA ADVOCACIA PÚBLICA
Outra novidade trazida pela Lei nº 14.230/21 que gerou caloroso debate no meio acadêmico foi a previsão do § 20 do art. 17 da LIA, que dispõe:
Art. 17 (...)
§ 20. A assessoria jurídica que emitiu o parecer atestando a legalidade prévia dos atos administrativos praticados pelo administrador público ficará obrigada a defendê-lo judicialmente, caso este venha a responder ação por improbidade administrativa, até que a decisão transite em julgado.
De entrada, verifica-se que o parágrafo transcrito não trata exatamente de norma geral relacionada à improbidade administrativa, mas sim de atribuições dos órgãos da advocacia pública, imputando-lhes o dever de atuação na defesa judicial dos agentes públicos, quando estes forem alvos de investigação por atos praticados em consonância com pareceres jurídicos lavrados pelos procuradores públicos.
Aqui, ainda que seja, até certo ponto, elogiável a intenção do legislador – pois se o gestor público que fundamentar sua atuação em parecer do advogado público vier a ser processado em virtude desse ato é razoável que seja defendido pela respectiva procuradoria -, não cabe a União dispor sobre a estrutura organizacional dos órgãos da Advocacia Pública estadual ou municipal, por ausência de competência para tanto.
Em observação ao princípio constitucional do pacto federativo (art. 1º da CF/88), cada ente federativo possui a competência para organizar sua estrutura administrativa, inclusive os órgãos da Advocacia Pública.
Nesse sentido já decidiu o Pretório Excelso:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. INC. III DO ART. 7ª DA LEI COMPLEMENTAR MINEIRA Nº 30/1993, PELO QUAL SE DISPÕE SOBRE A COMPETÊNCIA DO ADVOGADO-GERAL DO ESTADO PARA RECEBER A CITAÇÃO INICIAL OU COMUNICAÇÃO REFERENTE À AÇÃO OU PROCESSO AJUIZADO CONTRA O ESTADO OU SUJEITO À INTERVENÇÃO DA PROCURADORIA-GERAL. ALEGADA OFENSA AO INC. LXVIII DO ART. 5º, AO INC. I DO ART. 22 E AO CAPUT DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS ESTADOS. AUSÊNCIA DE OFENSA À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E AO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE.
1. Nos termos do art. 132 da Constituição da República, cada Estado detém competência para organizar sua representação judicial e extrajudicial, que deve ser realizada por procuradores de carreira, incluída, nesta competência, a formulação de leis sobre procedimentos em matéria processual, atendidas as peculiaridades locais. (STF. ADI 5.773/MG, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Pleno, Dje-097, julgado em 21/05/21) (Grifei)
Assim, a única interpretação conforme à Constituição seria a que compreende ao dispositivo abrangência federal, ou seja, vinculando apenas os órgãos da Advocacia Pública da União.
Ademais, ao disciplinar as atribuições dos procuradores dos Estados e do Distrito Federal, o art. 132 da Magna Carta se limita a dispor que “exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas”, sem fazer qualquer referência à representação judicial (e extrajudicial dos servidores), de modo que qualquer deliberação nesse sentido se encontra no âmbito do constituinte derivado e do legislador estadual.
Logo, não se deve presumir que os advogados públicos deveram defender os agentes públicos, notadamente porque compõem órgão de Estado e não de governo – e muito menos de seus governantes e ex-governantes.
Por todo o acima exposto, compete aos Estados, Distrito Federal e Municípios disciplinarem na sua legislação local as eventuais ocasiões nas quais seus órgãos da Advocacia Pública deverão atuar da representação judicial (ou extrajudicial) dos agentes públicos.
Em resumo, é papel do constituinte derivado e do legislador estadual estabelecer as situações excepcionais de representação dos agentes públicos pelas procuradorias estaduais, distrital ou municipais, haja vista que não há impositivo na Constituição Federal nesse sentido.
Além da invasão à competência legislativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios, referida previsão legal, ao criar novas funções para os advogados públicos, também desrespeitou a previsão do art. 61, §1º, II, “c”, da Lei Maior, pois violou a competência privativa do Chefe do Poder Executivo para dispor sobre o regime jurídico dos servidores públicos.
Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
(...)
II - disponham sobre:
(...)
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Grifei)
Em virtude da aplicação do princípio da simetria, referida reserva de iniciativa também se aplica aos Estados membros. Justamente nesse sentido já se manifestou o Emérito Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Legislação estadual paulista de iniciativa parlamentar que trata sobre a vedação de assédio moral na administração pública direta, indireta e fundações públicas. Regulamentação jurídica de deveres, proibições e responsabilidades dos servidores públicos, com a consequente sanção administrativa e procedimento de apuração. Interferência indevida no estatuto jurídico dos servidores públicos do Estado de São Paulo. Violação da competência legislativa reservada do chefe do poder executivo. Descumprimento dos arts. 2º e 61, §1º, II, c, da constituição federal. (STF, ADI 3.980/SP, Relatora: Min. Rosa Weber. Pleno, Dje-282, julgado em 18/12/2019)
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 8.865/2006 do Estado do Rio Grande do Norte. Obrigação de a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte prestar serviço de assistência judiciária, durante os finais de semana, aos necessitados presos em flagrante delito. [...] Os arts. 2º e 3º da Lei 8.865/2006, resultante de projeto de lei de iniciativa parlamentar, contêm, ainda, vício formal de iniciativa (art. 61, §1º, II, c, CF/1988), pois criam atribuições para a Secretaria de Estado da Educação, Cultura e dos Desportos (art. 2º), para a Secretaria de Estado de Defesa Social e Segurança Pública (art. 2º) e para a Polícia Civil (art. 3º), sem observância da regra de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo estadual. (STF, ADI 3.792/RN, Relator: Min. Dias Toffoli. Pleno, Dje-168, julgado em 01/08/2017)
Portanto, clara a inconstitucionalidade formal do referido dispositivo legal, por afronta aos preceitos constitucional que regulam o processo legislativo.
Nesse sentido, foi a decisão exarada pelo Min. Alexandre de Moraes, em sede de medida cautelar, nas ADI’s 70.42 e 7.043 (citadas em tópico anterior), que, dentre outros pontos, suspendeu os efeitos do sobredito §2º do art. 17 da CF/88.
3.8. REEXAME NECESSÁRIO NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
O reexame necessário, instituto previsto no art. 496 do Código de Processo Civil 2015 e em algumas leis esparsas, possui, de acordo com a doutrina majoritária, natureza jurídica de condição de eficácia da sentença.
Em linhas gerais, aplica-se o referido instituto quando a sentença do juízo de 1º grau for contra os interesses da Fazenda Pública. Ocorrendo tal julgamento desfavorável, mesmo que o ente público não recorra, essa sentença só terá eficácia após confirmação pelo Tribunal ad quem. Ou seja, só haverá trânsito em julgado após o reexame necessário.
Entretanto, não são todas as sentenças desfavoráveis à Fazenda Pública que se submetem ao reexame necessário. O CPC/2015, nos §§ 3º e 4º do art. 496, trouxe exceções à aplicação de referido instituto. Nessas situações, que podem ser relacionadas ao montante do proveito econômico envolvido (critério quantitativo) ou à consonância da sentença com orientação jurisprudencial ou administrativa firmada (critério qualitativo), não há referida condicionante ao trânsito em julgado.
A Lei nº 4.717/65, conhecida como lei da ação popular, inovou no ordenamento jurídico, dispondo em seu art. 19 que se o juiz concluir pela carência ou pela improcedência da ação, referida sentença estará sujeita ao reexame necessário. Essa previsão passou a ser chamada pela doutrina de reexame necessário “invertido”, pois, ao invés de resguardar os interesses do ente público, serviria como uma proteção aos interesses dos cidadãos.
Tecidas essas considerações introdutórias, passa-se a relação entre o reexame necessário e a ação de improbidade administrativa.
O Colendo STJ possui vários julgados no sentido de que o instituto do reexame necessário “invertido” é aplicável às ações de improbidade administrativa julgadas improcedentes ou extintas em razão da carência de ação, in verbis:
A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência de ação de improbidade administrativa está sujeita ao reexame necessário, com base na aplicação subsidiária do CPC e por aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65. (STJ. 1ª Seção. EREsp 1.220.667-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 24/5/2017 - Info 607). (Grifei)
Esse, portanto, era o cenário antes da Lei nº 14.230/21. Ocorre, porém, que após as alterações introduzidas na Lei de Improbidade por sobredito diploma legal, passou a ser expressamente vedada a aplicação do reexame necessário nas sentenças proferidas nas ações de improbidade administrativa. Veja-se os dispositivos correspondentes:
Art. 17 (...)
§ 19. Não se aplicam na ação de improbidade administrativa:
(...)
IV - o reexame obrigatório da sentença de improcedência ou de extinção sem resolução de mérito.
(...)
§ 3º Não haverá remessa necessária nas sentenças de que trata esta Lei.
Ante o exposto, esse é mais um ponto em que a Lei nº 14.230/21 vai frontalmente de encontro com a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, positivando um posicionamento jurídico contrário a uma construção que visava proteger o interesse público.
3.9. AS DISPOSIÇÕES DA NOVA LEI RETROAGEM PARA ALCANÇAR FATOS OCORRIDOS ANTES DA SUA ENTRADA EM VIGOR?
Como várias disposições introduzidas pela Lei nº 14.230/21 são mais favoráveis ao réu, como, por exemplo, a extinção da modalidade culposa para os atos de improbidade que causem lesão ao erário, passou-se a discutir sobre a retroatividade de tais alterações.
Ab initio, é oportuno reforçar o que consta no subtópico 2.2 acima, no sentido de que a temática da Improbidade Administrativa encontra-se abarcada pelo chamado direito administrativo sancionador, no âmbito do qual, segundo a jurisprudência consolidada do STJ, deve-se observar alguns princípios constitucionais típicos do Direito Penal, dentre eles o da retroatividade da lei mais benéfica. O novo § 4º do art. 1º da Lei nº 8.429/92 trouxe expressamente essa previsão: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.”
Entretanto, é importante destacar que não são todas as novidades que retroagirão. Deve-se observar alguns pressupostos para que seja possível a aplicação retroativa, quais sejam: a) a norma seja de direito material, haja vista que as de direito processual têm aplicação imediata; b) a alteração disponha sobre sanção (as normas que tratam sobre ressarcimento ao erário, por exemplo, apesar de serem de direito material, não retroagem, pois não tem natureza sancionatória, mas sim indenizatória - recomposição patrimonial ao Estado); c) a sanção ainda não tenha se exaurido; e d) a nova versão da norma seja mais benéfica ao réu.
Dito isso, pode-se citar, mais seguramente, no mínimo, duas hipóteses de retroatividade, em virtude de verdadeira abolitio trazida pela novel legislação: a já citada extinção da modalidade culposa de ato de improbidade causador de lesão ao erário; e os casos de aplicação autônoma do caput do art. 11 da antiga redação, haja vista que previa um rol exemplificativo e, atualmente, conforme demonstrado no subitem 2.2, passou a ser taxativo, exceto se o fato tiver sido descrito em algum dos novos incisos do art. 11.
Um ponto mais polêmico quanto à retroatividade ou não das disposições da Lei nº 14.230/21 é o que trata especificamente acerca da prescrição intercorrente, que, nas palavras do Ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, é aquela que “ocorre no curso do processo e em razão da conduta do autor que, ao não prosseguir com o andamento regular ao feito, se queda inerte, deixando de atuar para que a demanda caminhe em direção ao fim colimado.”
Ratifique-se que, conforme frisado no subtópico 2.3 acima, antes da Lei nº 14.230/21, havia posição consolidada no STJ pela inaplicabilidade da prescrição intercorrente às ações de improbidade.
Após a novel legislação, destacam-se, no mínimo, duas correntes.
A primeira defende que a prescrição intercorrente se trata de instituto de direito processual e, portanto, segundo art. 2º do CPP[2], deve se aplicar apenas aos processos em curso em diante.
Logo, em regra, aplicar-se-ia o princípio do tempus regit actum, ou seja, o tempo rege a ação. Desse princípio, derivam dois efeitos: a) as normas processuais têm aplicação imediata, regulando o desenrolar restante do processo, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF; art. 6º da LINDB e art. 2º do CPP); b) Os atos praticados sob a vigência da lei anterior são considerados válidos. Essa é a posição defendida pelo Prof. Renério de Castro Júnior no livro Manual de Direito Administrativo, cuja transcrição de trecho emerge oportuna:
A doutrina e jurisprudência, certamente, levantarão fortes controvérsias sobre a aplicação das novas regras de prescrição a processos em curso. Nesse quesito, essencial distinguir a prescrição ordinária, instituto de Direito material, da prescrição intercorrente, de índole processual.
Quanto à prescrição ordinária, deve prevalecer o entendimento de que se aplica retroativamente para beneficiar o réu. Assim, pode retroagir o novo prazo prescricional de oito anos (via de regra, contado a partir da data da ocorrência do fato) quando ele for mais benéfico ao réu.
Quanto à prescrição intercorrente, tendo em vista sua natureza processual, deve ser reconhecida sua aplicação imediata aos processos em curso (art. 14 do Código de Processo Civil – CPC), mas apenas no que tange a atos processuais não concluídos, não retroagindo aos atos processuais já praticados.
Assim, tendo em vista que a prescrição intercorrente da nova Lei de Improbidade se refere a fases processuais (entre o ajuizamento da ação e a sentença condenatória tem-se a primeira fase; entre esta e o julgamento do recurso de apelação, a segunda), se a fase respectiva já teve início, não se pode aplicar a ela a prescrição intercorrente, pois, nesse caso, a lei não estaria tendo aplicação imediata, na forma do citado art. 14 do CPC, mas retroativa, apara alcançar atos já praticados.
Já a segunda vertente sustenta que se trata de norma de natureza híbrida (com previsões de direito material e processual), devendo, pois, retroagirem as normas que tenham repercussão no direito penal, como no caso da prescrição. Essa posição é defendida pelo autor Marcio André Lopes Cavalcante, tomando por fundamento, notadamente, a interpretação do § 8º do art. 23 da LIA[3], ao qual me alinho.
4. CONCLUSÃO
Registre-se, por oportuno, que as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/21 não se restringem as acima citadas. Entretanto, o recorte epistemológico realizado para o presente trabalho selecionou apenas as supramencionadas.
Ao realizar as pesquisas doutrinárias e jurisprudências relacionadas ao tema abordado foi possível constatar que as mudanças promovidas pela novel legislação impactarão significativamente na aplicação da Lei de Improbidade. As alterações foram tão significativas que talvez tivesse sido mais adequada a revogação da lei anterior (como ocorreu com a lei de licitações e contratos), mas, por alguma razão, essa não foi a opção do legislador.
De modo geral, algumas mudanças contribuíram para o enfraquecimento do sistema de proteção à probidade administrativa, como, por exemplo, a subtração da legitimidade dos entes públicos prejudicados para a propositura da ação de improbidade e para formulação de acordos de não persecução civil, bem assim a fixação do termo inicial da contagem do prazo prescricional na data da ocorrência do ato ímprobo e a aplicação da prescrição intercorrente. Assim, nesses pontos, penso que houve certo retrocesso no combate à improbidade administrativa, seja pelo aumento da probabilidade do não ajuizamento da ação devida em todos os casos em que reste comprovado o ato ímprobo – por impossibilidade natural do Ministério Público se desincumbir do volume de demandas que antes eram compartilhadas com as procuradorias dos entes públicos –, seja pela ocorrência da prescrição – que em muitos casos ocorrerá, seja na modalidade ordinário (pois o termo inicial no momento da ocorrência do ato ímprobo favorece tal instituto), seja na modalidade intercorrente, que antes não se aplicava à ação de improbidade, haja vista a intricamento inerente a grande parte dos processos que têm essa temática, seja pela quantidade de réus ou complexidade do caso concreto.
Por outro lado, algumas modificações visaram trazer maior segurança jurídica para a atuação dos gestores públicos, notadamente os honestos, como, por exemplo, a extinção da forma culposa da modalidade de improbidade que causa lesão ao erário, haja vista que, antes da reforma, a legislação deixava margem considerável para enquadramento nos preceitos do art. 10 da LIA de atos praticados com incompetência técnica ou falta de habilidade, embora não desonestos.
Tal possibilidade vinha resultando no que a doutrina intitulou de direito administrativo do medo e, consequentemente, no “apagão das canetas”, que, conforme delineado no subitem 2.1 do presente trabalho nada mais é do que a paralisia das decisões como consequência do medo que os agentes públicos passaram a ter do controle externo, optando, em muitas ocasiões, por nada decidir, de modo a evitar riscos decisórios, o que acaba trazendo graves consequências à boa gestão pública, às políticas públicas e, em última análise, aos direitos dos administrados.
Diante desse cenário, algumas alterações trazidas pela Lei nº 14.230/21 contribuem, repise-se, para uma maior segurança jurídica e tendem a encorajar o gestor a assumir uma posição mais proativa na tomada de decisões.
Ratifique-se, não só o fim da modalidade culposa do art. 10, mas também a transformação do rol do art. 11 em taxativo, a legitimidade exclusiva do Ministério Público para o ajuizamento das ações de improbidade (o que, em tese, tende a diminuir o ajuizamento de ações motivadas por disputas entre adversários políticos), o estabelecimento de prazos para a conclusão das investigações por suposto ato ímprobo e a possibilidade de aplicação da prescrição intercorrente, são algumas das mudanças nesse sentido e que foram abordadas nesse trabalho de conclusão.
Por fim, interessante refletir se seria possível a aplicação da Teoria do Desvio de Poder quanto as alterações trazidas pela Lei nº 14.230/21. Explica-se.
Doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que todos os atos emanados do poder público, para que sejam considerados materialmente válidos, devem observar padrões mínimos de razoabilidade.
Segundo o Supremo Tribunal Federal “as normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se á cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’”.
O princípio do devido processo legal, no que tange ao processo legislativo constitucional, abrange os aspectos formal e o material. O primeiro se refere à observância dos trâmites previstos nos art. 59 e ss. da Magna Carta: espécie legislativa adequada, capacidade de iniciativa, quoruns de instalação das sessões e votação, processo legislativo strito sensu etc. Já a vertente material do due process of law abrange a verificação de conformidade com os princípios constitucionais expressos e implícitos, notadamente a dignidade da pessoa humana, a razoabilidade e a proporcionalidade.
Continua o Pretório Excelso sobre o tema, “a exigência de razoabilidade – que visa inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas – atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais.”
No julgamento da ADI 2667, a Corte Suprema dispôs:
A teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas, permite que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar.
Assim, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas, deve-se reconhecer que o Estado não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. (STF. Plenário. ADI 2667, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 05/10/2020.) (Grifei)
Ou seja, em síntese, não pode o legislador, sob o argumento de exercer sua função constitucional de elaboração das normas se descolar dos princípios constitucionais que regem o ordenamento jurídico pátrio e produzir leis imoderadas que gerem, em última análise, situações normativas absurdas e capazes de subverter os objetivos da própria função legiferante do Estado.
Diante de tais preceitos e considerando o aparente retrocesso de algumas alterações trazidas pela Lei nº 14.230/21, capazes, em tese, de contribuir para o enfraquecimento do sistema de proteção à moralidade administrativa - princípio constitucional expresso -, bem assim à probidade administrativa, tido por considerável parte da doutrina como direito constitucional difuso; seria possível a aplicação da Teoria do Desvio de poder neste caso? Fica essa pergunta para reflexão.
Evidente que, por se tratar de alteração bastante recente, somente será possível se concluir acercas das consequências práticas das várias modificações legislativas introduzidas pela novel legislação com o passar do tempo, a aplicação pelo Poder Judiciário e a consolidação da jurisprudência dominante.
O que há de certo, no momento, é a grande mudança no cenário legislativo no âmbito da ação por ato de improbidade administrativa, com impactos em vários aspectos processuais e materiais, bem assim uma inegável mudança paradigmática do legislador.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, Ed. Juspodivm, 9ª Edição, 2021.
COSTA, José Armando da. Contorno jurídico da improbidade administrativa. Ed. Brasília Jurídica, 2000.
CASTRO JÚNIOR, Renério de. Manual de Direito Administrativo, Ed. Juspodivm, 2ª Edição, 2022.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. Ed. Forense, 13ª Edição, 2016.
VALE, Luís Manoel Borges do; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Os impactos da reforma da Lei de Improbidade Administrativa na Advocacia Pública. Revista Brasileira de Direito Público (RBDP), Belo Horizonte, ano 20, n. 76, p. 9-29, jan./mar. 2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Existe prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa?. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/fb89705ae6d743bf1e848c206e16a1d7>. Acesso em: 06/06/2022
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Legislação. Constituição Federal de 1988. Brasília/DF: [s.n], s.d. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Legislação. Lei nº 8.429 de 1992. Brasília/DF: [s.n], s.d. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8429compilada.htm
[1] Site http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
[2] Art. 2º do CPP. A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.
[3] Art. 23 (...)
§ 8º O juiz ou o tribunal, depois de ouvido o Ministério Público, deverá, de ofício ou a requerimento da parte interessada, reconhecer a prescrição intercorrente da pretensão sancionadora e decretá-la de imediato, caso, entre os marcos interruptivos referidos no § 4º, transcorra o prazo previsto no § 5º deste artigo.
Especialista em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, José Yuri Pinto. Lei nº 14.230/2021: avanço ou retrocesso no combate aos atos de improbidade administrativa? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59642/lei-n-14-230-2021-avano-ou-retrocesso-no-combate-aos-atos-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.