VIVIAN MONTEIRO MAGALHÃES[1]
(coautora)
RESUMO: O presente estudo busca analisar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha para mulheres transexuais. Destaca-se que, a referida Lei Maria da Penha é uma legislação protetiva que fez toda a diferença para as mulheres brasileiras. Na verdade, foi por causa de uma pessoa que se chama Maria da Penha é que se criou a legislação definida pela Lei nº. 11.340/06. Maria da Penha foi uma pessoa que sofreu inúmeros tipos de violência, tanto que seu caso foi parar em um Tribunal Internacional que, ao intervir, determinou que o Brasil criasse meios para prevenir e punir agressores que têm como vítimas as mulheres em ambientes domésticos. De tal forma, ao ser criada, a Lei nº. 11.340/06, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, ajudou no combate à violência doméstica, fazendo com que muitos homens se afastassem de casa ou fossem punidos. Por outro lado, com as mudanças culturais e sociais que ocorrem no cotidiano das pessoas, passam a existir as transexuais ou transgêneros, que são pessoas que se identificam com um gênero diferente do seu sexo atribuído no momento do nascimento. Com efeito, fica a pergunta se à pessoa que nasceu como homem, mas posteriormente se transformou em mulher, inclusive, alterando seu registro civil, pode aplicar a Lei Maria da Penha. O presente estudo visa apresentar justamente essa questão relacionada aos transgêneros e entender quais são as explicações sociais, jurídicas e psicossociais sobre o assunto, para no fim, concluir se a Lei Maria da Penha se aplica ou não para estas pessoas. Faz-se necessário analisar pesquisas oriundas de artigos científicos, bibliografias e jurisprudência referentes ao tema, traçando uma análise histórica da luta contra à violência doméstica.
Palavras-chave: Transexual. Transgêneros. Lei Maria da Penha. Aplicabilidade.
ABSTRACT: The present study seeks to analyze the applicability of the Maria da Penha Law for transsexual women. It is noteworthy that the aforementioned Maria da Penha Law is a protective legislation that made all the difference for Brazilian women. In fact, it was because of a person called Maria da Penha that the legislation defined by Law no. 11,340/06. Maria da Penha was a person who suffered numerous types of violence, so much so that her case ended up in an International Court that, by intervening, determined that Brazil create means to prevent and punish aggressors who have women in domestic environments as victims. In such a way, when created, Law no. 11.340/06, popularly known as the Maria da Penha Law, helped to combat domestic violence, causing many men to move away from home or be punished. On the other hand, with the cultural and social changes that occur in people's daily lives, transsexuals or transgenders come into being, which are people who identify with a gender different from their assigned sex at birth. In fact, the question remains whether a person who was born as a man, but later became a woman, even altering his or her civil registry, can apply the Maria da Penha Law. The present study aims to present precisely this issue related to transgender people and understand what are the social, legal and psychosocial explanations on the subject, in order to conclude whether or not the Maria da Penha Law applies to these people. It is necessary to analyze research from scientific articles, bibliographies and jurisprudence related to the subject, outlining a historical analysis of the fight against domestic violence.
Keywords: Transsexual. Transgender. Maria da Penha Law. Applicability.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006) conhecida como Lei Maria da Penha promulgada visando a proteção da mulher em situação de violência doméstica no Brasil, vem sofrendo adequações ano após ano, tendo em vista que as vítimas devem sair da delegacia com medida protetiva. Entretanto, em alguns casos, não existe uma disposição expressa na lei, como no caso da aplicabilidade das medidas protetivas às pessoas transexuais ou transgêneros.
Evidencia-se, neste caso, a ineficácia da Lei para algumas situações, sendo que a mulher trans enfrenta ao longo de sua vida inúmeras formas de violências domésticas. Reitera-se que a lei não é clara quanto à aplicação das medidas de proteção para transgêneros e transexuais, mas, para as que vivem uma crise existencial por viverem em um corpo oposto ao seu gênero declarado e por se sentirem excluídas da sociedade, sem proteção do poder legislativo, o judiciário deve dar uma resposta efetiva.
Aliás, os Tribunais estão em discussão a respeito da aplicação da lei protetiva aos transexuais, sendo que a discordância está na aceitação da mulher transgênero no papel social da mulher, mulher vulnerável, visto que poucos conseguem realizar a cirurgia para mudança de sexo e a alteração do registro civil.
Desta feita, surge o problema de pesquisa, qual seja: é aplicável a Lei Maria da Penha as mulheres transexuais e transgêneros? Assim, com o presente artigo, busca-se analisar sobre esta aplicação, destacando a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto.
Os procedimentos metodológicos adotados para o desenvolvimento deste artigo consistem na análise da legislação vigente, doutrina e decisões judiciais relacionada à temática abordada através da coleta de dados e informações de artigos científicos publicados em revistas, literatura especializada, obras literárias e redações publicadas na internet.
O presente artigo é dividido em quatro partes, sendo as considerações iniciais, em que é apresentado o problema, objetivo e metodologia de pesquisa; seguido do referencial teórico, em que são abordadas as teorias e temáticas relacionadas ao tema objeto de estudo, e ao final são apresentadas as considerações finais seguidas das referências que contribuíram para construção da presente investigação.
Uma vez traçado, em linhas gerais a estrutura do presente artigo, para alcançar o objetivo proposto faz-se necessário adentrar na análise de alguns temas relacionados à temática apresentada, o que se faz nos tópicos a seguir.
2. HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA GRUPOS MINORITÁRIOS
Para analisar sobre a violência contra grupo minoritário, pertinente destacar o que é a violência, como e quando ela ocorre. De início, pode-se dizer que o significado de violência é histórico e cultural, ou seja, varia de acordo com época e com o local de onde se fala. Nas palavras da Promotora de Justiça, Nívia Mônica da Silva (2017):
A perspectiva contemporânea desse termo é conceitualmente ampla, o que significa dizer que a violência não se concretiza apenas quando há prática de crimes. Adota-se, a ideia de que a violência abrange outras experiências que as pessoas considerem desrespeitosas e injustas.
Na história da humanidade, não são raras as lutas pelos direitos, principalmente dos grupos minoritários e que visam melhores condições de vida e de maior proteção. Neste sentido, Nívia Mônica da Silva (2017) alerta:
Diversos grupos de pessoas têm sido historicamente privados de usufruir direitos em virtude de sua etnia, idade, identidade de gênero, orientação sexual, cor da pele, religião ou pela comunidade a que pertencem, por exemplo. Sentindo-se violentadas pelo desrespeito às características que as diferenciam das outras, essas pessoas se uniram em grupos e começaram a lutar para serem reconhecidas como merecedoras de igual respeito e consideração.
Estes grupos minoritários vêm lutando por um espaço no corpo social, sem haver qualquer espécie de discriminação e violência. Estas pessoas estão mais expostas a este tipo de reação em virtude da sua vulnerabilidade, a qual está vinculada a características discriminadas pela sociedade.
Nívia Mônica da Silva (2017) descreve grupo vulnerável com as seguintes palavras, litteris:
Grupo vulnerável é um conjunto de pessoas que, por questões ligadas a gênero, idade, raça, etnia, condição social, deficiência, orientação sexual, crença religiosa, nacionalidade e opinião política, entre outras características, se tornam mais suscetíveis a sofrer violação de seus direitos.
A título de exemplo de um desses grupos de pessoas vulneráveis estão as mulheres transexuais e os transgêneros. Sobre a vulnerabilidade da mulher, Lucilene Garcia (2011) aponta: “Desde os tempos bíblicos que a mulher tem passado por gravíssimas violações em seus direitos mais elementares, como direito à vida, à liberdade e a disposição de seu corpo”.
Maria Amélia de Almeida Teles e Mônica de Melo citadas por Lucilene Garcia (2011) apresentam outros exemplos a respeito do assunto:
[...] são inúmeros os exemplos da prática de atos de submissão e hostilidade sexuais que, frequentemente, foram levados aos extremos: venda e troca de mulheres, como se fossem mercadorias, mulheres escravizadas, violadas, vendidas à prostituição, assassinadas por ocasião de morte de seus senhores e maridos, ou ainda a mutilação genital feminina (amputação do clitóris)
Nas civilizações antigas também era comum esta violência contra a mulher. Ilustrando o tema, Sandra Pereira Aparecida Dias (2010) discorre sobre a civilização Grega, na Idade Média e Idade Moderna:
Nas civilizações Gregas, a mulher era vista como uma criatura subumana, inferior ao homem. Era menosprezada moral e socialmente, e não tinha direito algum. Na Alexandria romanizada no séc. I d.C, Filón, filósofo helenista lançou as raízes ideológicas para a subordinação das mulheres no mundo ocidental. Ele uniu a filosofia de Platão, que apontava a mulher como tendo alma inferior e menos racionalidade, ao dogma teológico hebraico, que mostra a mulher como insensata e causadora de todo o mal, além de ter sido criada a partir do homem. Na Idade Média a mulher desempenhava o papel de mãe e esposa. Sua função precípua era de obedecer ao marido e gerar filhos. Nada lhe era permitido. Na Idade Moderna, ao lado da queima de sutiãs em praças públicas, simbolizando a tão sonhada liberdade feminina, vimos também as esposas serem queimadas nas piras funerárias juntas aos corpos dos marido falecidos ou incentivadas, para salvar a honra da família, a cometerem suicídio, se houvessem sido vítimas de violência sexual, mesmo se a mesma tivesse sido impetrada por um membro da família, um pai ou irmão, que nem sequer era questionado sobre o ato.
Nesta perspectiva, a sociedade embora evoluísse, sempre teve essa visão de inferioridade em relação à mulher. Inclusive, no ordenamento jurídico ela nunca teve qualquer proteção, tanto é verdade que o homem no casamento era considerado o chefe. (COMEL, 2007).
Então, conforme a mulher foi criando sua independência financeira, muitos maridos e companheiros se incomodaram, acreditando que aquilo seria uma afronta aos costumes arraigados na sociedade. Por esta razão às agressões físicas, morais e patrimoniais começaram a ser exacerbadas. (MEMÓRIAS DA DITADURA, 2016).
No que tange aos transgêneros, entre os anos de 1950 e de 1960, o site Memórias da Ditadura (2016) relata que: “[...] o período ficou assinalado pelo recrudescimento da ditadura civil-militar”. E ainda, discorre: “A comunidade LGBT brasileira manteve seus locais de sociabilidade em guetos. Longe de poderem se organizar como movimento político”. (MEMÓRIAS DA DITADURA, 2016).
Cumpre destacar: “O atraso na formação e consolidação das lutas contra o preconceito sexual deve-se tanto à repressão do regime ditatorial quanto à ausência do debate sobre a questão entre os grupos de esquerda que combatiam a ditadura”. (MEMÓRIAS DA DITADURA, 2016).
Ademais, o site Memórias da Ditadura (2016) demonstra também sobre a discriminação sistemática, que se estendeu no aspecto do trabalho:
A discriminação sistemática estendeu-se também ao mundo do trabalho. Um exemplo foi a organização da chamada Comissão de Investigação Sumária, instalada em 1969 no Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Seu objetivo era a repressão a homossexuais, alcoólatras e a pessoas consideradas emocionalmente instáveis, dentro do Itamaraty.
No que tange a legislação, o Ato Institucional nº. 5 (BRASIL, 1968) cassou funcionários sob a acusação de prática de homossexualismo, conforme informa o site Memórias da Ditadura (2016):
Em 1969, após o AI-5, o órgão formulou uma lista que culminou com a cassação de 44 funcionários, a maior da história deste órgão, sob a acusação de afrontarem os valores do regime em suas condutas na vida privada. Dentre quinze pedidos de exoneração de diplomatas, sete tinham como justificativa a “prática de homossexualismo” e a “incontinência pública escandalosa”. Outros dez diplomatas suspeitos de tal prática deveriam passar por exames médicos e psiquiátricos e, caso ficassem comprovadas as acusações, eles também seriam ser afastados. Além desses fatos lamentáveis ocorridos em órgãos governamentais, homossexuais e travestis viviam em regime de terror, sendo frequentemente perseguidos e presos pelas polícias nas ruas.
Já entre os anos de 1975 a 1982, a violência continuou, de forma que a Polícia passou a realizar abordagens aos homossexuais por suposta prática de vadiagem:
Entre os anos de 1975 e 1982, durante as administrações de Paulo Egydio Martins e Paulo Maluf, em São Paulo, as rondas policiais no centro da cidade eram destinadas especialmente à abordagem violenta e à prisão dessas pessoas pela suposta prática de vadiagem. (MEMÓRIAS DA DITADURA, 2016).
Cumpre asseverar, mesmo após estes episódios de horror contra transgêneros, décadas atrás, bem como atualmente, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) limitou-se a equiparar os direitos e deveres entre homens e mulheres, fundamentando-se no sexo e ignorando as distinções de gênero e a orientação sexual. Sob o pretexto de proteger a família, a sociedade, seus valores e sua moral, a questão LGBT foi praticamente excluída do texto constitucional.
Com efeito, nota-se a necessidade de interpretar as leis já existentes em prol dos indivíduos transgêneros, os quais estão à mercê de proteção Estatal e Jurídica. Pois, muito embora a violência contra a mulher ainda não tenha sido aniquilada por completo, há no ordenamento jurídico uma norma específica para tanto, o que não aconteceu com lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.
2.1 A criação da Lei Maria da Penha, princípio da isonomia, objetivos e sujeito
A Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006), conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, foi criada com o objetivo de erradicar a violência no ambiente doméstico, tendo como requisito para aplicação a vulnerabilidade da vítima em relação ao agressor. Em seu texto, a lei não contempla apenas os casos de agressão física, mas também, situações de violência psicológica, destruição de objetos e documentos, difamação e calúnia.
Conforme dispõe seu artigo 5º, caput: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. (BRASIL, 2006).
Trata-se, pois, de uma legislação das melhores do mundo, conforme analisa Elves Dias (2015):
A Lei 11.340, de 07/08/2006 (Lei Maria da Penha) é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, perdendo apenas para Espanha e Chile. A dianteira ficou com a lei espanhola considerada a melhor legislação no enfretamento a violência domestica seguida pela legislação chilena.
Sua criação não foi um ato voluntário do Brasil. As providências para extirpar a violência contra a mulher só ocorreu após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenar o Estado Brasileiro por negligência, omissão e tolerância sobre episódios de violência doméstica perpetrados contra mulheres. (DIAS, 2010).
A condenação foi respaldada na inércia do país em punir o caso de violência doméstica que teve como vítima Maria da Penha Maia Fernandes. Com efeito, com o parecer da Comissão Interamericana, o Estado brasileiro criou a legislação protetiva para os casos em que envolvem violência doméstica, sendo que seu artigo 1º assim descreve:
Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (BRASIL, 2006).
Por outro lado, existe o princípio da isonomia, também conhecido como princípio da igualdade, e que se trata de um vetor principiológico baseado na própria democracia do país, pois, todos devem ser iguais perante a lei, inclusive, devendo haver um equilíbrio para aqueles que são mais frágeis e hipossuficientes em comparação ao outro.
Em decorrência da aplicação deste princípio, existem críticos que consideram a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) inconstitucional, justamente por acreditar que ela fere esse princípio. Neste particular, é necessário fazer uma diferenciação entre a isonomia formal e a material.
No tocante a isonomia formal, conforme explica Ticiane Vitoria Figueiredo (2011):
[...] a Constituição Federal só reconhece a igualdade no seu sentido jurídico-formal de “igualdade perante a lei”, neste caso refere-se somente à igualdade em direitos. A isonomia material, por sua vez consiste em uma equiparação mediante as diferenças sociais, seria então, uma igualdade no sentido lato.
Com efeito, é inegável quando se fala em homens e mulheres não considerar a desigualdade gritante entre eles. Neste sentido, os doutrinadores Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (1988, p. 18) se manifestam sobre o assunto: “[...] por serem diferentes, em alguns momentos haverá forçosamente de possuir direitos adequados a estas desigualdades”.
Assim sendo, conforme esclarece Ticiane Vitoria Figueiredo (2011):
[...] para que homens e mulheres sejam iguais perante a lei e a sociedade, é necessário que haja uma “ferramenta” que possibilite uma equiparação, ainda que forçada, entre eles. Com base nestas argumentações, a Lei Maria da Penha pode ser considerada uma destas ferramentas.
Assim, não se pode conceber que a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) fere o princípio da isonomia, pois, todos devem ser tratados de forma igual, sendo que algumas normas devem existir justamente para dar esse equilíbrio entre as pessoas.
Sobre o objetivo da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) trata-se de: “[...] coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. (art. 1º). Em uma leitura sem adentrar na finalidade primordial da lei, acredita-se que cuida de toda e qualquer violência contra mulher. Seu artigo 5º esclarece a questão, mencionando que “[...] configura violência doméstica e familiar qualquer ação ou omissão baseada no gênero”, dependendo ainda das circunstâncias que estão previstas em seus incisos. (BRASIL, 2006).
A partir deste detalhe, é possível uma análise da aplicação da lei apenas quando ocorrem agressões, sejam físicas, sexuais, psicológicas ou patrimoniais em um ambiente onde a mulher esteja vulnerável. Este ambiente se denomina como doméstico, que é onde a mulher não possui de meios para se proteger.
Para a aplicação da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006) será necessário a análise do caso concreto em consonância com uma das hipóteses previstas no artigo 5º. Isto é, não preenchido um daqueles requisitos, a norma prevista na Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2016) não será empregada.
Para esclarecer, veja a seguinte situação: uma mulher está andando pela rua e de repente por uma situação alheia entra em conflito com um homem desconhecido, na oportunidade ele a empurra, com intenção de afastá-la. Como resultado, configurou o delito de vias de fato, previsto no artigo 21 do Decreto-Lei nº. 3.688/41. (BRASIL, 1941).
Neste caso, é notório que a violência praticada foi em razão de simples atrito cotidiano, não podendo falar em aplicação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), pois a circunstância em que ocorreu o evento não está descrita nos incisos do artigo 5º.
Diferente seria se o homem fosse companheiro da vítima, que nesse caso enquadraria na hipótese do artigo 5º, inciso III da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006), pois nessa situação teria uma relação íntima de afeto.
Com efeito, para que fique configurada a violência doméstica com incidência da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), ela deve estar ligada a uma questão de gênero, praticada em um contexto familiar, doméstico ou em razão de relação intima de afeto, que resulte, dentre outros fatos, morte, lesão sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. (BIANCHINI, 2013).
Não há dúvida, portanto, no sentido de que para sua aplicação é necessário no mínimo à convivência entre vítima e agressor, estando aquela sob uma vulnerabilidade.
Sobre o sujeito passivo e ativo, o artigo 5º da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006) determina que, para seus efeitos: “[...] configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”; a ser praticada no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto.
Em um primeiro momento, diante deste conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, pode-se afirmar que os sujeitos do crime previsto na Lei 11.340/06 (BRASIL, 2006), são:
a) sujeito passivo: somente a mulher que tenha sido vítima de agressão decorrente de violência doméstica e familiar;
b) sujeito ativo: somente o homem.
Renato Brasileiro de Lima explica (2016, p. 899):
Para a caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher, não é necessário que a violência seja perpetrada por pessoas de sexos distintos. O agressor tanto pode ser um homem (união heterossexual) como outra mulher (união homoafetiva). A propósito, basta atentar para o quanto disposto no art. 5°, parágrafo único, da Lei n° 11.340/06, que prevê que as relações pessoais que autorizam o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher independem de orientação sexual. Assim, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros de identidade feminina estão ao abrigo da Lei Maria da Penha, quando a violência for perpetrada entre pessoas que possuem relações domésticas, familiares e íntimas de afeto.
Contudo, devido ao disposto no artigo 5º, parágrafo único, da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006): “[...] as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”; ou seja, quando se fala em violência doméstica e familiar contra a mulher, o foco principal de tudo isso é o sujeito passivo, a mulher, sendo que independe se o sujeito ativo da violência é homem ou mulher.
2.2 Violência baseada em gênero
A violência de gênero é um padrão específico de violência, ou seja, escolhe-se a vítima por ela ser mulher, ou homossexual, ou negro etc. Neste caso, conforme explica Nívia Mônica da Silva (2017), torna-se algo fundada na: “[...] hierarquia e desigualdade de lugares e papéis sociais sexuados. Essa violência, numa sociedade desigual, patriarcal e heteronormativa como ainda é esta em que vivemos, tende a inferiorizar as mulheres, homossexuais e transgêneros”.
Ademais, a violência de gênero pode ocorrer em vários espaços. Ela acontece tanto no âmbito da comunidade e do trabalho quanto no espaço do lar e das famílias. Ou seja, tem incidência no mundo privado e também no público. (SILVA, 2017).
Neste quadrante, ao analisar o artigo 5º, caput da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2016) é possível observar que a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) trata da violência doméstica e familiar contra a mulher, baseada no gênero. Assim, é digno de explicar que:
[...] a violência contra a mulher é uma forma específica de violência, praticada por qualquer indivíduo, seja homem ou mulher e dirigida à mulher. Acontece que, o termo "mulher" pode se referir tanto ao sexo feminino, quanto ao gênero feminino. Assim sendo, não teria sentido sancionar uma lei, que tivesse como objetivo a proteção apenas de um determinado sexo biológico. (GOMES, 2011).
Deste modo, diz-se que é baseada no gênero: “[...] pelo fato dessa violência se referir às características sociais, culturais e políticas impostas a homens e mulheres e não às diferenças biológicas entre eles”. (GOMES, 2011).
No mesmo sentido são as palavras de Maria Berenice Dias (2007, p. 40): "[...] o gênero recebe uma construção sociológica, é um conceito mais subjetivo, mais ligado ao papel social desempenhado pelo indivíduo do que por suas características biológicas".
Partindo desta premissa, identidade de gênero compreende, conforme inciso II do artigo 1º da Resolução nº. 11/2014 (BRASIL, 2014) do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais:
Art. 1º [...]
II - Identidade de gênero "a profundamente sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos".
Cumpre mencionar que da mesma forma que a mulher, a transexual ou o transgênero, cujo gênero é o feminino, também sofre preconceito e violência, tanto na sociedade de modo geral, quanto nas relações de âmbito doméstico. (SILVA, 2017).
A partir deste raciocínio, analisando a própria literalidade da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006), baseada em gênero, não prevalece dúvidas quanto à aplicação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) para aquele indivíduo que optou por se identificar como mulher no decorrer da vida, embora biologicamente seu sexo seja distinto.
Porém, existe uma distinção entre sexo e gênero. Conforme Quisumbing citado (apud NOHARA, 2015): “[...] mesmo os estudiosos por vezes se confundem no emprego dos termos sexo e gênero”. Para ela, sexo se refere: “[...] às categorias inatas do ponto de vista biológico, ou seja, algo relacionado com feminino e masculino”; já o gênero, conforme Moser citado por Irene Nohara (2015): “[...] diz respeito aos papeis sociais relacionados com a mulher e o homem”.
Em outras palavras, sexo é aquilo que a pessoa nasce, sendo impossível sua mudança, se enquadrando em uma categoria biológica. Sendo o gênero, uma faculdade do ser humano ao longo da vida e apenas uma distinção sociológica. (NOHARA, 2015).
Então, conclui-se que gênero faz menção ao modo como alguém se identifica. Não só a si mesmo como para a sociedade. Neste sentido o indivíduo pode se apresentar como um homem ou mulher ou ambos, sem levar em consideração a sua biologia. (NOHARA, 2015).
Destarte, analisando a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) sob o aspecto de gênero, será totalmente cabível sua aplicação àquelas pessoas que embora tenham nascido com o sexo masculino, durante a vida optou por se reconhecerem do gênero feminino. Sob essa ótica, é necessário abordar alguns conceitos para adequá-los a aplicação da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006).
A orientação sexual, conforme site Grupo Dignidade (2017), refere-se: “[...] à capacidade de cada pessoa ter atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”.
Sobre a questão da identidade de gênero, Nívia Mônica da Silva (2017) descreve:
Transgênero é um termo “guarda-chuva” que se refere a todas as pessoas cuja expressão de gênero não corresponde ao papel social atribuído ao gênero destinado a elas no nascimento. Desse modo, a pessoa não se adequa ao papel esperado pela sociedade para o sexo que fora designado. Mais recentemente, o termo também tem sido utilizado para definir pessoas que estão em trânsito entre um gênero e outro. Entre as/os transgêneros estão as/os transexuais, travestis, drag queens e drag kings, entre outras identidades e formas de expressão.
E neste sentido, considerando que o termo transgênero é a classe, as espécies são:
Transexual: pessoa que possui uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento. Homens e mulheres transexuais podem manifestar o desejo de se submeterem a intervenções médico-cirúrgicas para realizarem a adequação dos seus atributos físicos de nascença (inclusive genitais) e a sua identidade de gênero constituída;
Mulher transexual: ou simplesmente mulher trans é a pessoa que se identifica como sendo do gênero feminino embora tenha sido biologicamente designada como pertencente ao sexo/gênero masculino ao nascer;
Homem transexual: ou simplesmente homem trans é a pessoa que se identifica como sendo do gênero masculino embora tenha sido biologicamente designada como pertencente ao sexo/gênero feminino ao nascer;
Travesti: pessoa que nasce do sexo masculino ou feminino, mas que tem sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico, assumindo papéis de gênero diferentes daquele imposto pela sociedade. No caso de pessoas travestis com identidade de gênero feminina, muitas modificam seus corpos por meio de hormonioterapias, aplicações de silicone e/ou cirurgias plásticas, porém, vale ressaltar que isso não é regra para todas. (GRUPO DIGNIDADE, 2017).
Existe ainda o termo intersexual, que se refere a uma variedade de condições em que uma pessoa nasce com uma autonomia reprodutiva ou sexual que não parecem se ajustar às definições de preponderantes para o feminino ou para o masculino. (GRUPO DIGNIDADE, 2017).
Com efeito, importante salientar que, após o esclarecimento sobre estes conceitos, tão falados hodiernamente, nota-se que a realidade é muito mais complexa que todos esses termos. As pessoas têm o direito e a liberdade de transitarem entre gêneros e desejos sexuais, sem ficarem adstritas há apenas dois gêneros, sejam eles, masculino e feminino.
Em contrapartida, a sociedade ainda não é totalmente preparada para estas mudanças, o que gera violência as pessoas que não seguem o paradigma. Cumpre destacar, as violências sofridas por transgêneros incluem agressões físicas e psicológicas, assédio, discriminação, exclusão, estigmatizarão, preconceito, maus-tratos, dentre outras. Sob este aspecto é de fácil elucidação que são as mesmas violências sofridas por mulheres, fazendo jus a aplicação da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006), desde que no ambiente doméstico, de acordo com o artigo 5º, da referida lei. (SILVA, 2017).
Assim, quando se fala na diferença entre sexo e gênero, significa que o sexo é quando alguém nasce como homem ou mulher. E no que tange ao gênero, o homem ou a mulher deixam de ser o sexo que nasceu, para seguir outra orientação, podendo, ainda, ser através da forma transgênero.
2.3 Adequação da lei às mudanças da sociedade
Neste quadrante, deve ser ressaltado que por meio do poder constituinte (derivado) até a Constituição Federal (BRASIL, 1988) ocorreram mutações para melhor atender os anseios da sociedade moderna. Nas palavras de Francisco Gildevan Freire Guimarães (2017):
[...] por vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não se confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto. Quando isso ocorre no âmbito constitucional, fala-se em mutação constitucional.
Este ajustamento da lei é a ciência hermenêutica, a qual tem como finalidade primordial a interpretação dos textos, do sentido das palavras considerando a história, as ideologias, as realidades sociais, econômicas e políticas do Estado, objetivando uma realização do bem comum. (GUIMARÃES, 2017).
Sob esse aspecto, deve ser ressaltado que nas últimas décadas vários conceitos do corpo social foram ampliados, dentre eles o da própria família. Cumpre mencionar, o direito deve acompanhar a evolução cultural. Principalmente o ordenamento jurídico deve interagir-se com os acontecimentos sociais, visando buscar respostas para aquele momento da realidade. (GUIMARÃES, 2017).
Conforme diz Francisco Gildevan Freire Guimarães (2017):
Para toda mudança ocorrida na coletividade, o direito necessita acompanhar. Nos dias de hoje, embora ainda haja lutas constantes contra o preconceito não podemos deixar de destacar o grande avanço ocorrido desde a época da Ditadura civil-militar de 1964. Como se sabe, havia um aparato de controle moral contra os comportamentos sexuais, tidos como “desviantes”. Assim, homossexuais, travestis, prostitutas e outras pessoas consideradas “perversas”, ou “anormais”, eram alvos de perseguições, detenção arbitrária, expurgos de cargos públicos, censura e outras formas de violência.
Por isto, a aplicação da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006) a casos onde há como vítima um indivíduo transgênero ou transexual é medida que se impõe, analisando todo o contexto de adequação da lei e também para evitar preconceitos.
Aliás, conforme ressalta Álvaro Villaça Azevedo (2012, p. 87): “[...] o amor é mais importante do que tudo na família; o mútuo auxílio material e espiritual entre os esposos, sua convivência amorosa, é mais importante do que a própria formalidade que faz nascer a família”.
Diante dessa releitura, se constata uma autêntica transformação e evolução da família, sobretudo, baseando a teoria geral da família em um centro de realização da dignidade da pessoa humana. E como convivência mútua baseados nos princípios fundamentais a família ganha um patamar mais importante. Neste contexto, destaca Maria Berenice Dias (2013, p. 03):
[...] a dinâmica das transformações impressas aos grupos familiares, especialmente na modernidade e na pós-modernidade, deve ser revisitada sob a ótica da transformação dos papéis da mulher, sem que se incorra em distorção: a mulher sempre simbolizou no imaginário universal a afetividade, a capacidade de procriar, de cuidar, enfim, conceber e zelar pela sua prole, fenômenos que no gênero humano estão impregnados de um sentimento capaz de, por si só, diferenciar a espécie. Aliás, os movimentos de mulheres, atualizados, postulam que nenhuma questão humana deve ser alheia ao feminismo.
Destarte, diante destas considerações, a família, em conceito moderno se forma independentemente do sexo ou matrimônio, importando sim, a união desses indivíduos por afinidade ou aquiescência natural. Por isso, a família advinda da Constituição Federal (BRASIL, 1988) tem por fundamento fazer valer a dignidade dos seus integrantes como forma de garantir a felicidade pessoal de cada um deles. (DIAS, 2013).
Assim, o objetivo da constituição de família passa a ser traduzida em um sistema de proteção de seus membros, pautando-se, principalmente, nos preceitos de sobrevivência, relacionados aos princípios inerentes da pessoa humana, como dignidade, respeito e igualdade. (DIAS, 2013).
Contudo, mesmo existindo esta proteção ampla, no Brasil ainda não possui uma legislação específica sobre transexuais ou transgêneros. Entretanto, algumas decisões reconhecem os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, que formam o grupo LGBT. Uma dessas decisões, segundo o site Jurídico Certo (2017) estabelece que: “[...] nas instituições de ensino, deve-se usar o nome social, substituindo o nome de registro, ocorrendo o mesmo em boletins de ocorrência registrados por autoridades policiais”.
No caso das escolas, conforme informa o site Jurídico Certo (2017):
[...] os transgêneros devem ter garantido o direito de usar banheiros, vestiários e espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada aluno. Se houver distinção de uniformes, o transgênero poderá usar aquele mais adequado à sua identidade de gênero. A decisão sobre escolas também determina que a garantia de reconhecimento de identidade de gênero deve ser atribuída a estudantes adolescentes, mesmo sem autorização dos pais ou responsáveis. Também é reconhecido pelas redes de ensino o nome social no tratamento oral, sendo usado o nome civil apenas na emissão de documentos oficiais.
Esta decisão das escolas faz parte do texto da Resolução nº. 12 (BRASIL, 2015) do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais da Secretaria dos Direitos Humanos.
Do mesmo conselho, a Resolução nº. 11 (BRASIL, 2014) determina os parâmetros para a inclusão dos itens “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais. Estes itens tomaram como parâmetro, entre outros, o artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Tal artigo estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Por estas e outros dispositivos, pode-se observar que deve ser aplicado a série de direitos e garantias sem qualquer violação a integridade física e moral, considerando também a livre escolha da pessoa em razão de sua ideologia e consoante a sua liberdade sexual. Nesta seara, adentra-se para o problema da aplicação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) em favor a mulheres transexuais ou transgêneros.
2.4 A Lei Maria da Penha e sua aplicação as mulheres transexuais ou transgêneros
Como já abordado, a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) protege o gênero feminino, não apenas o sexo biológico, aquele com que a pessoa nasce. Sendo assim, a finalidade social da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006) é proteger as mulheres devido às suas peculiares vulnerabilidades, não se podendo negar essa garantia a quem se identifica com o gênero feminino, ainda que tenha nascido homem.
Embora ainda não seja o entendimento pacificado entre os Tribunais, muitos juízes e desembargadores vêm reconhecendo a aplicação. A título de exemplo, conforme narra Sérgio Rodas (2017):
[...] em caso recente, uma mulher trans que sofreu lesões corporais de seu companheiro ao requerer medidas protetivas, não concedeu a ordem, pois entendeu não ser caso de violência doméstica contra a mulher. Após recurso, em instância superior, a defensora Leticia Oliveira Furtado, argumentou o pedido de reconsideração da primeira negativa de concessão de medidas protetivas com as seguintes palavras: “A Lei Maria da Penha prevê proteção ampla e irrestrita às mulheres da prática de violência de gênero, sem fazer qualquer tipo de discriminação entre elas, seja com relação à raça, idade, orientação sexual, classe social ou identidade de gênero. Portanto, mulheres transexuais e travestis também estão cobertas pelos seus dispositivos”. Ao rever a sentença do juizado, o desembargador João Ziraldo Maia afirmou que o Poder Judiciário não pode discriminar quem nasceu com sexo biológico masculino, mas não se identifica com esse gênero. Segundo Maia, a Lei Maria da Penha protege mulheres, independentemente do sexo biológico delas. O importante, a seu ver, é que elas estejam sujeitas às vulnerabilidades sociais do gênero. Para o magistrado, a vedação ao retrocesso permite uma interpretação extensiva da lei para também alcançar as mulheres trans. Mas, mesmo sem isso, ainda seria possível aplicar as medidas cautelares do Código de Processo Penal, ressaltou.
Nesse enfoque, tendo em vista não existir legislação específica para as pessoas transgêneros ou transexuais, se faz justo a aplicação da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006), pois, a não aplicação os deixam desamparados.
Como se sabe, esta população transgênero, diante de suas escolhas já sofrem diversos preconceitos, não havendo sequer projeto de lei para erradicar violências praticadas contra eles. Incontestável que a aplicação não será em qualquer situação, mas apenas para aquelas que preenchem os requisitos do artigo 5º da Lei nº. 11.340/06 (BRASIL, 2006), estando o transgênero ou mulher transexual em situação de vulnerabilidade e ambiente doméstico.
Aliás, o principal ordenamento jurídico brasileiro traz várias passagens afirmativas da dignidade quando estabelece a mesma como fundamento do Estado democrático no seu artigo 1º, inciso III; quando em seu texto assegura a dignidade em toda ação econômica (art. 170); quando determinou que o planejamento familiar é livre fundado no princípio da dignidade (art. 226, § 7º); quando determinou que cabe a família, a sociedade e ao Estado assegurar a dignidade a criança, ao adolescente e ao jovem (art. 227), como também o dever de amparar os idosos e manter o seu bem-estar (art. 230).
Diante da determinação constitucional, é gritante o fato do transexual dever ser protegido pela Lei Maria da Penha (BRASIL, 1988), considerando que a garantia a dignidade deve estar acima de qualquer outra pretensão ou que se presume violação de direitos.
Tal fato faz demonstrar a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2022) sobre o assunto, conforme informativo transcrito a seguir:
Lei Maria da Penha é aplicável à violência contra mulher trans, decide Sexta Turma
Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais. Considerando que, para efeito de incidência da lei, mulher trans é mulher também, o colegiado deu provimento a recurso do Ministério Público de São Paulo e determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na residência da família.
"Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias", afirmou o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz.
O juízo de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram as medidas protetivas, entendendo que a proteção da Maria da Penha seria limitada à condição de mulher biológica. Ao STJ, o Ministério Público argumentou que não se trata de fazer analogia, mas de aplicar simplesmente o texto da lei, cujo artigo 5º, ao definir seu âmbito de incidência, refere-se à violência "baseada no gênero", e não no sexo biológico.
Portanto, com base no recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é possível perceber que a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) se aplica a pessoas transexuais ou transgêneros, de modo que, a preservação da dignidade deve estar acima de qualquer interpretação que fere ou viole direitos. Se a pessoa se identifica como mulher, então deve ser aplicada a ela todas as normas de proteção, sob pena de afrontar os princípios de proteção e, o principal, a dignidade e igualdade.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal (BRASIL, 1988) aborda a sociedade conjugal estabelecendo que a mesma deve ser exercida em forma de igualdade de condições. Ainda que a sociedade se mostre evoluída, ao menos teoricamente, existem as questões de gênero que inferiorizam as mulheres.
Se a mulher é vista como um gênero fraco por questões machistas, imagina-se a mulher transexual ou transgênero; neste aspecto, é notória a violência desta população e que é tida como um grupo de minoria. Mas, esta minoria não é por razão apenas de quantidade, mas também, de direitos.
A violência que envolve preferência sexual causa inúmeros danos a estas pessoas, e que se não cessada causará muitas mortes. Pessoas transexuais e transgêneros devem ser protegidos pelo Estado de forma igualitária, e esta igualdade somente acontece quando a legislação é aplicada.
Se para a mulher a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) tem como objetivo a sua proteção voltada para as medidas protetivas, deve ser aplicada igualmente a pessoas transexuais e transgêneros, sob pena de violação a sua dignidade da pessoa humana.
Qualquer pessoa tem a sua liberdade sexual e que deve ser respeitada; se determinada pessoa escolhe sua identidade baseada no sexo oposto que nasceu, então, deve ser protegida pelo Estado, devendo ser criadas as mesmas medidas de proteção.
É acertada a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, somente assim, com a ampla proteção é que esta população poderá estar mais segura. Não existe ciência exata para o ser humano, mas sim, a luta pelos seus direitos e garantias fundamentais.
A aplicação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) se impõe, devendo a luta ser contra o preconceito, discriminação e violência. Para tanto, outro tipo de preconceito e violência existe que é a do legislativo, pois, não criar leis específicas também ofendem esta população. Mas, o judiciário deve dar uma resposta, motivo que Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, com grande ênfase, protegeu os transexuais aplicando a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), no que deve ser acolhida para todos os demais Tribunais.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Palácio do Planalto, 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 06 out. 2022.
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O presente estudo busca analisar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha para mulheres transexuais. Destaca-se que, a referida Lei Maria da Penha é uma legislação protetiva que fez toda a diferença para as mulheres brasileiras. Na verdade, foi por causa de uma pessoa que se chama Maria da Penha é que se criou a legislação definida pela Lei nº. 11.340/06. Maria da Penha foi uma pessoa que sofreu inúmeros tipos de violência, tanto que seu caso foi parar em um Tribunal Internacional que, ao intervir, determinou que o Brasil criasse meios para prevenir e punir agressores que têm como vítimas as mulheres em ambientes domésticos. De tal forma, ao ser criada, a Lei nº. 11.340/06, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, ajudou no combate à violência doméstica, fazendo com que muitos homens se afastassem de casa ou fossem punidos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, MARIA ROSARIO SILVA. Aplicabilidade da Lei Maria da Penha para mulheres transexuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2022, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59795/aplicabilidade-da-lei-maria-da-penha-para-mulheres-transexuais. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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