DIEGO AVELINO MILHOMENS NOGUEIRA[1]
(orientador)
Resumo[2]: A presente reflexão problematiza, a partir de um percurso conceitual, o desvio de função no âmbito do serviço público federal e, posteriormente, destacamos as suas causas e implicações jurídicas e administrativas, bem como o quanto esse crime é prejudicial aos envolvidos, sobretudo ao povo. Sendo assim, o trabalho encaminha jurisprudências relacionadas ao assunto, a fim de que esta reflexão se configure como um suporte para futuras análises críticas, estudos e pesquisas de cunho acadêmico-científicas.
Palavras-chave: Desvio de função. Serviço Público Federal. Crime à Administração Pública.
Abstract: The present reflection problematizes, from a conceptual path, the deviation of function in the scope of the federal public service and, later, we highlight its causes and legal and administrative implications, as well as how harmful this crime is to those involved, especially to the people. Therefore, the work forwards jurisprudence related to the subject, so that this reflection is configured as a support for future critical analyses, studies and research of an academic-scientific nature.
Keywords: Function deviation. Federal Public Service. Crime to the Public Administration.
Sumário: Introdução 1. Os fins justificam os meios? Desvio, Administração Pública e validade dos atos. 2. Ilegalidade, provas e implicações no serviço público. 3. A jurisprudência e dois casos de desvio de função. Conclusão. Referências.
Introdução
Nunca se falou tanto em corrupção no Brasil, como nos últimos anos. Devido à circulação de notícias que abonam a conduta de agentes públicos, especialmente políticos partidários ocupantes de cargos públicos, o povo brasileiro tem mostrado ojeriza a qualquer forma de desonestidade. Tais atos refletem diretamente, por exemplo, na falta de moradias para famílias sem teto, na ausência de médicos nos postos de saúde e na completa ineficiência de políticas públicas.
O conhecido “jeitinho brasileiro”, forma “fácil” de resolver problemas motivada por uma amizade e/ou proximidade, é a corrupção normalizada em nossa rotina que, como toda disfunção, necessita ser combatida. No serviço público, o “jeitinho” constitui-se como desvio ilegal de função, que a nosso ver, é a face de corrupção capaz de lesar tanto os cofres do erário, quanto os servidores, afetando de forma considerável ainda o público atendido.
Este artigo nasce no intuito de resolver a questão-problema a seguir: como valorar os atos praticados pelo servidor público efetivo em desvio de função? São considerados válidos ou podem sofrer nulidade? O objetivo geral que norteia o presente artigo se volta ao intuito de analisar a legalidade ou não dos atos administrativos praticados pelo servidor público em desvio ilegal de função.
A metodologia adotada pela pesquisadora se restringe a uma pesquisa bibliográfica e exploratória do assunto, a fim de tentar entender as categorias teóricas, bem como comprovar o desvio e quais implicações/efeitos podem ser atrelados aos servidores envolvidos, aqui com enfoque nos efetivos.
1. Os fins justificam os meios? Desvio, Administração Pública e validade dos atos
Ao contrário de empresas do ramo privado, a competência e atuação da Administração Pública se dão quando definidas e autorizadas na lei. Seguindo essa lógica, já em 1988 a Constituição Federal (CF), em seu inciso II, exige que para ingressar em cargos de provimento efetivo no serviço público das esferas (estaduais, municipais, distritais ou federais), os cidadãos precisam ser aprovados em concurso público de provas ou de provas e títulos.
Dito isso, é importante destacar que servidores públicos, para fins deste artigo, são aquelas pessoas físicas que prestam serviços, com vínculo empregatício, à Administração Pública Direta, autarquias e fundações públicas e que, para isso, percebem remuneração paga pelos cofres públicos (DI PIETRO, 2014).
A Lei 8.112/1990, que institui o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis, fixa que “servidor é a pessoa investida em cargo público”, que por sua vez, “é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor” (BRASIL, 1990) ou ainda “a mais simples e indivisível unidade de competência” de um agente (MELLO, 2013, p. 259). O titular do cargo público exerce uma função pública, sinônima a um conjunto de tarefas vinculadas ao cargo por ele preenchido (OLIVEIRA; MEDEIROS, 2011; ANDRADE, 2011).
Nosso enfoque neste artigo são os servidores públicos federais efetivos. Ou seja, os agentes públicos são pessoas físicas, cuja forma de provimento no cargo é resultado de concurso público. Silveira (2010, p. 11) acrescenta que essas pessoas representam a Administração Pública[3], já que ela só “pode agir e produzir efeitos concretos na vida da população, através de pessoas físicas que agirão em nome do Estado”.
Toda essa estrutura lógica é quebrada com uma disfunção corruptível: o desvio de função. No entanto, há uma exceção no caso dos servidores públicos. O desvio pode ser efetivado a pedido da Administração Pública, desde que atenda a requisitos temporários e urgentes do órgão. A justificação, nestes casos, ocorre sempre para se respeitar o princípio da continuidade do serviço público e manutenção da segurança da sociedade, a qual depende do serviço ofertado. Assim, obedecendo essa regra, o ato pode ser considerado legal quando obedece dispositivos legais. A Lei 8.112/1990 preceitua que o servidor público pode executar funções inerentes a outro cargo, considerando as situações excepcionais de emergência, devidamente motivadas e em caráter eventual.
Apesar de compreendermos que há certa legalidade, nos ocuparemos nesse artigo do desvio ilegal de função, que considera que o servidor está desempenhando, de forma habitual, atribuições de um cargo diverso àquele ao qual prestou concurso e foi empossado. O analisaremos como forma ilegal de provimento e/ou movimentação.
Entendemos desvio de função, portanto, como o exercício de abuso de poder da Administração Pública[4] de impor que o servidor público efetivo realize atividades que estejam fora do rol de suas atribuições regulamentadas em lei. Diferentemente do acúmulo, no desvio, você nada faz do cargo no qual assumiu. Embora essa “influência” se dê também em empresas privadas, sigamos com a ideia no serviço público.
O desvio de função se dá comumente de dois modos: para cima e para baixo[5]. Este último se refere quando ocorre o rebaixamento do servidor quanto ao cargo anteriormente ocupado. O cargo novo é inferior e, embora a remuneração continue a mesma, pode constituir-se o que na Administração Pública convencionou-se chamar de assédio moral por parte do superior hierárquico, uma vez que o servidor é posto a situação humilhante no que diz respeito ao cargo.
O desvio para cima diz respeito à promoção, que são casos mais comuns. Embora o nome seja pomposo, o servidor deixa de exercer as funções antigas do cargo e passa a desempenhar outras funções em cargo de ordem superior. Ainda que esteja numa posição de maior prestígio e maiores responsabilidades, o servidor não goza de um aumento salarial real correspondente ao novo cargo e seu salário continua aquele do cargo anterior. Essa disparidade de função se configura quando há tempo contínuo e habitual. Esse é o desvio que nos interessa.
Souza (2017), Ferreira et al (2007) e Andrade (2011) convergem quando ressaltam que o desvio ilegal de função é prática recorrente no serviço público, graças ao déficit de servidores e ausência de concursos públicos, conforme a necessária demanda. Entre as justificações comumente utilizadas para o desvio estão a ideia de melhor aproveitamento das aptidões e competências do servidor (ausência de justos planos de carreira), a burocracia quanto à distribuição de tarefas (estrutura rígida dos cargos) e exigências de agilidade e eficiência no setor público.
Geralmente, seguindo a carreira hierárquica da estrutura organizacional, o chefe imediato é quem designa as atividades que o empossado deve desempenhar. Ao passo que é ele também que, ao se utilizar ilegalmente de uma forma de controle e poder de decisão, define a troca do servidor para outra função. Via de regra, na teoria essa troca deveria obedecer aos procedimentos institucionais legais, tais como a publicação de portaria e a alteração dos vencimentos junto ao setor de Recursos Humanos.
Na prática, a história é outra. Quando procede de forma ilegal, o superior hierárquico infringe a lei 8.112/1990 (arts. 117 e 130), que proíbe tanto que um servidor repasse “a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa”, quanto a um servidor “exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho”. Caso cometa tais faltas, o chefe pode ser punido com pena de suspensão.
2. Ilegalidade, provas e implicações no serviço público
As novas atribuições diversas daquelas inseridas no rol do cargo ocupado por servidor efetivo infringem outros dispositivos administrativos e legais. Além da Constituição Federal, como já dito, o desvio de função fere a Lei 8.429/1992 (arts. 9º, 10 e 11), denominada Lei de Improbidade, quando estabelece uma linha de fuga das regras quanto a enriquecimento ilícito, dano ao erário e violação aos princípios da Administração Pública (BRASIL, 1992).
O desvio funcional é resultado da grave inobservância dos princípios norteadores da Administração Pública, fundamentados na CF e na Lei 8.112/1990, tais como os princípios da legalidade, moralidade administrativa e da exigibilidade do concurso público, este último que se desdobra na violação ao princípio da impessoalidade (BRASIL, 1990; BRASIL, 1998). Melhor representam essas infrações a não realização de concurso público e o apadrinhamento com interesses de ordem pessoal, política ou que possibilitem acesso a dados restritos (SOUZA, 2017). Considerando o desrespeito aos princípios da moralidade, legalidade e da exigência de concurso, Souza (2017, p. 50) taxa que “o desvio de função (...) importa na prática de ato de improbidade administrativa”, conforme o art. 11 da Lei de Improbidade.
Devido ao julgamento de casos parecidos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento na Súmula 378/2009, que diz in verbis: “Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes” (BRASIL, 2009). Deste modo, não restam dúvidas: o desvio de função é legalmente vedado e se coloca como uma prática ilegal ao extrapolar o termo de posse.
Mas, como se constata o desvio funcional e quais são as formas de comprovação? Essas duas perguntas são comuns quando o assunto se volta para uma demanda jurídica. No serviço público há pelo menos três formas de se averiguar e confirmar o desvio de função. Destaca-se que o ônus da prova é do servidor. Ele precisa ter em mãos os documentos que estipulem suas funções junto ao cargo oriundo de aprovação em concurso público e deve elencar testemunhas para o caso, consideradas na tutela judicial provas fáticas e robustas.
A primeira delas se volta para a execução de tarefas estranhas às suas funções habituais. Documentos e processos que levam a assinatura do servidor em questão no período que executou funções distintas ao cargo são importantes para a demonstração do desvio. A segunda forma de atestar que houve o crime é através do holerite, que pode ratificar que o salário, no período, foi desproporcional à função.
A terceira forma de corroborar, e talvez seja esta a maior importante junto aos tribunais, é a apresentação de testemunhas, pessoas que trabalham (ou trabalharam) no órgão/setor no período referente ao desvio. Essa prova cabal se sobrepõe a qualquer documento e possui elevado peso em demandas judiciais. Destaca-se que, na era da informação, vídeos e áudio de plataformas de trocas de mensagens servem também como provas documentais no referido processo.
Confirmado o crime de desvio de função, há sanções aplicáveis a agentes públicos já reguladas em lei. Quanto ao servidor público, em caso de promoção, quando sua remuneração fica inalterada, o mesmo sofre um efetivo prejuízo financeiro decorrente da diferenciação salarial, visto que ele recebe um valor inferior ao que deveria receber.
Nesses casos, Bastos (2022, p. 03) recomenda que, caso o desvio seja a seu contragosto, o servidor público, de forma administrativamente, “poderá comunicar oficialmente ao seu superior e, quando for o caso, acionar as devidas ferramentas de controle interno da Administração Pública”. Se ainda assim seu pedido não for deferido e o servidor sentir-se lesado, ele tem a prerrogativa de ingressar na justiça, exigindo o pagamento de indenização pelas diferenças remuneratórias, quais sejam: pagamento de férias, gratificação natalina, bem como progressões funcionais obtidos por ele durante o desvio funcional[6].
Os valores devem ser atualizados monetariamente e acrescido de juros de mora. Esse movimento de demanda judicial é uma forma de amparar que o mesmo receba seus direitos relativos ao que efetivamente desempenhou. Esses valores salariais que remetem às diferenças podem ser requeridos em cinco anos, prazo prescricional para ingresso da ação.
Do mesmo modo, a responsabilidade pela gestão de atividades de um servidor é compartilhada entre seu superior hierárquico, recaindo sobre eles também a culpa de não ter o designado para desempenhar exatamente aquelas previstas no rol legal. Ou seja, recai sobre o superior hierárquico a responsabilidade civil e administrativa pelo cometimento de desvio de função. Apesar disso, em pesquisa realizada em 2016, Velloso Bahia (2016, p. 19) destaca não ter encontrado “decisões judiciais que tenham apreciado a responsabilização do superior hierárquico pelo desvio de função de seu subordinado”.
Por “se beneficiar do esforço alheio sem a devida compensação” (MADEIRA, 2010, p. 78), a Administração Pública fere o princípio da legalidade, o que por si só coloca seus representantes constituídos no banco de réus a fim de que respondam por locupletamento ilícito. Hely Lopes Meirelles define que
“A legalidade, como principio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.” (MEIRELLES, 2004, p. 87).
Diante da constatação do desvio, as principais implicações é a possível nulidade dos atos, seja o que originou o desvio, sejam aqueles praticados pelo servidor. Legalmente, os atos administrativos praticados pelo servidor público em desvio de função, são passíveis de anulação ou invalidação administrativamente.
No âmbito jurídico, além de ter que ressarcir os devidos valores cobrados pelo servidor público em desvio, a Administração Pública terá que realizar um novo concurso para o cargo ocupado na disfunção e, após empossar o servidor aprovado, irá realizar um retrabalho, tendo que refazer os atos considerados nulos.
Neste sentido, todos incorrem em improbidade administrativa regulada mais recentemente pela lei n° 14.230/2021, cujo atos infracionais se referem a atos que causem lesão ao erário, sejam eles oriundos de ação ou omissão dolosa, que possibilite “efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei” (BRASIL, 2021). Além disso, por outro lado, se houver prejuízos ao erário, o agente ímprobo, responsável pela ordem ilegal, ensejará, cumulativamente, o ressarcimento dos danos.
Considerando a regra de exigência de concurso para ingresso no serviço público, ressalta-se que, em nenhuma das hipóteses, é assegurado o reenquadramento em cargo diferente daquele para o qual o servidor prestou concurso.
3. A jurisprudência e dois casos de desvio de função
É interessante observarmos que já existe um conjunto de decisões e entendimentos dos tribunais acerca do tema desvio de função. Os precedentes jurisprudenciais serviram de fundamento à súmula do STF que trata sobre a matéria; outras até hoje nela se baseiam.
Na tentativa de melhor elucidarmos a presente reflexão, apresentamos a seguir dois casos cujas buscas foram efetuadas junto à internet a partir dos detratores “jurisprudência”, “desvio de função” e “serviço público federal”. Encontramos dois casos emblemáticos jurisprudenciais relacionadas ao assunto em questão.
O mais recente, com acórdão de março de 2022, se refere ao caso de uma servidora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que, embora tenha sido aprovada no concurso como auxiliar de enfermagem, desempenhava habitualmente as atribuições privativas do cargo de técnico de Enfermagem, o que normativamente se configura o desvio funcional.
Conforme o acórdão:
“ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. DESVIO DE FUNÇÃO. AUXILIAR DE ENFERMAGEM. DESEMPENHO HABITUAL DE ATRIBUIÇÕES PRIVATIVAS DO CARGO DE TÉCNICO DE ENFERMAGEM. CARACTERIZADO. ADICIONAL DE QUALIFICAÇÃO. TERMO FINAL DA CONDENAÇÃO. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. GRAU MÁXIMO. CONFIGURAÇÃO. DANO MORAL. NÃO VERIFICADO.
1. A teor da Súmula n. 378 do STJ, "reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes".
2. Para a caracterização do desvio de função, necessária a comprovação do efetivo e habitual desempenho pelo servidor público de atribuições de cargo diverso, estranhas ao seu cargo originário, não configurando irregularidade o exercício eventual e esporádico de atividades de outro cargo.
3. A legislação distingue as atribuições dos cargos de auxiliar de enfermagem, ao qual cabe a execução de ações de tratamento simples, e de técnico de enfermagem, responsável pelas ações assistenciais de enfermagem, exceto as privativas do cargo de enfermeiro.
4. A prova dos autos demonstrou que a parte autora, embora investida no cargo de auxiliar de enfermagem, desempenhava com habitualidade atividades que integram o plexo de atribuições legalmente reservadas aos técnicos de enfermagem, restando caracterizado o desvio de função, fazendo jus às diferenças remuneratórias pretendidas.
5. Esta Corte tem entendido que, quando o adicional de qualificação recebido pelo servidor decorrer de titulação que constitui requisito básico para o ingresso no cargo em relação ao qual lhe foi reconhecido o desvio de função, a vantagem deve ser deduzida do montante indenizatório, o qual engloba a remuneração integral do cargo paradigma, sob pena de enriquecimento ilícito da parte autora, já que referido adicional não lhe seria devido se ocupante do cargo cujas funções exercera em desvio funcional. Diversamente, incentivo à qualificação decorrente de outra titulação deve ser mantido, não sendo passível de abatimento na fase de cumprimento de sentença.
6. O termo final da condenação deve corresponder à data em que cessar o desvio funcional ou à data do trânsito em julgado da decisão, o que ocorrer primeiro, circunstância a ser demonstrada na fase de cumprimento de sentença.
7. Sendo incontroverso que a autora labora em contato habitual com pacientes em condições de isolamento, bem como com pacientes e/ou materiais infectocontagiosos, faz jus à percepção do adicional de insalubridade em grau máximo, já que os agentes biológicos são mensurados de forma qualitativa, de modo que o risco de contágio independe do tempo de exposição.
8. Não restou demonstrada qualquer conduta ilícita da Administração Pública que haja concorrido para o surgimento das doenças a que se encontra acometida a servidora, pressuposto indispensável para configuração do dever de indenizar.” (Apelação Cível nº 5020968-36.2018.4.04.7000/PR. Julgado em 8.3.2022. - Rela. Desa. Vânia Hack de Almeida. D.J. 8.3.2022).
Segundo o acórdão, na ação indenizatória, a postulante obteve vitórias em pontos importantes, tais como o reconhecimento do desvio de função, o restabelecimento do adicional de insalubridade em grau máximo (20%) e a condenação da ré ao pagamento de indenização, na data da publicação da sentença[7].
Ressalte-se que o acórdão descreveu os parâmetros objetivos para o reconhecimento do desvio funcional, tais como o desempenho efetivo e habitual de um conjunto de atribuições de outro cargo na estrutura estatal.
A segunda decisão, trazida à baila nessa reflexão, diz respeito ao caso de um técnico administrativo efetivo do Ministério Público Federal do Acre que, embora tenha licenciado para atribuições de mandato sindical entre janeiro e julho de 2005, teve que exercer atribuições pertinentes ao cargo de analista processual (nível superior). Ante o desvio de função, requereu junto aos tribunais a diferença salarial decorrente de desvio de função proveniente do cargo. O acórdão proferido pelo desembargador assim expôs:
“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO. CONFIGURAÇÃO. APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 378, STJ. JUROS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA.
1. A União interpôs recurso contra sentença do Juizado Especial Federal do Acre que julgou parcialmente procedente pedido, determinando o pagamento, em favor do autor, a diferença da remuneração por ele recebida como técnico administrativo e aquela paga aos ocupantes do cargo de analista processual do MPF, no nível correspondente àquele por ele ocupado na época, no período de janeiro a julho de 2005. Em suas razões, a recorrente aduz, preliminarmente, ausência de provas que comprovem o alegado desvio de função e prescrição trienal do fundo do direito, conforme previsto no Código Civil; no mérito, alega ausência de desvio de função tendo em vista que o autor não preenchia os requisitos exigidos para investidura em cargo de analista processual e que as funções por ele desempenhadas estavam previstas dentre as atribuições de Técnico Administrativo, quais sejam “controle processual, documentação, informação jurídica (...) pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência; emissão de relatórios técnicos e informações em processos”, razões pelas quais pretende a reforma da sentença para julgar improcedente o pedido inicial. Por fim, em caso de manutenção da sentença, pretende que os juros moratórios devam ser fixados em 6% ao ano, até 29/06/2009, conforme art. 1º-F da Lei n. 9.494/97 e, após referido lapso, sejam calculados pelos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança.
2. Conforme já dito na sentença do Juiz de primeiro grau, não é aplicável ao presente caso o prazo prescricional previsto no previsto no art. 206, §3º, V, do Código Civil, pois, tratando-se de pedido de reconhecimento de desvio de função, há de se reconhecer situação jurídica que denota relação de trato sucessivo, aplicando-se, dessa forma, o entendimento da súmula n. 85 do Superior Tribunal de Justiça. Quanto à alegação de que a não fora juntado aos autos qualquer documento que comprovasse o alegado desvio de função, referida preliminar também não deve prosperar, tendo em vista que, caso houvesse documento designando o autor para o exercício de função comissionada em gabinete de Procurador da República, por óbvio não haveria configuração de desvio de função; também não poderia ser atribuída autoria de peça processual ao autor, tendo em vista que, conforme alegado na inicial e confirmado pelas testemunhas, o autor minutava pareceres, os quais eram analisados e assinados pelo Procurador da República. Compulsando os autos, verifica-se pelas folhas de cartão de ponto que, no período de janeiro a julho de 2005, o autor estava lotado na “Coordenadoria Jurídica” e, conforme contracheques respectivos, não era detentor de função comissionada com atribuições de assessoria. A prova testemunhal foi uníssona em afirmar que o autor, de fato, elaborava minutas judiciais e pareceres para o Procurador da República Marcus Vinicius Aguiar Macedo.
3. Ante o exposto, reconhecido o desvio de função do autor em relação às atividades inerentes a cargo por ele investido, bem como a ausência de percepção de função comissionada que abrangesse as atividades de fato desempenhadas pelo autor, ainda que não detentor de nível superior em Direito, devidas são as diferenças salariais decorrentes do desvio, conforme súmula n. 378, do STJ.
4. Quanto aos juros de mora, dou parcial provimento ao recurso da União, para dispor que os Juros de mora são devidos a partir da citação para as parcelas vencidas anteriormente a ela e do respectivo vencimento para as que lhe são posteriores, à taxa de 1% ao mês, até a edição da MP 2.180-35 de 24.08.2001, e, a partir desta data, em 0,5% ao mês (art. 1º-F da Lei 9.494/97, na redação conferida pela MP 2.180-35/2001). Após a edição da Lei 11.960/2009, aplicar-se-á o percentual previsto neste regramento (EREsp n 1.207.197/RS).
5. Sentença parcialmente reformada. Recurso parcialmente provido.
6. Sem custas. Condenação em honorários no montante equivalente a 10% do valor da condenação, corrigidos monetariamente até seu efetivo pagamento pelos índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal em sua versão mais atual à época da execução.” (4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Acre, Sentença proferida nos Autos n. 0000766-60.2010.4.01.3000, Juiz Federal Gustavo Soratto Uliano. Rio Branco, 13/03/2015).
O acórdão acima referido deixa claro que mesmo as funções de confiança, como é o caso da função comissionada no âmbito da procuradoria da república do Acre, estão sujeitas à observância da regularidade no desempenho funcional, exigindo-se, para tanto, nomeação formal para a referida atribuição, independentemente de formação superior necessária para respectiva nomeação. A referida decisão supera, portanto, a exigência de formação universitária imprescindível à nomeação para a função comissionada de analista processual do MPF.
Tomando as duas decisões jurisprudenciais como ponto de partida de nossa análise, observamos que o desvio de função não deixa dúvidas, é pressuposto normativo (contrafático), tanto que são exigidos direitos (insalubridade, diferenças remuneratórias, etc) quanto ao período em que os servidores estiveram em desvio, ao mesmo tempo em que a justiça imputa indenização aos réus em questão, UFPR e MPF, respectivamente. Mesmo reconhecendo o desvio funcional, não houve responsabilização ao superior hierárquico, confirmando dados observados por Velloso Bahia (2016), e podendo abrir brechas para que o desvio de função seja, em certo grau, ad aeternum.
Conclusão
Parece-nos que a disfunção funcional se desenha como uma péssima alternativa, visto que representa um patente prejuízo não apenas à Administração Pública como um todo (chefia imediata, erário e servidor público), mas particularmente ao povo. Embora seja ele o verdadeiro detentor do poder, sofre com o acochambramento investido pela gestão do serviço público.
Uma vez que qualquer forma de ilegalidade abala a credibilidade do serviço federal, não podemos aceitar e institucionalizar o “jeitinho brasileiro”. Quando furamos a fila ou não devolvemos o troco errado, por exemplo, também estamos sendo corruptos. No que diz respeito ao desvio de função, é necessário que seja identificado e refreado, quando possível. Mais que isso, a disfunção merece ser reprimida de forma severa e imediata.
Observamos também que, em todo caso, a jurisprudência confirma a ressonância de interpretações das leis que implicam diretamente no tecido social e cujas decisões apontam para uma direção uníssona, sendo considerada uma fonte secundária ou subsidiária do direito. Ribeiro (2017) chega a cravar que a jurisprudência é uma fonte infra estatal do direito.
Por fim, fica evidente, portanto, que a impunidade é a mola propulsora para a prática criminosa e corrobora para que o desvio de função seja normalizado no serviço público. Assim, concordamos com Andrade (2011) quando afirma que não é necessária a criação de mais lei ou normas para coibir a prática do desvio funcional, mas precisamos que sejam efetivas aquelas que já estão em vigor.
Referências
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BASTOS, Agnaldo. Desvio de Função do servidor público: veja o que fazer. Advocacia dos concursos, [s. l.], 15 fev. 2022. Brasil. Disponível em: https://concursos.adv.br/desvio-de-funcao-do-servidor-publico/. Acesso em: 20 ago. 2022.
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SILVEIRA, Lucas Heusner. O desvio de função no serviço público: seu controle e as decisões dos tribunais. 2010. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso em Direito) - Departamento de Estudos Jurídicos, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2010. Disponível em: https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/handle/123456789/606. Acesso em: 16 ago. 2022.
SOUZA, Renato Pessotti de. Desvio de Função dos Servidores Técnico-Administrativos em Educação: um estudo no Centro de Ciências Exatas da Universidade Federal do Espírito Santo. 2017. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão Pública) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufes.br/bitstream/10/8696/1/tese_10978_Disserta%c3%a7%c3%a3o_Renato_Pessotti_de_Souza.pdf. Acesso em: 19 jun. 2022.
VELLOSO BAHIA, Luciana. Desvio de função dos servidores públicos. 2016. Monografia (Pós-Graduação em Direito Público e Privado)- Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/rcursodeespecializacao_latosensu/direito_administrativo/edicoes/n3_2016/pdf/LucianaPeixotoFreitasVellosoBahia.pdf. Acesso em: 20 ago. 2022.
[1] Orientador e professor de Direito na Universidade de Gurupi. Especialista em Advocacia Municipal; e Licitações e Contratos Administrativos. Procurador municipal e advogado.
[2] Sobre o título, fazemos referências aos livros “O Teatro dos Vícios”, de Emanuel Araújo (1997) e “Raízes do Brasil”, de Sergio Buarque de Holanda (1991), que buscam na história colonial as origens da corrupção no Brasil, ao que hoje denominamos ”jeitinho brasileiro”. O artigo está fundamentado, do mesmo modo, em Barroso (2011), para quem o “jeitinho brasileiro” tem “custos morais elevados” (p.2) e por ser “produto de algumas características da colonização e da formação nacionais” (p.11) aglutina frases como “sabe com quem está falando?”, ou ainda “rouba, mas faz” (p.4). Segundo Barroso, o famoso jeitinho brasileiro deve “ser progressivamente empurrado para a margem da história pelo avanço do processo civilizatório” (p. 11) para que não perpetuemos a corrupção.
[3] Sabemos ainda, conforme a Lei 8.429/1992, que há agentes públicos que ocupam também emprego público e mandato eletivo por meio de eleição, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo. A legislação acentua que ainda que transitoriamente ou sem remuneração, esses são agentes públicos. Do mesmo modo, inclui ainda o particular, pessoa física ou jurídica, que celebra com a administração pública convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente que envolve recursos de origem pública (BRASIL, 1992). Os elencados nesta nota de rodapé não constituem grupo de interesse deste artigo.
[4] Nosso enfoque se volta para Administração Direta, representada pelos seguintes entes federados: União, Estados, Municípios e Distrito Federal.
[5] Vale destacar que existe ainda um terceiro modo: a horizontal, que não causa prejuízos financeiros ou morais ao servidor, visto que as atividades são correspondentes, o salário é o mesmo e o cargo encontra-se no mesmo nível. Este caso não é considerado, via de regra, um desvio funcional.
[6] O pedido de indenização nos dois primeiros casos pode não ser aceito, já que “não é entendimento jurisprudencial pacífico” (ANDRADE, 2011, p. 140).
[7] Uma decisão similar foi publicada no Informativo de Jurisprudência do TRF da 2ª região, no segundo semestre de 2017, em relação à Universidade Federal do Espírito Santo, a UFES (Apelação Cível nº 0000630-37.2016.4.02.5001 (2016.50.01.000630-0). Julgado em 08.09.2017 – D.J. 13.09.2017 - Relator: Desembargador Federal José Antônio Neiva - 7ª Turma Especializada). Informativo de Jurisprudência – INFOJUR-TRF2, nº 226. Disponível em: https://www10.trf2.jus.br/consultas/wp-content/uploads/sites/38/2015/11/informativo-de-jurisprudencia-226.pdf. Acesso em: 05 out. 2022.
Acadêmica em Direito pela Universidade de Gurupi. Pós-graduada em Gestão Pública Municipal pela UFT (2013) e Bacharel em Ciências Contábeis pela UnirG (2009). Contadora pública federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUNIZ, Ludimilla da Silva Coelho. “Jeitinho brasileiro”: O desvio de função no serviço público e as implicações jurídico-administrativas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2022, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59845/jeitinho-brasileiro-o-desvio-de-funo-no-servio-pblico-e-as-implicaes-jurdico-administrativas. Acesso em: 23 dez 2024.
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