ODI ALEXANDER ROCHA DA SILVA[1]
(coautor)
Resumo: O presente artigo científico apresenta um estudo legislativo e doutrinário acerca da responsabilidade civil do médico por eventual dano causado ao seu paciente decorrente da prescrição de medicamentos e tratamentos sem eficácia comprovada cientificamente. Desse modo, inicialmente, foram apre- sentados os conceitos clássicos de responsabilidade civil e algumas de suas classificações mais recorrentes, conforme o atual estado da arte acerca do tema na doutrina pátria. Na sequência, foram apresentadas as definições e classificações obrigacionais dos serviços médicos, explorando a natureza jurídico-contratual de tais serviços. Ato contínuo, lastreado naquilo que fora apresentado, discutiu-se acerca da responsabilidade civil médica, numa abor- dagem mais delimitada à profissão, com fulcro em diplomas consumeristas e de ética médica. Por fim, explanou-se acerca do processo de controle de medicamentos e tratamentos no Brasil, expondo os riscos inerentes à utilização de alternativas sem eficácia comprovada cientificamente, citando os exemplos da fosfoetanolamina e dos tratamentos prescritos durante a pandemia de COVID-19, encerrando com reflexões sobre possíveis riscos que o médico assume e eventual dever de indenização. Com o estudo, foi possível verificar que o médico, embora possua autonomia profissional, deve preferencialmente, agir sob a égide dos ditames legais e científicos, sob pena de responsabilização civil pelo dano causado ao paciente.
Palavras-chaves: responsabilidade. civil. médico. comprovação. eficácia.
Abstract: This papper presents a legislative and doctrinal study about the doctor’s civil liability for any damage caused to his patient from the prescription of medicines and treatments without scientifically proven effectiveness. Thus, initially, the classic concepts of civil liability and some of its most recurrent classifications were presented, according to the current state of the art on the subject in the national doctrine. Subsequently, mandatory definitions and classifications of medical services were presented, exploring the legal-contractual nature of such services. Then, based on what had been presented, it was discussed about medical civil liability, in a more delimited approach to the profession, with a focus on consumerist and medical ethics rules. Finally, the process of controlling drugs and treatments in Brazil was explained, exposing the risks inherent in the use of alternatives without scientifically proven effectiveness, citing the examples of phosphoethanolamine and the prescribed treatments during the COVID-19 pandemic, ending with reflections on possible risks that the doctor assumes and possible indemnity duty. With the study, it was possible to verify that the doctor, although professional autonomy, should preferably act having under the aegis of legal and scientific dictates, under penalty of civil liability for the damage caused to the patient.
Key-words: civil. liability. doctor. evidence. effectiveness.
O conceito de responsabilidade civil acompanha o ser humano durante boa parte de sua vida em sociedade. Constantemente evoluindo, seu objetivo é preservar o equilíbrio entre as relações humanas, de modo a estipular reparações àqueles que sofrem lesões físicas, patrimoniais ou extrapatrimoniais em razão de ações de terceiros.
A atual dinâmica social impõe uma gama muito complexa de relações privadas, profissionais, consumeristas e afins. O avanço da ciência e tecnologia tem resultado não só no surgimento de novas possibilidades de relações, mas em verdadeiras revoluções nas relações até então existentes.
Nesse sentido, a área da saúde não ficou apartada das consequências do desenvolvimento social. Se outrora, em tempos remotos, a prática da medicina se imiscuía a elementos místicos e empíricos, atualmente segue rigorosos preceitos científicos e metódicos. Do mesmo modo, se a responsabilização seguia princípios talionares, passa atuar sob a égide doutrinária, legislativa e científica.
A crescente democratização do acesso à informação tem permitido ao usuário de serviços médicos tomar conhecimento prévio acerca de medicações e tratamentos indicados por seu médico, mediante uma rápida pesquisa na internet. De igual modo, ao se sentir lesado, tão rápido quanto a situação anterior, consegue encontrar orientações acerca de seus possíveis direitos.
É evidente que uma busca na internet não substitui a orientação de um profissional, seja ele da área médica ou jurídica. Mas é inegável que o paciente possui à sua disposição vários meios de obter informações, ao menos iniciais, acerca de possível erro médico e, consequentemente, acerca de possível respon- sabilização e direito de indenização.
Portanto, o profissional médico dispõe constantemente de diversas téc- nicas, procedimentos, medicamentos e afins para o melhor tratamento de seu paciente. Simultaneamente, em determinadas situações, encontra-se sob o risco de ser demandado a reparar o dano por eventual erro em sua atuação, haja vista que o paciente, sendo também um consumidor, tem acesso a muito mais informações sobre seus direitos do que no passado.
Destaca-se ainda que, na condição de prestador de serviço, o médico deve utilizar técnicas, procedimentos e medicamentos que respeitem as normas sanitárias e que possuam comprovada eficácia para o fim que está sendo utilizado, não devendo submeter o paciente a procedimentos desnecessários ou sem respaldo técnico e científico.
Em situações em que o médico prescreve algum medicamento ou trata- mento à seu paciente cujas evidências científicas apontam para uma eficácia duvi- dosa ou até mesmo negativa, como utilização de fosfoetanolamina no tratamento do câncer, ou utilização de hidroxicloroquina para o tratamento de COVID-19, surgem os questionamentos sobre a responsabilidade do profissional por eventual dano causado à saúde e integridade do paciente.
Frisa-se aqui que neste escopo não está a se tratar de procedimentos e medicamentos experimentais administrados em decorrência de pesquisas e estudos científicos, que possuem procedimentos próprios e são previamente auto- rizados pelos órgãos competentes, sendo realizados com participação voluntária dos pacientes. Trata-se na verdade de análise de situações cotidianas e comuns, quando o paciente-consumidor, figura hipossuficiente na relação com o médico, é submetido à tratamentos sem eficácia comprovada.
Face à toda conjuntura apresentada, buscando corroborar com a temática da responsabilidade civil, o presente trabalho tem como objetivo uma síntese do conceito de responsabilidade civil aplicada aos médicos, bem como discorrer acerca da responsabilidade de tais médicos por eventuais danos causados à seus pacientes em decorrência do uso de medicamentos e tratamentos sem eficácia comprovada por evidências científicas, tecendo teses e conclusões com lastro na legislação e na doutrina pátria.
1.AS DEFINIÇÕES E CLASSIFICAÇÕES DA RESPON- SABILIDADE CIVIL
O ser humano, desde os primórdios de sua investidura na vida social, enfrenta conflitos de interesse interindividuais. Diversas formas de solução de conflitos de interesse perpassaram o cotidiano humano ao longo da história, resultando numa conceituação da ideia de responsabilidade e, posteriormente, de responsabilidade civil.
Para Tepedino, Terra e Guedes (2021) “a noção de direito se encontra intimamente vinculada à noção de composição dos conflitos de interesse”. Desse modo, os conflitos de interesses que inicialmente encontravam arrimo em prin- cípios talionares, passam a ser solucionados através da intervenção estatal, de modo a evoluir-se à plena separação entre responsabilização penal e civil, num constante desenvolvimento até a contemporaneidade.
Num entendimento atual, Tartuce (2021) define que “a responsabilidade civil surge em face do descumprimento obrigacional, pela desobediência de uma regra estabelecida em um contrato, ou por deixar determinada pessoa de observar um preceito normativo que regula a vida.”
Por sua vez, Gonçalves (2020) afirma “que responsabilidade exprime ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano.”
Nesse sentido, o Código Civil Brasileiro, aos dispor sobre o tema, expressa o seguinte:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, indepen- dentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano impli- car, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (BRASIL, 2002)
Portanto, a existência de um ato ilícito, gera uma situação de desequilíbrio e instabilidade da relação social, sendo normalizada através da reparação do dano causado ou, caso não seja possível a reparação, através da indenização.
Acerca classificações acerca da responsabilidade civil, dentre as expostas por Gonçalves (2020), destacam-se aqui as classificações quanto à origem, quanto a culpa e quanto ao agente.
Em relação à origem da responsabilidade, classificam-se em contratual e extracontratual, conforme definição doutrinária:
Na responsabilidade extracontratual, o agente infringe um dever legal, e, na contratual, descumpre o avençado, tornando-se ina- dimplente. Nesta, existe uma convenção prévia entre as partes que não é cumprida. Na responsabilidade extracontratual, ne- nhum vínculo jurídico existe entre a vítima e o causador do dano, quando este pratica o ato ilícito. (GONÇALVES, 2020)
Portanto, ao se descumprir aquilo que está posto numa convenção inter- partes, tem-se a origem da responsabilidade civil contratual, uma vez que há o rompimento do que fora convencionado numa relação jurídica prévia. Noutra banda, inexiste relação jurídica e a responsabilidade surge em decorrência de um ato ilícito de descumprimento da própria lei, por meio de ação ou omissão.
Já a classificação quanto à culpa do agente divide-se em responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva, diferindo-se acerca da consideração da culpa como ensejadora da obrigação de reparar ou indenizar o dano causado. Em relação à responsabilidade subjetiva, explica o doutrinador:
Esta teoria, também chamada de teoria da culpa, ou “subjetiva”, pressupõe a culpa como fundamento da responsabilidade civil. Em não havendo culpa, não há responsabilidade.
[...]
A prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Nessa concepção, a responsabilidade do causador do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa.(GONÇALVES, 2020)
Já a responsabilidade objetiva, embasada na teoria do risco, desconsidera a culpa do agente como elemento da responsabilização, bastando a existência do nexo causal. Ainda nas palavras de Gonçalves (2020): "Na responsabilidade objetiva prescinde-se totalmente da prova da culpa. Ela é reconhecida, como mencionado, independentemente de culpa. Basta, assim, que haja relação de causalidade entre a ação e o dano".
Por fim, a responsabilidade civil quanto ao agente pode se dividir em direta e indireta, conforme se observa:
O Código prevê a responsabilidade por ato próprio, dentre ou- tros, nos casos de calúnia, difamação e injúria; de demanda de pagamento de dívida não vencida ou já paga; de abuso de direito.
A responsabilidade por ato de terceiro ocorre nos casos de danos causados pelos filhos, tutelados e curatelados, ficando respon- sáveis pela reparação os pais, tutores e curadores. Também o empregador responde pelos atos de seus empregados. Os edu- cadores, hoteleiros e estalajadeiros, pelos seus educandos e hóspedes. Os farmacêuticos, por seus prepostos. As pessoas jurídicas de direito privado, por seus empregados, e as de direito público, por seus agentes. E, ainda, aqueles que participam do produto de crime.(GONÇALVES, 2020)
A responsabilidade civil direta, ou por ato próprio, é aquela que se origina de ato praticado pelo próprio agente responsável por sua reparação. Por outro lado, a responsabilidade civil indireta, ou por ato de terceiro, é aquela em que o responsável pela reparação não é o agente que praticou o ato ensejador da responsabilidade.
2. NATUREZA JURÍDICO-CONTRATUAL DOS SERVI- ÇOS MÉDICOS
A prestação de serviços médicos, de maneira geral, é considerada como atuação de profissional liberal, de modo que encontra lastro legislativo não só no Código Civil, mas em outros diplomas legais, como o Código de Defesa do Consumidor, as regulações próprias da respectiva classe, dentre outros. Nesse sentido:
Na maioria das vezes, a responsabilização desses profissionais será regida pelo Código de Defesa do Consumidor, ao lado da re- gulamentação especial da profissão. A responsabilidade pessoal do profissional liberal é apurada mediante a verificação de culpa por força do art. 14, § 4o, do Código de Defesa do Consumidor, sendo, portanto, subjetiva. Já o estabelecimento dentro do qual ele presta seus serviços – o hospital ou o escritório de engenha- ria ou de advocacia, por exemplo – responderá objetivamente perante os consumidores, seguindo a regra geral do Código de Defesa do Consumidor. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES, 2021)
Verifica-se, desse modo, que a responsabilidade civil do médico possui natureza subjetiva, dependendo da comprovação de culpa do profissional. Por sua vez, a clínica ou hospital, na condição de prestadores de serviço perante o paciente, em clara relação de consumo, responde objetivamente por eventuais danos causados.
No caso do profissional liberal médico, o entendimento atual é de que seus serviços, bem como sua eventual responsabilidade, possuem natureza contratual, ainda que seja um tipo sui generis de contrato.
O contrato de serviços médico é um contrato singular, pois para sua formação basta haver a convergência volitiva, isto é, o en- contro de vontades quanto às bases em que se desenvolverá a relação, não havendo nenhuma obrigatoriedade quanto a ser escrito, podendo se manifestar pelas mais variadas formas, inclu- sive de maneira rudimentar ou mesmo informal. A relação pode ser estabelecida a partir da consulta marcada com a secretária do médico ou a partir da chamada do médico por ato do pró- prio paciente ou de alguém em nome dele, dentre outras formas. (MELO, 2013)
Portanto, mesmo que não exista um contato formalmente elaborado, o ânimo da prestação do serviço, por si só, gera uma relação contratual, ainda que tácita, resultando em direitos e obrigação às duas partes, haja vista que assim como o médico deve aplicar seus conhecimentos e técnicas com zelo, dedicação e esforço, o paciente deverá se empenhar e atender as orientações médicas em prol do diagnóstico, tratamento e afins.
Em relação ao tipo de obrigação que se origina da relação entre médico e paciente, deve-se observar as peculiaridades do caso concreto, bem como a finalidade daquela relação contratual, de modo que tal obrigação pode ser tanto de meio, sendo este o tipo de relação predominante, quanto de resultado.
Quando um paciente encontra-se acometido por determinada patologia e procura o serviço profissional de um médico, estará buscando um diagnóstico ou, caso já tenha o diagnóstico, um tratamento. Não é razoável presumir que toda e qualquer moléstia que acometa alguém seja prontamente identificada pelo profissional médico. Ainda que existam doenças facilmente diagnosticáveis, deve-se considerar que outras tantas possuem um processo de diagnóstico um pouco mais complexo, demorado e multidisciplinar.
A manifestação de um sintoma em determinada região do corpo poderá ter origem em problemas oriundos de outra região, de modo que em algumas situações, o médico especialista possuirá condições de fornecer um diagnóstico preciso, devendo encaminhar o paciente para o especialista da outra área. Da mesma forma, ao submeter o paciente à um processo de tratamento, diversas variáveis concorrerão para a eficácia de tal tratamento, haja vista que cada organismo é único, peculiar e poderá reagir de forma distinta.
Por essas razões, diz-se que, em geral, a prestação de serviços médicos geram uma obrigação de meio e não uma obrigação de resultado. Não é possível que o médico nem o paciente tenha plena certeza de que será possível a obtenção de um diagnóstico, nem de que o paciente efetivamente será de fato curado após o tratamento. Explica a doutrina:
Ademais, nesse tipo de contrato o objetivo a ser alcançado, isto é, a cura, não depende somente do profissional médico, mas também do paciente com a sua colaboração direta ou indireta. Quer dizer, não basta o médico ser competente e dedicado, pois o sucesso da empreitada dependerá em muito do próprio organismo do paciente, das informações por ele prestada, da correta aceitação do que foi prescrito etc. Assim, o adimplemento do contrato não é a cura, mas a dedicação, zelo e esforço do profissional. Provando que assim agiu, isto é, que aplicou toda sua técnica e conhecimento para que o paciente atingisse a cura, o médico terá cumprido sua parte no contrato e não se poderá falar em inadimplemento se o paciente não se curou, pois a obrigação terá sido de meio e não de resultado. (MELO, 2013)
Embora a relações contratuais entre médicos e pacientes possuam, predo- minantemente, obrigação de meio, determinadas situações deságuam naquilo que a doutrina nomeia como obrigação de resultado. Em tais casos, para o fiel cumprimento do contrato, não bastará que o médico aplique conhecimento, téc- nica, esforço e zelo na realização de seu trabalho. Ele deverá, de fato, entregar um resultado esperado, que tenha sido devidamente pactuado, para aquele serviço, sendo exemplos de tais situações as cirurgias plásticas com finalidade estética, o resultado de exames laboratoriais, dentre outros.
Quanto aos cirurgiões plásticos, a situação é outra. A obrigação que assumem é de “resultado”. Os pacientes, na maioria dos casos de cirurgia estética, não se encontram doentes, mas pre- tendem corrigir um defeito, um problema estético. Interessa-lhes, precipuamente, o resultado. Se o cliente fica com aspecto pior, após a cirurgia, não se alcançando o resultado que constituía a própria razão de ser do contrato, cabe-lhe o direito à pretensão indenizatória.
Da cirurgia malsucedida surge a obrigação indenizatória pelo resultado não alcançado. A indenização abrange, geralmente, todas as despesas efetuadas, danos morais em razão do prejuízo estético, bem como verba para tratamentos e novas cirurgias.
O cirurgião plástico assume obrigação de resultado porque o seu trabalho é, em geral, de natureza estética. No entanto, em alguns casos a obrigação continua sendo de meio, como no atendimento a vítimas deformadas ou queimadas em acidentes, ou no tratamento de varizes e de lesões congênitas ou adquiridas, em que ressalta a natureza corretiva do trabalho. (GONÇALVES, 2020)
Embora a obrigação pela realização de serviços médicos seja de meio, a ela encontra-se ligada a obrigação de segurança, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.
Art. 8o. Os produtos e serviços colocados no mercado de con- sumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos con- sumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornece- dores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.
[...]
Art. 9o. O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto. (BRASIL, 1990)
Nesse sentido, o médico não poderá impor risco à integridade e saúde do paciente de forma desnecessária, sendo admitidos somente os riscos normais e previsíveis, estritamente necessários e intrínsecos à natureza do procedimento.
Por esse dever de segurança, significa dizer que o médico, en- quanto profissional liberal, não poderá utilizar métodos na presta- ção de serviços que possam, de alguma forma, acarretar risco à saúde ou à segurança dos seus pacientes, a menos que es- tes riscos sejam considerados normais ou previsíveis pela sua própria natureza, quando então estas informações deverão ser prestadas com o fim de obter o consentimento informado do paciente. (MELO, 2013)
Destaca-se, por fim, que conforme observado, ainda que o tomador do ser- viço médico seja submetidos à riscos naturais e previsíveis, deverá ser informado e cientificado dos detalhes do procedimento que será submetido, bem como dos riscos, em homenagem ao dever de segurança que rege a obrigação do médico.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
Derivado do conceito geral de responsabilidade civil, a responsabilidade civil médica corresponde ao atendimento de particularidades inerentes ao exercí- cio da função médica, culminando em alguns tratamentos específicos acerca da responsabilização.
É certo que ao abordar acerca da responsabilidade civil dos profissionais liberais, dentre os quais estão inclusos os médicos, o Código de Defesa do Consumidor já reserva um tratamento diferenciado, prezando pela escolha de responsabilização subjetiva. Entretanto, a responsabilidade civil dos médicos, embora sendo um profissional liberal, possui algumas especifidades próprias da profissão.
Conforme já abordado anteriormente, o médico, no geral, presta um serviço cuja obrigação é de meio, não havendo, a priori, a obrigação na entrega de um resultado. Não significa, no entanto, que a mera prestação do serviço de qualquer maneira já basta para o cumprimento desta obrigação. O médico precisa aplicar diligentemente todos os recursos materiais e técnicos necessários para que se atinga o objetivo. Ainda que não tenha a plena obrigação de garantia de resultado, deve empenhar todo o esforço possível para alcançá-lo.
Contudo, apesar de a obrigação do médico ser de meio e não de resultado, adverte com sapiência o magistrado Jurandir Sebastião que o profissional tem também um dever de empenho que supera em muito o conceito jurídico de contrato de meio na exata medida em que se exige do profissional que demonstre que houve a correta aplicação de todos os meios materiais e profissionais aplicáveis à espécie e que, além deles, mais não se fez porque não foi possível, embora se tenha procurado e tentado a exaustão. (MELO, 2013 apud SEBASTIÃO, 2004)
No mesmo sentido, preleciona Carlos Roberto Gonçalves:
Ao médico que diz ter conhecimento e habilidade especiais para o tratamento de um órgão ou doença ou ferimentos específi- cos, é exigido desempenhar seu dever para com o paciente, empregando, como tal especialista, não meramente o grau nor- mal de habilidade possuído pelos praticantes em geral, mas aquele grau especial de habilidade e cuidado que os médicos de igual posição, que dedicam especial estudo e atenção ao trata- mento de tal órgão, doença ou ferimento, normalmente possuem, considerando-se o estágio do conhecimento científico àquele tempo. (GONÇALVES, 2020)
No entendimento de Nader (2016), foi sensata a opção do legislador na adoção da responsabilidade subjetiva para os médicos, uma vez que caso a responsabilização fosse objetiva, causaria um desestímulo ao tratamentos dos pacientes. Ainda segundo o autor:
Não se trata de privilégio, mas de condição indispensável ao exer- cício da profissão, que muitas vezes requer coragem do médico diante de um quadro grave a exigir uma decisão imediata quanto ao procedimento a ser adotado. Este, dependendo da urgência, não permite sequer a consulta ao paciente ou aos familiares quanto à conduta exigida. O fundamental é que o médico siga a orientação mais adequada para o caso concreto. A apreciação da qualidade do seu trabalho, em caso de questionamento, deverá considerar as circunstâncias que envolveram o atendimento: a sua urgência, as condições gerais do paciente, os recursos dis- poníveis, a presteza do profissional e os métodos empregados. (NADER, 2016)
Portanto, a responsabilidade civil médica transcenderá os conceitos clás- sicos de ação, omissão e nexo de causalidade, trazendo para a ponderação de tal responsabilidade os elementos ligados a culpa, sendo eles a negligência, imperícia ou imprudência no exercício do seu mister, que eventualmente cause dano ou prejuízo ao paciente.
A culpa médica decorrente da negligência é observada quando o médico se abstém de proceder com as técnicas adequadas para o devido tratamento do paciente, agindo displicentemente, ou até mesmo "abandonando"aquele que está sob seus cuidados.
Dano por negligência se verifica quando o médico se omite no tratamento, revelando-se desidioso e comprometendo, com sua conduta, a saúde ou a vida do paciente. Incide nesta modalidade de culpa o profissional que abandona o seu cliente em hospital, causando-lhe danos. Abandono significa falta de acompanha- mento, desinteresse, descaso. (NADER, 2016)
Destaca-se ainda que a negligência não se limita àquelas situações em que o paciente se encontra hospitalizado. Para Levada (2020), o comportamento omissivo também pode ser verificado com a "não-prescrição do remédio neces- sário, a não-realização de uma cirurgia ou a ausência de diagnóstico de uma doença".
Em relação a imprudência médica, ocorre quando o profissional age de forma desmedida, portando-se de maneira incauta, precipitada e sem ponderar ou antever cada etapa do procedimento que realiza.
O profissional provoca lesões por imprudência, quando toma iniciativas precipitadas, sem a devida cautela. Enquanto na ne- gligência o agente deixa de agir no momento em que deveria fazê-lo, na imprudência ele age quando recomendável seria a omissão. Miguel Kfouri Neto exemplifica: “É o caso do cirurgião que não espera pelo anestesista, principia ele mesmo a aplicação da anestesia e o paciente morre de parada cardíaca.” (NADER, 2016)
Para além das clássicas definições de imprudência médica, vale destacar que outras situações são também enquadradas nesse tipo de ação, como a não observância de prazos razoáveis para a correta da aplicação das técnicas adequadas ou a utilização de técnicas viciadas por excesso de confiança ou experimentais.
Pode também ser enquadrado como imprudente o médico que realiza em trinta minutos uma cirurgia que normalmente deman- daria uma hora, acarretando, com seu açodamento, dano ao paciente; ou, ainda, o médico que libera o acidentado, quando de- veria mantê-lo no hospital sob observação durante algum tempo, e com isso provoca sua subsequente morte; ou como o cirurgião que abandona técnica operatória segura e habitual para utilizar técnica nova e arriscada, sem comprovada eficiência, e provoca lesão ou morte ao paciente. (MELO, 2013)
Os elementos subjetivos da responsabilidade civil do médico, além de estarem dispostos de forma geral na legislação cível, é replicada no Capítulo III do Código de Ética Médica, que trata da responsabilidade profissional, conforme se observa:
É vedado ao médico:
Art. 1o Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracteri- zável como imperícia, imprudência ou negligência.
Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.(CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019)
Expõe-se, finalmente, os pressupostos constituintes do ato ilícito que ensejam a responsabilização civil médica e que também são comuns à responsa- bilidade civil objetiva: o dano e o nexo causal.
O dano, neste contexto abordado, é uma mal físico ou psicológico cau- sado ao paciente por uma ação subjetiva do médico, tornando necessária sua reparação, podendo ser uma ofensa grave à integridade e saúde do indivíduo ou seu próprio falecimento. Já o nexo causal é o elo que une a ação ou omissão do médico ao dano causado. É a evidência de que a ação do profissional foi uma conditio sine qua non para a existência do dano, devendo todos estes elemen- tos serem constatados por um perito expert, que fundamentará uma eventual necessidade de reparação do dano.
No exame do perito, constitui um a priori a pesquisa da ocorrência de mal grave à saúde ou de morte do paciente. Se o alegado mal inexiste, prejudicada resta qualquer outra investigação. O dano, como se sabe, é um dos elementos essenciais à configuração do ato ilícito.
O reconhecimento do nexo causal pressupõe, em primeiro lugar, a ciência do estado de saúde do paciente, quando do atendi- mento médico. Apuradas as condições, torna-se necessário o conhecimento da conduta recomendável para o caso, diante das circunstâncias (urgência e recursos disponíveis) e a seguida pelo médico. Com a constatação de que o procedimento não foi adequado, importa saber se o mesmo constituiu a causa deter- minante do mal sofrido pelo paciente.(NADER, 2016)
Por conseguinte, diante dos principais conceitos, definições, pressupostos e elementos da responsabilidade civil médica, é possível perceber que, embora a relação entre médico e paciente esteja coberta pelo Código de Defesa do Consumidor, as especificidades de tal relação exigem que uma possível respon- sabilização de um profissional deve ser realizada com elevada cautela, diante de análise exaustiva dos fatos, provas e condições específicas do caso, haja vista que se por um lado deve haver a devida proteção ao paciente pelo ordenamento jurídico, por outro lado não se pode permitir que a prestação jurisdicional crie um ambiente de atuação profissional inibitório, pois a liberdade profissional do médico é imprescindível para sua atuação, principalmente por lidar com bens jurídicos altamente relevantes, como a saúde e a vida humana.
4.RESPONSABILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DE ME- DICAMENTOS E TRATAMENTOS SEM EFICÁCIA COMPROVADA
4.1 Controle de Medicamentos e Tratamentos e Dever de Informa- ção
O ser humano, ao ser acometido por uma enfermidade, busca ajuda de um profissional para que seja obtido um diagnóstico e um tratamento para sua enfermidade, visando o restabelecimento de uma condição saudável. O tratamento de várias patologias requer uma intervenção farmacológica, com a utilização de medicamentos que contribuirão para a recuperação do indivíduo.
Existe no Brasil uma definição legal para o termo medicamento, disposta na Lei no 5.991/1973, estabelecendo o seguinte:
Art. 4o - Para efeitos desta Lei, são adotados os seguintes con- ceitos: [...]
II - Medicamento - produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico; [...] (BRASIL, 1973)
A comercialização e utilização de determinado medicamento em território brasileiro requer uma análise técnico-científica e administrativa por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), vinculada ao Ministério da Saúde, conforme dispõe a Lei no 6.360/1976:
Art. 12 - Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde. (BRASIL, 1976)
Portanto, para o registro de cada medicamento no Brasil, a ANVISA analisa toda a documentação apresentada para aquela respectiva substância, verificando se os estudos científicos realizados encontram-se devidamente fundamentados, tanto em fase não-clínica quanto na fase clínica. Além disso, mesmo após o registro e o início da comercialização do medicamento, há uma continuidade no monitoramento dos efeitos adversos, em fase de pós-mercado.
No âmbito do Sistema Único de Saúde, a Política Nacional de Medica- mentos estabelece a criação da Relação Nacional de Medicamentos, que servirá como norteador do tratamento farmacológico para grande parte das enfermidades comuns em território nacional.
O Ministério da Saúde estabelecerá mecanismos que permitam a contínua atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), imprescindível instrumento de ação do SUS, na medida em que contempla um elenco de produtos ne- cessários ao tratamento e controle da maioria das patologias prevalentes no País. (BRASIL, 1998)
Percebe-se, portanto, que existe firme controle de medicamentos no Brasil, de modo que cada medicamento, quando disponibilizado no mercado, possui definido qual sua gama de atuação, bem como contraindicações e possíveis efeitos adversos, extraídos dos estudos previamente realizados.
Assim, embora o médico goze de liberdade em sua atuação profissional, não pode se propor, ao arrepio do controle sanitário realizado pela ANVISA, a testar medicamentos em seus pacientes para além daqueles limites de eficácia farmacológica pré-estabelecidos.
O médico se torna então adstrito à prescrição realizada, sendo passível de responsabilização por sua atuação. Vale destacar que, com exceção dos medicamentos "não tarjados", todos os demais só podem ser adquiridos medi- ante prescrição médica. A venda de remédios sem a devida apresentação de prescrição médica, desloca a responsabilidade para o farmacêutico responsável pela venda, de modo que a utilização uma medicação estará sempre vinculada à responsabilidade de algum profissional.
É, ainda, responsável o farmacêutico pela venda de medicamen- tos, quando a utilização destes é subordinada obrigatoriamente à prescrição médica, e assim se encontra mencionado na res- pectiva embalagem.
Merece consideração a responsabilidade no caso de, na far- mácia, aplicarem-se injeções, por cujos acidentes responde o farmacêutico.
É de se atentar, ainda, em que a farmácia, mesmo quando pratica apenas a venda de medicamentos pré-fabricados, tem um “far- macêutico responsável” a que é afeta a boa prática da profissão.
Com referência a defeitos, imperfeições ou irregularidades no produto em si mesmo, o farmacêutico não pode ser responsa- bilizado, tendo em vista que recebe o medicamento já pronto, acabado e acondicionado, não lhe cabendo averiguar o conteúdo. (PEREIRA; TEPEDINO, 2018)
Além do controle sobre intervenções farmacológicas discorrido acima, existe também um controle sobre tratamentos e procedimentos clínicos. Aqui vale ressaltar que o controle sobre os protocolos de atuação do profissional são menos restritivos que o controle sobre medicamentos.
Não há uma norma legal coercitiva que impõe ao médico a obrigação de seguir um protocolo clínico de forma pormenorizada e invariável para cada tipo de patologia. Ora, se cada organismo possui características próprias, com metabolismo específico, é corolário lógico o entendimento de que nem todos os pacientes responderão da mesma forma ao mesmo tratamento, cabendo ao médico observar a resposta de cada indivíduo e, caso necessário, realizar as devidas adaptações para fornecer o fornecimento do tratamento adequado, nos limites das evidências científicas.
Existem, na verdades, diversos protocolos clínicos, com especificidades próprias, a depender do ramo de especialidade médica ou do local do exercí- cio da atividade. Por exemplo: no âmbito do Sistema Único de Saúde existem diversos protocolos clínicos editados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC). Por sua vez, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) possui protocolos próprios para atendimentos especializados em sua área de abrangên- cia. Já a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) possui o Tratado de Pediatria, com instruções específicas para o atendimento clínico de crianças. Até mesmo algumas redes de clínicas particulares desenvolvem protocolos específicos de atendimento adaptados à sua realidade.
Expõe-se aqui as classificações utilizadas no âmbito do Sistema Único de Saúde acerca dos protocolos clínicos elaborados pela CONITEC:
Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são documentos que estabelecem critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando cou- ber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados tera- pêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS. Devem ser baseados em evidência científica e considerar critérios de eficá- cia, segurança, efetividade e custo-efetividade das tecnologias recomendadas.
As Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDT) em Oncolo- gia são documentos baseados em evidência científica que visam nortear as melhores condutas na área da Oncologia. A principal diferença em relação aos PCDT é que, por conta do sistema diferenciado de financiamento dos procedimentos e tratamentos em oncologia, este documento não se restringe às tecnologias incorporadas no SUS, mas sim, ao que pode ser oferecido a este paciente, considerando o financiamento repassado aos centros de atenção e a autonomia destes na escolha da melhor opção para cada situação clínica.
Os Protocolos de Uso são documentos normativos de escopo mais estrito, que estabelecem critérios, parâmetros e padrões para a utilização de uma tecnologia específica em determinada doença ou condição.
As Diretrizes Nacionais/Brasileiras são documentos norteado- res das melhores práticas a serem seguidas por profissionais de saúde e gestores, sejam eles do setor público ou privado da saúde.
As Linhas de Cuidados apresentam a organização do sistema de saúde para garantir um cuidado integrado e continuado, com o objetivo de atender às necessidades de saúde do usuário do SUS em sua integralidade. (CONITEC, 2022)
Por fim, faz-se necessário destacar que antes de submeter um paciente à um procedimento médico, seja ela farmacológico, cirúrgico ou de qualquer natureza, o médico tem o dever de informá-lo acerca das condições e dos riscos que envolvem o procedimento.
O Código de Ética Médica, em seu Capítulo IV, Art. 22, ao abordar sobre os Direitos Humanos na relação entre o médico e paciente, veda expressamente que o paciente seja submetido à qualquer procedimento sem o seu expresso consentimento ou de seu representante legal, se for o caso, exceto em caso de risco iminente de morte.
Embora o médico, como profissional, tenha por si a presunção de conhecimento e portanto a direção do tratamento, não se dispensa de orientar o enfermo ou as pessoas de cujo cuidado este depende, a respeito de como proceder, seja no tratamento ambulatorial, seja no hospitalar, seja ainda no domiciliar. No caso da moléstia exigir a consulta a um especialista, ou uma interven- ção cirúrgica, cumpre-lhe fazer a indicação cabível e em tempo oportuno. No dever de aconselhar, não pode omitir a informação sobre os riscos do tratamento. Era entre nós comum, em casos de moléstia grave, ocultar o médico esta circunstância, resguar- dando o doente do choque psicológico. Mais modernamente, e no rumo do que se denomina a “escola americana”, reverte-se a tendência, já no sentido oposto, de informar o paciente ou a famí- lia sobre o estado dele e sobre a possível evolução da doença. Origina-se, destarte, o “dever de informação”, cumprindo ao mé- dico (especialmente o cirurgião) advertir o cliente dos riscos do tratamento. (PEREIRA; TEPEDINO, 2018)
Desse modo, caso o médico omita do paciente as devidas informações acerca do procedimento clínico, estará sujeito à responsabilização civil por even- tuais danos, salvo se sua decisão esteja respaldada na urgência da situação, situação em que a preservação da vida do paciente torna-se a prioridade.
4.2 Os riscos da utilização de tratamentos e medicamentos sem eficácia comprovada
No exercício de sua profissão, o médico detém uma série de prerrogativas que lhe garantem autonomia e liberdade profissional. Nos tópico anterior foram apresentados algumas diretivas balizadoras de sua atuação profissional, seja para a prescrição de medicamentos ou de tratamentos. No entanto, tais diretivas não impõe ao médico uma atuação engessada e vinculada, mas visa orientá-lo acerca das práticas que possuam embasamento e aceitação científica.
Desse modo, gozando de sua autonomia profissional, o médico pode optar em alguns casos pela a prescrição de medicamento ou tratamento cuja eficácia não tenha comprovação científica. Tal escolha, porém, pode ocorrer de dois modos distintos: a) a prescrição de medicamento/tratamento inovador, sem aplicação conhecida; ou b) a prescrição de medicamento/tratamento já utilizado para outras enfermidades mas sem comprovação de eficácia contra o que se pretende tratar. É também conhecida como prescrição off label.
A utilização de um medicamento ou tratamento que até então se faz desconhecido no meio científico, carecendo de comprovação científica de sua eficácia, se mostra o cenário mais arriscado, haja vista que não se tem parâmetros para saber como tal substância agirá no organismo do paciente, nem os possíveis danos e efeitos colaterais.
A recomendação de uso de substâncias que não têm compro- vação de eficácia e segurança por profissionais fere princípios éticos e expõe a população a riscos que ela, diferente desses profissionais, não consegue dimensionar. E, ainda, diverge dos princípios da prática de saúde baseada em evidências. A medi- cina baseada em evidências (MBE) é o uso consciente, explícito e criterioso das melhores evidências científicas disponíveis para tomar decisões em relação ao manejo de pacientes. A prática da MBE consiste na integração da expertise clínica do profissional com as evidências de maior qualidade provenientes da pesquisa sistemática. (FARIA, 2015)
Um clássico exemplo de tal situação, ocorrido no Brasil, é o caso da fosfoetanolamina, que ficou popularmente conhecida como "pílula do câncer". Tal substância fora sintetizada um pesquisador no Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo, sendo posteriormente distribuída sob a alegação de que combateria determinados tipos de tumores. Sem testes clínicos, logo tornou-se objeto de disputa judicial em que pacientes acometidos pela doença buscavam tal substância como uma possível solução, gerando grande controvérsia no meio médico e científico.
A fosfoetanolamina é apenas mais uma substância candidata a medicamento. As pesquisas com essa substância ainda estão nas fases preliminares do longo processo de desenvolvimento de novos medicamentos. Embora elas ocorram há mais de uma década, somente testes in vitro (cultura de células) e em ani- mais foram realizados até o momento, e esses são insuficientes para comprovar sua eficácia e segurança em seres humanos. Muitas substâncias apresentam resultados satisfatórios nos expe- rimentos in vitro ou em animais, mas não obtêm sucesso quando utilizadas por humanos, podendo causar danos à saúde (não nos esqueçamos da talidomida e do sofrimento que causou). Estima- se que apenas nove a cada vinte mil substâncias testadas na fase pré-clínica se tornam medicamento, e apenas uma entre essas nove tem real utilidade no mercado farmacêutico. (FARIA, 2015)
Diante da ausência de estudos e, consequentemente, do desconhecimento dos efeitos no organismo humano, a prescrição de desse tipo de substância à pacientes implica num verdadeiro risco sanitário, definido por Souza e Costa (2010) como "a probabilidade de ocorrência de um evento, agravo ou dano, em uma dada população exposta a um determinado fator de risco".
Para Castro e Almeida (2017) "o risco está relacionado à possibilidade de expor pacientes oncológicos a uma terapêutica não regulada pela autoridade de vigilância sanitária".
Em relação à prescrição de medicamentos e tratamentos off label, estes já se fazem regularmente presentes no meio médico, com indicações para outras patologias. Contudo, o profissional se dispõe a aplicá-los no tratamento de enfer- midades para as quais, ao menos inicialmente, não possui indicação científica. Observa-se tal acontecimento quando se verifica o alastramento epidemiológico de uma doença, sem que haja tratamento conhecido para o devido enfrentamento.
Um exemplo recente é o caso da pandemia de COVID-19, que assolou o planeta de forma rápida sem que houvesse tratamento disponível para os acometidos pela enfermidade. Utilizou-se então diversos medicamentos que até então eram aplicáveis em outras situações, como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, e outros.
Em tais casos, parte da comunidade científica se posiciona favorável à utilização de tais medicamentos, uma vez que diante da ausência de outra alternativa, torna-se preferível que o médico arrisque em prol de seu paciente ao invés de se optar pela inércia.
A Covid-19 é uma doença nova, não há ainda um tratamento completamente comprovado, não há ainda um estudo findado, ainda há muito o que conhecer a respeito dela. Nestes casos o médico também tem sua postura mudada em relação ao en- frentamento da doença, então como por exemplo, condutas mais arriscadas para poder salvar um paciente, desta forma o médico pode chegar à conclusão de que diante um risco de morte, ou a falta de um caminho mais seguro para o paciente, o médico pode decidir tomar uma atitude positiva em usar um medicamente que ainda está em fase de teste, em vez de ficar passivo e impotente sem fazer nada para ajudar seu paciente. É preciso refletir que o momento que todos estão enfrentando é um momento atual extraordinário, e pode admitir uma atuação do médico diferente da atuação do mesmo caso estivesse em tempos normais sem uma pandemia. (GOULART; OLIVEIRA, 2021)
Por outro lado, há forte posicionamento contraposto ao supracitado, em que a alegação é de que significativos efeitos colaterais podem advir do uso de tais medicamentos, de modo que o risco seria superior ao possível benefício, o que tornaria perigoso o uso em tratamento clínico corrente.
Tais documentos, que pretendem autorizar o uso off label sem segurança científica, provocaram reações críticas contundentes da comunidade médica, destacando-se dentre elas o comuni- cado conjunto da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, de 18 de maio de 2020, que formou uma força-tarefa de 27 especialistas e metodologistas para uma rápida revisão sistemática da literatura científica, que concluiu que “não há indicação de uso de rotina de hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, lopinavir/ritonavir, corticosteroides ou tocilizumabe no tratamento da Covid-19”, sobrando comprova- ção de graves efeitos colaterais no seu uso que, em caráter excepcional, somente se justifica no contexto da pesquisa clínica. (JÚNIOR, 2020)
Desse modo, percebe-se que a utilização de medicamentos e tratamentos cuja eficácia extrapola o limite da comprovação científica acaba por ser uma decisão do profissional, no exercício de sua autonomia, mediante cientificação e concordância do paciente, não estando isento das possíveis responsabilizações cíveis decorrentes de tais condutas, que deverá ser analisada em cada caso concreto.
Estendendo a análise de casos de utilização de medicamentos e trata- mentos sem comprovação científica, torna-se pertinente a seguinte conclusão doutrinária:
Diante do exposto, podem ser extraídas as seguintes conclusões:
1 – O uso de substâncias farmacológicas para pacientes com Covid-19 pressupõe, sempre, a existência de evidência científica e o cumprimento dos princípios da bioética (consentimento do paciente, beneficência, não maleficência e justiça);
2 – Enquanto não houver registro na Anvisa e inclusão nos proto- colos clínicos do SUS, mediante avaliação da Conitec, a prescri- ção de medicamentos é opção do médico;
3 – No caso da cloroquina e da hidroxicloroquina, de nada valem as “notas informativas” de orientações terapêuticas do Ministério da Saúde e o Parecer CFM 4/2020, que reconhecem a ausência de evidência científica e são criticadas pela comunidade científica nacional e internacional, inclusive por associações de especiali- dades médicas;
4 – A opção do médico, enquanto não houver certeza científica, somente se justifica a título de uso compassivo e constituirá uso off label, que pressupõe sempre embasamento em literatura científica, ainda que preliminar, a comprovação da gravidade da doença e o consentimento do paciente, com avaliação dos riscos e benefícios do uso do medicamento, na ausência de alternativa terapêutica satisfatória no país;
5 – O não cumprimento da legislação sanitária pode gerar a responsabilização civil e criminal, seja do médico, seja do gestor público e privado, inclusive com fundamento no Código de Defesa do Consumidor. (JÚNIOR, 2020)
Embora o excerto acima exposto trate especificamente da utilização de medicamentos off label para o tratamento de COVID-19, é possível extrair parâ- metros gerais para os demais tipos de utilização de medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente.
A decisão final por determinado procedimento clínico deverá ser tomada em conjunto pelo médico e paciente, estando o segundo plenamente cientificado dos riscos e da carência científica. Ainda assim, não terá isenção de responsabili- dade o médico que opte proceder por tal direção.
Na análise de eventual caso concreto, verificando-se que o profissional, mesmo cientificando seu paciente, violou normas sanitárias, ou ainda, que ao exercer a opção por tratamento não convencional tenha agido com imprudên- cia, negligência ou imperícia, resultando em dano ao paciente, estará sujeito a ser responsabilizado civilmente, sendo obrigado a reparar o dano na forma de indenização.
Sobre a indenização, explica o doutrinador:
Na responsabilidade civil, o agente que cometeu o ato ilícito tem a obrigação de reparar o dano patrimonial ou moral causado, buscando restaurar o status quo ante, obrigação esta que, se não for mais possível, é convertida no pagamento de uma in- denização (na possibilidade de avaliação pecuniária do dano) ou de uma compensação (na hipótese de não se poder estimar patrimonialmente este dano). (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011)
Portanto, conclui-se que a responsabilização civil de um médico, com subsequente indenização, não é algo simples de se apurar. A autonomia médica garante ao profissional um leque de possibilidades de atuação, cujo objetivo principal é o bem estar e a saúde do paciente. Caso os limites de atuação sejam extrapolados, caberá a apuração de todos os quesitos apresentados nesse trabalho, como o respeito às normativas técnico-científicas, o dano causado, a existência de negligência, imprudência ou imperícia, e afins, ficando restrita à análise do caso concreto.
O presente artigo teve como objetivo o estudo da responsabilidade civil, focada na atuação do médico ao medicar e tratar determinado paciente via alternativa cuja eficácia não tenha lastro de evidência científica.
Foram demonstrados os conceitos clássicos de responsabilidade civil, que envolvem desde o dano causado pelo agente à outrem, bem como o nexo de causalidade, que liga a conduta ao dano. No caso específico do médico, tal situação ganha contornos próprios, uma vez que dependem da comprovação de negligência, imperícia e imprudência em sua atuação profissional. Isso acontece, em primeiro lugar, em razão da natureza das obrigações médicas serem de meio e não de fim. Além disso, a responsabilidade civil médica não tem por objetivo a inibição do médico em sua atuação, mas visa garantir a proteção do paciente-consumidor submetido aos cuidados do profissional, buscando a responsabilização daqueles que extrapolam o limite profissional, legal e ético.
Em relação à utilização de medicamentos e tratamentos sem eficácia ci- entificamente comprovada, seja pela inexistência de registro de uma substância junto aos órgãos competentes, seja pela inexistência de estudos que permitam a aplicação de determinado medicamento para fim diverso daquele para qual foi aprovado, foi possível constatar que embora existam situações que permitam que o médico exerça sua autonomia profissional, a utilização de tais medicamentos ou tratamentos estão sempre ligadas à um risco e que, mesmo diante da pleno consentimento do paciente, é possível que o profissional venha a ser responsabi- lizado civilmente por danos causado em decorrência da utilização de tratamento não convencionais.
Conclui-se, por fim, que o médico deve exercer sua atividade buscando a sempre a preservação da vida, da saúde e da integridade dos seus pacientes, buscando agir sempre amparado pela legislação, pela ciência e por princípios bioéticos, de modo que a responsabilização civil de um profissional seja medida excepcional, reservada apenas para situações em que houve extrapolação da autonomia profissional resultando em dano ao paciente, figura hipossuficiente que goza da proteção do ordenamento jurídico pátrio
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BRASIL. Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990: Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 1990.
BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002: Institui o código civil. Diário Oficial da União, Brasília, 2002.
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[1] Docente no curso de Direito na Universidade Estadual do Tocantins
Acadêmico de Direito na Universidade Estadual do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, GEORGE MATHEUS RODRIGUES. A responsabilidade civil de médicos pela prescrição de medicamentos e tratamentos sem eficácia comprovada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59957/a-responsabilidade-civil-de-mdicos-pela-prescrio-de-medicamentos-e-tratamentos-sem-eficcia-comprovada. Acesso em: 23 dez 2024.
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