FRANCISCO LUCAS DE ANDRADE ARAÚJO[1]
(coautor)
GUSTAVO LUÍS TUPINAMBÁ RODRIGUES [2]
(orientador)
RESUMO: A aplicabilidade da Lei Maria da Penha para as mulheres transexuais vítimas de violência doméstica é objeto de estudo desse artigo, principalmente, quando se considera o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Observa-se o posicionamento doutrinário de alguns autores, como: Masson, Natália (2019); Jesus, Damásio (2015); Ceccarelli, Paulo Roberto (2013); Interdonato, Gian Lucca (2017); Paulo Nader (2017); Constituição Federal (1988) e sites, jornais nacionais, artigos, que subsidiaram grandiosamente a produção e definição da metodologia de pesquisa. Nesse sentido, tem-se uma produção, excepcionalmente, bibliográfica e qualitativa. Orientada pela jurisprudência emanada em abril de 2022 pelo Superior Tribunal de Justiça, que assegura às mulheres transexuais o direito à aplicação da Lei Maria da Penha, bem como, suas medidas protetivas, quando aquelas buscarem seus direitos. Sabe-se que o Brasil é um país machista, onde as minorias sofrem constrangimentos, discriminações, intolerância e, assim sendo, é necessária uma ampla divulgação e defesa dos direitos desses grupos tão marginalizados, mas detentores de direitos individuais e coletivos que os assegures perante a sociedade.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Violência Doméstica. Preconceito. Transexuais.
1 INTRODUÇÃO
Abordando o tema da identidade de gênero, pode-se chegar à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina, e como uma pessoa se sente em relação a tal identidade. Tendo em vista que, uma pessoa transgênica ou uma pessoa transexual pode se identificar como homem ou mulher, mas não binária. Neste contexto, em relação às mulheres transexuais, estas nasceram no gênero masculino, mas não se identificam como sendo homens.
Eis que surge uma controvérsia para embasar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, voltados para a inclusão das transexuais no cunho protecionista da Lei em comento. Tendo em vista, a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.
O Superior Tribunal de Justiça em alguns dos seus julgados vem consolidando a temática sobre a diferença de gênero e sexo, para o âmbito da aplicação da Lei Maria da Penha na proteção das transexuais com enfoque na punibilidade Estatal desta Lei com o uso da hermenêutica para o caso concreto.
Desse modo, a base deste trabalho é buscar meios para melhor compreensão sobre a problemática que se dá com a violência doméstica e familiar fortalecendo a tese de que não se restringe apenas a mulher cisgênero, ou seja, a que nasceu no sexo feminino e se identifica com ele e nem se trata apenas de uma questão biológica, mas de uma temática que atinge o gênero feminino como um todo, posto que, a quem se identifique se enxergando e se reconhecendo como mulher. Dessa forma, procura-se abordar a compreensão do problema em relação à aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres transexuais, vítimas de violência doméstica.
Revisando a bibliografia em Direito Penal sobre a aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha para a proteção das mulheres transexuais e corroborando com os votos dos Ministros da 6ª turma sobre Recurso Especial n° 1.977.124/SP, em uma análise relacionada com a limitação da aplicação da Lei Maria da Penha à condição de mulher biológica, é o objeto de estudo principal desse trabalho, que visa também analisar políticas públicas e sociais que tratam da aplicação da tutela jurisdicional do Estado nos casos de violência doméstica contra as transexuais.
A metodologia abordada é de cunho bibliográfico normativo, visto que, o tema central deste trabalho e as relações de gênero, sexo, identidade de gênero, sobre um fator meramente biológico para a aplicação da Lei Maria da Penha e suas medidas de proteção em situação de violência doméstica e familiar contra as transexuais. Em suma, o Juízo de primeiro grau e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negaram as medidas protetivas, entendendo que a proteção da Maria da Penha seria limitada à condição de mulher biológica, não se trata apenas da analogia, mas sim de aplicar apenas o texto da Lei 11.340/2006 (BRASIL, 2006).
Por conseguinte, a Sexta Turma do STJ estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra as mulheres transexuais. Tendo em vista que, este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata, trazendo uma proteção mais ampla a todas aquelas que se reconheçam como pertencentes ao gênero feminino.
Assim, este artigo se desenvolve em três capítulos, capítulos dois, três e quatro. O segundo capítulo tem o título “Constituição Federal de 1988 e a Igualdade de Gênero” que discorre sobre a importância da Carta Magna para nortear a proteção das mulheres transexuais. O terceiro capítulo, “Características Gerais da Lei Maria da Penha” que trata sobre a criação da Lei Maria da Penha e como ela foi ampliada para receber mulheres transexuais, apresentando assim, a importância e necessidade de discorrer sobre esse tema. O quarto capítulo é intitulado de “Entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicação da Lei Maria da Penha as Mulheres Transexuais” e expõe de forma direta o posicionamento da Corte Superior, esmiuçando os votos dos Ministros.
E, por fim, temos a conclusão do referido trabalho, sendo o espaço dedicado para as considerações finais e críticas sobre o assunto abordado.
2 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A IGUALDADE DE GÊNERO
A Constituição Federal é a norma superior de um Estado Democrático de Direito e laico, como tal, deve prevalecer sobre todos os outros documentos normativos que esse Estado possua. Trata-se de um documento jurídico-político que define as normas, regras e princípios que regem as relações públicas e privadas em seu âmbito.
A visão estigmatizada construída socialmente a respeito dos estudos nas bases familiares em relação ao gênero e a perpetuação do preconceito e da intolerância entre o ceio familiar, diante disso, buscou-se o cunho protetivo do Estado e que este assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações, em especial, a violência de gênero em desfavor das mulheres transexuais.
O filósofo Emmanuel Kant foi quem mais influenciou o pensamento acerca da dignidade da pessoa humana e a atual Constituição Federal acolheu como sendo um dos seus princípios basilares à condição de fundamento da República. Trata-se de um macro princípio que norteia e orienta todo o sistema jurídico brasileiro. A dignidade é atributo inerente a todo e qualquer ser humano, a convivência social exige respeito e consideração recíprocos entre esses seres (DIAS, 2014).
O Brasil é signatário de vários acordos internacionais de direitos humanos que visam respeitar a não discriminação de qualquer origem. A identidade de gênero é um item que tem garantia constitucional, infraconstitucional e nas convenções internacionais.
O caput do artigo 5º Constituição Federal de 1988 assevera:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (BRASIL, 1988, n.p).
Diante disso, a jurisprudência brasileira vem promovendo a valoração dos direitos fundamentais no que se refere à identidade de gênero, e concedendo a aplicação da Lei Maria da Penha às transexuais ou travestis vítimas de violência doméstica ou familiar. Não há espaço, no Direito, para o preconceito e a discriminação de gênero. Inegável é o reconhecimento dos sujeitos de direitos, independentemente de sua identidade de gênero.
Conforme dito anteriormente, a autora Maria Berenice Dias (2011, p. 98), diz que:
O direito à sexualidade, como um direito comum de primeira geração, diz respeito à intimidade e à vida privada das pessoas. Em sua opinião, a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sua sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual.
Além de estarem amparados na Carta Magna, estes direitos estão protegidos em Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e da Convenção Internacional para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em especial o público trans.
2.1 Conceitos de gênero, sexo, identidade de gênero
Ao aprofundar o conhecimento sobre gênero, sexualidade e a orientação sexual se faz extrema importância à reavaliação dos pré-conceitos enraizados ao longo do tempo, para se analisar sem prejulgamentos infundados, desta forma requer uma visão além dos ensinamentos religiosos ou institucionais. Tendo a sexualidade, como uma dicotomia entre o corpo biológico e o psicológico, provocando nele uma insatisfação biológica que impacta as relações sociais deste com a sociedade ao qual ele está inserido.
Nesse sentido, Louro (1997, p. 49) ensina o seguinte:
Quando afirmamos que as identidades de gênero e as identidades sexuais se elação, queremos significar algo distinto e mais complexo do que uma oposição entre dois polos; pretendemos dizer que as várias formas de sexualidade e de gênero são interdependentes, ou seja, afetam umas às outras.
É importante reiterar que a noção de gênero diante do dinamismo científico, passou a ser compreendida além dos papéis ou padrões socioculturais limitados apenas ao masculino e feminino ao qual perdurou por muito tempo numa lógica rígida e limitada. Através destes novos entendimentos em especial do judiciário, ampliou-se as concepções sobre orientação sexual e finalidade de suas identidades como uma categoria que exprime as suas vontades e orientações sexuais das mais variadas formas.
No contexto histórico, o gênero é o termo usado para designar a construção social do sexo biológico. Ele tem a ver com a organização da sociedade em relação aos sexos. Assim, a definição de homens e mulheres é resultado do contexto social, em vez da anatomia de seus corpos. Dessa forma, teríamos dois gêneros: o masculino e o feminino.
Em muitas culturas e lares da sociedade brasileira, o tema sobre sexualidade ainda é um tabu, e a expressão sexual continua não sendo vista como simplesmente uma escolha pessoal. Há preconceito e, às vezes, até violência, nesse sentido é sempre importante reforçar que se precisa evoluir como seres humanos. Para se chegar a informações confiáveis e compreender as expressões relacionadas ao tema, são passos importantes para poder abrir a mente e ajudar a combater estes estigmas.
As pessoas que se identificam como transexuais não são necessariamente homossexuais. Por isso, elas não são “classificadas” pela orientação sexual, mas, sim, pela identidade de gênero. Os transgênicos são pessoas que não se identifica com o gênero que tem, apesar de ter um sexo biológico, ela se percebe como pertencente ao sexo oposto no caso dos travesti homem que se identifica com o gênero feminino.
Essas pessoas podem apenas se vestir como mulheres ou passarem por procedimentos cirúrgicos e hormonais para mudar o corpo transexual transgênico que modificam o corpo, por meio de cirurgias e medicamentos, para adotar um novo gênero.
De acordo com Nathalia Masson (2019, p. 289):
O direito de cada pessoa vivenciar livremente a sua sexualidade representa, portanto, uma faceta do direito à liberdade, à igualdade e à dignidade, vez que se traduz no direito de gerir a própria vida de maneira a alcançar maior bem-estar, sem que isso possa resultar em quaisquer restrições de direitos.
Desta maneira, percebe-se que em um sentido mais humano, todos têm o direito à felicidade e que está para ser alcançada, além de muitas outras variáveis, depende da liberdade de orientação sexual, da liberdade de disposição do seu próprio corpo, da liberdade de relacionamento. É imprescindível, que a sociedade amadureça no sentido de que as pessoas são diferentes e que possuem ideias, sentimentos, desejos, emoções e se veem de forma diferente uma das outras.
Corroborando com esse entendimento, no tocante à identidade de gênero, o Supremo Tribunal Federal, reconheceu a categoria dos transgênicos, o direito à mudança ou alteração de prenome e identificação sexual no registro civil, independentemente, de ter havido ou não cirurgia de transgenitalização ou de tratamentos hormonais. Esse é o entendimento verificado na ADI 4275 (BRASIL, 2018, p. 02), que segue in verbis:
Decisão: O Tribunal, por maioria, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio e, em menor extensão, os Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgênicos que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. Impedido o Ministro Dias Toffoli. Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 1º.3.2018.
Essa é uma importante decisão e que confere, acima de qualquer outro benefício, um verdadeiro resgate de dignidade às pessoas transexuais. Nota-se que o nosso judiciário tem se mostrado e atuado, através de suas decisões, de forma moderna e humana, conferindo direitos a partes da sociedade que sempre foram marginalizadas. É, sem dúvida, um grande avanço na conquista de direitos.
3 CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LEI MARIA DA PENHA
É necessário destacar que toda essa evolução, jurídica e social, fora fruto da coragem de uma mulher chamada Maria da Penha Maia Fernandes, a qual foi vítima, durante todo o seu casamento, de diversas agressões perpetradas por seu marido, sendo que, dentre as diversas agressões, ocorreram duas tentativas de homicídio, tendo a primeira tentativa de homicídio resultado na paraplegia de Maria da Penha.
Antes de analisar de forma mais aprofundada a Lei 11.340/2006 é importante destacar que, antes do advento da Lei Maria da Penha, os casos de Violência Doméstica e Familiar perpetradas contra as mulheres eram tipificados como crimes de menor potencial ofensivo aqueles com pena máxima de até dois anos e, portanto, era julgado pelos Juizados Especiais Criminais o que, consequentemente, lhes sujeitava à aplicação de medidas despenalizadas trazidas a efeito pela Lei nº 9.099/95, mais conhecida como Lei dos Juizados Especiais.
Contudo, o cenário jurídico-social sofreu notável mudança a partir do advento da Lei nº 11.343/06, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, momento em que o “manto” protetor da entidade familiar fora retirado e, então, as mulheres passaram a serem encorajadas a trazer à tona os casos de agressões ocorridas no seio familiar, estes modestos ensaios desboca no afluente direito a evolução legislativa as necessidades mais pungentes dessa categoria.
Com o advento desta Lei, os crimes de violência doméstica e familiar deixaram de ser considerados crimes de menor potencial ofensivo (aqueles com pena máxima de até dois anos) e, ainda, foram trazidos a efeito vários preceitos e mecanismos mais céleres, efetivos e humanizados visando a tutela dos diretos das mulheres que sejam vítimas de qualquer tipo de violência baseada no gênero feminino e praticadas no âmbito doméstico e familiar, considerando para tanto, que as mulheres, no sentido do gênero feminino, encontram-se, presumidamente, em situação de vulnerabilidade no seio familiar em relação ao seu parceiro (a).
Após o lapso temporal sobre a Lei 11.340/2006 e com evolução da sociedade e suas variadas modificações ao aspecto da identidade de gênero, surgiu um embate nos tribunais sobre a Lei Maria da Penha sendo preciso analisar quem poderá ser sujeito passivo dos crimes abarcados pela referida Lei, mais especificamente no que tange à possibilidade de pessoas transexual ou transgênica figurarem neste polo, vez que estes se identificam como sendo do gênero feminino, bem como desempenham o papel feminino na relação. Para se chegar a um entendimento sobre essa problemática os ministros da 6ª Turma do STJ, analisaram diversos aspectos quanto à questão da identidade de gênero.
Desta forma, com as reiteradas negativas de aplicação da Lei Maria da Penha na proteção de travestis e mulheres transexuais, a revista Isto É (2021 apud Benevides, 2022, p. 77) produziu a seguinte matéria:
A omissão do sistema judiciário com casos de violência doméstica contra mulheres trans, por desconsiderar seu gênero como válido para a proteção contra a violência de gênero. Aliado a isso, o judiciário, muitas vezes, adota posturas transfóbicas ao emitir decisões nos poucos casos cujas denúncias são acolhidas. Em matéria, o jornalista Fernando Lavieri elucida que o judiciário ainda trata mulheres trans no masculino, tirando, portanto, seu direito a ser acolhida pela Lei Maria da Penha.
O teor da matéria acima, descreve de forma perfeita, o posicionamento e entendimento do Juízo de Primeiro Grau, bem como, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em consideração à decisão que originou o REsp n° 1.977.124/SP.
Não há como negar os avanços que a Lei Maria da Penha proporcionou no tocante à proteção contra a violência doméstica contra as mulheres transexuais, tendo diversos julgados Brasil a fora com esse entendimento. No entanto, existem decisões de juízes, que tem negado a proteção prevista na Lei Maria da Penha, alegando entre outras questões, que estas não seriam mulheres, e que, portanto, a lei não se aplicaria a elas, em um flagrante violação dos direitos humanos da população transexuais.
Em consequência de a transexualidade envolver questões complexas, o modo de abordar a questão reflete-se necessariamente no entendimento da esfera jurídica principalmente quando afeta direitos da personalidade e a regulação jurídica da identidade. Desta forma, a teoria tridimensional do Direito defende que as modificações sociais no ordenamento jurídico ocorrem como consequência de demandas sociais que forçam a criação de legislação reguladora sobre o tema, ou seja, a Lei surge após o fato social, o que obriga o poder judiciário a pautar sobre a temática, assim ocasionando o ativismo judicial.
4 ENTENDIMENTO DO STJ SOBRE A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA AS MULHERES TRANSEXUAIS
Trata-se de um tema sensível, nevoado por preconceitos e discriminações até mesmo por aqueles que devem julgar com imparcialidade e, acima de tudo, levando em consideração o que o texto constitucional prega no tocante à dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, pairam, principalmente, no âmbito dos Tribunais de Justiça Estaduais, divergências sobre a possibilidade extensiva da aplicabilidade da Lei Maria da Penha às transexuais. O entendimento do STJ, em tese, deverá uniformizar o entendimento sobre a referida lei e evitar decisões conflitantes, diminuindo traumas para às vítimas e reduzindo o tempo dos processos, o que contribuirá também para uma Justiça mais eficiente e célere.
Historicamente, a violência praticada no âmbito familiar é tida ainda como tabu, existindo até um ditado popular: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Acontece que, geralmente, a parte que mais sofre nessas brigas é a mulher, gênero feminino.
Segundo Nucci (2019, p. 794):
Costumava-se, como medida de política criminal, defender o arquivamento de inquérito policial ou até mesmo a absolvição da pessoa acusada quando o casal se reconciliava, visando à preservação da família. Uma condenação poderia provocar maiores danos à estabilidade conjugal, já alcançada pela recomposição de ambos.
Nesse sentido, a citação acima corrobora com o entendimento, de uma forma mais crítica, que nossa sociedade é extremamente machista e que sempre favoreceu o universo masculino em detrimento do público feminino.
No entanto, ainda de acordo com Nucci (2019, p. 794):
Ocorre que, atualmente, cuida-se da hipótese de violência doméstica (art. 129, §9º do Código Penal-grifo nosso), cuja ação é pública incondicionada. Por isso, não nos parece ser o caso de continuar a aplicar a política criminal de preservação dos laços familiares, pois o interesse público em buscar a punição do agente é superior à pretensa preservação do matrimônio.
Com fulcro na passagem acima, percebe-se que a sociedade tem reagido no sentido de coibir a violência doméstica familiar. Isso só é possível graças ao avanço do nível de entendimento de civilidade da sociedade, que lutou e ainda luta por melhores condições para os públicos mais vulneráveis.
Segundo Dias (2011, p. 275-276):
Essa Lei nasceu dos anseios de uma sociedade cansada da impunidade dos autores de agressões físicas e psicológicas que vitimam as mulheres no âmbito doméstico e também de forte pressão dos órgãos internacionais responsáveis pela defesa dos direitos humanos – como a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Ancorada no próprio texto constitucional e em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de San José da Costa Rica, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, entre outras, podemos afirmar que a Lei Maria da Penha é a principal legislação nacional de prevenção contra a violência doméstica e familiar contra a mulher em situação de vulnerabilidade.
A base para a criação da Lei Maria da Penha é o artigo 226, § 8º da Constituição Federal que diz: Art. 226. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, fica evidente que a discussão sobre violência doméstica é de extrema importância, principalmente, pelos números alarmantes desse tipo de delito, sendo o Brasil um dos campeões mundiais nessa modalidade de crime.
Não obstante a uma reflexão interna, percebe-se que se trata de um tema que transcende as fronteiras nacionais e que existe uma pressão muito grande de organismos internacionais que reflete em políticas públicas mais efetivas na proteção do público abrangido pela referida lei.
Precedendo à análise do entendimento do STJ sobre o tema, é importante destacar o caput e o parágrafo único do artigo 5º da Lei Maria da Penha, vejamos:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, 2006, n.p).
Destarte, presume-se que o texto da lei prevê categoricamente, que interpretação deve ater-se ao gênero, independentemente de orientação sexual, e não ao aspecto biológico.
Segundo Interdonato (2017, p. 92),
A aplicabilidade da Lei Maria da Penha em situações nas quais as vítimas são mulheres transexuais é possível, favorecendo e garantindo, maior segurança nos casos de violência doméstica, demonstrando uma recepção um pouco mais positiva do que a apresentada no âmbito civil, na questão da alteração de documentação.
Percebe-se que o a aplicabilidade da legislação protetiva beneficia, sobremaneira, uma classe minoritária e excluída que necessita de proteção. Nesse sentido, o STJ entende que a Lei Maria da Penha é aplicável para o caso da mulher transexual vítima de violência doméstica.
Em análise do caso concreto do julgamento do Recurso Especial Nº 1977124 - SP (2021/0391811-0), segundo o relator, Ministro Rogério Schietti (BRASIL, 2022, p. 26) “Importa enfatizar que o conceito de gênero não pode ser empregado sem que se saiba exatamente o seu significado, e de tal modo que acabe por desproteger justamente quem a Lei Maria da Penha deve proteger: mulheres, crianças, jovens, adultas ou idosas e, no caso, também as transexuais”.
É de suma importância destacar a posição adotada pela 6ª turma do STJ, originada do julgamento do REsp Nº 1977124 - SP (2021/0391811-0), no caso que se estar a analisar, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei Maria da Penha, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente – especializado – para processar e julgar a ação penal.
Ainda segundo ao julgado em comento, o Ministro Relator Rogério Schietti (BRASIL, 2022, p. 02) afirma:
Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias.
Nesse sentido, a Lei Maria da Penha tem por objetivo maior a proteção das vítimas em situações de vulnerabilidade, como é o caso da ofendida nos autos do REsp acima mencionado. Os abusos por ela sofridos aconteceram no ambiente familiar e doméstico e decorreram da distorção sobre a relação oriunda do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do fator essencial de ela ser mulher, conforme se lê no trecho do REsp acima citado, a seguir transcrito in verbis:
Conquanto a Lei n. 11.340/2006 não estabeleça o sujeito passivo "com base no sexo feminino, mas no fato de ser mulher", o que implica a compreensão sobre as "diversas experiências do que é ser mulher", também se deve ter presente que "é preciso interpretar a lei com atenção para que um sujeito abstrato universal não seja interpretado de modo a restringir direitos e experiências de mulheres de carne e osso com base em estereótipos (MELLO, 2020, p. 84-86).
A Sexta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial nos termos do voto do Sr. Ministro Relator Rogério Schietti Cruz. Os Srs. Ministros Antônio Saldanha Palheiro, Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator. Destarte, o STJ usou da interpretação extensiva, que é quando a lei diz menos do que ela queria realmente dizer ao caso concreto.
Ao interpretar a lei de forma mais extensiva, o STJ faz com que a justiça chegue mais longe e beneficie mais cidadãos. Isso é positivo, pois a hermenêutica jurídica não pode estar presa na expressão literal da lei, devendo esta, ser interpretada de acordo com o caso concreto e de acordo com contexto histórico e social. A interpretação da lei deve acompanhar a evolução da sociedade e permitir que mais pessoas possam estar protegidas pelo escudo da justiça.
Corroborando com o parágrafo anterior, Dias (2011, p. 277-278) diz:
A importância desse diploma legal reside não somente no fato de criar formas de prevenção e punição da violência doméstica e familiar. Definitivamente, a importância e a extensão dessa lei são muito maiores. Pode-se afirmar, sem receio de errar, que a Lei Maria da Penha representa um marco legislativo no direito brasileiro, por trazer expressamente em seu texto o reconhecimento legal do conceito moderno de família, formado por pluralidade de formas familiares e baseado no afeto – suprimindo assim uma lacuna que imperava na nossa legislação infraconstitucional e deixava à margem da lei o relacionamento e as famílias homoafetivas.
Percebe-se que a evolução da sociedade em seus diversos aspectos, bem como, as pressões dos diversos organismos de defesa das minorias e direitos humanos é essencial para que aconteça a modernização legislativa e protetiva desses mesmos grupos.
4.1 Análise e interpretação dos votos dos ministros no julgamento do recurso especial nº 1977124 - SP (2021/0391811-0)
Observa-se que este é um tema muito importante sob a óptica do direito constitucional, do direito penal e direito processual penal, forçando-nos a expandir os conhecimentos sobre a evolução social e seus desdobramentos no âmbito do direito, sobretudo, no alcance da justiça diante da sociedade.
Nesse sentido, faz-se necessário uma análise dos votos dos Excelentíssimos Ministros do STJ, diante do caso em questão, para que possamos ter uma melhor compreensão da evolução da lei, através de uma interpretação mais extensiva.
O relator Ministro Rogério Schietti Cruz, abordou os conceitos de sexo, gênero e identidade de gênero, com base na doutrina especializada e na Recomendação 128 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que adotou protocolo para julgamentos com perspectiva de gênero. Segundo o magistrado, "gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres", enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores femininos e masculinos, de modo que, para ele, o conceito de sexo "não define a identidade de gênero".
O Ministro Schietti, destacou o voto divergente da desembargadora Rachid Vaz de Almeida no TJSP, posto que, os julgados de tribunais locais que aplicaram a Maria da Penha para mulheres trans, os entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do próprio STJ sobre questões de gênero e o parecer do Ministério Público Federal no caso em julgamento, favorável ao provimento do recurso – que ele considerou "brilhante" (BRASIL, 2022).
A Ministra Laurita Vaz (BRASIL, 2022, p. 41) acompanhou o ministro relator em seu voto vogal dizendo:
Faço esse breve apanhado de dados apenas para frisar que a mulher trans é agredida, em regra, exatamente por sua condição de mulher. Quando os dados revelam que a maioria das mulheres trans é vitimada no lar por pessoas conhecidas, como no caso concreto em análise, o que temos diante de nós é um crime praticado no mesmo contexto cultural que conduziu o legislador a editar a Lei Maria da Penha, cuja premissa fundamental é o repúdio à violência doméstica e familiar baseada no gênero.
Nesse sentido, por unanimidade, os ministros da Sexta Turma entenderam que o artigo 5º da Lei Maria da Penha caracteriza a violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero, mas que isso não envolve aspectos biológicos e acompanharam os pareceres dos Ministérios: Público Estadual Paulista e Ministério Público Federal.
Importante ressaltar que o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, através do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), em reunião ordinária em 15/06/2016 aprovou o Enunciado Nº 01/2016, in verbis:
A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou sexo no documento civil”. Submetido à “deliberação da plenária o enunciado foi aprovado por unanimidade (GNDH, 2016, p. 01).
Como reflexão e crítica, no Brasil, em 2021, segundo dados da Agência Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), houve 140 mortes de transexuais e travestis. Tal fato coloca nosso país, pelo 13º ano consecutivo, como o mais letal do mundo para esse público. Isso é um absurdo para um país que tem uma Constituição embasada nos ideais democráticos, defensora dos direitos humanos e proteção de grupos minoritários (BENEVIDES, 2022).
Segundo Nader (2017, p. 107):
A ideia de justiça faz parte da essência do Direito. Para que a ordem jurídica seja legítima, é indispensável que seja a expressão da justiça. O Direito Positivo deve ser entendido como um instrumento apto a proporcionar o devido equilíbrio nas relações sociais. A justiça se torna viva no Direito quando deixa de ser apenas ideia e se incorpora às leis, dando-lhes sentido, e passa a ser efetivamente exercitada na vida social e praticada pelos tribunais.
Quando o artigo 5º da Lei Maria da Penha faz citação à palavra mulher, logo depois ele assevera que esse entendimento deve baseado no “gênero” e não apenas no conceito biológico. Nesse sentido, mesmo que tenhamos violência doméstica em números tão alarmantes, é confortante saber que o entendimento dos Procuradores, Promotores e Tribunais Superiores está no sentido de ampliar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha para este público, pois esta lei possui mecanismos de proteção que, com a atuação firme do Estado, pode coibir de forma efetiva a violência doméstica sofrida por mulheres, sejam cisgênero ou transexuais. Isso é o deixar de ser apenas ideia e sim, como bem disse Nader na citação acima, uma justiça viva no Direito com uma lei incorporada e exercitada na vida social e praticada pelos tribunais.
Em suma, entendemos que o entendimento sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais é uma realidade mais próxima desse grupo minoritário e, extremamente, vulnerável em nossa sociedade. Pois, conforme apresentado, este é o entendimento dos Tribunais Superiores, bem como, das Procuradorias e Promotorias.
5 CONCLUSÃO
A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha é, acima de tudo, um marco histórico e simbólico na luta contra a opressão e violência de gênero. Trata-se de uma legislação que está em constante mudança, pois acompanha a evolução da própria sociedade.
Nesse contexto, aperfeiçoar as leis, visando cada vez mais que estas protejam, sobretudo, os mais vulneráveis é imprescindível. Não obstante, deve-se ter mecanismos de justiça, através dos órgãos julgadores, cada vez mais próximos da sociedade e sintonizados com o avanço social, em todos os sentidos e guiados, principalmente, pela Constituição Federal e não se apegando a tradições patriarcais ou limitando-se às literalidades das palavras, mas sempre, ao caso concreto.
Ainda que exista violência doméstica em números tão alarmantes, é confortante saber que o entendimento dos Procuradores, Promotores e Tribunais Superiores está no sentido de ampliar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha para este público, pois esta lei possui mecanismos de proteção que, com a atuação firme do Estado, pode coibir de forma efetiva a violência doméstica sofrida por mulheres, sejam cisgênero ou transexuais.
O estudo aprofundado da jurisprudência proferida pelo STJ, através do RESP Nº 1977124 - SP (2021/0391811-0), fez com que se buscasse conhecimentos diversos, principalmente, nas áreas do direito, sociologia e psicologia, para que se chegasse a alguma conclusão sobre números alarmantes sobre violência em nosso País.
A sociedade brasileira formou-se ancorada em princípios tradicionais e conservadores, onde as mulheres não tinham voz e muito menos direitos. Elas eram como mercadorias pertencentes, primeiramente, aos seus pais e depois aos seus esposos. Essa situação fez com que o Brasil se transformasse, ao longo do tempo, em um país machista e misógino.
Tal estudo proporcionou, também, que se chegasse à conclusão de que a sociedade está no caminho certo para que grupos minoritários sejam protegidos pela Lei. Mesmo que o Brasil esteja passando por um tempo sombrio, com casos escancarados de racismo, misoginia e preconceitos diversos, entende-se que a repercussão da decisão aqui analisada está no sentido de extensão dos direitos sociais e na garantia dos direitos humanos a grupos de riscos. Esse deve ser o caminho para que se possa reverter anos de atrasos sociais e descasos com públicos vulneráveis.
Sem sombra de dúvidas, a sociedade brasileira, sobretudo os grupos minoritários, é a grande beneficiada com a decisão do RESP Nº 1977124 - SP (2021/0391811-0), pois ela é extensiva, inclusiva, protetiva e socialmente justa. Parabeniza-se o Sr. Ministro Relator Rogério Schietti Cruz, por seu excelente trabalho, bem como, os demais ministros que acompanharam o relator, ministro Antônio Saldanha Palheiro, Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior. Destaca-se ainda, a posição do Ministério Público Federal, que se posicionou em defesa dos princípios da Constituição Federal e apoio a decisão ora analisada.
Os Tribunais têm a missão de praticarem uma justiça viva, atual e inclusiva. Somente assim, o Direito, através das Leis, será exercitado na vida em sociedade e os cidadãos gozarão de direitos e garantias capazes de proporcionar um convívio harmônico e confiante nas instituições estatais.
REFERÊNCIAS
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Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEAL, MÁRCIO DANNIEL TAVARES. Aplicabilidade da Lei Maria da Penha à mulher transexual vítima de violência doméstica e familiar: análise do entendimento do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2022, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60030/aplicabilidade-da-lei-maria-da-penha-mulher-transexual-vtima-de-violncia-domstica-e-familiar-anlise-do-entendimento-do-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 23 dez 2024.
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