Resumo: No presente artigo trataremos da diferenciação de duas espécies do crime de moeda falsa: a conduta de introduzir cédulas falsas em circulação, prevista no §1º, parte final, do art. 289 do Código Penal, e a conduta e restituí-las à circulação, prevista no §2º do mesmo artigo. Essa diferenciação passa pela distinção entre a boa e a má-fé do agente ao tempo em que recebe as cédulas falsas, o que está atrelado ao seu conhecimento, nesse exato momento, acerca da falsidade do material obtido. Com isso, pretendemos demonstrar que a correta distribuição do ônus da prova nos processos que tratem do crime de moeda falsa pressupõe o dever da acusação de descrever e comprovar a má-fé, desde o recebimento das notas falsas, do agente que coloca as cédulas em circulação e afastar, de uma vez, a interpretação equivocada de que incumbe ao réu provar a sua boa-fé, no recebimento, para que a classificação seja feita como o crime de menor potencial ofensivo do §2º.
Palavras-chave: direito processual penal – moeda falsa – boa e má-fé – ônus da prova.
Abstract: In this article we will deal with the differentiation of two types of the crime of counterfeit currency: the conduct of introducing counterfeit banknotes into circulation, provided for in §1, final part, of art. 289 of the Penal Code, and the conduct and return them to circulation, provided for in §2 of the same article. This differentiation involves the distinction between the agent's good and bad faith at the time he receives the fake ballots, which is linked to his knowledge, at that exact moment, about the falsity of the material obtained. With this, we intend to demonstrate that the correct distribution of the burden of proof in the processes that deal with the crime of counterfeit currency presupposes the duty of the prosecution to describe and prove the bad faith, from the receipt of the counterfeit bills, of the agent who places the ballots in circulation and remove, at once, the mistaken interpretation that it is incumbent on the defendant to prove his good faith, upon receipt, so that the classification is made as the crime with the least offensive potential of §2.
Keywords: criminal law – counterfeit currency – good and bad faith – burden of proof.
SUMÁRIO: Introdução. 1. O crime de moeda falsa e suas principais espécies. 2. O crime de falsificação, mediante fabricação e alteração de moeda. 3. Os tipos penais derivados do §1º do art. 289 do Código Penal e a forma privilegiada do §2º. 4. Diferença entra a boa e a má-fé nos crimes de introduzir e de restituir moeda falsa em circulação. 5. O ônus da prova no crime de introdução de moeda falsa em circulação. Conclusão. Referências.
Introdução
O crime de moeda falsa, previsto no artigo 289 do Código Penal, tem ocupado boa parte do cotidiano daqueles que atuam na Justiça Federal Criminal. Por ser um crime essencialmente de competência dessa justiça especializada, o seu exame mais aprofundado não tem sido objeto de estudo de boa parte da doutrina, cabendo, por isso, à jurisprudência, especialmente dos Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justiça, a definição de seus aspectos materiais e processuais.
O presente artigo busca abordar um dos aspectos processuais desse “crime federal”, até aqui analisado, a nosso ver, de forma pouco dogmática, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, provocando uma inconstitucional inversão do ônus da prova no que se refere a um dos elementos essenciais dos tipos penais constantes do art. 289 e seus §§1º e 2º, qual seja, a boa ou má-fé do agente por ocasião do recebimento da cédula ou moeda falsa e o reflexo desse elemento subjetivo sobre o tratamento penal das condutas posteriores a tal ato.
O exame da má ou da boa-fé ganha especial relevo quando nos deparamos com a figura típica do §2º do art. 289 do CP, considerado “forma penal privilegiada”[1] em relação às tipificações do caput e do §1º do mesmo artigo, dada a reduzida pena cominada em abstrato para a sua prática, o que o coloca, inclusive, na categoria de crimes de menor potencial ofensivo. A praxe forense nessa seara, contudo, tem revelado pouca ou quase nenhuma aplicação da hipótese privilegiada, o que, pensamos, decorre de uma equivocada interpretação dos dispositivos legais e das regras e princípios de Direito Penal e Processual Penal aplicáveis, especialmente, no que concerne ao ônus da prova no processo-crime.
Buscamos, nesse breve estudo do tema, demonstrar que equívocos são esses e como superá-los, tendo em vista a dogmática jurídico-penal mais consentânea com a Constituição Federal e com os princípios gerais aplicáveis ao Direito Criminal.
1.O crime de moeda falsa e suas principais espécies.
O Título X do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) trata dos Crimes Contra a Fé Pública e traz, em seu Capítulo I, os crimes de Moeda Falsa, que compreendem os artigos 289 a 292, com os seguintes nomen iuris: Moeda falsa (art. 289), Crimes assimilados ao de moeda falsa (art. 290), Petrechos para falsificação de moeda (art. 291) e Emissão de título ao portador sem permissão legal (art. 292). Todas essas figuras típicas formam o gênero de crimes de moeda falsa; entretanto, interessa-nos, no presente trabalho, tão somente a espécie principal, o crime de moeda falsa strictu sensu previsto no art. 289 e, neste, apenas o tipo penal-base (caput) e os tipos penais derivados dos §§1º e 2º[2]. Quanto a estes, a previsão legal é a seguinte:
Art. 289 - Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro:
Pena - reclusão, de três a doze anos, e multa.
§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem, por conta própria ou alheia, importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda falsa.
§ 2º - Quem, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade, é punido com detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Nesse recorte da lei penal, que é o trecho que nos interessa para o presente ensaio, podemos distinguir três tipos penais distintos: o tipo penal-base, previsto na cabeça do artigo e que incrimina as condutas de falsificar, fabricar ou alterar, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro; o tipo penal derivado, previsto no §1º, que incrimina as condutas de importar, exportar, adquirir, vender, trocar, ceder, emprestar, guardar ou introduzir na circulação moeda falsa; e, o tipo penal privilegiado, consistente na conduta daquele que, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade. As duas primeiras hipóteses possuem a mesma pena cominada em abstrato: reclusão, de três a doze anos, e multa; a última hipótese, a pena de detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Interessa-nos, porém, neste trabalho, sobremaneira, a conduta de “introduzir a moeda falsa em circulação”. Não apenas porque essa seja o desdobramento final de toda a cadeia de atos que compõem a “família” de crimes de moeda falsa, mas principalmente pelos seguintes motivos: (a) a acusação de introdução em circulação é o objeto da maior parte dos processos ajuizados com essa capitulação penal[3]; (b) ao inserir-se na ponta final do processo referido no caput e no§1º do art. 289 do CP, a conduta de introduzir a moeda falsa em circulação, via de regra, está muito distante da origem da falsificação e das fases intermediárias de repasse e negociação perpetradas pelas principais quadrilhas de falsários e negociantes desse tipo de contrafação; (c) esse distanciamento do agente introdutor das fases anteriores do crime fez com que o legislador lhe desse a possibilidade de tratamento diferenciado, especialmente quando não comprovadamente ligado a tais fases, tendo como elemento diferenciador o não conhecimento prévio da falsidade, isto é, a ausência de má-fé ou a presença de boa-fé no recebimento das cédulas (§2º do art. 289 do CP); (d) a maior parte dos réus de ação penal por crime de moeda falsa, acusados da ação de introdução em circulação, é primário, não tem antecedentes de fraudes, é pobre e de baixa escolaridade, o que revela, em princípio, total desconexão com os fabricantes de moeda falsas e demais atores das fases criminosas anteriores à fase final de introdução em circulação e evidente desproporcionalidade da cominação da pena de 3 a 12 anos de reclusão a essas pessoas; e (e) a maior parte dos casos tratados como hipótese de introdução em circulação da moeda falsa (§1º, parte final) deveriam ser tratadas como hipótese do crime privilegiado (§2º), dada a falta de elementos descritivos e probatórios de que o agente recebeu as cédulas de má-fé e de que foi a primeira pessoa a introduzi-las no meio circulante, além da imperiosa necessidade de presunção de boa-fé e inocência do acusado, conforme determinam as garantias fundamentais da pessoa acusada de crime.
Por fim, apenas para simplificar a exposição, a partir desse ponto, sempre que nos referimos a moeda, estaremos tratando tanto de cédulas quanto de moeda metálica, sendo certo que, na prática, a ocorrência de casos envolvendo falsificação da última é praticamente inexistente, muito provavelmente bela baixa lucratividade da atividade de falsificar moedas metálicas. Portanto, em todo o restante do artigo, considere-se o termo “moeda” como abrangente das duas espécies de instrumento monetário, mas com especial ênfase prática aos casos de cédulas falsificadas.
2.O crime de falsificação, mediante fabricação e alteração de moeda.
Como bem aponta Baltazar Junior, o tipo penal do caput “não é o mais comum na prática, pois, na maior parte dos casos, o fato surge quando a moeda falsificada é introduzida em circulação”[4]. Ou seja, a fabricação, embora seja pressuposto de todas as condutas derivadas previstas no §1º do art. 289, aparece nos processos judiciais com muito menos frequência que estas, provavelmente em razão da pulverização de ações que da anterior se originam e por serem as atividades “de ponta” ou de execução final (introdução em circulação) as que se evidenciam mais, bem como da dificuldade de se chegar pela via investigativa aos verdadeiros falsários-fabricantes.
O fato é que a conduta incriminada no caput diz respeito à atividade de origem da moeda falsa. É onde se inicia todo o processo de contrafação que tem no outro extremo a introdução do falsum no meio circulante e, na fase intermediária, a negociação, o repasse e o lucro dos agentes fabricantes, importadores, exportadores, vendedores, negociantes, guardiões e demais envolvidos. O itinerário da moeda falsa tem, portanto, o seu início em uma “fábrica” – clandestina, obviamente, e, não raras vezes, caseira – e passa por um ou mais agentes, até chegar ao seu destino final, a introdução em circulação, e ao seu destinatário último, a vítima, normalmente um comerciante desavisado e que pode ficar no prejuízo de trocar uma de suas mercadorias por um papel sem valor.
A doutrina aponta, de forma unânime, o bem jurídico tutelado pela norma penal em questão como sendo a fé pública, “no concernente à confiança na autenticidade e na regularidade da emissão ou circulação da moeda. De modo secundário, também os interesses das pessoas prejudicadas”.[5] Tal conclusão decorre da própria topografia do tipo entre os crimes contra a fé pública (Título X) e da necessária segurança da sociedade em relação à moeda, ao meio circulante e à circulação monetária[6]. A vítima, nesse caso, seria, portanto, toda a sociedade, sem prejuízo da identificação de eventuais vítimas diretas.
Se é certo, porém, que a fé pública é o bem jurídico tutelado de forma direta, também é certo que, na maioria dos casos (especialmente quando se chega à fase de introdução em circulação, a mais comum), existe também uma vítima individualizada, que pode ser o comerciante, como citamos, ou um estabelecimento bancário onde se tente ou consiga trocar a nota ou mesmo em um negócio particular sem natureza comercial. Nesse caso, o bem jurídico tutelado, ainda que de forma mediata[7], é o patrimônio particular.
No entanto, sendo o bem jurídico imediatamente tutelado a fé pública e, como seu corolário, a segurança do sistema monetário e sua importância econômico-social, compreende-se uma pena cominada tão alta, de reclusão, de três a doze anos, e multa. Pena essa equiparável a crimes como peculato (art. 312 do CP), inserção de dados falsos em sistema de informações (313-A) e corrupção passiva e ativa (arts. 317 e 333) – todos crimes contra a Administração Pública – ou de desastre ferroviário (art. 260, §1º) e sinistro em transporte marítimo, fluvial ou aéreo (art. 261, §1º) – crimes de grande perigo. A comparação entre tais crimes, também com penas máximas cominadas de doze anos, com o crime de moeda falsa e sua pena, permite pressupor que o legislador considerou a atividade de fabricação de moeda falsa, falsificando-a ou alterando-a, desde a edição do Código Penal (já que o art. 289 jamais sofreu alterações legislativas), um crime de grave perigo contra a fé pública.
A simples fabricação de uma nota falsa – desde que não seja grosseira – já representa em si mesma um risco alto à fé pública e à segurança das transações monetárias, na medida em que o falsum possa vir a ser utilizado como se moeda verdadeira fosse. Daí à incriminação da conduta prevista no caput não demandar a efetiva introdução da moeda falsa em circulação (TRF4, AC 19980401019631-9/SC, Fernando Quadros [Conv.], 2ª T., DJ 17.01.01), tampouco dano a terceiro (TRF4 AC 20037000033205/PR, Paulo Afonso, 31.03.04), como aponta Baltazar Junior[8].
O que pretendemos destacar, quanto ao crime do caput do art. 289, portanto, é, primeiramente, seu alto grau de reprovabilidade pela lei penal e, em segundo lugar, sua localização topográfica no início do processo criminoso relativo à moeda falsa, ou seja, como origem de todos os demais atos que se seguem na tipificação penal do §1º do art. 289 do CP. Essa relação de raiz das demais condutas criminosas da família de crimes de moeda falsa é, ao mesmo tempo, o que dá fundamento às altas penas cominadas no caput, mas também o que deve ser levado em conta para analisar as demais espécies típicas dos §§1º e 2º e seus respectivos tratamentos penais e processuais.
3.Os tipos penais derivados do §1º do art. 289 do Código Penal e a forma privilegiada do §2º.
Se as condutas do caput do art. 289 do CP configuram o início do itinerário criminoso da moeda falsa, é certo que diversas ações podem derivar dessa primeira conduta, como já supunha o legislador ao incriminar, no §1º do mesmo artigo, as ações de importação, exportação, aquisição, venda, troca, cessão, empréstimo, guarda ou introdução na circulação do produto da contrafação monetária.
A localização dos tipos penais na sequência definida pelo legislador, portanto, não é casual. Ela reflete o próprio desenvolvimento das ações delituosas do crime de moeda falsa, visto como uma sequência de atos que atravessa diversos repasses e negociações (algumas até mesmo internacionais, como se pressupõe com a incriminação da importação e da exportação), podendo culminar com a introdução da mesma em circulação, fato esse que necessariamente se originou de uma primeira conduta de fabricação da nota falsa e de uma ou mais das condutas intermediárias do §1º, por isso, consideradas integrantes de um tipo “derivado/misto alternativo/anormal/congruente”, como leciona Luiz Regis Prado.[9]
Não há dúvida, portanto, que, das condutas tipificadas no art. 289 do CP, a mais grave de todas seja a descrita no caput, tanto pela sua topografia, quanto pela natureza originária e pressuposta das demais condutas que dela derivam. Nesse sentido, seria correto afirmar que pode haver fabricação de moeda falsa sem que haja sua posterior importação, venda, guarda ou introdução em circulação; mas, de outro lado, não seria possível dizer que todas essas atividades poderiam existir sem antes ter havido a fabricação, falsificação ou alteração da moeda. Por esse prisma, também se percebe onde reside o principal alvo do tipo penal: na fabricação da moeda falsa, daí a previsão das altas penas já mencionadas para sua prática e sua localização na cabeça do artigo.
Seguindo a linha de raciocínio anteriormente exposta no sentido de haver um escalonamento da reprovabilidade das condutas tipificadas no caput e no §1º, faria sentido concluir que estas seriam menos reprováveis do que a primeira. Ocorre que o §1º se inicia prevendo que “Nas mesmas penas [do caput] incorre quem[...]”, o que revela, à primeira vista, o mesmo tratamento penal a todas as dez condutas (a fabricação, do caput – que pode se dar de duas formas, falsificação ou alteração de moeda – e as nove do §1º) previstas como apenadas com reclusão, de 3 a 12 anos, e multa. Uma análise mais detida dos tipos penais, porém, revela que essa primeira conclusão pode ser precipitada.
Como já apontamos, a posição sequencial dos tipos penais do §1º não é fruto do acaso. Em verdade, a referência do referido dispositivo às mesmas penas do caput revela a ligação estreita que as atividades derivadas têm com a atividade de fabricação da moeda falsa, como sequência ou desdobramento que são da primeira. Nesse sentido, só podem ser tão reprováveis (e apenadas) na mesma proporção das condutas do caput aquelas condutas que tenham relação direta e de forma consciente por parte do autor com a atividade de fabricação das notas. Essa ligação direta e consciente se dá por intermédio do conhecimento do agente que pratica as condutas do §1º quanto à origem das notas falsas, circunstância essa totalmente ligada ao dolo, que, como sabemos, é elemento subjetivo intrínseco do tipo, de acordo com a teoria finalista da ação[10] adotada pelo Código Penal, em seu art. 18, parágrafo único[11].
Queremos dizer com isso que somente pratica as condutas do §1º do art. 289 do CP quem age com a consciência da origem da moeda falsa, inserindo-se, dessa forma, na cadeia de falsificação da mesma, que culmina (ou deveria culminar) com a sua colocação em circulação. O conhecimento da origem da moeda falsa e a participação na sua introdução no mercado são fatores essenciais à imputação do crime do §1º e que se ligam diretamente ao dolo.
O cerne da questão está, como dito, no conhecimento da origem da moeda em um processo antecedente de falsificação. Esse é o elemento de aproximação de uma conduta derivada (§1º) com a conduta principal objeto do tipo penal, que é a fabricação (caput). Sem esse conhecimento, não se pode falar em derivação e em identidade de penas, mas em outro tipo penal, o do §2º, cuja prescrição repetimos, para melhor compreensão:
§ 2º - Quem, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade, é punido com detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Note-se que o “recebimento de boa-fé” descaracteriza por completo a conduta de introduzir em circulação a moeda falsa, tal como prevista no §1º do art. 289 do CP, dando à conduta de restituir a moeda falsa à circulação tratamento penal muito mais brando, condizente, inclusive com o de crime de menor potencial ofensivo, dada sua pena máxima ser igual a dois anos (art. 61 da Lei 9.099/95, com redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006, e art. 2º da Lei 10.259/01). O abrandamento da pena é totalmente coerente com a premissa da qual partimos de que o agente que não participa, de forma consciente e dolosa, da cadeia de atos sequencial à fabricação e disseminação da nota falsa não pode ter o mesmo tratamento penal dado aos que dela participam conscientemente.
Até aí, aparentemente, não há muita margem para discordância e a doutrina e a jurisprudência[12] caminham mesmo nesse sentido de tratamento penal diferenciado entre o agente que pratica a conduta do §2º e os que praticam as condutas do caput ou do §1º.
A questão é que não se colhe quase nenhum exemplo prático de aplicação do §2º nos processos que versam sobre o crime de moeda falsa. Quase todos terminam por condenar o réu como incurso no §1º, o que é resultado, a nosso ver, não de um erro no tratamento penal do acusado, mas de um equivocado tratamento processual do mesmo, principalmente, no que se refere à distribuição do ônus probatório entre acusação e defesa, na demonstração da boa ou da má-fé, como adiante veremos.
4.Diferença entra a boa e a má-fé nos crimes de introduzir e de restituir moeda falsa em circulação
Vimos que a conduta geral de “colocar moeda falsa em circulação” tem, portanto, duas previsões penais específicas e, portanto, distintas: a da parte final do §1º do art. 289 do CP (introduzir) e a do §2º (restituir) do mesmo artigo. Quais seriam, então, a diferenças essenciais entre elas?
A primeira diferença diz respeito ao uso do verbo nuclear “introduzir” no §1º e “restituir” no §2º e que, apesar da aparente semelhança, posto que ambas importam na colocação da moeda falsa em circulação, possuem diferenças muito significativas, evidenciadas, de plano, pelas respectivas penas cominadas (reclusão de 3 a 12 anos e detenção de 6 meses a 2 anos, respectivamente).
Introdução significa inauguração, começo, entrada e, portanto, criminaliza a conduta daquele que foi, em tese, o primeiro a colocar aquela cédula falsa (ou conjunto delas) no meio circulante. Já o ato de “restituir” pressupõe que a moeda falsa utilizada já havia sido inserida antes no meio circulante, por conduta de outrem (conhecido ou desconhecido) que não o agente[13], sendo o contato deste com o material ilícito um acontecimento secundário e fortuito em relação à cadeia inaugural de fatos que tiveram origem nas condutas do caput e do §1º do art. 289 do CP: fabricação, distribuição e introdução em circulação da nota de forma interligada, consciente e dolosa.
Note-se como a conduta de “restituir” já representa uma quebra objetiva em relação à cadeia de produção, intermediação e introdução em circulação da moeda falsa previstas no caput e no §1º do art. 289, posto que não há mais ligação do agente do §2º com as condutas das fases originárias do crime mais grave. O autor da restituição é, antes de mais nada, como se depreende da redação do §2º, uma vítima do processo criminosos previsto no caput e no §1º e que se converte em autor de um outro crime, de muito menor gravidade (menor potencial ofensivo), que é o de restituir à circulação moeda falsa, cuja falsidade vem a conhecer em momento posterior ao seu recebimento como se verdadeira fosse.
Além do mais, o apenamento idêntico (reclusão de 3 a 12 anos) das condutas previstas no caput e no §1º tem uma lógica de continuidade da cadeia delitiva, o que pressupõe o elemento subjetivo do agente no sentido de saber e querer agir dentro dessa cadeia de condutas criminosas. Quando esse elo se rompe, objetiva e subjetivamente, com a conduta da “restituição”, sem consciência da falsidade desde sua origem, rompe-se também a lógica do apenamento mais grave, culminando com o apenamento mais brando do §2º (detenção de 6 meses a 2 anos).
E é aí que entra outro ponto de suma importância na diferenciação das duas condutas penais e que diz respeito à boa e à má-fé do agente, no recebimento da moeda falsa.
Em verdade, os termos “má-fé” e “boa-fé” não são muito recorrentes no direito penal. Com efeito, o termo “boa-fé” somente consta de dois tipos penais: o §2º do art. 289 e o §4º do art. 293, ambos do CP e ambos do gênero “moeda falsa”. Já a “má-fé” não consta de nenhum outro tipo do Código Penal. Trata-se, em verdade, de institutos jurídicos muito mais afeitos ao Direito Civil, dado que o Direito Penal possui institutos próprios para caracterização da conduta típica, antijurídica e culpável, a exemplo do dolo, da culpa, do potencial conhecimento da ilicitude, da inexigibilidade de conduta diversa entre outros. Daí a dificuldade natural do operador em trabalhar com os conceitos de boa e de má-fé, no âmbito criminal.
No entanto, o termo “boa-fé” está escrito no §2º do art. 289 do CP e, por isso, é necessário trabalhar com ele. E o primeiro efeito que o uso desse termo pela lei tem é o de indicar que as condutas do §1º pressupõem a má-fé do agente; entre tais condutas, a de introduzir moeda falsa em circulação. Em outras palavras, a introdução em circulação pressupõe a má-fé, a restituição pressupõe a boa-fé do autor do fato.
E o que diferencia a má da boa-fé entre condutas tão semelhantes (introduzir e restituir moeda falsa à circulação)? Aquilo a que nos referimos, linhas acima, como conhecimento prévio da origem falsificada das notas e que é o elo de ligação entre as condutas do caput e do §1º do art. 289 do CP que justificam, juridicamente, a previsão inicial do §1º de aplicação das mesmas penas entre as condutas de criação da moeda falsa e as de sua distribuição e introdução em circulação.
Quem recebe a moeda falsa, com conhecimento de sua origem em um processo antecedente de falsificação, recebe-a de “má-fé”, e, portanto, age com vontade (dolo) de dar continuidade a esse processo, introduzindo-as no meio circulante. Quem, por outro lado, a recebe sem conhecimento prévio ou concomitante de sua origem contrafeita, recebe-as de “boa-fé”, pois as recebe como verdadeiras, tal como prevê o §2º do art. 289; se esse agente, por qualquer motivo, após o recebimento das notas, vem a saber de sua falsidade, não tem mais como praticar a conduta de “introduzir” em circulação (pois estas já estavam no meio circulante, antes), mas, tão somente, de “restituir” à circulação, incorrendo, por isso, em conduta menos grave. Como já dito, o agente do §2º é uma vítima da cadeia de condutas do caput e do §1º que, após tomar conhecimento da falsidade, converte-se em autor de um crime; mas não do mesmo crime de que foi alvo e, sim, de um novo crime, muito menos grave, o de “restituir” o falsum ao meio circulante, normalmente como forma de se “livrar do prejuízo”, como comumente se diz.[14]
A diferença essencial está, portanto, no dolo, que pressupõe, além da vontade de praticar a conduta de colocar a moeda falsa em circulação (aspecto ínsito aos dois tipos penais: §1º e §2º), o prévio conhecimento acerca da falsidade da nota, tratado pela lei penal (implicitamente no §1º) como “má-fé” ou, na sua ausência, como “boa-fé” (expressamente no §2º).
Veja-se que ambas as condutas, de introduzir (§1º) e de restituir (§2º) possuem o dolo como elemento subjetivo do tipo, inexistindo modalidade culposa em qualquer deles. A diferença, porém, está nos subelementos subjetivos consciência e vontade e, especialmente, no momento de sua ocorrência.[15] No §1º, o agente tem consciência de que sua conduta de introduzir a moeda falsa em circulação está ligada à cadeia originária de produção e distribuição da res delitiva e, portanto, age voluntariamente no sentido de dar seguimento e consumação a esse processo, introduzindo-a (colocando-a de forma inaugural) no meio circulante. Já o agente do §2º não tem consciência inicial da origem contrafeita da nota, que é precisamente o que configura o recebimento de boa-fé; ademais, sequer tem como, objetivamente, praticar a conduta de introduzir a nota falsa em circulação, posto que esse ato final da cadeia de condutas do caput-§1º e inaugural da res no meio circulante já foi praticado por outrem, até que o objeto da contrafação chegasse à sua posse; por isso, a vontade do agente só pode estar dirigida à conduta da restituição.
Note-se, ainda, que a consciência da contrafação possui um momento bastante específico: o do recebimento das notas falsas. É neste momento, precisamente, que se pode definir se o agente está de boa ou de má-fé. Se as recebe sabendo previamente (ou concomitantemente) de sua falsidade, está em condições subjetivas de praticar dolosamente a conduta que eventualmente consumará o crime de introdução de moeda falsa em circulação. Se, por outro lado, as recebe desconhecendo sua falsidade, não tem mais nenhuma condição subjetiva de praticar o crime do §1, mas, tão somente, se vier a perceber a falsidade em momento posterior, de eventualmente praticar a conduta de restituir a moeda falsa à circulação.
Do que se conclui que o recebimento consciente (de má-fé) da falsidade das notas é elemento subjetivo especial e indispensável para a tipificação do crime do §1º, parte final, do art. 289 do CP, ou seja, do crime de introduzir moeda falsa em circulação. Já o crime de restituir, do art. 2º, pressupõe o recebimento não consciente da falsidade (de boa-fé), surgindo esse elemento subjetivo somente em momento posterior ao recebimento da nota falsa.
É, portanto, a demonstração ou não da situação subjetiva do agente, no momento do recebimento das notas falsas, que vai definir a capitulação penal de sua conduta posterior de colocá-las em circulação, sob a modalidade de introdução ou de restituição. E é aí que surge a questão central do presente trabalho: o trato que se dá à prova de uma ou de outra situação, do que nos ocuparemos no tópico seguinte.
5.O ônus da prova no crime de introdução de moeda falsa em circulação.
Como vimos, tanto a má-fé, implícita no §1º do art. 289 do CP, quanto a boa-fé, explícita no §2º, são elementos subjetivos dos tipos penais de introduzir e de restituir moeda falsa à circulação. Como elementos de fatos típicos que são, a comprovação de sua existência é. sempre e inexoravelmente, um ônus da acusação, nos termos do art. 156, parte incial, do CPP (redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) c/c os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da ampla defesa (LV), da presunção de inocência (LVII) e do sistema acusatório (art. 129, I).
De fato, em um sistema penal de estrutura acusatória, como é nosso, ao menos a partir do seu desenho constitucional[16], inexiste distribuição do ônus da prova, mas integral atribuição à acusação do ônus de provar todos os elementos e circunstâncias do crime, incluindo a tipicidade do fato, sua antijuridicidade e culpabilidade.[17] É, assim, extremamente equivocada a ideia de que à acusação incumbiria provar tão somente a materialidade e autoria do fato, cabendo à defesa comprovar as eventuais excludentes criminais.[18] No entanto, esse não é o foco do presente trabalho, e nem precisa ser, porquanto aqui estaremos tratando apenas de elementos do tipo e, portanto, daquilo que é uníssono na doutrina[19]: que o ônus da prova da tipicidade é, em qualquer caso, integral e exclusivo do acusador.
Também ficou assentado que a demonstração dos elementos subjetivos dos tipos penais em questão, tratados pelo legislador como boa má-fé do agente, estão inicialmente concentrados num momento específico: o do recebimento das notas falsas. Assim, ao imputar a conduta de “introduzir moeda falsa em circulação”, prevista na parte final do §1º do art. 289 do CP, é indispensável que o acusador, antes de mais nada, na denúncia, descreva a conduta com todas as suas circunstâncias, como prevê o art. 41 do CPP, ou seja, declarando que o réu recebeu as notas sabendo de sua falsidade, desde antes ou ao mesmo tempo que as obteve. Sem essa imputação específica do elemento subjetivo, que é ínsito ao tipo penal, é impossível a responsabilização pelo crime de moeda falsa em sua modalidade de “introdução” no meio circulante.
Por outro lado, se a caracterização do crime do §1º do art. 289 do CP é feita de forma correta, descrevendo o recebimento das notas pelo réu, de forma consciente e dolosa de sua falsidade desde a obtenção, então surge a necessidade de tal acusação estar acompanhada de elementos mínimos da fase investigativa que sustentem tal afirmação e que configuram a justa causa para o exercício da ação penal. Isso significa que, inexistindo tal lastro probatório mínimo para a deflagração do processo judicial penal, a denúncia, embora apta, não deve ser recebida, nos termos do art. 395, III, do CPP, ao menos em relação à imputação do crime de introduzir em circulação.
Por fim, para a condenação pelo crime do §1º, é obviamente indispensável que o órgão de acusação produza provas em juízo, nos termos do art. 155 do CPP, que demonstrem a veracidade de suas afirmações, ou seja, que comprovem que, no momento do recebimento das notas falsas, o acusado tinha plena consciência de que recebia o material ilícito e que, ao colocá-lo em circulação, incorreu dolosamente na prática do crime de introdução de moeda falsa em circulação. Se não houver nos autos prova alguma sobre a condição subjetiva do réu em relação ao conhecimento da falsidade das notas, no momento do seu recebimento, então não haverá como ser ele condenado pelo crime mais grave, devendo ser, ao menos quanto a tal imputação, absolvido por falta de provas, nos termos do art. 386, II, V ou VII, do CPP. Nesse sentido, colhe-se o seguinte exemplo da jurisprudência:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. MOEDA FALSA. ART. 289, § 1º, DO CP. MATERIALIDADE COMPROVADA. DOLO NÃO CARACTERIZADO. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. 1. Para a configuração do delito previsto no art. 289, § 1º, do Código Penal faz-se necessário o pleno conhecimento da inautenticidade da moeda. 2. A materialidade delitiva está comprovada pelo laudo de exame de moeda, que atesta ser falsa a nota apreendida. 3. À míngua de provas suficientes do dolo do acusado, incide no caso o princípio in dubio pro reo, que funciona como critério de resolução da incerteza, expressão do princípio da presunção de inocência. 4. Esse entendimento também está assentado no parecer do Ministério Público Federal, o que reforça as razões de decidir. 5. Sentença absolutória mantida por seus próprios fundamentos. 6. Apelação não provida. (ACR 00154515520044013300, desembargadora federal MONICA SIFUENTES, TRF1, Terceira Turma, e-DJF1 31/05/2017).
Pois bem. Essas são as premissas inafastáveis relativas aos ônus processuais da acusação, se quiser processar e condenar alguém pelo crime do §1º, parte final (introduzir em circulação), do art. 289 do CP.
Mas o que pode ocorrer se o órgão acusador não descrever ou não comprovar que o acusado tinha consciência da falsidade das notas ao recebê-las, mas estiver claro que, no momento da colocação em circulação, o agente sabia dessa característica das cédulas? Nesse caso, o máximo que se poderá imputar é a conduta do §2º, posto que, para tal tipo penal, não é necessário que o autor do fato tenha tido consciência da falsidade, desde o recebimento, mas, apenas, que tenha adquirido tal conhecimento em momento posterior e que, tendo tal consciência como pressuposto, pratique voluntariamente a conduta de restituir a moeda falsa à circulação.
Veja-se que, como vimos no tópico anterior, a consciência da falsidade é elemento subjetivo das duas figuras penais (introdução e restituição), a diferença está no momento e na forma como o agente chega a tal conhecimento. Assim, se a acusação formal contra o réu e as provas da instrução judicial somente demonstrarem sua consciência da falsidade em momento posterior ao recebimento ou, simplesmente, não houver nenhum elemento de acusação ou de prova acerca de sua condição subjetiva no ato de recebimento, o máximo que se poderá imputar-lhe é a conduta do §2º.
Se tudo isso pareceu bastante óbvio até aqui, o problema reside na interpretação diversa que é feita acerca da distribuição do ônus da prova, em processos criminais que tratam do crime de introduzir moeda falsa em circulação. Em diversos julgados adota-se a premissa de que incumbe ao acusado comprovar que agiu de boa-fé, para que a conduta capitulada na denúncia como concretização do crime do §1º do art. 289 do CP seja desclassificada para o §2º. Nesse sentido:
O ônus da prova do recebimento de boa-fé recai sobre o réu, segundo a jurisprudência desta 3ª Turma. 4. Inexistência de provas de que o réu tenha recebido as notas falsas de boa-fé, ônus que caberia à defesa, nos termos do art. 156, I, do CPP. Incabível a desclassificação pretendida pela defesa para o tipo penal insculpido no § 2º do art. 289 do Código Penal. (ACR 0011221-80.2008.4.01.3800, Desembargador Federal HILTON QUEIROZ, TRF1 - Terceira Turma, e-DJF1 27/11/2019)
Sem a prova de que a recorrente recebeu de boa-fé as notas e, depois de conhecer a falsidade, procurou reintroduzi-las à circulação apenas para evitar prejuízo, não é possível a desclassificação do crime para o § 2º do artigo 289 do Código Penal. (Apelação criminal nº 00267836620024020000, Desembargador Federal PAULO BARATA, TRF2, Terceira Turma, data da decisão: 22/10/2002, publicação: 11/3/2003)
Conjunto probatório comprova a autoria e o dolo indispensável para a configuração do tipo penal estampado no artigo 289, §1º, do Código Penal. Apelante assume que, mesmo após ciente da falsidade das cédulas, optou por guardá-las e, não obstante o recorrente alegue ter recebido as notas contrafeitas de boa-fé, de fato, a comprovação do quanto alegado em referência à origem das cédulas cabia ao próprio recorrente, ônus do qual o apelante não se desincumbiu. (Apelação criminal nº 50001583820204036114, Des. Federal JOSE MARCOS LUNARDELLI, TRF3, 11ª Turma, data da decisão: 30/04/2021, publicação: 05/05/2021)
Não se acolhe a pretensão da defesa no sentido de desclassificar a conduta do § 1º para o § 2º do art. 289 do Código Penal, sob a alegação de ter recebido de boa-fé as cédulas falsas que introduziu em circulação, quanto o réu não comprova a origem das cédulas, ônus que lhe incumbe, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. (Apelação criminal nº 50016788720134047201, Des. Federal MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, TRF4, 7ª Turma, D.E. 25/03/2015)
Não há provas nos autos de que o Apelante teria recebido de boa-fé a moeda que tentou introduzir em circulação. [...] A Defesa, realmente, não se desincumbiu de seu onus probandi, consoante previsão do art. 156 do CPP. (Apelação criminal nº 200783000184609, Desembargador Federal MANUEL MAIA, TRF5, 2ª Turma, DJE de 22/04/2010, p. 147)
A interpretação que imputa ao acusado e à sua defesa o ônus de comprovar sua boa-fé, parte, no entanto, de premissas equivocadas.
Primeiramente, não existe ônus de prova para a defesa relativo a elementos do tipo, sejam eles objetivos ou subjetivos, pois toda circunstância elementar do tipo, isto é, da tipicidade do fato, é ônus integral da acusação. Nesse sentido:
A prova da alegação (onus probandi) incumbe a quem a fizer (CPP, art. 156, caput). Exemplo: cabe ao Ministério Público provar a existência do fato criminoso, da sua realização pelo acusado e também a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa)[20]
As decisões judiciais trazidas como exemplo parecem confundir o ônus da prova de elementos do tipo penal com o ônus da prova de excludentes de antijuridicidade ou de culpabilidade, este, ao menos segundo majoritária doutrina[21], de incumbência comprobatória da defesa. Contudo, a boa-fé do agente, no crime de restituir moeda falsa à circulação não é uma excludente de antijuridicidade ou de culpabilidade, mas um elemento subjetivo expresso do tipo penal do §2º do art. 289 do CP. Elemento esse que, ao mesmo tempo, serve como indicativo da má-fé implícita no §1º, parte final (introduzir em circulação) do mesmo artigo, que, como elemento subjetivo desse específico tipo penal, é ônus probatório da acusação a demonstração de sua existência.
Assim, a demonstração da má-fé do tipo penal do §1º do art. 289 do CP, como elemento de tipicidade penal que é, revela-se claramente como ônus indispensável e intransferível da parte acusadora, inclusive para, eventualmente, afastar a aplicação do crime menos grave, que é o do §2º. Não cabe, portanto, ao acusado ou à sua defesa provar que o réu recebeu as notas falsas de boa-fé, antes de restituí-las à circulação, mas, sim, cabe à acusação comprovar que o acusado as recebeu de má-fé e que, portanto, praticou a conduta de introduzi-las em circulação, pois o recebimento consciente da falsidade é elemento subjetivo do tipo penal do §1º do art. 289 do CP.
O problema interpretativo que aqui se busca solucionar parece até advir da colocação topográfica das duas espécies penais, partindo-se da descrição inicial dos crimes mais graves (caput e §1º) para o menos grave (§2º). Não obstante a má técnica legislativa, o fato é que, para o intérprete da lei penal, o raciocínio sempre deve partir do crime menos para o mais grave. Desse modo, incumbe à acusação a comprovação de que o réu praticou o tipo penal básico e não apenas isso, mas também o fez com circunstâncias além do ordinário (art. 59 do CP) ou agravantes (art. 61) ou qualificadoras ou majorantes da pena (art. 68). Enfim, há um escalonamento acusatório e, consequentemente, probatório que sempre deve partir do menos para o mais, caso contrário, chega-se à aberrante situação de o réu ter de provar que cometeu um crime menos grave para que possa se livrar da imputação mais grave que lhe é atribuída pela acusação, como não raro ocorre nos processos de moeda falsa.
Em situações tais que, como visto, não são poucas na jurisprudência, o réu estará diante da chamada “prova diabólica” de ônus probatório que beira o impossível ou, ainda que possível, de extrema dificuldade, o que não se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da ampla defesa (LV), da presunção de inocência (LVII) e do sistema acusatório (art. 123, I).
Não bastasse a distribuição consagrada do ônus da prova da tipicidade à parte acusadora, a partir da incidência de princípios basilares do direito processual penal constitucional, temos ainda a incidência de um princípio geral de direito plenamente aplicável ao nosso caso: a presunção de boa-fé.
Segundo este milenar brocardo, “a boa-fé não se prova, se presume”, logo, o ônus de comprovar a sua ausência é sempre de quem alega, ou seja, de quem alega a existência de má-fé. Nesse sentido: “A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova” (STJ - REsp: 956943 PR 2007/0124251-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, data de Julgamento: 20/08/2014, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 01/12/2014).
Trata-se, em verdade, de preceito normalmente invocado no âmbito civil, mas, dada a sua natureza de princípio geral de direito, plenamente aplicável ao direito penal material e processual (art. 3º do CPP), dado que estamos falando de boa-fé subjetiva, única modalidade que se coaduna com a responsabilidade criminal que também é sempre subjetiva.[22]
Se no âmbito civil, a boa-fé é presumida, seja na relação entre particulares (direito privado), seja na relação entre o cidadão e o Estado (direito público), com muito mais razão também deve ser presumida a boa-fé do réu, em um contexto de persecução penal, dadas as especialíssimas e fundamentais garantias que regem o processo penal; entre elas há uma que mais eleva o potencial protetor da presunção de boa-fé: a garantia de presunção de inocência, prevista no art. 5º, LXVII, da CF. Assim, se a presunção de boa-fé já tem força suficiente para dar a quem alega sua ausência o ônus total de comprovar a existência da má-fé, no âmbito penal aquela presunção ganha um impulso extra e ainda mais poderoso que o inicial, posto que possuidor de assento constitucional como garantir fundamental e cláusula pétrea (art. 60, §4º, da CF). Trata-se, portanto, de uma “superpresunção” de boa-fé a que tem incidência no âmbito criminal.
No caso do processo penal, esse presunção qualificada de boa-fé – efetivada pela conjugação da presunção de boa-fé com a presunção de inocência – tem especial efeito sobre o ônus probatório, na medida em que retira do acusado o ônus de qualquer prova de sua boa-fé ou inocência, transferindo, de forma integral e irreversível, o ônus de provar o contrário, ou seja, a má-fé ou a culpa do réu (latu sensu), à parte acusadora. Por isso, há que se concluir, inexoravelmente, que o ônus da prova da má-fé, enquanto elemento de tipicidade do tipo penal do §1º do art. 289 do CP e, consequentemente da ausência de boa-fé para afastamento da hipótese do §2º, é sempre do órgão de acusação, nunca do réu.
Desse modo, por qualquer ângulo que se mire a questão do ônus probatório do crime de moeda falsa – seja pelo da comprovação das elementares do tipo (tipicidade penal), seja pelo da comprovação da existência da má-fé ou da ausência de boa-fé – este sempre irá recair sobre a parte acusadora, o Estado, na figura do órgão titular da ação penal, o Ministério Público. Qualquer interpretação em sentido contrário, malfere princípios fundamentais de direito, com assento constitucional em cláusulas pétreas, de modo que a única exegese compatível é a de que a presunção que se pode atribuir ao acusado é a de sua boa-fé e de sua inocência e que o afastamento dessas pressupõe imputação correta e prova robusta por parte de quem acusa, não se podendo exigir, jamais, que o réu tenha de comprovar a sua boa-fé para ser processado e julgado pelo crime menos grave, no nosso caso, o do §2º do art. 289 do CP.
CONCLUSÃO
O crime de moeda falsa (art. 289 do CP) é um crime de múltiplas condutas, das quais destacamos duas para análise no presente trabalho: a de introduzir cédulas falsas em circulação (§1º) e a de restituir cédulas falsas à circulação (§2º).
Como vimos, são atos com bastante similitude na aparência externa, dado que ambos terminam por colocar moeda falsa em circulação, mas cujos apenamentos muito diferenciados – reclusão de 3 a 12 anos para a conduta de introduzir e detenção de 6 meses a 2 anos para a conduta de restituir – evidenciam que se trata de crimes de reprovabilidade e natureza deveras distintas. Com efeito, o crime de introdução pressupõe sua ligação com os graves crimes que dão origem à toda a cadeia produtiva e distributiva das notas falsas, enquanto o de simples restituição pressupõe a quebra objetiva do agente com essa cadeia, colocando-a inicialmente como vítima dela, e subjetivamente como praticante de conduta volitiva diversa e de menor potencial ofensivo. Daí a necessidade de sua diferenciação mais acurada, como forma de evitar equívocos na aplicação da lei penal.
Percebemos que os fatores diferenciadores mais significativos residem nos elementos subjetivos de cada tipo penal e que, entre esses, a consciência ou conhecimento da falsidade das notas é o mais importante. Em que pese ambos os crimes exijam essa consciência como pressuposto subjetivo da tipicidade, o momento de concretização do conhecimento da falsidade das cédulas é crucial para a distinção das figuras penais. Nesse ponto, verificamos que a conduta de introduzir em circulação pressupõe consciência da falsidade anterior ou concomitante ao recebimento das notas falsas, o que configura a “má-fé” do agente desde o seu primeiro contato com o objeto do crime. De outro lado, a conduta de restituir pressupõe a aquisição desse conhecimento em momento posterior, com o crime de introdução já consumado anteriormente por outra pessoa, o que torna aquele recebimento inicial das notas um recebimento de “boa-fé” e a sua (re)colocação em circulação um ato de restituição, jamais de introdução.
Com isso, demonstramos também a extrema relevância da demonstração do momento em que a falsidade do objeto chegou ao conhecimento do acusado, circunstância que dialoga diretamente com o instituto da prova no processo penal e os ônus atribuídos constitucionalmente ao Estado acusador.
Relembramos que os elementos subjetivos, no sistema finalista da ação, adotado pelo nosso Código Penal, integram o tipo penal e que, por isso, a comprovação de sua existência se insere, de forma exclusiva e intransferível, no ônus probatório da acusação. Na sequência, conjugamos essas premissas com o fato de que a consciência prévia (ou concomitante) ao recebimento das notas acerca de sua falsidade é elemento subjetivo exclusivo da conduta de introduzir moeda falsa em circulação, somente amoldando-se, por isso, ao §1º do art. 289 do CP, jamais ao §2º, que pressupõe conhecimento posterior ao recebimento. Logo, como elemento subjetivo do tipo penal do §1º, incumbiria integral e exclusivamente à acusação tanto imputar expressamente na denúncia, quanto apresentar elementos probatórios suficientes de sua existência para a possibilidade de processamento e condenação pelo crime mais grave, o do §1º, em detrimento do menos grave, do §2º.
Vimos, também, que por esses mesmos pressupostos, é ilícito exigir do acusado ou de sua defesa a comprovação da inexistência de má-fé ou o seu oposto, a existência de boa-fé, especialmente considerando-se o princípio geral de direito da presunção de boa-fé, fortalecido pelos princípios e garantias fundamentais da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da ampla defesa, da presunção de inocência do sistema acusatório, todo com assento constitucional em cláusulas pétreas.
Com isso, concluímos que qualquer interpretação em sentido contrário, malfere esses princípios fundamentais de direito criminal, de modo que a única exegese compatível é a de que a presunção que se pode atribuir ao acusado é a de sua boa-fé e de sua inocência e que o afastamento dessas pressupõe imputação correta e prova robusta por parte de quem acusa, não se podendo exigir, jamais, que o réu tenha de comprovar a sua boa-fé para ser processado e julgado pelo crime menos grave, no nosso caso, o do §2º do art. 289 do CP.
REFERÊNCIAS
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[1] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro [livro eletrônico]. 6. ed. volume II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, vol. II, “art. 289”, item 2.3.
[2] Para estudo das demais figuras típicas de moeda falsa, indica-se a leitura da obra de José Paulo Baltazar Junior, Crimes Federais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010, p. 107-117.
[3] Nesse sentido: BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 107.
[4] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 107.
[5] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro [livro eletrônico]. 6. ed. volume II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, vol. II, “art. 289”, item 1.
[6] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 107.
[7] BALTAZAR JUNIOR. Idem.
[8] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 109.
[9] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro [livro eletrônico]. 6. ed. volume II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, vol. II, “art. 289”, item 2.2.
[10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral - arts. 1º a 120. 28. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, v. 1, p. 714.
[11] Art. 18. [...]Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
[12] O STJ já chegou a reconhecer, inclusive, a proporcionalidade das penas diferenciadas desses dois tipos penais: "A redação do art. 289 do Código Penal respeita o princípio da proporcionalidade ao apenar mais severamente aquele que promove a circulação de moeda falsa para obter vantagem financeira indevida, e aplicar pena mais branda ao agente que, após receber uma cédula falsa de boa-fé, repassa-a para não sofrer prejuízo" (HC 207373/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, DJe 1/2/2013).
[13] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro [livro eletrônico]. 6. ed. volume II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, vol. II, “art. 289”, item 2.3.
[14] PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro [livro eletrônico]. 6. ed. volume II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, vol. II, “art. 289”, item 2.3.
[15] PRADO, 2018, vol. II, “art. 289”, item 2.2.
[16] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2003. p. 166
[17] GUARNIERI, José. Las Partes en el Proceso Penal, Trad. Constancio Bernaldo de Quirós. México, José M. Cajica, 1952. p. 305.
[18] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p.922-931.
[19] Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 15. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 514; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 22. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018, p. 345; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 258; FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis . 7. ed. rev. ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2010. p. 757; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 592.
[20] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 29. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 791
[21] “A maioria da doutrina, baseada no disposto no art. 156 (cuja redação não é alterada substancialmente na nova sistemática), bem como em influências de direito processual civil, afirma que o ônus da prova cabe à acusação quanto à autoria e à materialidade, cabendo ao réu a prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela acusação” (DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.RB-11.12)
[22] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral - arts. 1º a 120. 28. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, v. 1, p. 132-133.
Mestre em Direito Processual (2018) e graduado em Direito (2015) pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão Criminal da Defensoria Pública da União Defensor público federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORTOLON, Nícolas Bortolotti. O ônus da prova da boa e da má-fé no crime de moeda falsa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2022, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60038/o-nus-da-prova-da-boa-e-da-m-f-no-crime-de-moeda-falsa. Acesso em: 22 nov 2024.
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