RESUMO: Acredita-se ser possível mudar o quadro do judiciário, incentivando operadores do direito a evitar a utilização de um português rebuscado, trocando-o por expressões que traduzam a mesma ideia, mais simplificadas, claras, objetivas e, principalmente, populares, no sentido de ser um português entendido pelo povo.
Palavras chaves: Linguagem Jurídica. Sociedade. Acesso à justiça
Sumário: 1. Introdução 2. A Linguagem como mediadora da relação entre direito e sociedade 3. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O judiciário brasileiro tem passado por um mecanismo de modernização na busca de se adaptar à sociedade que a cada dia passa por diversas transformações, uma vez que surgem novas necessidades e novas ideias comportamentais, fazendo com que a percepção de mundo da própria humanidade sofra mudanças. Porém, ainda que ocorra essa adaptação, alguns setores resistem à mudança e continuam utilizando métodos arcaicos no que refere à prestação de serviço para a sociedade, como é o caso da linguagem jurídica utilizada de forma forense no trato com os clientes e nos trâmites do judiciário.
O presente trabalho examina a relação entre a linguagem jurídica utilizada por operadores do direito e cidadãos comuns. Analisa-se a dificuldade encontrada por aquele que não lida com o Direito rotineiramente, dificuldade esta que é gerada pelo uso de uma linguagem extremamente rebuscada e incompreensível para quem não está acostumado. Na interação entre aqueles dois sujeitos, leigo e operador do direito, a comunicação fica prejudicada devido à linguagem que se distancia muito da linguagem popular.
No universo jurídico é fácil verificar a existência de uma linguagem específica utilizada por juristas em suas atuações. Podemos denominá-la de Linguagem Jurídica, a qual advém das relações e convenções dos operadores do Direito e possui termos particulares, os quais muitas vezes se tornam obstáculos linguísticos de compreensão para aqueles que não são juristas. Assim, a Linguagem Jurídica é uma linguagem técnica, destinada exclusivamente aos operadores do direito.
2. A LINGUAGEM COMO MEDIADORA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIEDADE
Isto posto, o principal instrumento utilizado no trabalho do operador do direito é a Linguagem, devendo dominar, sobretudo, a Língua Portuguesa. Faz-se necessário conhecer as regras gramaticais para ordenar as palavras de modo coerente, a fim de que se produza um texto capaz de passar a mensagem ao receptor de maneira eficiente e inteligível. Todavia, essa linguagem, muitas vezes, por ser muito técnica, acaba por atravancar a comunicação, principalmente, entre advogado e cliente, uma vez que o cliente, em sua maioria, possui desconhecimento jurídico, e são pessoas que apresentam o mais diversificado grau de instrução.
Evidentemente, o objetivo da linguagem jurídica não é apenas estabelecer uma interação exclusiva entre advogado e cliente, devemos considerar que existe também a relação entre os próprios operadores do direito, como uma sociedade fechada, à parte. É importante, portanto, analisar a relação existente entre o direito e a sociedade como um todo, ou seja, nessa sociedade incluem-se clientes, advogados, operadores do direito e cidadãos comuns. Esses últimos muitas vezes são completamente leigos no assunto.
Além disso, uma das finalidades da Linguagem Jurídica é a persuasão e o convencimento. A arte, a religião e a língua, por exemplo, são estruturas basilares que servem de modo de operação da sociedade, e são utilizadas para designar uma maneira de agir, operar ou executar atos, seguindo os mesmos padrões, através do convencimento ou da persuasão. Bourdieu[1] percebeu que existe um poder simbólico, um poder invisível em que os subjugados se submetem a ele de maneira espontânea e são aquelas grandes estruturas na sociedade que exercem essa espécie de poder invisível sobre as pessoas, que nem é percebido.
Dentre as grandes estruturas, a língua exerce um poder ainda maior, uma vez que nenhuma sociedade sobrevive sem comunicação. A língua é constituída não apenas da fala, mas também de outros métodos de comunicação para que se consiga passar uma mensagem ao receptador. A língua engloba a psicologia, a antropologia, sociologia, e a ciência, por meio da linguística. Portanto a língua é um meio de se locomover, de se formar e de desenvolver na sociedade. Também, é um meio de controle das pessoas através daquelas que tem maior conhecimento e sabe utilizar a língua em prol da manipulação do poder.
Pode-se dizer que a língua, dentre outras grandes estruturas da sociedade exerce enorme força sobre aqueles que a utilizam. Nesse sentido, o poder é exercido por conhecedores mais profundos da língua. Quanto mais se conhece uma língua ou quanto mais específica ela é, mais restrita ela se torna, fazendo com que apenas uma pequena parte privilegiada seja conhecedora e que os demais (maior parte) dependam da minoria para compreendê-la, a influência é maior sobre aqueles que têm menos conhecimento, pois há uma relação de dependência.
Pierre Bourdieu, em sua obra O Poder Simbólico[2], percebeu que o direito e a linguagem jurídica são, juntos, forma de manifestação de poder. Ademais, constatou que o fato de limitar de forma simples as interpretações jurídicas, já é um método eficaz de controle social.
Segundo o filósofo, as grandes produções simbólicas servem como instrumentos de dominação. Sem perceber, as pessoas se submetem a elas e seguem o que elas ditam. Juntamente com os meios de comunicação, as grandes estruturas tornam possível a homogeneidade de opiniões, contribuindo para a reprodução da ordem social. Assim, as produções simbólicas são como instrumentos de controle e dominação. Com a contribuição da cultura dominante, surge uma integração real da classe dominante, assegurando uma legitimidade do poder imperceptível.
Não só o sociólogo e filósofo Pierre Bourdieu segue essa linha de raciocínio. O poder exercido pela linguagem é reconhecido por diversos autores. O também sociólogo e filósofo Michel Foucault em sua obra A Ordem do Discurso[3] mostra que a função do discurso é uma forma de exercer o poder, e isso tem por consequência a promoção de uma desigualdade social. Bastante crítico, Foucault denuncia que existe uma classe dominante por trás do poder do Estado e, ainda, que o poder político é exercitado através de um sistema com pontos invisíveis, locais onde se exerce a dominação. Não há um titular específico desse poder, mas sabe-se que ele sempre é exercido em uma mesma direção, onde há divisão de pessoas para os dois lados e não se sabe exatamente o detentor, mas é nítido saber quem não o detém.[4]
Foucault inicia seu discurso com a seguinte afirmação:
“Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.”[5]
Diferentemente das posições dos sociólogos e filósofos acima citados, Cesare Beccaria, se posiciona contra o poder em Dos Delitos e das Penas[6], afirma que da igualdade entre os homens está também o direito de todos conhecerem a Lei de forma igualitária, sem restrições. Assim, a clareza e o conhecimento das leis são fundamentais.
“Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, [...], enquanto elas forem redigidas em língua morta e não conhecida do povo, [...], o cidadão e sua liberdade estarão dependendo de um pequeno número de homens que são depositários e intérpretes das leis. [...] quanto mais homens o lerem, menos delitos haverá.”[7]
A linguagem, portanto, pode ser utilizada como ferramenta para barrar o acesso à justiça e se tornar utensílio de exclusão, uma vez que o cidadão comum não compreende o que está em pauta no judiciário
3. CONCLUSÃO
Por fim, conclui-se que a dificuldade de compreensão do direito devido à utilização de uma linguagem jurídica rebuscada interfere no acesso ao judiciário. Observamos que o poder exercido pela linguagem é instrumento de domínio, por isso muitas vezes não se faz questão de apreciar uma linguagem mais simples ao comunicar com os demais. Considera-se a relevância de todo o formalismo do direito, mas critica-se a forma com que é apresentado ao público em geral, muitas vezes se fazendo desnecessário todo o rebuscamento. Vale lembrar que é imprescindível que um leigo na área jurídica também possa compreender o que diz o direito, o que diz o processo em que ele está inserido, uma vez que o processo e o direito em si dizem respeito à sua vida particular sendo, portanto, de interesse de todos.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
[1] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
[2] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
[3] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
[4] FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979. P. 71.
[5] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 8.
[6] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[7] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 24.
Analista especialista em Direito Público
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILELLA, Ana Luize de Azevedo Santullo. A linguagem jurídica como obstáculo ao acesso à justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2022, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60043/a-linguagem-jurdica-como-obstculo-ao-acesso-justia. Acesso em: 22 nov 2024.
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