Sumário: 1. Introdução. 2. Breve Panorama das Principais Diferenças entre o civil law e common law. 3. O direito das sucessões no sistema civil law. 3.1. Brasil. 3.2. Itália. 3.3. França. 3.4. Portugal. 3.5. Alemanha. 3.6. México. 4. O direito das sucessões no sistema common law. 4.1. Inglaterra. 4.2. Estados Unidos da América. 5. Reflexões acerca do planejamento sucessório e da necessidade de modificação da legítima. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar as diferenças essenciais entre os direitos sucessórios nos países que adotam o sistema do civil law, sob a influência do direito romano-germânico, em relação àqueles que adotam o regime do common law, sob a influência do direito anglo-saxão.
Nesse cenário, o estudo será realizado por meio da interpretação crítica da legislação civil de cada país selecionado, focando especialmente nas regras sobre legítima em contraposição às da liberdade de disposição patrimonial, e os reflexos dessa interpretação sobre a necessidade e possibilidade de se efetivar planejamento sucessório.
Ao final deste trabalho, pretende-se demonstrar que, em alguns países que adotam a civil law (Itália, França, Portugal e Alemanha) existe a “legítima” ou “reserva legal” de determinados familiares, denominados no Brasil como herdeiros necessários, estabelecidos de acordo com cada ordenamento jurídico (à exceção do México que, embora também seja considerado um país que adota o sistema da civil law, não adota o instituto da legítima, sendo resguardado apenas o direito de alimentos dos familiares, após o óbito do autor da herança, se comprovada a situação de necessidade).
Em contrapartida, outros países, que adotam o sistema da common law (Inglaterra e Estados Unidos), reconhecem a liberdade de disposição patrimonial, desde que resguardado o direito de alimentos.
A análise também será realizada de modo a demonstrar, por meio do método comparativo, que, embora os países que adotam o civil law tenham incorporado alguns institutos do common law[1] (em especial, o Brasil, que nos últimos anos, os precedentes judiciais têm se destacado), no âmbito sucessório as divergências permanecem.
Ao final, espera-se demonstrar que, como regra geral, os países que adotam o sistema civil law possuem regramentos sucessórios mais rígidos, com maior limitação dos atos de disposição patrimonial pelo testador ou doador, de modo a atingir a finalidade de garantir a legítima ou reserva legal dos herdeiros. Por outro lado, os países que seguem o sistema da common law adotam critérios mais abertos, que permitem, em muitos casos, a livre disposição patrimonial, o que facilita o planejamento sucessório.
Nesse contexto, também serão demonstradas por meio do presente artigo, por meio de análise doutrinária, a sugestão de alguns autores de diminuição do percentual atual da legítima do ordenamento jurídico brasileiro ou até mesmo a sua eliminação, de modo a permitir um cenário mais adequado às medidas de planejamento sucessório.
2 BREVE PANORAMA DAS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE O CIVIL LAW e COMMON LAW
A interpretação decorrente da lei escrita como fonte primária ou dos precedentes depende das circunstâncias sociais e históricas sobre as quais cada país está vinculado. Nesse contexto, surgiram dois tipos de sistemas nos ordenamentos jurídicos, o sistema da civil law, de tradição romano-germânica, predominante nas nações latinas e germânicas; e o sistema da common law, de tradição anglo-americana.
O sistema civil law, também denominado como romano-germânico, em que a fonte primordial é a lei escrita, geralmente apresentada na forma codificada, de acordo com a doutrina majoritária, é decorrente de dois momentos históricos. O primeiro consistente na descoberta de textos jurídicos romanos, armazenados durante a Idade Média, os quais foram objetos de estudo e interpretação pelos estudiosos da época. O segundo a Revolução Francesa, marco temporal da consolidação de um novo modelo jurídico[2].
Nesse contexto, após a Revolução Francesa, a lei escrita passou a ser considerada um meio legítimo de representação da vontade do povo e de limitação de eventuais abusos ou condutas arbitrárias por parte dos magistrados, os quais permaneceram vinculados unicamente à aplicação literal dos dispositivos legais. Assim, no entendimento de Miguel Reale:
A tradição latina ou continental (civil law) acentuou-se especialmente após a Revolução Francesa, quando a lei passou a ser considerada a única expressão autêntica da Nação, da vontade geral, tal como verificamos na obra de Jean Jacques Rousseau, Du Contrat Social.[3]
Assim, conforme Luiz Guilherme Marinoni[4] destaca em sua obra doutrinária caso, após a revolução, os magistrados prolatassem decisões destoantes da lei, os resultados positivos de limitação ao absolutismo conquistados na revolução estariam perdidos ou seriam inalcançáveis pelo povo.
Em decorrência da Revolução Francesa, ocorreu a consolidação tanto na França quanto na Alemanha, com repercussões em outros países, de uma escola com a finalidade de construir o Direito com base na Codificação, denominada “Escola de Exegese”, a qual lançou a base para o Direito Contemporâneo[5].
A limitação ao poder dos magistrados, decorrente da aludida revolução, refletiu no sistema adotado pelo Brasil, ao priorizar a aplicação da lei escrita em detrimento das demais fontes do direito, sendo tal entendimento positivado na Constituição Federal Brasileira, por meio de seu artigo 5º, inciso II, que dispõe “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nas palavras de Renato Becho, ao traduzir as características do civil lar apontadas por David Maxwell Walker[6]:
A existência de código cobrindo grandes áreas do direito e estabelecendo direitos e deveres das pessoas em termos bastante gerais, o uso de terminologia, conceitos e frequentemente princípios que tiveram sua origem no direito romano, baixa consideração para os precedentes judiciais e grande confiança na influência de acadêmicos do direito na sistematização, crítica e desenvolvimento do direito em seus livros e demais escritos.
O contexto histórico de formação do common law, por seu turno, deriva do período de reorganização e centralização da justiça realizada pelo rei Guilherme I, também conhecido como “Guilherme o Conquistador”, a partir de 1.066. Após a conquista do território inglês, Guilherme teria realizado uma reestruturação radical na sociedade inglesa, na medida em que, no momento em que assumiu o trono, o território estava dividido em ducados, condados, senhorios feudais e pequenas vilas, cada um com os próprios costumes e tribunal.
Esse contexto impedia um poder efetivo do novo rei e foi solucionado por meio da unificação dos costumes e da jurisdição, por meio da concretização do feudalismo na Inglaterra. Desde o início, Guilherme Conquistador se comprometeu a manter as leis e os costumes anglo-saxões, sem impor seus interesses em relação aos demais membros da sociedade inglesa[7].
Por outro lado, as reformas no âmbito processual ocorreram durante o reinado de Henrique II, o que impediu consideravelmente qualquer influência romana no âmbito do direito inglês. No contexto do reinado de Henrique II, a partir do ano de 1154, após a unificação política da Grã-Bretanha (exceto Escócia), ocorreu a unificação do direito, sendo denominado de “direito comum” em razão da natureza de substituição dos direitos particulares em vigor até aquele momento[8].
A consolidação do common law ocorreu durante o reinado de Henrique II, considerado um dos maiores reis da Inglaterra, responsável pela execução de diversas reformas judiciárias, financeiras e administrativa no sistema inglês.
No sistema da common law, também denominado como anglo-saxão ou anglo-americano, em que a fonte primordial decorre da aplicação costumeira e jurisprudencial, por meio da técnica dos precedentes (stare decisis), em que as decisões judiciais são prolatadas com fundamento em decisões proferidas em casos semelhantes[9]. Portanto, as regras das sociedades possuem como fundamento a atuação dos magistrados que acarretam a formação dos precedentes judiciais.
Assim, é possível afirmar que o sistema jurídico inglês, ao adotar a técnica dos precedentes (stare decisis), tem por finalidade garantir maior segurança às decisões judiciais, de modo que os casos semelhantes tenham a mesma solução jurídica[10].
Nesse sentido, embora no sistema do common law existam precedentes aplicáveis a casos semelhantes, tal aplicação prescinde de uma interpretação do que dispôs o julgador no caso usado como paradigma. Portanto, assim como a lei escrita, no momento da aplicação ao caso concreto, os precedentes são objeto de interpretação[11]:
Portanto, a mecânica dos sistemas de common law não consiste "simplesmente" em seguir precedentes. Também estes precisam ser interpretados, assim como, para nós, a lei é, necessariamente, objeto de interpretação. Parece que muito há em comum nestes processos interpretativos.
O surgimento do common law em países de língua inglesa estava atrelado aos costumes de cada sociedade, predominantes apenas no início da formação deste sistema, e atualmente esse sistema é baseado em decisões judiciais que configuram precedentes. Nas palavras de Silvio de Salvo Venosa:
Portanto, afaste-se a ideia de que o direito inglês moderno seja um direito costumeiro. É um direito jurisprudencial. O Common Law determinou o desaparecimento do direito consuetudinário antigo, que era conteúdo dos direitos locais. Hoje, há uma única jurisdição que dita a jurisprudência vinculante.
Contudo, existem consideráveis diferenças entre o common law existente na Inglaterra e aquele dos Estados Unidos da América. Neste último, o sistema coexiste com o civil law, sendo predominante os códigos civis nos Estados, porém, a lei escrita apenas é considerada eficaz após a aplicação pelos tribunais[12], de modo a confirmar a força dos precedentes judiciais característicos desse sistema.
Cabe apontar que, nos dias de hoje, os sistemas common law e civil law são responsáveis pela formação do que muitos autores denominam como “jurisdições mistas”, assim como no sistema jurídico brasileiro.
O contexto de formação das jurisdições mistas decorre de um determinado marco histórico ou temporal, como por exemplo, a conquista de um território após um cenário de guerra ou a assinatura de um tratado entre os países. A partir do momento em que há uma convergência entre o sistema romano germânico, que influenciou o surgimento do civil law, e o sistema anglo-saxão, que ensejou a formação do common law, resultando na formação do sistema contemporâneo de jurisdição típico das jurisdições mistas.
Essa modificação aconteceu motivada pela necessidade de superação do positivismo jurídico e adoção de novas técnicas de interpretação no common law, tal como a utilização dos precedentes judiciais[13]. Isto porque, na maioria dos casos, as disposições legais não englobam todas as soluções para cada caso concreto e alguns dispositivos legais possuem previsões genéricas ou incompletas sobre determinados temas. Por outro lado, no common law, havia uma considerável necessidade de aprimorar a segurança jurídica do sistema, o qual, inicialmente, era fundamentado apenas nos costumes de cada sociedade e posteriormente na jurisprudência dos tribunais.
Embora exista uma considerável diferenciação entre os sistemas da common law e da civil law, muitos autores, assim como Miguel Reale, consideram que não há como definir qual sistema é o mais adequado, uma vez que as normas escritas, fontes primárias no civil law, ganham cada vez mais importância no common law e os precedentes judiciais, fontes primárias no common law, ganham cada vez mais destaque no civil law[14].
No Brasil, embora, no decorrer do tempo, os precedentes judiciais tenham sido cada vez mais utilizados em detrimento da lei escrita, repisa-se fonte primária nos países adeptos ao civil law, algumas decisões judiciais não são qualificadas como precedentes obrigatórios para casos futuros e similares, mas apenas os precedentes vinculantes são assim considerados, previstos no rol do artigo 927 do Código de Processo Civil.
Nesse cenário, primeiramente cabe ao operador do direito realizar uma interpretação da literalidade da lei escrita, exemplificada por meio dos Códigos existentes no ordenamento jurídico, e, posteriormente, confirmar o entendimento dos Tribunais sobre o tema, visto que o legislador não consegue prever todas as situações que deverão ser protegidas pela lei, sendo a atualização dos institutos realizadas por meio dos julgamentos de cada caso concreto.
Portanto, embora o Brasil seja considerado por muitos estudiosos como um país predominantemente de civil law, a adoção dos precedentes judiciais, em alguns casos até mesmo com caráter vinculante, foi consolidada por meio do surgimento do Código de Processo Civil de 2015, o qual, por meio dos dispositivos 926 e 927, exemplifica a importância dos precedentes judiciais para o ordenamento jurídico brasileiro, de modo que o atual sistema brasileiro também seja considerado um sistema de jurisdição mista, por meio de uma coexistência de características do common law e do civil law.
3 O DIREITO DAS SUCESSÕES NO SISTEMA CIVIL LAW
Após a análise das principais diferenças entre o civil law e o common law e do resultado da combinação entre esses sistemas em alguns países como o Brasil, com a finalidade de destacar o contexto histórico que levaram à formação de ambos, resta necessário o início do estudo sobre o tema objeto do presente artigo, qual seja o direito das sucessões (legítima e testamentária), com ênfase no estudo comparativo entre a sucessão nos sistemas civil law e common law.
Com relação à sucessão testamentária, destaca-se que na origem do sistema civil law, o testamento era visto pelos romanos como um instrumento que permitia a liberdade absoluta para o “chefe de família” dispor de seus bens.
No entanto, na hipótese de falecimento sem testamento, a sucessão era atribuída à três classes de herdeiros denominados sui, agnatti e gentiles. A primeira classe era formada pelos filhos, netos e o cônjuge, que permaneciam sob os cuidados do “chefe de família”. A segunda classe era formada pelos parentes mais próximos do de cujus, quais sejam os colaterais, como o irmão, tio e sobrinho, sendo que a classe mais próxima afastava os direitos da classe mais remota, assim como ocorre atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, conforme previsão expressa no artigo 1.840 do Código Civil.
Por fim, na ausência dos familiares das duas primeiras classes, eram chamados a suceder os membros da última classe denominada gentiles, sendo assim considerado o grupo familiar em sentido lato.
Porém, com o surgimento do Código de Justiniano, a sucessão legítima passou a decorrer do parentesco natural, por meio da seguinte ordem de vocação hereditária: descendentes; ascendentes, em concorrência com os irmãos unilaterais e bilaterais; irmãos consanguíneos ou uterinos; e, por fim, outros parentes colaterais.
Na época, os romanos não eram adeptos a morte sem testamento e consideravam tal contexto como uma espécie de maldição e vergonha perante a sociedade, conforme destacado pelo doutrinador Carlos Roberto Gonçalves nos seguintes trechos de sua obra:
Conheceram os romanos, ainda, a sucessão testamentária por diversas formas e compreensiva de todo o patrimônio do testador. Tinham eles verdadeiro horror pela morte sem testamento. Como anota Sumner Maine, invocado por Washington de Barros Monteiro, nenhuma desgraça superava a de falecer ab intestato; maldição alguma era mais forte do que a de augurar a um inimigo o morrer sem testamento. Finar-se ab intestato redundava numa espécie de vergonha.[15]
Em contrapartida ao direito romano, o direito germânico não era adepto à sucessão testamentária, mas apenas à sucessão legítima, de modo que naquele período apenas os familiares consanguíneos eram considerados verdadeiros herdeiros. Ou seja, como é possível observar, neste momento não havia espaço para a atribuição de direitos sucessórios aos filhos adotivos.
No mesmo sentido, em França, Portugal e Alemanha havia considerável predomínio da sucessão legítima, de modo que em França e em Portugal havia previsão expressa no mesmo sentido do princípio da saisine adotado no ordenamento jurídico brasileiro (artigo 1.784 do Código Civil).
Feitas estas considerações, a união das concepções existentes no sistema romano e no sistema germânico resultou no surgimento do direito sucessório contemporâneo típico dos países adeptos ao civil law. De modo a permitir tanto a sucessão legítima quanto a testamentária.
3.1. BRASIL
A sucessão legítima no Brasil decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação hereditária e a presunção da vontade do autor da herança[16]. Também é denominada como sucessão ab intestato (que significa ausência de testamento) e será utilizada na hipótese de caducidade ou nulidade do testamento, aplicando-se ainda aos bens que nele não foram inseridos, nos termos do artigo 1.788 do CC. Veja-se: “Art.1788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.”
Assim, Carlos Roberto Gonçalves[17] destaca que a sucessão legítima é a mais utilizada pela população brasileira, considerando a escassez de testamentos no país por questões de ordens culturais e costumeiras, cenário que está se modificando no decorrer do tempo.
Nesse sentido, a classificação entre os herdeiros na sucessão legítima ocorre da seguinte forma: herdeiros legítimos e testamentários, sendo que os primeiros se subdividem em herdeiros necessários e herdeiros facultativos. Os herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge/companheiro,9 conforme estabelecido no artigo 1.845 do Código Civil Brasileiro, e os herdeiros facultativos são os colaterais.
Por conseguinte, destaca-se que a existência de herdeiros necessários representa uma limitação ao autor da herança quanto a liberdade de testar, visto que, de acordo com o artigo 1.789 do Código Civil Brasileiro, a parte disponível limita-se a 50% de toda a herança e esse percentual é denominado “legítima”, sendo reservado apenas aos herdeiros necessários.
Além disso, também resta estabelecido por meio do artigo 1.851 do Código Civil Brasileiro o direito de representação, por meio do qual os descendentes de um herdeiro pré-morto (com óbito anterior ao autor da herança) recebem o que aquele teria direito se estivesse vivo[18]. Esse direito se dá apenas na linha descendente, ou seja, filho, neto ou bisneto herdam a quota correspondente do falecido, mas os pais, avós e bisavós não podem herdar por representação, nos termos do artigo 1.852 do Código Civil Brasileiro 11.
Desse modo, os herdeiros legítimos são assim classificados em razão da ordem de vocação hereditária, que define os legitimados a suceder por meio da regra de que a classe mais próxima exclui a mais remota, de acordo com o artigo 1.834 do Código Civil Brasileiro. Logo, os filhos possuem preferência em relação aos netos e estes últimos aos bisnetos. Essa ordem possui previsão expressa no artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro.
3.2 ITÁLIA
A sucessão legítima no direito italiano encontra-se positivada por meio dos artigos 536 ao 552 do Código Civil Italiano. A previsão inicial é no sentido dos legitimados a suceder, assim considerados no sistema italiano os herdeiros necessários definidos no sistema brasileiro, os seguintes familiares, nesta ordem: cônjuge, os filhos (biológicos ou adotivos) e os ascendentes. Nesse sentido, Carlos Eduardo Minozzo Poletto destaca:
A legislação italiana, mais restritiva, prevê̂ a legítima hereditária somente ao cônjuge, aos filhos (desprezando os netos e bisnetos) e aos ascendentes (art. 536).[19]
Ato contínuo, o artigo 537 da referida codificação estabelece a sucessão legítima da seguinte forma: se o de cujus deixar apenas um filho, a ele será atribuído metade do patrimônio, não havendo distinção entre filhos adotivos e filhos biológicos; havendo mais de um filho, será reservado em favor dos filhos dois terços do patrimônio, a ser dividido igualmente entre todos os filhos.
Com relação aos ascendentes, a reserva será, em regra, de um terço dos bens, conforme estabelecido no artigo 538. Ao cônjuge será atribuído metade dos bens do patrimônio, salvo na hipótese deste concorrer com os filhos do de cujus, hipótese em que terá direito a um terço (um filho) ou um quarto (mais de um filho) dos bens, de acordo com a quantidade de filhos, de acordo com a previsão dos artigos 540 e 542 do Código Civil Italiano.
Por fim, na sucessão italiana, caso o de cujus não tenha filhos, mas apenas ascendentes e o cônjuge, ao cônjuge será reservada metade do patrimônio e um quarto aos ascendentes da linha materna e paterna, conforme previsto no artigo 544 da norma italiana. Nesse sentido, na hipótese de existência de diversos ascendentes, a quota de reserva de um quarto dos bens é dividida entre eles de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 568 do Código Civil Italiano, ou seja, considerando a divisão igualitária entre os ascendentes da linha paterna e da linha materna.
Também é importante destacar que a sucessão será destinada aos parentes mais próximos, sem distinções entre a linha paterna ou materna, limitada ao parentesco até o sexto grau, diferentemente do sistema brasileiro que não permite a sucessão além do parentesco de quarto grau.
Assim, a disposição patrimonial por meio de testamento está limitada à reserva da quota parte pertencente aos legitimados indicados acima, sendo que, diante da existência de testamento que desconsidere a quota parte pertencente aos herdeiros, estes podem se valer contra a vontade do testador e pleitear a redução da disposição testamentária e, caso não seja suficiente, a redução das doações realizadas pelo de cujus[20].
3.3 FRANÇA
O direito sucessório francês teve origem, assim como um típico país de civil law, no surgimento do Código de Napoleão, ou Código Civil Francês, outorgado por Napoleão Bonaparte na data de 21.03.1804.
A legítima, assim considerada no ordenamento jurídico brasileiro, é denominada na França como “reserva hereditária” e encontra-se prevista no artigo 912 do Código Civil Francês; os herdeiros que possuem direito a reserva hereditária são denominados pelo sistema francês como “herdeiros reservados”, sendo assim considerados os descendentes e o cônjuge sobrevivente.
No entanto, após a alteração do Código Civil Francês pela Lei 2006-728, ocorreu a ampliação da liberdade de disposição patrimonial, a qual embora não tenha se tornado absoluta, foi favorecida pelos dispositivos desta lei, limitando o instituto da “reserva hereditária” às previsões contidas nos artigos 913 e 914-1 do Código Civil Francês.
Nesse sentido, o artigo 913 dispõe que o testador não poderá dispor da metade do patrimônio diante da existência de um filho no momento da abertura da sucessão. Caso o de cujus tenha dois filhos, os atos de disposição patrimonial não deverão exceder um terço dos bens. Na hipótese de três filhos ou mais, o testador não poderá dispor de modo a exceder um quarto da totalidade do patrimônio.
Por outro lado, na existência de cônjuge sobrevivente, os atos de disposição patrimonial não poderão exceder três quartos da totalidade dos bens. Portanto, conforme é possível observar, os ascendentes e colaterais não possuem direito à “reserva hereditária”[21]
No ano de 2018, as consequências da existência do instituto da “reserva hereditária” na França repercutiram nas mídias sociais após a morte do músico francês Johnny Hallyday. Isto porque, o testador havia deixado todos os seus bens e direitos autorais para o cônjuge, sem considerar os direitos dos descendentes.
Nesse contexto, uma das filhas do cantor, Laura Smet, ajuizou ação judicial para anular a decisão, com base no direito sucessório francês, o qual restringe a livre disposição patrimonial em detrimento da reserva hereditária. Por outro lado, o cônjuge sobrevivente defendeu que o direito aplicável seria o americano, especificamente a legislação do Estado da California, uma vez que supostamente o de cujus residia neste local[22].
Ao final, a justiça francesa decidiu no sentido de que a residência do de cujus era a França e não os Estados Unidos, razão pela qual as limitações aplicáveis à liberdade de testar se aplicaram ao caso e, consequentemente, o tribunal reconheceu a violação à reserva hereditária e anulou o testamento[23].
3.4 PORTUGAL
Na sucessão portuguesa, a parcela de bens sobre a qual o testador não pode dispor é denominada legítima, assim como no ordenamento jurídico brasileiro, e encontra-se prevista no artigo 2.156 do Código Civil Português.
Nesse contexto, os herdeiros que possuem direito a legítima são denominados de herdeiros legitimários, sendo assim considerados o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, nesta ordem, nos termos do artigo 2.157.
Assim, na hipótese do de cujus deixar apenas cônjuge sobrevivente, sem descendentes ou ascendentes, a legítima do cônjuge será de metade dos bens da herança, conforme disposto no artigo 2.158, do Código Civil. Contudo, caso o cônjuge concorra com os filhos do de cujus, a legítima será de 2/3 da herança e, na hipótese de inexistência de cônjuge sobrevivente, a legítima dos filhos será de metade (um filho) ou dois terços (dois filhos ou mais), conforme artigo 2.159 do referido diploma legal.
Por fim, em caso de concurso entre o cônjuge e os ascendentes, a legítima será de dois terços do patrimônio. E, na hipótese do autor da herança não deixar descendentes e cônjuge sobrevivente, a legitima dos ascendentes será metade ou um terno da herança, de acordo com o grau (pais ou ascendentes do segundo grau e seguintes), nos termos do artigo 2.161 do Código Civil Português.
Com relação à liberdade de testar, Flávio Tartuce destaca os ensinamentos da obra de Galvão Telles, doutrinador português que considera a defesa da propriedade privada como um norte para o direito sucessório em Portugal, no seguinte sentido:
A respeito da irrestrita liberdade de testar, mas com restrições que foram percebidas em tempos passados: a) desde a Lei das XII Tábuas, no direito romano, não haveria qualquer restrição a respeito dessa liberdade; antes dela havia a proteção dos parentes próximos, com a necessidade expressa de deserdação desses parentes e depois com a tutela dessas partes, em uma quota então denominada de legítima, com fundamento no dever de piedade (officium pietatis); b) os sistemas anglo-saxônicos são geralmente referidos como exemplos de individualismo, em que não há sucessão necessária; porém, o autor demonstra que já existiam movimentos contra esse “estado de coisas”, mesmo nesses países; c) nos países de sistema romano-germânico, demonstra-se a existência de doutrinadores que pregam o fim da legítima, caso de Le Play, na França, e de Alberto Pires de Lima, em Portugal, ambos alvo de críticas.[24]
Portanto, assim como na Itália e na França, Portugal também representa os países que adotam o sistema civil law e, consequentemente, a positivação do direito à legítima, como um meio de evitar a disposição total e irrestrita do patrimônio pelo testador.
Não obstante, cabe ressaltar que a legislação portuguesa caminhou para maior liberdade patrimonial, com a edição da Lei nº 48/2018, que veio a alterar o Código Civil Português para autorizar a renúncia dos direitos sucessórios pelo cônjuge, na convenção antenupcial, possibilidade esta ainda restrita na legislação brasileira, ante a disposição do artigo 426, do Código Civil.
3.5 ALEMANHA
No direito sucessório alemão, assim como na Itália, França e Portugal, a liberdade de testar está limitada pelo instituto da legítima. Contudo, no Código Civil Alemão a legítima é considerada como um direito de crédito ao herdeiro beneficiário.
Assim, de acordo com o Código Civil Alemão, aqueles considerados como herdeiros necessários são: os descendentes, ascendentes e o cônjuge, assim como ocorre no ordenamento jurídico brasileiro (art. 1.845 do Código Civil)[25].
Na hipótese da existência de apenas descendentes, a legítima atribuída a esta classe será de metade dos bens do patrimônio, sendo a outra metade de livre disposição pelo testador. Contudo, caso o de cujus tenha deixado como herdeiros filhos e o cônjuge, o que, implicará na concorrência destes herdeiros na sucessão, os filhos terão direito a 3/8 (37,50%) da herança e o cônjuge a 1/8 (12,50%), ou seja, neste segundo caso o de cujus poderá dispor livremente de metade dos bens do patrimônio.
Por fim, se existirem apenas ascendentes e o cônjuge sobrevivente, a concorrência de ambos no regime sucessório alemão implicará na configuração da legítima de metade dos bens do patrimônio, a qual será distribuída na seguinte proporção: 25% da legítima para os ascendentes e os 25% restante para o cônjuge sobrevivente, sendo a metade restante de livre disposição pelo testador[26].
Em decorrência disso, é possível concluir que a autonomia de vontade do testador encontra-se limitada pelo direito à legítima ou reserva hereditária dos herdeiros determinados em lei, de modo que cada país determina, por meio do ordenamento jurídico, quem serão os herdeiros que possuem este direito e o percentual cabível a cada um deles[27].
Por fim, cumpre destacar um aspecto relevante referente à legítima dos herdeiros necessários no Brasil. No entendimento da doutrinadora Ana Luiza Maia Nevares, o ordenamento jurídico brasileiro deveria estabelecer uma atenção especial aos herdeiros incapazes e idosos ou aos cônjuges e companheiros que realmente dependiam do autor da herança, de modo a atender às especificidades de cada herdeiro[28]. Esse posicionamento vai de encontro com alguns países que adotam o common law, em que os herdeiros só possuem direito a legítima se comprovada a situação de necessidade.
Por outro lado, para o Tribunal Alemão, a legítima, constitucionalmente garantida, não pode ser desconsiderada pelo testador e, ao mesmo tempo, não deve depender da demonstração de uma situação de necessidade, assim como ocorre no México. Nesse sentido, nas palavras de Rolf Madaleno:
O Tribunal Constitucional alemão declara constitucionalmente protegida a legítima e dela os herdeiros não podem ser privados, nem a legítima pode depender de uma prévia situação de dependência econômica ou de uma situação de necessidade, pois a herança tem garantia constitucional, como é igualmente garantida pela Carta Política no Brasil. [29]
3.6 MÉXICO
No direito sucessório mexicano há uma ampla liberdade de testar. No entanto, apesar de não existir previsão expressa referente à legítima, o Código Civil Mexicano, por meio de seu artigo 1.368 determina que o testador deverá deixar alimentos para determinados parentes[30].
Nesse contexto, o artigo estabelece que o testador deverá deixar uma prestação alimentícia aos seguintes familiares e da seguinte forma: primeiramente aos descendentes menores de 18 anos, desde que esta obrigação subsista no momento do falecimento; aos descendentes incapazes, ou seja, impossibilitados de trabalhar e obter o próprio sustento, independentemente da idade; ao cônjuge supérstite, apenas na hipótese de incapacidade para o trabalho e ausência de bens suficientes para o próprio sustento; aos ascendentes; e, por fim, à pessoa com quem o de cujus viveu como se fosse seu cônjuge ou com quem teve filhos, ou seja, no ordenamento jurídico assim considerado o convivente em união estável.
Não obstante, em todas as hipóteses mencionadas acima, o direito à prestação alimentícia depende da comprovação da incapacidade para o trabalho e da ausência de bens para o próprio sustento. Tratando-se de direito de caráter assistencial e decorrentes do dever de mútua assistência.
Portanto, à exceção do México, imperam as limitações decorrentes da legítima nos países que adotam o sistema da civil law.
4 O DIREITO DAS SUCESSÕES NO SISTEMA COMMON LAW
Os ordenamentos jurídicos dos países que adotam o sistema common law são conhecidos pela liberdade de testar absoluta, uma vez que a lei escrita não determina a obrigatoriedade de assegurar a legítima dos herdeiros necessários ou legítimários, assim denominados aqueles que possuem o direito de reserva dos direitos sucessórios no âmbito dos países que adotam o sistema civil law, cabendo ao testador a livre disposição de seus bens. Nesse sentido, Carlos Eduardo Minozzo Poletto destaca:
Por oportuno, vale lembrar da existência de ordenamentos jurídicos que desconhecem a figura do herdeiro necessário e da legitima hereditária, como assim ocorre, primordialmente, nos países da tradição da common law. Entretanto, tal opção política também se faz presente em alguns sistemas do civil law. Ilustrativamente, o Código Civil mexicano, em seu artigo 1.37417, impõe como única obrigação ao testador uma pensão alimentícia ao consorte ou companheiro e a certos parentes consanguíneos, no que é acompanhado pelas principais legislações da América Central, como, por exemplo, no Código Civil de Honduras, artigo 1.1471.[31]
Nesse sentido, serão utilizados como parâmetros ao estudo comparativo realizado no presente artigo os sistemas adotados na Inglaterra e Estados Unidos, de modo a demonstrar como os ordenamentos jurídicos destes países dispõem sobre os direitos sucessórios dos herdeiros e permitem a disposição patrimonial sem resguardar o instituto da legítima ou reserva hereditária.
Miguel Reale destaca que, na época de formação do common law, o direito baseado nos costumes ou direito consuetudinário exercia forte influência nas sociedades primitivas, por meio de dois elementos: a preponderância do mais forte ou mais astuto e a influência do elemento religioso[32].
Nesse contexto, nos países adeptos ao common law, em que não houve relevante influência da igreja quanto no sistema civil law, havia além da liberdade religiosa[33] a liberdade de testar, uma vez que além da ausência de codificação nos primeiros países, não era necessário limitar a autonomia do testar nos atos de disposição patrimonial, diante da inexistência do instituto da legítima.
Portanto, com relação à sucessão testamentária, destaca-se que os testamentos não eram uma prática tão frequente na sociedade assim como nos países que adotam o sistema common law. Tal contexto se deve ao fato de que esses países sofreram um impacto bem menor do sistema romano, em que a morte sem testamento era considerada uma maldição e a maioria da sociedade adotava este instrumento.
4.1 INGLATERRA
Em regra, os países que adotam o common law permitem uma sucessão fundamentada na ampla liberdade de disposição dos bens e, consequentemente, favorecem o planejamento sucessório. Assim, por longo período de tmepo, o testador não encontrava limitações ao realizar as disposições testamentárias, podendo utilizar o testamento como uma forma representativa de sua autonomia de vontade.
Contudo, na data de 12 de novembro de 1975 surgiu uma lei denominada Inheritance (Provision for Family and Dependants) Act que passou a permitir questionamentos às disposições testamentárias, com a finalidade de modificar a vontade do testador no momento da livre disposição patrimonial.
Assim, a ausência do instituto da legítima em países como a Inglaterra não significa que após o óbito os familiares do de cujus permanecerão totalmente desamparados, uma vez que a legislação inglesa permite que os familiares requeiram, por meio do Poder Judiciário, um auxílio financeiro, após os tribunais analisarem a responsabilidade do de cujus em relação à pessoa que está pleiteando este auxílio financeiro, de modo a confirmar se o suposto herdeiro possui condições básicas de sustento.
No ano de 2011, as consequências do surgimento da lei supramencionada repercutiram nos tribunais ingleses, em que após o falecimento de Melita Jackson, no ano de 2004, e a existência de um patrimônio de 500 mil libras esterlinas (aproximadamente R$ 1,2 milhões de reais), a integralidade da herança foi destinada para três instituições de caridade de animais, em contrapartida aos interesses de sua única filha Heather Ilott.
O fundamento utilizado pela de cujus, extraído de uma carta escrita por ela, foi no sentido de que a filha havia fugido de casa aos 17 anos e após esse período manteve contato apenas de forma esporádica com a mãe.
Não obstante tal contexto, Heather Ilott, por meio do Poder Judiciário inglês, buscou o direito de receber o auxílio financeiro disposto na lei denominada Inheritance (Provision for Family and Dependants) Act e, ao final, obteve decisão favorável para receber mensalmente parte do dinheiro deixado pela genitora.
Embora tal decisão dos tribunais tenha sido fundamentada na lei supracitada, o Tribunal Inglês analisou de forma conjunta os precedentes judiciais sobre o tema, destacando que além da necessidade de comprovar que o herdeiro que pleiteia o auxílio financeiro não tem condições de se sustentar, também resta necessário a comprovação da responsabilidade do familiar falecido em relação a ele[34].
No caso paradigma, esses requisitos restaram comprovados uma vez que herdeira não estava em condições de retornar ao mercado de trabalho e se sustentar e o vínculo entre ela e a genitora ensejou a configuração de responsabilidade materna[35].
4.2 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Em regra, a maior parte dos estados americanos autoriza considerável autonomia no momento da elaboração do testamento. Em contrapartida, alguns doutrinadores americanos passaram a defender uma limitação na liberdade de testar, com a finalidade de assegurar maior proteção aos filhos do testador[36].
No sistema americano, a sucessão privilegia, em regra, o cônjuge supérstite, isto porque, os filhos não possuem direito à legítima, mas apenas à pensão alimentícia até a maioridade; já o cônjuge tem direito a legítima consistente no percentual de 1/3 da metade da herança.
Além disso, no sistema americano existe a criação do family provision consistente em uma prestação que poderá ser requerida por qualquer dependente do de cujus, com a finalidade de que o Poder Judiciário determine uma provisão de bens necessários para que o familiar consiga sobreviver ou, ao menos, para manter o padrão semelhante ao período anterior ao óbito do familiar.
Este instituto é considerado por alguns doutrinadores, como por exemplo Rolf Madaleno, uma espécie de alimentos compensatórios ou uma compensação econômica, por meio de uma análise comparativa aos alimentos compensatórios objeto de criação da doutrina e jurisprudência brasileira.
Nesse contexto, cumpre destacar o entendimento do doutrinador Zeno Veloso sobre o tema, ao consolidar as conclusões já apresentadas no presente artigo, no seguinte sentido:
Nos Estados Unidos, na Inglaterra e em outros países do sistema chamado “common law”, a liberdade de testar é absoluta, irrestringida. Ainda que a pessoa tenha filhos, pode fazer testamento e deixar todos os seus bens para outras pessoas físicas ou instituições. Só está obrigada a deixar alguma coisa para os descendentes se necessitarem de alimentos, e nos limites dessa necessidade.[37]
No mesmo artigo, assim como ocorre no ordenamento jurídico brasileiro, Zeno Veloso destaca que a mera existência de testamento não afasta a necessidade do procedimento de inventário e partilha de bens.
Desse modo, assim como no Brasil, os países de common law não deferem a herança aos sucessores de forma imediata e logo após ao óbito do familiar, submetendo-o a um procedimento de inventário - denominado probate- como um meio de viabilizar o acesso efetivo dos sucessores aos bens.
Portanto, a ausência de limitações a liberdade de testar nos países que adotam o sistema da common law implicam automaticamente em um cenário ideal para possibilitar o planejamento sucessório.
5 REFLEXÕES ACERCA DO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO E DA NECESSIDADE DE MODIFICAÇÕES DA LEGÍTIMA NO BRASIL
Conforme exposto acima, em alguns países o instituto da legítima é substituído pela prestação alimentícia, desde que comprovado o preenchimento de determinados requisitos.
No entanto, no Brasil a legítima segue limitando a livre disposição patrimonial, o que ensejou questionamentos por alguns estudiosos referente à necessidade de adaptação deste instituto, no sentido da redução do percentual de 50% existente, aumento ou até mesmo a sua exclusão do ordenamento jurídico[38]. Contudo, tal reflexão acarreta, primeiramente, a necessidade de reflexões sobre o princípio da solidariedade familiar e o princípio da autonomia privada.
O princípio da solidariedade familiar possui fundamento constitucional, uma vez que, o texto constitucional possui previsão expressa, conforme disposto no preâmbulo da Constituição Federal Brasileira e no artigo 03º, no sentido de assegurar a existência de uma sociedade fraterna e “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Além da previsão constitucional, tal princípio encontra-se positivado no inciso III, do artigo 1.566 do Código Civil Brasileiro, que embora mencione apenas os deveres de ambos os cônjuges, também é aplicável para os demais familiares: “São deveres de ambos os cônjuges: III- mútua assistência”.
A aplicação deste princípio acarreta a necessidade de respeito aos direitos recíprocos entre os familiares, o que na prática significa a adoção de medidas como o dever de mútua assistência dos pais em relação aos filhos, o dever de amparo às pessoas idosas e incapazes e a obrigação alimentar.
Nesse contexto, no entendimento da doutrinadora Maria Berenice Dias[39], os familiares são, em regra, credores e devedores de alimentos, como uma forma de concretização do princípio da solidariedade familiar e, consequentemente, no dever de mútua assistência.
Por outro lado, o princípio da autonomia privada encontra-se inserido no macroprincípio da dignidade da pessoa humana, por meio do qual a proteção da família representa uma concretização desse princípio[40], o que, assim como os demais princípios aplicáveis às relações familiares, não significa uma aplicação absoluta e sem quaisquer limitações.
Nesse contexto, a disposição patrimonial absoluta, por exemplo, no momento da elaboração do testamento ou por meio de doações, sem considerar a legítima dos herdeiros necessários não configura uma representação deste segundo princípio. Isto porque o princípio da autonomia privada não permite violações aos dispositivos legais existentes, neste caso o instituto da legítima no percentual de 50% no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, nos estudos sobre o tema, há o destaque para possíveis modificações no instituto da legítima, de modo a buscar garantir a proteção dos direitos dos herdeiros necessários de outra forma[41].
Assim, com relação à possibilidade de reduzir o percentual atual referente à legítima ou até mesmo propor a exclusão deste instituto do ordenamento jurídico brasileiro, Pablo Stolze Gagliano explica o seguinte:
Ademais, essa restrição ao direito do testador implicaria também afronta ao direito constitucional de de natureza complexa, é composto pelas faculdades de usar, gozar/fruir, dispor, e reivindicar a coisa. Ora, tal limitação, sem sombra de dúvida, entraria em rota de colisão com a faculdade real de disposição, afigurando-se completamente injustificada. [42]
Conforme é possível observar, para Pablo Stolze Gagliano, ao destacar o mesmo entendimento de Francisco Cahali sobre o tema, menciona que, desde que os herdeiros fossem beneficiados de outra forma, como por exemplo por testamento, os interesses destes herdeiros continuariam protegidos, sem que para tanto fosse necessária a positivação do instituto da legitima e consequente restrição à livre disposição patrimonial, assim como ocorre nos dias de hoje.
Sobre o tema, a preservação da legítima reflete em outros direitos, tal como o Direito Contratual, de modo que além do testamento, aquele que pretende dispor de seus bens em favor de terceiros também encontra tal limitação no capítulo do Código Civil referente à doação inoficiosa, especificamente por meio dos artigos 544 e 549 do Código Civil[43].
Por outro lado, também existem adeptos que fundamentam a pretensão de revisão do instituto da legítima na possibilidade de beneficiar, com mais da metade da herança, pessoas economicamente vulneráveis. Desse modo, a limitação decorrente da legítima será aplicável quando entre os herdeiros necessários existirem pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, de modo que a redução da legítima ou exclusão do ordenamento jurídico brasileiro implicaria violação aos princípios constitucionais fundamentais, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana[44].
Nesse sentido, antes de detalhar as implicações referentes à redução do instituto da legítima e os prejuízos para as pessoas economicamente vulneráveis, cumpre destacar a distinção entre este conceito e o de minorias, com base nas lições de Rolf Madaleno sobre o tema:
Os grupos vulneráveis não se confundem com as minorias, porque os primeiros podem se constituir em um grande contingente numérico, como as mulheres, as crianças e os idosos, embora todos se identifiquem como vítimas da intolerância e da discriminação. A vulnerabilidade é um traço universal de alguns grupos de pessoas existentes na sociedade e destinatários de especial proteção, justificando-se tratamento diferenciado em razão das suas condições políticas, sociais e culturais.[45]
Ao aplicarmos este conceito no contexto do direito sucessório, é possível verificar que entre os herdeiros podem existir crianças, adolescentes, pessoas com algum tipo de deficiência ou pessoas que dependiam economicamente do falecido e não conseguem pelo próprio esforço manter o próprio sustento. Nesse contexto, no entendimento de Ana Luiza Maia Nevares:
a legislação sucessória deveria prever uma especial atenção aos herdeiros incapazes e idosos e, ainda, aos cônjuges e companheiros quanto a aspectos nos quais realmente dependiam do autor da herança, buscando concretizar na transmissão da herança um espaço de promoção da pessoa, atendendo às singularidades dos herdeiros, em especial diante de sua capacidade e de seus vínculos com os bens que compõem a herança, e, ainda, atendendo à liberdade do testador quando não se vislumbra na família aqueles que necessitam de uma proteção patrimonial diante da morte de um familiar.[46]
Portanto, a conclusão é de que a legítima ou reserva hereditária, ao impedir a livre disposição testamentária pelo testador, de modo a estabelecer o percentual de 50% não protegeria os herdeiros vulneráveis. Isto porque, existem familiares considerados economicamente vulneráveis e que dependiam do auxílio do de cujus para o próprio sustento, sendo necessário a concessão de uma tutela diferenciada de modo a garantir a aplicação concreta do princípio da dignidade da pessoa humana.
Com relação ao planejamento sucessório, cumpre destacar que a existência do instituto da legítima tal como ocorre nos países adeptos ao civil law, tem como consequência a limitação à liberdade de testar e, consequentemente a livre disposição patrimonial que poderia ser realizada por meio da técnica do planejamento sucessório. Nesse sentido, Pablo Stolze Gagliano define o conceito de planejamento sucessório da seguinte forma:
Consiste o planejamento sucessório em um conjunto de atos que visa a operar a transferência e a manutenção organizada e estável do patrimônio do disponente em favor dos seus sucessores.[47]
Assim, o que os estudiosos destacam[48], ao realizar uma análise comparativa entre o planejamento sucessório e a legítima, que a legítima foi decretada pelo legislador brasileiro de uma forma coercitiva, sem considerar os problemas decorrentes das discussões provenientes da partilha de bens, o alto custo para realizar a sucessão patrimonial, inclusive no âmbito fiscal, bem como a demora do procedimento judicial para a conclusão da partilha de bens.
Nesse contexto, o planejamento sucessório é utilizado não apenas como uma medida preventiva para evitar o surgimento de conflitos entre os herdeiros no momento da partilha de bens, mas, por outro lado, também visa uma distribuição da herança conforme a vontade efetiva do de cujus, de modo a garantir a sua autonomia privada ainda que após a morte[49].
Em decorrência disso, alguns instrumentos utilizados por aqueles que adotam o planejamento sucessório, principalmente em países adeptos ao common law em que a liberdade de testar não sofre limitações decorrentes da legítima, são os seguintes: escolha do regime de bens do casamento ou união estável, sendo possível a escolha por regimes denominados como “regime atípico misto”, ou seja, além dos regimes de bens previstos expressamente no Código Civil Brasileiro; e constituição de sociedades, tais como as holdings familiares, com a finalidade de administração até a futura partilha de bens; dentre outros exemplos[50].
Nesse sentido, utilizando como base dois instrumentos existentes para efetivar o planejamento sucessório, consistente na doação e no testamento, as implicações práticas destes institutos serão destacadas pontualmente a seguir.
Com relação à doação, os principais tipos utilizados pelos adeptos ao planejamento sucessório são: doação com reserva de usufruto, doação com cláusula de reversão e doação denominada “conjuntiva”, sendo que esta última se trata de doação realizada em benefício de mais de uma pessoa, conforme previsto no artigo 541 do Código Civil, que dispõe: Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual.
As doações indicadas acima têm a finalidade de permitir que no momento da partilha determinados bens já se encontrem devidamente divididos entre os herdeiros, uma vez que, principalmente na doação com reserva de usufruto, a nua propriedade do bem já se encontra transferida ao terceiro, recaindo sobre o de cujus apenas o usufruto, o qual será extinto automaticamente com o óbito.
Com relação ao testamento como medida de efetivação do planejamento sucessório, principalmente ao permitirem a inclusão das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, com a finalidade de proteger os bens tanto no presente quanto no futuro. Nesse contexto, Eduarda Mamede e Gladston Mamede, destacam em sua obra sobre o tema os seguintes pontos:
Cuidam-se de valiosos instrumentos de planejamento sucessório as cláusulas inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Permitem atender às preocupações do autor da herança, na condição de testador (ou donatário, como se verá́ na sequência), com o bem-estar das gerações futuras, protegendo o patrimônio de fragilidades pessoais ou contextuais especificas.[51]
Por outro lado, a influência do instituto da legítima no planejamento sucessório implica a necessidade de determinação de duas regras antes de optar pelo planejamento sucessório. A primeira delas é a proteção da legítima dos herdeiros necessários.
No entendimento dos doutrinadores Giselda Hironaka e Flávio Tartuce, a legítima estabelecida por meio do artigo 1.846 do Código Civil Brasileiro, deveria ser reduzida, com a finalidade de criar um cenário mais favorável ao planejamento sucessório:
Expostas as argumentações contra e a favor da proteção da legítima, pensamos ser o momento de debater a sua redução, talvez para um montante menor, em 25% do patrimônio do falecido, abrindo uma maior possibilidade jurídica à efetivação do planejamento sucessório. Isso porque a legítima deve assegurar apenas o mínimo existencial ou o patrimônio mínimo da pessoa humana, na linha da tese desenvolvida pelo Ministro Luiz Edson Fachin, não devendo incentivar o ócio exagerado dos herdeiros. Tal redução, talvez, terá o condão de aumentar o desenvolvimento social e econômico do Brasil, colocando na mente de todos a necessidade de busca pelo trabalho, que tanto engrandece o ser humano nos planos pessoal e social.[52]
Também cumpre destacar hipóteses em que o planejamento sucessório é visto como um meio de fraudar a legítima, conforme exemplificado pelos doutrinadores mencionados acima, a constituição de uma fundação com a finalidade de esvaziar o seu patrimônio e retirar os bens de seu patrimônio particular para distribui-los a outras pessoas, com a finalidade de retirar a legítima dos herdeiros necessários.
Assim, para a doutrina, no caso prático, para identificar eventual fraude ao instituto da legítima, o objeto de análise será a finalidade buscada pelo agente, sendo tal hipótese expressamente prevista por meio do artigo 166, inciso VI, do Código Civil: É nulo o negócio jurídico quando: VI´- tiver por objeto fraudar lei imperativa.
A segunda regra a ser seguida pelos adeptos ao planejamento sucessório é a vedação ao ato de disposição sobre herança de pessoa viva (Pacta Corvina), conforme expressamente previsto por meio do artigo 426 do Código Civil.
Realizados os esclarecimentos acima em relação ao planejamento sucessório e suas implicações práticas, cumpre destacar a aplicação deste instituto aos países adeptos ao common law, principalmente por meio de um novo instituto denominado trusts. Nesse sentido, destaca-se o entendimento da doutrinadora Milena Donato Oliva, adotado pelos doutrinadores Giselda Hironaka e Flávio Tartuce nos comentários sobre o tema: “instrumentos compatíveis com os ordenamentos da família romano-germânica”[53].
Em linhas gerais, os trusts decorrem de uma relação fiduciária, por meio da qual uma pessoa é proprietária de um patrimônio, vinculada a uma obrigação de mantê-lo ou utilizá-lo em benefício de terceiros. Tal instituto é considerado como um exemplo de planejamento sucessório nos países sob a influência do direito anglo-saxão, em decorrência de sua flexibilidade, diante da possibilidade de estabelecer trusts para qualquer objetivo que não seja considerado ilegal pelo ordenamento jurídico pátrio[54]
Contudo, a doutrina majoritária, exemplificada por meio do entendimento dos doutrinadores Giselda Hironaka e Flávio Tartuce, destacam que a aplicação deste instituto no contexto brasileiro poderia implicar em violação ao disposto no artigo 426 do Código Civil, uma vez que a a administração e divisão futura de bens poderiam ser consideradas como atos de disposição patrimonial de pessoa viva, o que é expressamente vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse contexto, também cumpre destacar a aplicação do instituto do planejamento sucessório no contexto de pandemia da COVID-19, diante do óbito de muitas pessoas após contraírem a doença, principalmente no período anterior às campanhas de vacinação, e diante da morosidade do Poder Judiciário que sofreu um considerável aumento diante deste cenário, a opção pela técnica de planejamento sucessório teria a finalidade de facilitar a organização patrimonial e, consequentemente, a posterior partilha de bens de forma estruturada[55].
Portanto, este cenário e o contexto de crise econômica decorrente da pandemia da COVID-19, permitiram considerável aumento pela busca do planejamento sucessório por muitas famílias brasileiras[56].
6 CONCLUSÃO
Os avanços na globalização permitiram que nos dias de hoje as distinções existentes entre os países que adotam o sistema do civil law, em relação àqueles que adotam o regime do common law diminuíssem consideravelmente, de modo a permitir que um país típico de civil law como o Brasil também considere, em algumas situações, a força vinculante dos precedentes judiciais e não apenas a lei escrita.
O contexto histórico foi o principal responsável pelas distinções entre os sistemas da civil law e common law. De um lado, os países que representam o civil law foram influenciados pelo direito romano-germânico, de modo a privilegiar a lei escrita como fonte primária do direito, principalmente após a Revolução Francesa que concretizou a lei como um meio legítimo de representação da vontade do povo e limitação de eventuais abusos. De outro lado, havia o contexto do common law, formado por um cenário de predominância da liberdade religiosa e composto pelas modificações realizadas durante o reinado de Guilherme I ou “Guilherme o Conquistador”, por meio da unificação dos costumes e da jurisdição no âmbito do direito inglês.
No entanto, conforme demonstrado no decorrer do presente artigo, ainda que o precedente judicial seja utilizado em detrimento da lei escrita, isso não impede que o aplicador do direito dispense a interpretação do que dispõe o julgador no caso utilizado como paradigma. Portanto, antes da aplicação dos precedentes ao caso concreto, estes deverão ser interpretados de modo adequado, para confirmar a possibilidade de aplicação em cada caso concreto.
Assim, como regra geral, a principal diferença entre os sistemas do civil law e common law consiste na fonte primária para a resolução dos conflitos que surgem na sociedade. Enquanto no primeiro a lei é considerada a fonte primária e os países possuem dispositivos legais que orientam o julgamento dos tribunais, no segundo existe a técnica dos precedentes (stare decisis), por meio dos quais os tribunais decidem aplicar a mesma solução jurídica para casos semelhantes, com a finalidade de garantir a segurança jurídica das decisões judiciais.
No início, o common law era influenciado predominantemente pelos costumes da sociedade inglesa, contudo, nos dias de hoje esse sistema é composto por precedentes judiciais.
Assim, embora os Estados Unidos da América e a Inglaterra sejam considerados como países que adotam o common law, isso não significa que os sistemas jurídicos dos países são idênticos. Isso porque, apenas no primeiro os precedentes judiciais coexistem com os códigos civis dos estados, o que não ocorre na Inglaterra. No entanto, embora nos Estados Unidos exista esse cenário, a lei escrita apenas é considerada eficaz após a aplicação ao caso concreto mediante a atuação dos tribunais.
Por outro lado, embora existam avanços, em relação ao direito sucessório as distinções permanecem, uma vez que, embora nos países de civil law exista o instituto da legítima ou reserva legal, exceto no México, com a finalidade de limitar os atos de disposição patrimonial e, ao mesmo tempo, proteger os interesses dos herdeiros necessários ou legitimários, nos países adeptos ao common law não existe qualquer previsão expressa nesse sentido.
Isto porque, o Código Civil Mexicano não dispõe sobre a existência da legítima, mas apenas sobre o direito de alimentos para determinados parentes do testador.
Vislumbrando esse cenário, o presente artigo buscou analisar as principais discussões existentes com relação ao instituto da sucessão legítima e sucessão testamentária nos ordenamentos jurídicos da Itália, Portugal, Alemanha, México e França, como representantes dos países adeptos ao civil law, de modo a destacar as diferenças entre o instituto da legítima e o rol dos herdeiros necessários entre os países.
Por meio desta análise, foi possível concluir que no direito francês os ascendentes não constam no rol dos herdeiros necessários, de modo diverso do sistema do direito italiano, português e alemão, que estabelecem não apenas os ascendentes, mas o cônjuge e os descendentes dessa forma.
Contudo, assim como ocorre no ordenamento jurídico brasileiro, nos referidos sistemas o companheiro também não se encontra no rol dos herdeiros necessários, embora o cônjuge supérstite seja assim considerado. Tal contexto também demonstra a existência de um tratamento legal diferenciado do cônjuge e do companheiro no Código Civil dos países indicados acima.
Por outro lado, na Inglaterra e Estados Unidos, como representantes dos países do common law, foi possível observar, por meio de uma análise comparativa que, embora nestes países não exista o instituto da legítima, existe um auxílio financeiro ou pensão alimentícia decorrente do patrimônio do testador, de modo a garantir as condições básicas de sustento do herdeiro que realmente precisa.
No mesmo sentido, nos Estados Unidos existe o instituto denominado family provision, com a finalidade de garantir que os dependentes econômicos do de cujus não fiquem desamparados após o óbito, principalmente diante da possibilidade do testador realizar a disposição integral dos bens desconsiderando o interesse dos familiares que necessitam de auxílio.
Ademais, com relação à sucessão testamentária, conforme destacado no presente artigo, desde a formação do sistema da civil law, diante da influência do direito romano, o testamento era considerado como um instrumento do cotidiano da sociedade, de modo que a morte a existência de testamento era um motivo de maldição e vergonha perante a sociedade. Não obstante, a liberdade de testar nestes países não era absoluta e, desde o início, era limitada pelo instituto da legítima ou reserva hereditária.
Por outro lado, embora a Alemanha também seja considerada um país em que vigora o sistema da civil law, no início, o direito germânico não era adepto à existência dos testamentos, sendo que a sucessão legítima era predominante no país. Contudo, a união entre o direito romano-germânico possibilitou o surgimento do sistema atual em que coexistem tanto a sucessão legítima quanto a testamentária.
Além disso, por meio do presente artigo também restou demonstrada a necessidade de sopesamento entre os princípios da solidariedade familiar e o princípio da autonomia privada. Isto porque, no entendimento de alguns doutrinadores, tal como Pablo Stolze Gagliano, limitar os atos de disposição patrimonial por meio do instituto da legítima significa evidente violação ao direito constitucional de propriedade, em que o proprietário pode exercer as faculdades de “usar, gozar, fruir e dispor”, nos termos do artigo 1.228 do Código Civil.
Nesse contexto, a sugestão para a adequação do instituto da legítima ao contexto da sociedade atual, seria a eventual redução do percentual aplicável nos dias de hoje, ou seja, 50% dos bens da herança, e possibilidade de preservação dos interesses dos herdeiros de outra forma, como por exemplo por meio de testamentos.
Por outro lado, também existe o entendimento de que a legítima deveria ser aplicada apenas para as pessoas economicamente vulneráveis e que dependiam economicamente do de cujus, de modo que após o óbito do familiar não são capazes de obter o próprio sustento.
Por fim, com relação ao planejamento sucessório e a aplicação no âmbito dos países adeptos ao sistema do common law, restou demonstrado que, a ausência de previsão expressa referente à legítima nestes países foi responsável pela criação de um cenário mais favorável ao planejamento sucessório.
Assim, a legítima tem sido considerada como um “obstáculo” a concretização do planejamento sucessório e consequente possibilidade de que os benefícios deste instituto sejam aplicados cada vez mais em diversos países.
Uma vez que, este instituto é utilizado para, ao mesmo tempo, evitar o surgimento de futuros conflitos entre os herdeiros no momento da partilha de bens e assegurar uma distribuição da herança conforme a vontade efetiva do de cujus, como uma medida de concretizar a aplicação do princípio da autonomia da vontade.
Nesse contexto, alguns instrumentos destacados no presente artigo que permitem a concretização do planejamento sucessório são a opção pelo regime de bens diverso dos regimes previstos atualmente no Código Civil Brasileiro e a constituição de sociedades denominadas “holding familiares”, de modo a assegurar a administração de determinados bens até o momento da partilha de bens.
Ademais, o testamento e as doações realizadas em vida pelo de cujus também são instrumentos que buscam concretizar o planejamento sucessório, embora em alguns casos práticos este instituto seja utilizado com a finalidade de desviar o patrimônio e distribui-lo para pessoas diversas, de modo a fraudar a legítima dos herdeiros necessários.
Por fim, por meio do presente artigo, também restou destacado que outro instrumento denominado trusts é um dos principais exemplos de concretização do planejamento sucessório nos países da common law, decorrentes de uma relação fiduciária.
Contudo, a aplicação deste instituto em países adeptos ao civil law, tal como o Brasil, no entendimento de alguns doutrinadores poderia implicar na violação ao artigo 426 do Código Civil e configurar uma hipótese de disposição sobre herança de pessoa viva.
Por fim, o contexto da pandemia da COVID-19 também foi destacado como um contexto que, diante do óbito de muitas pessoas, principalmente no período anterior ao avanço das campanhas de vacinação e diante da morosidade do Poder Judiciário intensificada neste período, acarretou um aumento da busca da população no sentido do planejamento sucessório.
Desse modo, pode-se concluir com o presente trabalho que enquanto os países que adotam o sistema do civil law possuem ordenamentos jurídicos mais rígidos, com previsões expressas referentes à proteção da legítima ou reserva hereditária, os países que adotam o sistema da common law adotam entendimentos mais livres o que, consequentemente, permite e facilita o planejamento sucessório.
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[2] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da Lei e de Precedentes: civil law e common law. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 99, v. 893, p.33-45, março 2010.
[3] REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva 2002. p.142.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme. A Transformação do Civil Law e a Oportunidade de um Sistema Precedentalista para o Brasil. Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 57, n. 380, p. 45- 50, junho 2009.
[5] REALE, Miguel. op. cit., p.153.
[6] Tradução livre feita por Renato Becho em seu Ativismo jurídico p. 103 Walker, David M. The Oxford Companio to Law. Oxford: Clarendo Press, 1980, p. 223, Tradução livre.
[7] Guilherme, o Conquistador. Disponível em: <https://www.algosobre.com.br/biografias/guilherme-o-conquistador.html> Acesso em 26 junho.2022.
[8] RAATZ, Igor. Considerações históricas sobre as diferenças entre common law e civil law – reflexões iniciais para o debate sobre a adoção de precedentes no direito brasileiro. Revista de Processo | vol. 199/2011 | p. 159 - 191 | Set / 2011 DTR\2011\2451.
[9] BORGES DE OLIVEIRA, Ana Carolina. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2014, vol. 6, n.10, Jan-Jun, p.43-68.
[10] Ibidem. p. 43-68.
[11] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. op. cit. p.33-45.
[12] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p.69.
[13] HASELOF, Fabiola Utzig. Jurisdições mistas: civil law & common law. Revista de Processo. Vol. 270/2017. p.385-406. Agosto 2017.
[14] REALE, Miguel. op. cit., p.142.
[15] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. Vol. 07. Saraiva: São Paulo. 2021, p.12.
[16] HIRONAKA, Giselda Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 45.
[17] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. v. 7. Edição Kindle (p. 41).
[18] Ibidem, p.155.
[19] POLETTO, Carlos Eduardo M. Indignidade sucessória e deserdação, 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013, p.154. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/978850218256.
[20] TARTUCE, Flávio. Fundamentos do direito das sucessões em outros Sistemas e no Brasil. 2020. Pág. 09 e 11. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/549. Acesso em 26 junho.2022.
[21]SUCCESSION. France. European- Justice. Disponivel em: https://e-justice.europa.eu/content_succession-166-FR-en.do?clang=en#toc_4. Acesso em 26.06.2022
[22] Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro. De quem é a herança. Disponível em: https://www.oabrj.org.br/tribuna/ordem-entregara-novo-espaco-aos-advogados/quem-heranca. Acesso em 26 junho.2022.
[23]Rádio França Internacional. Justiça francesa decide sobre sucessão de Johnny Hallyday. Disponível em: https://www.rfi.fr/pt/20190528-justica-francesa-decide-sobre-sucessao-de-johnny-hallyday. Acesso em 26 junho.2022
[24] TARTUCE, Flávio. op. cit.
[25]OZANAN, Mariana. Sucessão legítima no Direito Comprado. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37411/sucessao-legitima-no-direito-comparado. Acesso em 26 junho.2022.
[26] FERNÁNDEZ-HIERRO, María; FERNÁNDEZ-HIERRO, Marta. Panorama legislativo actual de la libertad de testar. Boletim JADO. Bilbão. Ano VIII, nº19. Maio 2010, p.51.
[27] Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Encontros Nacionais. 2. Assistência. 3. Isonomia. XXVII Encontro Nacional do CONPEDI (27 : 2018 : Porto Alegre, Brasil). Disponível em: http://site.conpedi.org.br/publicacoes/34q12098/l44zms3w/j2WbPlixGvbSJT5T.pdf. Acesso em 26 junho.2022.
[28] NEVARES, Ana Luiza Maia. A proteção da família no Direito Sucessório: necessidade de revisão? Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1033/A+prote%C3%A7%C3%A3o+da+fam%C3%ADlia+no+Direito+Sucess%C3%B3rio%3A+necessidade+de+revis%C3%A3o%3F. Acesso em 25 de junho de 2022.
[29] MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2020. 9788530990558. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530990558/. Acesso em: 25 jun. 2022. P. 349
[30] POLETTO, Carlos Eduardo M. Indignidade sucessória e deserdação, 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. P. 158. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502182561/. Acesso em: 26 junho2022.
[31] POLETTO, Carlos Eduardo M. op. cit. p. 157-158.
[32] REALE, Miguel. op. cit., p.146.
[33] PELLEGRINO. Rodrigo. Common law: Uma abordagem sobre o prisma da liberdade religiosa. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/common-law-uma-abordagem-sobre-o-prisma-da-liberdade-religiosa/. Acesso em 26 junho.2022.
[34] Pinheiro, Aline. Corte britânica limita livre escolha sobre herança. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2011-abr-07/justica-britanica-limita-liberdade-escolha-heranca. Acesso em 26.05.2022.
[35] Decisão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decisao-corte-apelacoes-inglaterra.pdf. Acesso em 25.06.2022.
[36] Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Encontros Nacionais. 2. Assistência. 3. Isonomia. XXVII Encontro Nacional do CONPEDI (27: 2018 : Porto Alegre, Brasil). Disponível em: http://site.conpedi.org.br/publicacoes/34q12098/l44zms3w/j2WbPlixGvbSJT5T.pdf. Acesso em 26 junho.2022.
[37]VELOSO, Zeno. Como deixar a herança. Disponível em: https://www.soleis.adv.br/artigoherancacomodeixar.zeno.htm. Acesso em 26 junho.2022.
[38] FREIRE JÚNIOR. Aluer Baptista; BATISTA, Lorraine Andrade. Da redução e exclusão da legítima versus o direito à herança. Acesso em 25.06.2022. Disponível em: http://www.fadileste.edu.br/revistavox/ojs-2.4.8/index.php/revistavox/article/view/177/213. Acesso em 26 junho.2022.
[39] BERENICE DIAS, Maria. Manual de direito das famílias. Revista dos tribunais: 2017: Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/76474648/v12/document/132651236/anchor/a-132651236. Acesso em 25 junho.2022.
[40] BERENICE DIAS, Maria, op.cit.
[41] FREIRE JÚNIOR. Aluer Baptista; BATISTA, Lorraine Andrade. op.cit.
[42] GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de doação: análise crítica do atual sistema jurídico e os seus efeitos no direito de família e das sucessões. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p.28.
[43] Ibidem, p.28.
[44] BRASILEIRO BORGES, Roxana Cardoso; LIMA DANTAS, Renata Marques. Direito das sucessões e a proteção dos vulneráveis econômicos. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 11, p. 73-91, jan./mar. 2017. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/9/8. Acesso em 26 junho.2022.
[45] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 51
[46] NEVARES, Ana Luiza Maia. op.cit.
[47] GAGLIANO, Pablo S. op. cit. p.58.
[48] MARINELLI, Gisele dos Santos. A legítima versus o planejamento sucessório. Disponível em http://marinelliadvocacia.com.br/downloadFromServer&src=uploads/content_file/a-legitica-versus-o-planejamento-sucessorio.pdf. Acesso em 26 junho.2022.
[49] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes; TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/466. Acesso em 26 junho.2022.
[50] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes; TARTUCE, Flávio, op.cit.
[51] MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda C. Planejamento Sucessório: Introdução à Arquitetura Estratégica - Patrimonial e Empresarial - com Vistas à Sucessão Causa Mortis. Rio de Janeiro. Grupo GEN, 2015. 9788597000108. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597000108/. Acesso em: 26 junho. 2022. p. 80.
[52] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes; TARTUCE, Flávio. op.cit.
[53] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes; TARTUCE, Flávio. op.cit.
[54] SANTOS SALES, Plínio César. Planejamento sucessório patrimonial. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/14335/14335.PDF?. Acesso em 26 junho.2022.
[55] NASCIMENTO, Priscilla Brayner Calado. O impacto da covid e a importância do planejamento sucessório. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1428/O+impacto+da+COVID-19+e+a+import%C3%A2ncia+do+planejamento+sucess%C3%B3rio. Acesso em 26 junho.2022.
[56] GIMENEZ, Ana Paula. TAVERNEIRO, Marcos. O aumento da procura por planejamento sucessório durante a crise da COVID-19. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-18/opiniao-procura-planejamento-sucessorio-covid-19. Acesso em 26 junho.2022.
Mestrando na PUC-SP e advogado em São Paulo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SETTE, RAFAEL BORTOLETTO. Limites da sucessão legítima e testamentária – comparação entre os sistemas de civil law e common law Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60044/limites-da-sucesso-legtima-e-testamentria-comparao-entre-os-sistemas-de-civil-law-e-common-law. Acesso em: 23 dez 2024.
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