ALCIVANDO FERREIRA DE SOUSA[1]
(orientador)
RESUMO: A realidade das moradias em locais irregulares e de risco é uma realidade que vem se destacando cada vez mais. Isso se deve pelo fato de que o noticiário diariamente vem mostrando construções sendo feitas e mantidas em locais irregulares e perigosos. Partindo da premissa de que esse tipo de moradia é mais evidente em grandes centros urbanos do que em pequenas cidades, nota-se que a mesma carece de planejamento urbano, o que acaba afetando a qualidade de vida destes moradores, como a falta de saneamento básico, transporte, educação. Diante dessa realidade, o presente estudo teve o objetivo de analisar a possibilidade de aplicar a responsabilidade civil do Estado perante a construção de moradias irregulares. Na metodologia, tratou-se de uma revisão da literatura. A coleta de dados se deu na base de dados da Scielo, Google Acadêmico, dentre outras, durante o período de outubro e novembro de 2022. Teve-se como base artigos científicos, livros, periódicos, legislação brasileira e julgados nacionais. Nos resultados, ficou evidente constatar que o Estado possui plena responsabilidade civil para os moradores que moram em áreas de risco e irregulares. Ao final, entendeu-se que se deva criar leis de responsabilidade social para o desenvolvimento de políticas públicas preventivas de tragédias urbanas.
Palavras-chave: Moradia. Espaço Urbano. Responsabilidade Estatal. Legislação.
ABSTRACT: The reality of housing in irregular and risky places is a reality that has been increasingly highlighted. This is due to the fact that the daily news has been showing buildings being built and maintained in irregular and dangerous places. Starting from the premise that this type of housing is more evident in large urban centers than in small cities, it is noted that it lacks urban planning, which ends up affecting the quality of life of these residents, such as the lack of basic sanitation, transport, education. Given this reality, the present study aimed to analyze the possibility of applying the civil liability of the State in the face of the construction of irregular housing. In terms of methodology, it was a literature review. Data collection took place in the database of Scielo, Google Scholar, among others, during the period of October and November 2022. It was based on scientific articles, books, journals, Brazilian legislation and national judgments. In the results, it was evident that the State has full civil liability for residents who live in risky and irregular areas. In the end, it was understood that social responsibility laws should be created for the development of public policies to prevent urban tragedies.
Keywords: Home. Urban Space. State Responsibility. Legislation.
Sumário: 1. Introdução. 2. Metodologia. 3. Responsabilidade Civil: Aspectos gerais. 4. A moradia em locais e de risco e irregulares. 5. Das consequências jurídicas e sociais. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Um dos bens mais valiosos e protegidos pelos indivíduos é a moradia. Ela representa a segurança e o equilíbrio de uma pessoa, de uma família e de uma sociedade. Tão importante, que a legislação brasileira, por meio da Emenda Constitucional nº 26/2000 inseriu-a no texto constitucional pátrio, como um direito de todo indivíduo (BRASIL, 2000).
Ocorre que na realidade atual, a moradia tem sido pauta de inúmeras discussões. Parte delas se destinam a sua segurança e comodidade. Melhor dizendo: discute-se nas últimas décadas as moradias encontradas em áreas de risco ou irregulares.
As casas construídas e mantidas em locais de risco e/ou irregulares é uma realidade muito presente na sociedade. Milhares de famílias brasileiras estão alocadas nesses locais. O efeito disso é muito claro: alagamentos, inundações, desabamentos, ou qualquer outra tragédia nesses locais (ALVES, 2022).
Os noticiários brasileiros nos últimos anos têm noticiado quase que diariamente habitações construídas em áreas de risco e que são frequentemente vítimas de tragédias ambientais. Esses fatos acabam por trazer à tona a discussão sobre a responsabilização a respeito dos danos gerados.
Com isso, tem-se debatido a responsabilidade do Estado frente a esses casos. Cabe lembrar que o art. 37 § 6º da Constituição de 1988, é enfático ao expor que a inação do Estado se faz reprovada com a obrigação de indenizar pelos danos suportados, individual ou coletivamente (BRASIL, 1988).
Dessa forma, é importante analisar de que forma o Estado responde judicialmente pelos danos gerados pelas consequências da moradia em locais de risco ou irregulares. Assim, a problemática desse estudo se baseou na seguinte questão: há a possibilidade jurídica de aplicar a responsabilidade civil e de danos ao Estado nos casos de ocorrência de tragédias em moradias em locais de risco e irregulares?
Com esse cenário, essa pesquisa teve o objetivo de analisar a aplicação (ou não) da responsabilidade civil do Estado perante as construções de moradia irregulares em local de risco.
2. METODOLOGIA
A metodologia empregada na construção desse estudo se baseou nos métodos indutivo e qualitativo. Foi realizada uma revisão de literatura, a pesquisa bibliográfica foi feita através de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos científicos relacionados ao tema proposto.
A presente pesquisa foi realizada mediante o levantamento de documentos. Assim, a coleta de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google, dentre outros, entre os meses de outubro e novembro de 2022.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL: ASPECTOS GERAIS
O tema referente à responsabilidade civil existe desde os primórdios da sociedade. O homem, um ser plenamente social, desde sempre buscou ressarcir qualquer ação que porventura tenha causado algum prejuízo ao seu semelhante. Essa consciência “moral” pode ser entendida inicialmente como a responsabilidade civil.
Várias são as definições para responsabilidade civil. E todas elas foram sendo alteradas de acordo com o momento histórico vivido pela sociedade. Inicialmente, a responsabilidade civil surge pela precisão de amadurecimento das relações em conflito, que anteriormente era resolvida por meio de vingança privada (autotutela) e em seguida sendo pecuniária. Com o avanço social, emerge a noção de culpa, que também passa por períodos de mudança na sua aplicação, ao ponto onde a jurisprudência “acolhendo as necessidades prementes da vida social, expandiu o seu conceito, até chegar o período em que as noções de risco e garantia ganham força para substituí-la” (BRITO, 2014, p. 01).
Em seu conceito inicial, Nader (2018) relaciona a responsabilidade civil ao direito obrigatório de reparação de uma conduta que gerou prejuízo a terceiro.
Nos dizeres de Gonçalves (2020) esse instituto se baseia na obrigatoriedade de um indivíduo em ressarcir os prejuízos causados a outrem, em decorrência de um ato ilícito ou mesmo lícito. Nota-se, a priori, que o que impera na responsabilidade civil é um dano que tenha surgido por motivação de outra pessoa.
Cabe lembrar também que na responsabilidade civil, a omissão também se enquadra. Como explica Oliveira (2018) a responsabilização na seara civilista é entendida como toda ação ou omissão que traga efeitos negativos a outra pessoa. É uma ação (ou omissão) que gere uma violação de uma norma legal ou de natureza contratual.
Por fim, explica o renomado autor Sérgio Cavalieri Filho (2021) que a responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que se originou da violação de dever jurídico originário.
Com os conceitos acima descritos, fica claro de se ter uma ideia de que qualquer ação que venha violar uma norma jurídica e consequentemente trazer algum dano para um terceiro é configurado como a responsabilidade civil (OLIVEIRA, 2018). O seu texto normativo pode ser encontrado no seguinte artigo civilista:
Art. 186. Aquele, que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
(BRASIL, 2002)
A doutrina jurídica traz os pressupostos do presente instituto, que são: a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade. O primeiro corresponde a ação ou omissão voluntária praticada por um indivíduo. A voluntariedade, como explica Filho (2021) é ter a consciência da ação cometida. Ela deve existir tanto na responsabilidade subjetiva (culpa) quanto na objetiva (risco).
O dano é o pressuposto para a existência da reparação, ou seja, sem ele não de se falar em responsabilidade civil. Esclarece Gonçalves (2020) que o dano é a lesão a um interesse jurídico, patrimonial ou extrapatrimonial causado pela ação (ou omissão) de um agente. Todo dano deve ser reparado, ainda que se consiga voltar ao estado anterior das coisas (status quo ante).
Ainda dentro desse pressuposto, importante mencionar os seus tipos: dano moral e dano material. O dano moral (também denominado de dano extrapatrimonial) é aquele onde os efeitos do ato ilícito do agente ferem o psicológico e emocional da vítima. Para isso, é imperioso observar os efeitos relacionados à tristeza, dor ou sofrimento, ou qualquer outro que traga a certeza de instabilidade emocional e psicológica gerada pelo dano. Para Nader (2018) o dano moral representa uma afronta à dignidade da pessoa humana, pois gera emoções negativas à vítima, tais como angústia, sofrimento, humilhação, dor, etc., o que não pode ser confundido como mero dissabor ou aborrecimento.
Já o dano material se configura no prejuízo direto ao patrimônio da vítima. É uma lesão causada ao patrimônio, consequentemente gerando perda ou deterioração total ou parcial dos bens materiais que lhe pertenciam (NADER, 2018).
Por fim, encontra-se o nexo de causalidade. Este é a ponte de ligação entre o dano e a conduta do agente. Teixeira et al. (2021) acentua que a doutrina jurídica brasileira adotou nesse caso, a Teoria da Causalidade Adequada, pelo qual se considera na percepção do nexo causal somente o antecedente abstratamente idôneo à produção do efeito danoso.
Em relação aos tipos, a responsabilidade civil pode ser objetiva e subjetiva. Na responsabilidade objetiva, esta é caracterizada pelo fato de que a pessoa causadora do dano não realizou a ação de forma intencional ou seja, não tinha o objetivo de causar dano, e nem culposo. Ou seja, essa responsabilidade independe da intenção do ato, bastando somente que ele aconteça para gerar o dever indenizatório (OLIVEIRA; MELO, 2019).
Na responsabilidade subjetiva, para a sua configuração é preciso que o agente tenha dolo ou culpa em relação ao dano causado. Nesse caso, há uma conduta consciente, negligente ou imprudente do indivíduo para que seja configurada a responsabilidade (OLIVEIRA; MELO, 2019).
Feito essas ponderações gerais a respeito desse instituto, parte-se no tópico seguinte para a contextualização do tema aqui analisado
4 A MORADIA EM LOCAIS E DE RISCO E IRREGULARES
No ano de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1948) trouxe uma importante normatização em relação a moradia. Nesse regramento jurídico, previu o garantismo a todos de ter uma moradia, bem como protegeu o direito de todos a terem um lar como fundamental para a sua existência.
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Importante mencionar o que o direito à moradia está, ao seu turno, intimamente ligado ao Meio Ambiente. Nesse sentido, José Afonso da Silva (2010 apud HOLMES; SUNSTEIN, 2019) afirma que o meio ambiente é o resultado da interação dos aspectos naturais, artificiais e culturais que estejam presentes no ambiente. Nesse caso, também adentra a moradia.
Dessa forma, Campos (2021) acredita que uma moradia digna também está presente na definição de Meio Ambiente, especialmente ecologicamente equilibrado. Com essa interação também se alinha a outros direitos fundamentais, tais como a vida, a saúde, a intimidade, a liberdade, o respeito à dignidade física, psíquica e moral de cada um.
Mais especificamente no Brasil, o direito à moradia encontra base legal na principal norma do país: a Constituição Federal de 1988. É por meio do texto constitucional que o Brasil buscou garantir o direito de todos a ter uma moradia digna (REIS, 2014).
No art. 6º da Carta Magna é expresso que os direitos sociais são encontrados na educação, na saúde, na alimentação, no trabalho, no transporte, no lazer, na segurança, na previdência social, na proteção à maternidade e à infância e sobretudo, a moradia (BRASIL, 1988).
Em 1991, o Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC), comentário geral 4º, estabeleceu parâmetros mais objetivos que determinaram alguns aspectos a serem considerados para que o direito à moradia fosse garantido a contento. Segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços materiais, facilidades e infraestrutura, custo de manutenção da moradia acessível, habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural (NAÇÕES UNIDAS, 1991).
Cabe lembrar que uma moradia não se restringe somente a ter uma casa. É preciso que se tenha acesso a uma residência segura, digna e que possibilite saúde mental e física para os seus moradores (HOLMES; SUNSTEIN, 2019).
Para entender melhor o que seria uma moradia adequada, apresenta-se o Quadro 1:
Quadro 1 – Aspectos fundamentais para uma moradia adequada:
ASPECTO FUNDAMENTAL |
DESCRIÇÃO |
Segurança da posse |
Se refere a uma segurança em morar no ambiente sem correr o risco de sofrer ameaças ou remoção. |
Disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos |
É a garantia de receber acesso a serviços como saneamento básico e energia elétrica, serviço público de infraestrutura e estabelecimentos de educação, saúde e lazer. |
Custo acessível |
A moradia não pode ser algo a comprometer o planejamento financeiro familiar, como por exemplo, a aquisição ou aluguel com preços abusivos. |
Habitabilidade |
É o direito que garante uma morada com proteção a ocorrência de fenômenos naturais, incêndios, desmoronamento ou qualquer fator que coloque em risco a vida e saúde dos habitantes. |
Não discriminação e priorização de grupos vulneráveis |
Cada moradia tem de ser equilibrada no sentido de garantir uma equidade aos grupos vulneráveis, como idosos, crianças e deficientes. da sociedade, como idosos, crianças e pessoas com deficiências. |
Localização adequada |
A moradia deve estar localizada em regiões com oportunidades de desenvolvimento econômico, cultural e social. |
Adequação cultural |
Os materiais e a construção da residência devem respeitar a diversidade. |
Fonte: Carvalho (2021).
Apesar de a legislação brasileira garantir o direito a uma moradia digna, a realidade no país não se encontra efetiva quanto está no texto da lei. Para melhor exemplificar essa afirmativa, Campos (2021) explica que devido ao fato de que as áreas centralizadas das grandes cidades serem consideradas áreas de enorme valor, recebendo inclusive melhores tratamentos dos órgãos públicos, as outras áreas, consideradas como “alternativas” acabaram que ficaram à margem dessa realidade.
Bordalo (2021) acentua que as áreas menos valorizadas das cidades brasileiras constituem uma exclusão social, uma vez que parte da população as invadem criando uma “cidade informal”, que nada mais são do que fruto de violação indireta do direito à moradia.
Cruz e Bodnar (2018) aduz que a população de baixa renda buscam uma moradia, não importando o local onde ela se encontra. Por conta disso, muitas áreas consideradas de risco ou de domínio Estatal acabam servindo de moradia a milhares de famílias. Douglas e Wildavsky (2018) acrescentam que na busca pela sobrevivência e manutenção da qualidade de vida, muitas pessoas decidem construir casas em locais de instabilidade ambiental ou que sejam já previamente tuteladas por terceiros.
Muitas famílias, conforme explana Bordalo (2021), veem-se diante da ponderação entre uma ameaça de caráter futuro e necessidade imediata. Portanto, construir uma moradia em uma área de risco não é uma opção primária, mas sim uma busca em encontrar um locar onde possa residir de forma no mínimo digna. Em alguns casos, é a única opção que se encontra.
Na busca por entender as razões que levam as pessoas a morarem em áreas de risco, Almeida e Pereira (2014) trazem algumas motivações já estabelecidas: estabelecimento de laços afetivos e hábitos criados com a vizinhança que os acompanha; impossibilidade de pagamento de aluguel, e até mesmo a solidariedade dos vizinhos que se auxiliam quando os recursos financeiros são insuficientes para a sobrevivência básica.
Farber e Carvalho (2017) ao analisar o perfil dos moradores de áreas de risco, traçou que as principais características são: pessoas com rendas ínfimas ou desempregados, baixos níveis de escolaridade e saneamento. No geral, são formados por famílias com filhos, negros e em grande parte chefiadas por mulheres.
Carvalho (2021) entende que é possível observar que as ocupações irregulares estão diretamente ligadas às piores condições socioeconômicas e, consequente, maior exposição a risco, o que gera um círculo negativo e propício a desastres de grande magnitude.
O fato é que as mudanças climáticas ocorridas nas últimas décadas têm impacto significamente várias áreas urbanas. Muitas áreas, principalmente as que se encontram distantes dos centros urbanos, são facilmente consideradas uma zona de risco, justamente por apresentarem um espaço territorial que possibilite uma mudança drástica da sua estrutura (CARVALHO, 2021).
Por essa razão, diversos casos de desabamentos, inundações, alagamentos, dentre outros desastres estão sendo frequentemente vistos pela sociedade. Metrópolis estão sendo vítimas de desastres ambientais que tem impacto milhares de moradias (ALVES, 2022).
De acordo com Fonseca (2018) as moradias erguidas nas áreas de risco são uma verdadeira tragédia anunciada, como por exemplo, o risco de chuvas que alagam essas áreas. Nesse cenário, famílias acabam se tornando vítimas de desabamentos de barreiras ou da súbita inundação das áreas ribeirinhas que arrastam suas vidas irregulares para a morte.
Rangel e Silva (2019) acrescentam que a morte de pessoas em razão de acontecimentos graves a esses locais não é incomum. Muitos são as pessoas que mesmo sabendo do risco que correm, optam por esperar ou ficar nesses locais, grande parte delas, como já mencionado, porque não tem outro local para morar.
O que se verifica, é que as áreas de risco configuram um claro atentado ao direito à moradia digna. Esses locais estão longe de serem considerados como ideais para morar e viver. E isso, remete diretamente a ausência de políticas públicas que trabalhem em prol de melhorias e solução desse cenário (VARGAS, 2019).
Vargas (2019) acredita que a flagrante ausência de uma política habitacional tem aberto as chances de que as grandes cidades registrem a ocorrência de conjuntos habitacionais clandestinos, mediante ocupação desordenada e sem nenhuma infraestrutura, apresentando-se no caso das construções consolidadas em áreas de risco um problema de proporções mais graves.
De primeira ordem, entende-se que nesses casos, a remoção das moradias sejam a primeira solução. Isso é natural, uma vez que essas moradias estão localizadas em áreas que correm riscos de gerar desastres que podem inclusive vitimar seus moradores. Reis (2014) enfatiza que a remoção dessas moradias, frente ao indício de perigo à incolumidade física dos habitantes, configura questão de interesse público.
Bordalo (2021) pontua que a Administração Pública não pode se omitir frente a esses casos, devendo resolver por definitivo, o processo de ocupação temerária, com o deslocamento das moradias irregulares para um espaço urbano adequado.
No entanto, em alguns casos, verifica-se uma ausência do Poder Público quando tragédias ocorrem, e que acabam por mostrar o problema. A respeito das consequências desse fato, apresenta-se o tópico seguinte.
5. DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
Não são raras as vezes em que o Estado permite, incentiva e deixa de tomar providências no sentido remover e realocar famílias, nos termos da legislação, estabelecidas em áreas irregulares. Diante da omissão da Administração Pública, observa-se a possibilidade de atuação do Poder Judiciário, que, cumprindo seu papel constitucionalmente atribuído, em geral impulsionado pelo Ministério Público, intervém visando resguardar a vida e a qualidade de vida dos cidadãos, por meio da garantia de uma moradia digna e de um meio ambiente equilibrado.
Nesses casos, emerge-se o instituto da Responsabilidade Civil, já analisado no primeiro tópico desse estudo. Para fins desse estudo, liga-se a possibilidade de inclusão desse instituto ao caso presente.
Reis (2014) entende que a responsabilidade civil por omissão imputável ao Poder Público, configurada na conduta omissiva e ofensiva a direitos assegurados na Carta Magna, é uma temática de interesses de todos. Como bem acentua o art. 37 § 6º da Constituição de 1988, quando o Estado se omite de suas obrigações sociais, incluídas aí a moradia digna e equilibrada, surge o direito indenizatório decorrentes dos danos gerados e suportados, seja ele de modo individual ou coletivo.
Bordalo (2021) esclarece que essa questão paira sobre o planejamento urbano, ou seja, no desenvolvimento de uma estrutura que organize as áreas residenciais de uma cidade. O planejamento é essencial para que situações como aqui analisadas sejam evitadas.
Fato é que cabe ao Estado trazer e efetivar soluções de contenção do processo de ocupação, a manutenção de pessoas residentes em áreas de risco se mostra um ato omissivo do Poder Público, uma vez que se fecha os “olhos” para as construções clandestinas (HOLMES; SUNSTEIN, 2019).
Desse modo, entende-se primeiramente que existe uma aplicação da responsabilidade civil do Poder Público, por inércia e inadequação de serviços compatíveis à proteção dos cidadãos, em especial a sua proteção física, moral e familiar.
Nesse sentido, destaca-se as seguintes palavras:
Declinando o ente jurídico governamental do dever de agir, em cumprimento da lei, para a remoção das pessoas em área de risco de situação geológica, por ocupação informal e irregular, e ao torná-las expostas, permanentemente ao risco, rende-se o Poder Público à obrigação de indenizar, por omissão. Omissão de socorro, por deixá-las sujeitas à própria sorte (ALVES, 2022, p. 01).
Corroborando com o entendimento acima exposto, a jurisprudência brasileira já vem apresentando julgados que mostram a aplicação da Responsabilidade Civil do Estado diante da situação aqui estudada.
Um julgado histórico a ser mencionado foi o realizado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 1988, responsabilizou a Administração Pública, “por danos correspondentes ao deslizamento de encosta na qual haviam sido realizadas, mas de modo insatisfatório, obras de contenção”. (TJRJ – 3ª Câmara Cível, Apel. Cível n. 1.555/88, Rel. Des. José Carlos Barbosa Moreira).
Em decisão judicial mais recente, numa Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro em desfavor do Município e o Estado do mesmo ente federativo, acatou o pedido e indenizou-os, com base na ausência de implementação de ações que pudessem preservar o meio ambiente e à vida dos moradores da comunidade Nova Maracá, no bairro de Tomás Coelho, uma vez que essa região é considerada uma área de risco, pelo fato de ter o riso eminente de deslizamentos e escorregamentos. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também se posicionou do mesmo modo (AgInt no AREsp 801720/RJ, Rel. Min. Francisco falcão, j. em 14.09.2021).
Nota-se com esses dois exemplos, que o Estado pode ser responsabilizado nos casos de tragédias ocorridas em áreas de risco habitadas. Oliveira (2018) nos explica que essa possibilidade já pacificada na jurisprudência brasileira, se motiva em razão de reconhecer à Administração o dever de proteger pela segurança das comunidades, além de dispor de melhores condições habitacionais, a fim de evitar a ocorrência de tragédias.
Gonçalves (2020) esclarece que o fato gerador do evento danoso não se origina de culpa, ainda que concorrente, dos que precederam a ocupação irregular de moradias, vitimadas por deslizamentos de terras, feitas sem a prévia autorização dos municípios.
Carvalho (2021) entende que esse cenário faz surgir a emergência em se criar leis mais específicas e severas para esses casos. O autor defende que é necessário haver uma melhor regulamentação jurídica, principalmente pelo fato de que em vários locais é nítido observar a possibilidade de ocorrer tragédias.
O Serviço Geológico Brasileiro que monitora áreas consideradas propensas a desabamentos, inundações, deslizamentos de rochas, etc., “considera que 1.601 cidades do país têm "alto e muito alto risco", o equivalente a 28,74% do território brasileiro” (CAMPOS, 2021). Apenas por esse dado, fica evidente que há um enorme risco de ocorrer novas tragédias urbanas, como as já existentes nos últimos anos.
Cabe mencionar a Lei nº 1.608/2012 que instituiu o Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) do Brasil. De todo modo, uma legislação mais robusta e ampla sobre esse tema, deve ser criada.
Rangel e Silva (2019) acrescentam que a competência constitucional atribuída aos Municípios para a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII, CF), evidencia a responsabilidade e chama a atenção a esses deveres legais impostos.
Frente ao exposto, entende-se que a Responsabilidade Civil do Estado frente aos casos de tragédia ocorridas em áreas de risco é plenamente possível de ser aplicada. No entanto, tão importante quanto estabelecer as penalidades, é buscar criar medidas de prevenção e solução a esses casos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todos os anos os noticiários evidenciam as problemáticas de moradores que residem em morros e encostas, problemática que fica em evidência devido as chuvas torrenciais que acabam ocasionado grandes tragédias e ceifando vidas. Em sua maioria, esses deslizamentos de terras ocorrem por falta de fiscalização do Poder Público e de Planejamento Urbano adequado, e são nesses locais onde residem pessoas de classe social menos privilegiada, resultado das desigualdades sociais.
Sendo previsível que ao longo dos anos os acontecimentos de desmoronamento de morros e encostas na época do verão, o Poder Público se mantém inerte aos acontecimentos, sendo mais do que previsível este órgão veda seus olhos para essa população. Sendo o Poder Estatal omisso, cabe aos moradores lesados, ou seja, que tiveram suas casas destruídas por deslizamentos de terras procurar seus direitos uma vez que, este órgão tem sua parcela de culpa nesses acometimentos.
A omissão do Poder Público em fiscalizar as construções e as casas que já estão construídas e gritante, sabendo que esse ato pode e custa vida de pessoas inocentes que por questões socioeconômicas não tem para onde ir.
Destaca-se que é dever do poder público organizar o espaço habitável de uma comunidade ou cidade, para que tais habitantes tenha o mínimo de dignidade possível. Se há um grande deslocamento de pessoas, que, por razões socioeconômicas realizam construções irregulares em locais como encostas e morros, é de competência do município evitar que essas pessoas construam suas moradias ali, tendo-se por base o risco de vida que esses habitantes correm diariamente. É dever do Poder Público regular esses espaços.
Conforme expresso no decorrer desse estudo, ficou evidente que o Estado é plenamente responsabilizado pelos danos gerados pelas tragédias ocorridas em áreas de risco. Essa penalização se deve justamente por ele ser o responsável em evitar que essas populações sofram tais danos.
Por outro lado, é também importante destacar que a população também deve se movimentar na busca pela prevenção em construir moradias nesses locais, principalmente quando a área já é conhecida como de “risco”. Nesse sentido, a postura do cidadão, enquanto integrante de uma comunidade precisa ser trabalhada com o esclarecimento em relação aos riscos e incentivos que
estimulem a desocupação de determinadas áreas. Esse raciocínio conduz a uma atuação conjunta do poder público com o cidadão.
Ademais, essa pesquisa caminha para o entendimento de que se deva criar leis de responsabilidade social para o desenvolvimento de políticas públicas preventivas de tragédias urbanas.
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TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado et al. Responsabilidade civil e direito de família: O Direito de Danos na Parentalidade e Conjugalidade. 1º ed. Editora: Foco, 2021.
VARGAS, Dora. “Eu fui embora de lá, mas não fui” –a construção social da moradia de risco. In: VALENCIO, Norma et al. (Orgs.) Sociologia dos Desastres. São Carlos: Rima, 2019.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINHARES, Roberta Pereira. Responsabilidade civil do Estado frente a construção de moradias irregulares em áreas de risco Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60069/responsabilidade-civil-do-estado-frente-a-construo-de-moradias-irregulares-em-reas-de-risco. Acesso em: 23 dez 2024.
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