Resumo: A eutanásia é a prática que consiste em provocar a morte de alguém antes do previsto por sua evolução natural da doença ao qual é portador. Seria uma espécie de ato misericordioso por parte do profissional de saúde, uma vez que o sofrimento em vida causado ao paciente pela enfermidade incurável seria muito grande. Atualmente, o Código Penal brasileiro não criminaliza diretamente a eutanásia, o que faz com que a conduta seja tipificada como homicídio privilegiado, aquele em que o autor do delito o faz por motivo de relevante valor social ou moral. Na prática, essa escolha jurídica faz com que o autor seja punido com um rigor legal menos severo que o autor de um homicídio simples, por exemplo, uma vez que as circunstâncias as quais o crime foi cometido seriam diferentes. Nesse diapasão, o presente trabalho tem por objetivo discutir a respeito da proibição da eutanásia no Brasil, os possíveis motivos pelos quais esta prática é condenada no ordenamento jurídico nacional, a legislação estrangeira a respeito da eutanásia e, por fim, tecer uma reflexão crítica a respeito do fato da criminalização atual. Após a pesquisa, verificou-se que no Brasil as principais razões pelas quais não se permite a eutanásia advém de motivos religiosos e conservadores. Também há uma colisão direta entre os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à vida. Essas convicções políticas e religiosas fazem com que seja conveniente manter a postura no debate com relação ao direito a vida prevalecer sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que a vida daquela pessoa no estado de doença terminal já lhe cause muito sofrimento físico e psicológico. Nesse sentido, critica-se a criminalização da eutanásia, vez que o presente impasse jurídico prejudica a autonomia individual dos pacientes que possuem doenças terminais e causa sofrimento a estes, tendo em vista que o direito à vida deve ser diretamente atrelado a dignidade da pessoa humana.
Palavras - Chave: Eutanásia. Dignidade da Pessoa Humana. Direito à Vida.
Abstract: Euthanasia is the practice that consists of causing the death of someone earlier than expected due to the natural evolution of the disease to which he is a carrier. It would be a kind of merciful act on the part of the health professional, since the suffering in life caused to the patient by the incurable disease would be very great. Currently, the Brazilian Penal Code does not directly criminalize euthanasia, which makes the conduct typified as privileged homicide, one in which the author of the crime does so for reasons of relevant social or moral value. In practice, this legal choice causes the perpetrator to be punished with a less severe legal rigor than the perpetrator of a simple homicide, for example, since the circumstances in which the crime was committed would be different. In this vein, the present work aims to discuss about the prohibition of euthanasia in Brazil, the possible reasons why this practice is condemned in the national legal system, the foreign legislation regarding euthanasia and, finally, weave a critical reflection on regarding the fact of current criminalization. After the research, it was found that in Brazil the main reasons why euthanasia is not allowed come from religious and conservative reasons. There is also a direct collision between the constitutional principles of human dignity and the right to life. These political and religious convictions make it convenient to maintain the position in the debate regarding the right to life to prevail over the principle of human dignity, even though the life of that person in the state of terminal illness already causes him a lot of physical and psychological suffering. In this sense, the criminalization of euthanasia is criticized, since the present legal impasse harms the individual autonomy of patients who have terminal diseases and causes suffering to them, given that the right to life must be directly linked to the dignity of the human person.
Keywords: Euthanasia. Dignity of human person. Right to life.
INTRODUÇÃO
O ordenamento constitucional é grande defensor dos direitos e garantias individuais, entre elas o direito à vida, a liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Mas será que o direito à vida é absoluto?
Sabe-se que a própria ordem constitucional não possui nenhum direito absoluto, vez que as particularidades de cada caso alteram a conduta daquele que é acusado de cometer um delito.
No caso da eutanásia atualmente o Código Penal brasileiro não criminaliza diretamente, o que faz com que a conduta seja tipificada como homicídio privilegiado, que é aquele em que o autor do delito o faz por motivo de relevante valor social ou moral.
Na prática, essa escolha jurídica faz com que o autor seja punido com um rigor legal menos severo que o autor de um homicídio simples, por exemplo, uma vez que as circunstâncias as quais o crime foi cometido seriam diferentes.
Ou seja: ainda que o país proíba que os profissionais da saúde executem essa prática, a punição legal não tem tanto rigor quanto em outros casos em que ocorre a prática de tirar a vida de alguém.
Entende-se que a decisão pela eutanásia em pacientes terminais, por representar uma última autonomia de vontade, deve ser respeitada. Por isso, não faz sentido a atual criminalização deste procedimento, uma vez que a morte destes pacientes já é algo inevitável e esperado.
Apesar disso, a esse respeito cabe a análise legal do Legislativo e do Judiciário, que decidem sobre uma futura possibilidade ou não dessa liberação.
Por este motivo o presente trabalho tem por objetivo discutir a respeito da proibição da eutanásia no Brasil, os possíveis motivos pelos quais esta prática é condenada no ordenamento jurídico nacional, a legislação estrangeira a respeito da eutanásia e, por fim, tecer uma reflexão crítica a respeito do fato da criminalização atual.
1. Eutanásia: conceito e sua criminalização no Brasil
A eutanásia é um procedimento ainda descriminalizado por poucos países, devido ao debate que provoca moral, filosófico e religiosamente. Para Franco (2021, online), a eutanásia é aquela conduta em que se provoca a morte de uma pessoa antes do previsto pela evolução natural da natureza. Esta morte seria um ato misericordioso, uma vez que tem o condão de evitar que aquela pessoa sofra ainda mais devido ao fato de que sua doença não tem cura:
A eutanásia consiste em provocar a morte de uma pessoa antes do previsto pela evolução natural da doença, um ato misericordioso devido ao sofrimento advindo de uma doença incurável. A forma de causar a morte do paciente pode se dar de maneira ativa ou passiva, pode se dar de um jeito direto ou indireto, ou como um ato voluntário ou não voluntário do paciente.
Apesar de alguns países permitirem, este não é o atual caso do Brasil, uma vez que o país, por meio da Constituição da República, é regido por princípios que norteiam a elaboração e aplicação das leis – inclusive das leis penais.
Em seu artigo 5º, caput, a Constituição da República define que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)”.
Dessa maneira, verifica-se que a Constituição defende o direito à vida por meio de um dos mais importantes títulos do diploma legal: dos direitos e garantias fundamentais.
A proteção ao direito à vida fez com que a legislação brasileira adotasse, dentro do Código Penal a criminalização dos crimes contra a vida, que vão dos artigos 121 a 148 do Código Penal e compreendem os crimes de homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio e as modalidades de aborto.
Como é possível observar, não existe um tipo penal específico para “eutanásia”, uma vez que, como vimos, os crimes contra a vida são apenas os quatro descritos acima.
A eutanásia é definida por Guizzo (2017, p. 18) como a prática pela qual se reduz a vida de um enfermo incurável, de maneira controlada e assistida. A prática não se restringiria unicamente aos pacientes terminais, mas também os recém-nascidos com malformações congênitas, pacientes em estado vegetativo incurável e demais pacientes que apresentem condições semelhantes:
Segundo Goldim (2004, texto digital), a eutanásia ocorre: “[...] quando uma pessoa causa deliberadamente a morte de outra que está mais fraca, debilitada ou em sofrimento. Neste último caso, a eutanásia seria justificada como uma forma de evitar um sofrimento acarretado por um longo período de doença.”.
Deste modo, entende-se que é a prática pela qual se reduz a vida de um enfermo incurável de maneira controlada e assistida por um médico. De acordo com Carvalho (2001), a eutanásia não se restringe aos casos de doentes terminais, englobando também os recém-nascidos com malformações congênitas, os pacientes em estado vegetativo irreversível, entre outros.
Ao presente trabalho interessa-nos a discussão a respeito do crime de homicídio, uma vez que atualmente a ordem jurídica considera a eutanásia como um tipo privilegiado de homicídio, por meio do parágrafo 1º do art. 121:
Homicídio simples
Art. 121. Matar alguem:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Segundo Pedroso (2021, p. 91), o homicídio é um exemplo típico de crime contra a vida, cuja previsão se dá por meio do artigo 121 do Código Penal. Este crime, no entanto, pode ter várias nuances no decorrer de sua execução, e por este motivo estas circunstâncias também são consideradas por lei. Dessa maneira, o crime de homicídio se transforma em outra conduta delituosa – no caso em tela, um tipo de homicídio privilegiado:
Tão comum e frequente, o homicídio ganhou conceito que conseguiu extrapolar o setor jurídico e ganhar o domínio popular. Mesmo o leigo ou jejuno nas letras jurídicas sabe que o homicídio, conhecido no Brasil na forma popular de assassinato (o homicídio qualificado francês), se caracteriza pela eliminação ou destruição proposital da vida humana.
"Matar alguém" é o tipo básico e fundamental do crime, previsto no art. 121, caput, do CP. O delito, entretanto, pode apresentar, no ato do cometimento, variações, nuanças, facetas e motivos diversos. Tais circunstâncias, uma vez consideradas pela lei, quando se acrescem ao exício praticado, adornam o crime, vestindo-o com peculiaridades que alteram sua fisionomia. Essas circunstâncias, consideradas explicitamente pelo diploma penal, podem ou não ocorrer, sem que o crime de homicídio perca sua configuração ou se transmude em outra figura delituosa. Portanto, a presença dessas circunstâncias somente tem o efeito de medir a temperatura do delito e seu campo de influência fica restrito à mera quantificação da sanctio juris. Por isso, são accidentalia delicti, em contraposição às essentialia (v. n. 2.7).
Homicídio privilegiado é o homicídio a que se agregam circunstâncias acidentais que, previstas especificamente para a espécie criminosa, fazem decrescer a reprovabilidade do delito, ostentando o efeito de mitigar e abrandar a pena cominada ao tipo básico e fundamental.
Embasando a argumentação da doutrina, o artigo 59 do Código Penal traz que as circunstâncias entre as quais se foram utilizadas quando do cometimento do crime também serão consideradas para fins de fixação de pena,
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Dessa forma, apesar da proibição da conduta, o médico ou profissional da saúde que cometer o crime de eutanásia estaria amparado por algumas circunstâncias que permitiriam a diminuição de sua pena.
É útil também analisarmos a jurisprudência a esse respeito, uma vez que o ordenamento jurídico também se compõe das decisões judiciais a esse respeito, que auxiliam a nortear a interpretação das leis escritas.
2. A manifestação da jurisprudência sobre a eutanásia
A jurisprudência brasileira não analisa com muita frequência pedidos de eutanásia, uma vez que a interpretação atual é a de que a referida conduta vai de encontro ao direito à vida, defendido expressamente pela Constituição Federal.
Apesar disso, a presente pesquisa verificou interessante Mandado de Injunção que não teve julgamento de mérito julgado por conta da argumentação por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal de ausência de lacuna técnica, o que tornaria o instrumento do Mandado de Injunção inadequado a esse propósito.
Neste tópico, procuraremos analisar o resumo do teor dos argumentos os quais foram submetidos a análise perante o Supremo Tribunal Federal.
Se trata de um mandado de injunção, cujo autor argumentava que o direito à eutanásia era implícito na Constituição da República, advindo da combinação de diversos princípios, os quais serão mais bem trabalhados em momento oportuno.
Feita sua argumentação, o impetrante pleiteava um prazo razoável para análise por parte do Senado com relação à eutanásia no Brasil.
O texto analisado por esta pesquisa trata-se de Agravo Regimental no Mandado de Injunção, obtido através de uma busca no site de jurisprudências do Supremo Tribunal Federal.
A fonte do texto ao qual se pretende analisar é o relatório contido no acórdão que nega provimento ao Mandado de Injunção devido ao argumento por parte dos ministros de falta de lacuna técnica.
O agravante impetrou Mandado de Segurança com pedido de liminar tendo por objetivo a viabilização do direito fundamental à morte digna por parte do impetrante – ou seja, seu objetivo era a legalização da eutanásia:
(...)
“Trata-se de mandado de injunção individual, com pedido liminar, impetrado por George Salomão Leite, tendo por objeto viabilizar o exercício do direito fundamental à morte digna por parte do impetrante.
Sustenta que o “direito fundamental à morte com dignidade encontra-se positivado de forma implícita na Constituição Federal, de modo a requerer um labor hermenêutico para aferir, inicialmente, sua existência, e por consequência, qual o conteúdo do bem jurídico.” (eDOC 1, p.2)
Sua argumentação se baseou no que defendeu como “direito fundamental a morte digna”, tendo sido conceituado pelo agravante como o direito a todo e qualquer ser humano que sofre de enfermidade grave ou incurável e que tenha consciência no momento de sua decisão da morte, desde que este desejo seja manifestado previamente por seu respectivo titular ou por alguém legalmente habilitado para tanto:
Conceitua o direito fundamental a morte digna como sendo (eDOC 1, p.2):
“o direito subjetivo público, assegurado a todo e qualquer ser humano que padece de uma enfermidade grave ou incurável, consistente em decidir o momento e a forma de sua morte, desde que manifestado previamente por seu respectivo titular ou, por alguém legalmente habilitado para tanto.”
Entre os elementos que apoiariam a tese do impetrante estão a dignidade da pessoa humana, a vedação de tortura, tratamento desumano ou degradante, o direito a liberdade e autonomia individual, o direito a integridade física, psíquica e mora, o direito a liberdade religiosa, o dever fundamental de solidariedade por parte de terceiros e o direito à vida. Argumentou que apesar de a Constituição Federal defender o direito à vida, existem exceções a este, como é o caso da decretação de pena capital para crimes de guerra em caso de guerra declarada:
Discorre acerca do art. 5°, §2º, da Constituição Federal, buscando demonstrar que apesar de não se encontrar expressamente positivado no texto constitucional, o direito à morte digna decorre dos seguintes princípios constitucionais: 1. Dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, c/c art. 5°, III, CF); 1.1 Vedação de tortura, tratamento desumano ou degradante (art. 5°, III, CF); 2. Liberdade e autonomia individual (art. 5°, III, CF); 3. Integridade física (art. 5°, III, CF); 4. Integridade psíquica (art. 5°, X, CF); 5. Integridade moral (art. 5°, X, CF); 6. Liberdade religiosa (art. 5°, VI, CF); 7. Dever fundamental de solidariedade por parte de terceiros (art. 3°, I, CF) e; 8. Direito fundamental à vida (art. 5°, caput, CF).
Nesse sentido, articula com os citados princípios constitucionais, apontando o caráter relativo do direito fundamental à vida. Argumenta que (eDOC 1, p.20):
“(...) se a Constituição atribui ao Estado a faculdade de matar (e evidentemente esse ato é contrário à vontade do titular do direito fundamental a vida), mesmo que excepcionalmente, um sujeito que pode estar em pleno gozo de suas faculdades físicas e mentais, porque não permite ao indivíduo a faculdade de morrer para que se tenha paz e sossego, quando acometido por uma enfermidade grave ou incurável? A pergunta que se faz é a seguinte: porque não é dada a possibilidade de morrer, a alguém que padece de uma enfermidade grave ou incurável, cuja continuidade da vida apenas lhe trará mais sofrimentos e dores de toda ordem, mas é dada a possibilidade de matar alguém pela prática de um crime de guerra?
A tese principal, portanto, era a de que o direito fundamental à vida não era absoluto, como se comprova a partir da exceção contida no próprio artigo 5º - casos de guerra declarada. O impetrante argumentou que o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu a respeito da flexibilização do direito à vida quando foi votada a ADPF n. 54, que tratava sobre a compatibilidade constitucional com a interrupção da gravidez de feto anencéfalo:
Percebam, ínclitos Ministros, que não é factível sustentar a idéia de absolutização do direito fundamental à vida humana quando, ao próprio Estado, é permitido suprimir uma vida com a pena capital, mesmo que excepcionalmente. E o que tem-se na presente demanda é, também, uma exceção, mas que busca a promoção da dignidade humana através do morrer.”
Cita trecho do voto do Min. Marco Aurélio, na ADPF nº 54, que tratava de compatibilidade com a atual Constituição da interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, buscando comparar as duas situações. Questiona que “se não há mais vida em potencial, porque não permitir ao indivíduo uma morte segura, já certa, tal qual preconizado pelo Min. Marco Aurélio?” (eDOC 1, p.20)
A ideia defendida pelo impetrante é a de que no caso da compatibilidade da eutanásia com o texto constitucional, o procedimento ficaria condicionado à presença de elemento constitutivo que demonstrasse que existe enfermidade grave ou incurável. A referida permissão traria segurança jurídica aos pacientes e aos profissionais da saúde, sendo necessário o provimento do Mandado de Injunção mediante a omissão legislativa:
Esclarece que o exercício do direito à morte digna, caso declarado pelo STF, ficará condicionado à presença do elemento constitutivo do mesmo, que é o padecimento de enfermidade grave ou incurável.
Conclui sua argumentação consignando que (eDOC 1, p.26): “Os cidadãos brasileiros têm o direito, pois, de morrer com dignidade. Os médicos brasileiros têm o direito, também, de atuar de forma segura e previsível quanto aos cuidados dispensados aos pacientes, de sorte a não serem surpreendidos posteriormente com uma ação penal tipificando a respectiva conduta como ilícita. Portanto, a segurança jurídica visa propiciar tal estabilidade nas relações entre médicos e pacientes, relativos ao denominado processo de terminalidade vital. Por fim, faz-se necessário mais uma vez, para atestar a omissão legislativa, trazer à baila as palavras do eminente Min. Luís Roberto Barroso quando da entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo:
FOLHA – A Constituição brasileira permite a eutanásia e o suicídio assistido?
BARROSO – Eu acho. Mas essa é uma matéria sobre a qual o legislador ordinário deveria pronunciar-se. Não creio que haja impedimento constitucional. (negrito nosso)”
Assim, o impetrante requereu, em sede liminar, que se assegure o direito de decisão pela morte com dignidade. O impetrante afirmou que apesar de não estar acometido por enfermidade grave ou incurável (condição por ele defendida como estritamente necessária para a liberação do pedido de eutanásia), tal situação pode ocorrer devido à imprevisibilidade da vida e aponta que os efeitos do mandado de injunção poderiam ser ampliados a todos os jurisdicionados:
Requer, em sede liminar, que se assegure ao impetrante o direito de decidir pela morte com dignidade. Afirma que, apesar de não estar acometido de nenhuma enfermidade grave ou doença incurável, tal situação pode se alterar diante da imprevisibilidade da vida e aponta a possibilidade de ampliação dos efeitos da decisão proferida em mandado de injunção individual a todos os jurisdicionados.
Argumentou que o perigo da demora, imprescindível a conceção de tutela provisória, resulta da possibilidade de acontecimentos que eventualmente atinjam a sua saúde, o que o colocaria em situação de terminalidade vital. Assim, na hipótese da concretização deste fato, o impetrante não poderia exercer o direito à morte digna que defende em sua tese:
No tocante ao perigo da demora do provimento, entende que este resulta “da possibilidade de acontecimentos que eventualmente atinja a saúde do impetrante, colocando-o em uma situação de terminalidade vital, de modo que, uma vez concretizada a hipótese fática sem a respectiva e prévia prestação jurisdicional, certamente o direito a morte digna não poderá ser exercido ante todo o iter que se deve seguir até a obtenção de uma tutela jurisdicional, que não mais poderá ser eficaz em face do eventual falecimento do impetrante.” (eDOC 1, p.28)
Ao final, requer a determinação de prazo razoável para que o impetrado promova a edição da norma regulamentadora ou, caso assim decida esta eg. Tribunal, que seja deferida a injunção no sentido de serem estabelecidas as condições em que se darão o exercício do direito fundamental à morte digna, na hipótese de não ser suprida a omissão impugnada dentro do prazo determinado, requerendo seja reconhecido, em definitivo, ao impetrante o direito fundamental a morte com dignidade.
(...)
Após a leitura do acórdão e da argumentação empregada, verifica-se que o principal motivo para o não provimento da demanda foi a alegação por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal a respeito da falta de ausência de lacuna técnica.
É que o entendimento dos magistrados se centrou no sentido de que o direito à morte digna argumentada pelo impetrante não é explicitamente previsto pela Constituição Federal, dessa forma não há que se falar em lacuna técnica.
A possibilidade de entrada de Mandado de Injunção, de acordo com a interpretação dos ministros, está condicionada à falta de um direito que se encontra expressamente positivado na Constituição da República – ou seja, se há uma margem para discussão a respeito da existência ou não do referido direito, o instrumento correto para a sua discussão não seria o Mandado de Injunção.
Em última análise, o Judiciário brasileiro parece não prover o pedido por uma questão maior: o intuito de manter a harmonia entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário no que diz respeito ao sistema de freios e contrapesos.
É que a competência para legislar a respeito do tema seria unicamente do Poder Legislativo, apesar de que a interpretação por parte do Poder Judiciário – no presente caso, do Supremo Tribunal Federal, que é a quem cabe a guarda da Constituição – de que é possível a eutanásia em alguns casos seria uma excelente maneira de demonstrar que a permissão desta conduta não feriria a cláusula pétrea contida no art. 5º, caput, uma vez que se trata unicamente de situação excepcional, como vimos no decorrer do texto.
Apesar da legislação brasileira e de sua jurisprudência ainda proibirem a eutanásia, alguns países a permitem desde que seguidas algumas exigências previamente estabelecidas, conforme veremos no tópico seguinte.
3. Eutanásia na legislação estrangeira
Por se tratar de um tema polêmico, a eutanásia não é unanimidade entre todos. Dessa maneira, a prática não é permitida em todos os países, uma vez que essas liberações legais dependem da legislação local e esta última se influencia por fatores como a cultura de um povo, por exemplo.
Apesar disso, alguns países da Europa já permitem que a prática da eutanásia seja feita de maneira legal. Há vários protocolos para que ocorra essa liberação, o que faz com que o Estado tente de todas as formas evitar que a eutanásia ocorra sem a total autonomia de vontade da parte que dela tem interesse.
Nesse sentido, o jornal Estado de Minas publicou matéria recente em que analisa a legislação europeia a respeito da possibilidade de eutanásia nestes países e a maneira que estes encontraram de permitir essa conduta.
Países como a Holanda, Bélgica, França, Luxemburgo, Suíça e Suécia permitem a eutanásia em alguns casos. A Holanda foi o primeiro país a autorizar, sob certas condições, a eutanásia a menores a partir de 12 anos e atualmente anunciou que planeja legalizar a eutanásia para crianças de 1 a 12 anos de idade com doenças terminais. Com relação à Bélgica, a possibilidade de ser feito o procedimento de eutanásia está condicionada a manifestação de vontade por meio de declaração antecipada, válida por 5 anos. Em Luxemburgo, a eutanásia é permitida apenas para idosos com doenças incuráveis:
Na Holanda, desde 2002, é permitido administrar um medicamento que cause a morte quando um paciente o solicita, com pleno conhecimento dos fatos, e se padecer de um sofrimento "insuportável e interminável" devido a uma doença diagnosticada como incurável. É necessária a opinião de um segundo médico.
A Holanda foi o primeiro país a autorizar, sob estritas condições, a eutanásia de menores a partir dos 12 anos. Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal autorizou a eutanásia de pessoas com demência avançada, embora sem capacidades de reiterar sua demanda.
Em outubro, a Holanda anunciou que planeja legalizar a eutanásia para crianças com doenças terminais de um a 12 anos de idade.
A Bélgica também descriminalizou a eutanásia em 2002 sob condições estritamente definidas por lei. O paciente pode manifestar sua vontade em uma "declaração antecipada", válida por cinco anos, ou solicitá-la explicitamente, se tiver capacidade para fazê-lo.
Em fevereiro de 2014, a Bélgica se tornou o primeiro país a autorizar a eutanásia sem limite de idade para crianças com "capacidade de discernimento" que sofrem de uma doença incurável.
Desde março de 2009, a eutanásia é autorizada em Luxemburgo sob certas condições para pacientes idosos com doenças incuráveis. (AS DIVERSAS... 2021)
Em Portugal e na Espanha é permitido que os pacientes recusem tratamento, o que varia entre um país e outro com relação a quando essa interrupção de tratamento seria válida. A Itália, por sua vez, permite o suicídio assistido feito em condições estritas, apesar de atualmente a lei italiana proibir essa conduta. A Suíça permite o suicídio assistido, a eutanásia indireta e a eutanásia passiva (esta última modalidade também permitida pela Suécia). Já a França permite que os pacientes incuráveis ou que tem muito sofrimento possam ser sedados profunda e continuamente até sua morte:
Na Espanha, os pacientes atualmente têm o direito de recusar tratamento. A Câmara dos Deputados votou em dezembro de 2020 em primeira leitura o projeto de lei que reconhece o direito à eutanásia sob estritas condições, finalmente aprovado nesta quinta pelo Senado.
Em Portugal, a interrupção do tratamento só é permitida em alguns casos desesperadores. No entanto, no final de janeiro de 2021, o Parlamento votou uma lei autorizando a "morte medicamente assistida", mas o Tribunal Constitucional pediu uma revisão do texto em meados de março. O Parlamento pode alterar a legislação antes de reapresentá-la.
Na Itália, o Tribunal Constitucional descriminalizou o suicídio assistido (o próprio indivíduo toma a dose letal) em setembro de 2019, em condições estritas, apesar da existência de uma lei que o proíbe.
A Suíça permite o suicídio assistido e tolera a eutanásia indireta (tratamento do sofrimento com efeitos colaterais que podem levar à morte) e a eutanásia passiva (interrupção do dispositivo médico de suporte à vida).
Em 2005, a França instituiu o direito de "deixar morrer", que privilegia os cuidados paliativos, e em 2016 autorizou a "sedação profunda e contínua até a morte", que consiste em colocar para dormir para sempre pacientes incuráveis ou que sofrem muito sofrimento.
Na Suécia, a eutanásia passiva é legal desde 2010. (AS DIVERSAS... 2021)
O Reino Unido permite que o tratamento médico seja interrompido em alguns casos, e as ações judiciais a respeito do suicídio compassivo – que ocorre quando alguém expressou claramente a sua intenção - tem sido cada vez menores. Na Hungria, Lituânia e Eslovênia a realidade é bastante parecida quanto as circunstâncias: os pacientes incuráveis podem recusar tratamento. A Dinamarca também permite que os pacientes declarem por escrito a rejeição à crueldade terapêutica. Por fim, a Letônia evita que se abram processos judiciais referentes a desconexão de pacientes em estado terminal, enquanto a Alemanha e a Áustria permitem a eutanásia passiva. É preciso ressaltar que, apesar dessa possibilidade, os dois países recentemente tiveram decisões judiciais que desfavoreceram essa prática:
No Reino Unido, a interrupção do tratamento em alguns casos foi autorizada em 2002. Desde 2010, as ações judiciais contra pessoas que ajudaram um parente a cometer suicídio compassivo, se ele expressou claramente sua intenção, tornaram-se cada vez menos sistemáticas.
Na Alemanha e na Áustria, a eutanásia passiva é tolerada se o paciente assim o desejar. Em fevereiro de 2020, o Tribunal Constitucional alemão censurou uma lei de 2015 que proibia a assistência ao suicídio "organizado" por médicos ou associações.
Na Áustria, o Tribunal Constitucional decidiu em dezembro que o país viola a lei fundamental se considerar o suicídio assistido um crime, razão pela qual pediu ao governo que legisle antes de 2021 para revogar essa proibição.
Na Dinamarca, desde 1992, todo cidadão pode declarar por escrito sua rejeição à crueldade terapêutica.
A eutanásia passiva é autorizada na Noruega, a pedido de um paciente em estado terminal ou de um parente, se o paciente estiver inconsciente.
Na Hungria, os pacientes de doenças incuráveis podem recusar tratamento, enquanto na Lituânia a interrupção do tratamento para pacientes incuráveis é autorizada, como na Eslovênia.
Na Letônia, não há ações judiciais contra médicos que desconectaram um paciente em estado terminal, para evitar sofrimento. (AS DIVERSAS... 2021)
Após a análise feita na legislação alienígena, verifica-se que a concessão do direito à morte com dignidade é feita a partir da reunião de alguns fatores considerados como imprescindíveis para a sua liberação.
Essa avaliação ocorre a partir da realidade de cada país, pois como se pode verificar, há países em que a possibilidade de eutanásia ocorre de maneira mais livre – ou seja, é possível em mais casos – e em outros países essa possibilidade ocorre apenas sob condições estritas.
Dessa forma, após a verificação dos pressupostos para a conduta na legislação internacional e a impossibilidade de aplicação da eutanásia no Brasil, cabe a reflexão a respeito da colisão do princípio da dignidade da pessoa humana e a defesa ao direito a vida.
4. A dignidade da pessoa humana versus a defesa do direito a vida: Uma reflexão crítica à criminalização da eutanásia
Passada a discussão a respeito da natureza jurídica da eutanásia, verifica-se um aparente conflito de normas constitucionais, que é uma das principais razões pelas quais essa conduta é tipificada como crime.
Após breve pesquisa na legislação, verifica-se que apesar de a Constituição da República defender a vida em seu artigo 5º, existe também a defesa a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, logo em seu artigo 1º:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
As normas constitucionais estão dispostas de maneira não necessariamente harmoniosa entre si, o que significa que alguns princípios podem colidir e será precisa a interpretação destas normas para a devida aplicação da lei.
A questão da eutanásia é um problema jurídico que coloca justamente duas disposições constitucionais em colisão: a dignidade da pessoa humana e o direito à vida.
Segundo Andrade (2021, online), a eutanásia é alvo de veemente contestação, principalmente entre os setores conservadores da sociedade. Estes defensores da criminalização da eutanásia entendem que a prática não respeita a inviolabilidade do direito à vida, ferindo assim os direitos fundamentais e sendo inadmissível perante a Constituição Federal:
A eutanásia é alvo de veemente contestação, sobretudo entre os setores mais conservadores da sociedade. Alguns críticos argumentam que a prática não respeita a inviolabilidade do direito à vida, e que seria, portanto, uma ofensa aos direitos fundamentais e inadmissível à luz do diploma constitucional (TAVARES, 2006, p. 50).
Porto e Ferreira (2017, p.71) esclarecem que o fato de a morte ser um assunto assustador em diversas culturas é uma das causas do tabu sobre o tema da eutanásia. Dessa maneira, explica-se a defesa da vida ainda que ela deixe de valer a pena por conta da perda da dignidade:
A morte é um assunto assustador em muitas culturas. Não saber o que acontece de verdade depois do término da nossa presença mundana causa susto e medo, fazendo com que determinados assuntos virem tabu. O ser humano sempre temeu o desconhecido e, por esse motivo, criou-se uma cultura de manter a vida apesar de qualquer coisa, até quando ela deixa de valer à pena e sua dignidade é perdida.
Os defensores da descriminalização da eutanásia no Brasil argumentam que apesar de ser assegurado o direito à vida, é preciso que esta vida seja vivida com dignidade. Dessa forma, argumentam por uma releitura no direito à vida, considerando também a vontade do enfermo quando da realização da eutanásia. Esta seria um dos seus últimos desejos e poderia lhe assegurar dignidade, vez que se diminuiria a dor de alguém que está com uma doença terminal, por exemplo.
Segundo Vilela Junior e Santos (2020, p. 6) atualmente o Código de Ética Médica veda ao médico a abreviação da vida do paciente, ainda que a pedido deste ou a de seu representante legal. Isso significa dizer que o Código de Ética Médica brasileiro proíbe a realização de eutanásia, conforme se verifica no trecho abaixo descrito:
Há que se observar a presença de diretrizes a respeito da prática da eutanásia no atual Código de Ética Médica, onde consta “in verbis”:
É vedado ao médico: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal
Diante do exposto, percebe-se que há um reforço do ideal contrário à prática da eutanásia no Código citado, onde se vê defeso tal ato, de modo que ao profissional da saúde resta apenas o manuseio de cuidados paliativos, ou seja, ministrar medicamentos e ações a fim de diminuir as dores e sintomas do paciente, para que este sofra o menos possível. Entretanto, sem que tenha a possibilidade de optar pela abreviação de sua existência
Barbosa e Losurdo (2018, p.1) esclarecem que a eutanásia é tratada em legislações estrangeiras, porém este debate ainda não atingiu grande destaque dentro do legislativo e judiciário do Brasil. Os autores verificam, no decorrer de sua pesquisa, que há uma perceptível colisão de princípios constitucionais envolvidos no debate da eutanásia:
No Brasil o atual Código Penal não tipifica a prática da eutanásia, alocando a conduta no art. 121, §1º, homicídio privilegiado. A “morte piedosa” começa a ser tratada pelas legislações e jurisprudência estrangeiras sem que o debate atinja maior destaque nos âmbitos legislativo e judiciário brasileiro. Entre a garantia da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III/CF-88, e a proteção à vida, art. 5º, caput/CF-88, há uma nítida colisão de princípios. Tendo-se por base o direito comparado e por plano de fundo o julgamento da ADI 3.510 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro e do Projeto de Lei nº 236/12 - Novo Código Penal -, o qual tipifica a prática da eutanásia, analisa-se a possibilidade de não imputação de pena ao agente da eutanásia frente à interpretação constitucional
Para Santos e Paganini (2022, p. 185), apesar da mudança do tempo e o avanço da medicina, ainda existem casos em que a morte é solução para cessar o sofrimento do paciente. O ordenamento jurídico, nesse sentido, se mostra conflituoso quanto a possibilidade de morte digna do enfermo, uma vez que não há atenção a este direito. Os autores defendem que, apesar da Constituição Federal defender com rigor o direito à vida, não há uma real preocupação com relação a maneira pela qual essa vida será vivida, ou seja, se será uma vida com dignidade:
Mesmo os tempos mudando e a medicinam evoluído, ainda se chega a determinado ponto em que a morte se apresenta como solução para cessar o sofrimento do paciente. Diante disso, o nosso ordenamento jurídico se mostra em conflito com os direitos do enfermo, já que eles acabam gerando outro direito, no caso, o da morte digna. Por conseguinte, se de um lado está o direito à vida, do outro está o da vida com dignidade, ambas previstas na Constituição Federal de 1988. Entretanto, esse último direito ainda está sob a inexistência de uma norma reguladora. Salienta-se que nos dias atuais é possível perceber uma extrema proteção do direito à vida, mas, muitas vezes, a vida a ser protegida é indigna, ou seja, a pessoa está viva porque não tem a opção de cessar seu sofrimento.
A possível resolução desta controvérsia deve vir, inicialmente, por meio da ponderação das normas constitucionais. Segundo Guedes (2012, online), apesar de não ser desejada, a colisão entre normas constitucionais é perfeitamente possível, e trata-se de um dos mais graves problemas da teoria jurídica contemporânea. É que devido a própria característica das normas constitucionais, não seria possível uma solução absoluta em favor de uma norma ou em desfavor de outra norma constitucional:
A possibilidade de que normas constitucionais possam entrar em colisão tem conformado um dos mais graves problemas da contemporânea teoria jurídica. Como se sabe, normas constitucionais, especificamente as advindas do processo constituinte originário, não guardam hierarquia entre si (princípio da unidade da Constituição) e, portanto, não permitiriam, em caso de colisão, uma solução de precedência a priori ou absoluta em favor de uma ou de outra norma. Por sua vez, alegando ausência de racionalidade do método, muitos têm buscado evitar a ponderação de bens como forma de solucionar a colisão de normas constitucionais, nomeadamente entre direitos fundamentais, negando a existência da própria colisão.
Segundo o que pretendo demonstrar, negar a possibilidade de colisão e, por consequência, a ponderação entre normas constitucionais é, entretanto, um caminho intelectual que apenas se desenvolve ao custo de um resultado muito mais arbitrário do que os seus defensores admitem e, o que é pior, com um déficit de argumentação e fundamentação não presentes na ponderação que eles recusam, entretanto, por um suposto déficit de racionalidade
A esse respeito, cabe salientar que o caput do artigo 102 da Constituição da República deixa claro que: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (...)”.
Dessa maneira, é possível inferir que o Supremo Tribunal Federal poderia decidir a esse respeito, haja vista que a seus ministros cabe a última interpretação a respeito das normas constitucionais.
O saneamento do conflito entre os preceitos constitucionais do direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana pode vir destes ministros, assim como do Poder Legislativo.
Infelizmente a mora legislativa ainda não apreciou projetos de lei que possibilitem a morte digna, o que pode ser explicado pela falta de interesse de grupos conservadores na sua regulação, por exemplo.
CONCLUSÃO
A eutanásia no Brasil é tema polêmico, uma vez que apesar do Estado ser laico, este é fortemente influenciado pelas religiões de cunho cristão, as quais valorizam a vida como o bem mais precioso que se tem – ainda que esta vida não seja digna, diga-se de passagem.
Sua regularização, até o momento, não é interessante para os grupos políticos vigentes. O Poder Judiciário também não se manifesta a respeito, tendo em vista, para além das alegações técnicas, a manutenção da harmonia entre os três poderes.
Ante o exposto, verificou-se que no Brasil as principais razões pelas quais não se permite a eutanásia advém de motivos religiosos e conservadores. Também há uma colisão direta entre os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à vida.
Essas convicções políticas e religiosas fazem com que seja conveniente manter a postura no debate com relação ao direito a vida prevalecer sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que a vida daquela pessoa no estado de doença terminal já lhe cause muito sofrimento físico e psicológico.
Nesse sentido, critica-se a criminalização da eutanásia, vez que o presente impasse jurídico prejudica a autonomia individual dos pacientes que possuem doenças terminais e causa sofrimento a estes, uma vez que o direito à vida deve ser diretamente atrelado a dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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ANDRADE, Otavio Morato de. Status legal da eutanásia e ortotanásia no Brasil. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81213/status-legal-da-eutanasia-e-ortotanasia-no-brasil
LARA, Marcelo Bicalho. Crítica à criminalização da eutanásia e do suicídio assistido no projeto de lei do Senado nº 236/12. Brasil Escola. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/critica-criminalizacao-eutanasia-suicidio-assistido-no-projeto-lei-senado-23612.htm
FRANCO, Sandra. Eutanásia: a importância de discutir a morte com dignidade. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-21/franco-eutanasia-importancia-discutir-morte-dignidade
VILELA JUNIOR, Pedro Amaral; SANTOS, Savio Gonçalves dos. Eutanásia no Brasil e a dicotomia entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Disponível em: https://repositorio.uniube.br/bitstream/123456789/1623/1/2020.2%20-%20TCC%20Pedro%20Amaral%20Vilela%20Junior.pdf
SANTOS, Aline Borges dos; PAGANINI, Juliana. A eutanásia no Brasil: um estudo da (im)possibilidade de aplicação em pacientes com câncer, em fase terminal, tendo em vista o princípio da dignidade humana. Revista Estado, Política e Direito: Políticas Públicas, Cidadania e Direitos Humanos, Volume IX. Disponível em: http://repositorio.unesc.net/bitstream/1/8230/1/A%20eutan%C3%A1sia%20no%20Brasil.pdf
GUIZZO, Retieli. A eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: https://www.univates.br/bdu/bitstream/10737/1745/1/2017RetieliGuizzo.pdf
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
PEDROSO, Fernando de Almeida. Homicídio Privilegiado. Disponível em: https://vlex.com.br/vid/homicidio-privilegiado-695080933
GUEDES, Néviton. A ponderação e as colisões de normas constitucionais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-dez-10/constituicao-poder-ponderacao-colisoes-normas-constitucionais
BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
PORTO, Carolina Silva; FERREIRA, Clécia Lima. Eutanásia no Direito Penal: os aspectos jurídicos do Homicídio Piedoso. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/IF-dir_v.05_n.02.06.pdf
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (plenário). AG.REG. NO MANDADO DE INJUNÇÃO 6.825 DISTRITO FEDERAL. Agravo Regimental No Mandado De Injunção. Direito À Morte Digna. Inadequação Da Via Eleita. Ausência De Lacuna Técnica. Inexistência De Efetivo Impedimento Do Exercício Do Direito Alegado. Inadmissibilidade Do Writ. Desprovimento Do Agravo. Agravante: GEORGE SALOMAO LEITE. Agravados: SENADO FEDERAL, PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749934134 Acesso em 12 set 2022
AS DIVERSAS legislações na Europa sobre a eutanásia. Estado de Minas, Mar 2021. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/03/18/interna_internacional,1248030/as-diversas-legislacoes-na-europa-sobre-a-eutanasia.shtml Acesso em 11 set 2022
Graduanda do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana de Manaus – FAMETRO Manaus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Fernanda Barreto. A proibição da eutanásia à luz do princípio da dignidade da pessoa humana: uma reflexão crítica a criminalização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2022, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60147/a-proibio-da-eutansia-luz-do-princpio-da-dignidade-da-pessoa-humana-uma-reflexo-crtica-a-criminalizao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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