RESUMO: O presente estudo tem como principal objetivo, analisar a aplicação do princípio do melhor interesse da criança no âmbito do reconhecimento da paternidade socioafetiva. E especificamente, descrever a relevância no ordenamento jurídico da garantia da filiação socioafetiva; identificar o modelo de estrutura familiar justificado pelo resguardo do melhor interesse do menor; e pontuar a importância da manutenção ao afeto e carinho familiar frente os laços consanguíneos e sua aplicabilidade na lei e jurisprudência. A metodologia de pesquisa aplicada ao estudo trata-se da abordagem dedutiva, na qual, se extrai o conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis a “hipóteses concretas”. A filiação socioafetiva consiste na filiação, ou seja, a relação estabelecida entre pais e filhos, baseada em laços de afetividade, não havendo hereditariedade. Logo, o princípio do melhor interesse da criança passou a ser núcleo de afetividade, amor, companheirismo e assim perdeu sua função econômica. É, entretanto um princípio bem relativo, o que é melhor para a criança, visto que, cuidar do interesse do menor é cuidar da sua formação moral, social e psíquica, ou seja, buscar investigar a situação do menor garantindo o seu real bem-estar. Quando se respeita o direito de paternidade, seja ele biológico ou afetivo, torna-se plenamente viável a existência de ambos os tipos de vínculo, permitindo que os vínculos originários do mundo de fato sejam reconhecidos na esfera jurídica. Assim, conclui-se que o direito de família deve ter como fundamento do princípio do melhor interesse.
PALAVRAS-CHAVE: Filiação Socioafetiva. Paternidade. Princípio do Melhor Interesse.
ABSTRACT: The main objective of this study is to analyze the application of the principle of the best interest of the child in the context of the recognition of socio-affective paternity. And specifically, to describe the relevance in the legal system of the guarantee of socio-affective affiliation; identify the model of family structure justified by the protection of the best interests of the minor; and to point out the importance of maintaining family affection and affection in the face of blood ties and its applicability in law and jurisprudence. The research methodology applied to the study is the deductive approach, in which knowledge is extracted from general premises applicable to “concrete hypotheses”. Socio-affective affiliation consists of filiation, that is, the relationship established between parents and children, based on bonds of affection, without heredity. Soon, the principle of the best interests of the child became the nucleus of affection, love, companionship and thus lost its economic function. It is, however, a very relative principle, which is best for the child, since taking care of the minor's interests is taking care of their moral, social and psychic formation, that is, seeking to investigate the minor's situation, guaranteeing their real well-being. be. When the right of paternity, whether biological or affective, is respected, the existence of both types of bond becomes fully viable, allowing bonds originating in the world to be recognized in the legal sphere. Thus, it is concluded that family law must be based on the principle of the best interest.
KEYWORDS: Socio-affective Affiliation. Paternity. Best Interest Principle.
1 INTRODUÇÃO
O afeto familiar é protegido pela Constituição Federal de 1988, sendo um direito fundamental, bem como é protegido pelo Código Civil em diversos de seus institutos (BRASIL; 1988; BRASIL; 2002). Por ser agasalhado pela Carta Magna, o afeto é considerado como direito constitucional de eficácia horizontal, suscetível de ser invocado ao Estado em face de outrem.
Nesse sentido, Granato (2014) afirma que, o afeto é o sentimento maior que garante o agrupamento humano por um laço mais forte do que uma simples conjunção de interesses e assim dá consistência aos demais direitos humanos da família. Sendo, um manto de ternura e carinho, de dedicação e empenho, mas também de responsabilidade para com quem se cativa (GRANATO, 2014).
De tal forma, a paternidade socioafetiva trata-se do reconhecimento jurídico com base no afeto, sem que haja vínculo de sangue entre as pessoas, ou seja, quando um homem e/ou uma mulher cria um filho como seu, mesmo não sendo o pai ou mãe biológica da criança ou adolescente.
Partindo a premissa têm-se a seguinte indagação: “Como o reconhecimento da paternidade socioafetiva está condicionado à observância do melhor interesse da criança?”.
Compreender sobre as diferentes estruturas familiares adotadas no ordenamento jurídico brasileiro é um fator fundamental para identificar a filiação socioafetiva como alternativa de atingir o melhor interesse do menor. Considerando que, a filiação socioafetiva, no entanto, corresponde a fatos óbvios e deriva de direitos de filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família para cumprir suas funções sociais fez com que as verdades biológicas passassem a ter um papel secundário. Logo, revela-se a constância social da relação entre pais e filhos, mostrando que a existência de uma relação pai-filho não é um simples fato biológico ou presunção legal, mas fruto da convivência afetiva.
A temática justifica-se pela relevância acadêmica e social, visto que, com o advento da Constituição Federal de 1988 houve o reconhecimento declarado da filiação socioafetiva independentemente da paternidade/maternidade biológica da criança ou adolescente. Este vínculo afetivo, caracterizado pelo relevante valor jurídico, tem assolado diversos núcleos familiares, pela conjectura dessa “responsabilidade extramatrimonial”.
Ainda nesses parâmetros, é notado que, a relações geradas pela filiação socioafetiva tendem a ser tão relevantes, fortes e concretas, como aquelas já estabelecidas pela condição sanguínea entre pais e filhos, afinal, busca-se, com este diferente núcleo familiar, ponderar e assegurar o melhor interesse do menor. Assim, diante do neoconstitucionalismo e da irradiação de suas normas sobre o direito de família, houve a despatrimonialização da família, ou seja, o rompimento com uma tradição que apenas enxergava a família sob o viés patrimonial, reconhecendo que o afeto, carinho e solidariedade recíproca no seio da família são mais valiosos ao menor do que somente o pagamento de alimentos pelos genitores.
Além disso, o que se pondera é que, se tratando do reconhecimento ser realizado com um menor, o abandono possui um valor jurídico, pois viola o direito fundamental ao afeto e o poder judiciário tem reconhecido e resguardando o melhor interesse do menor ao considerar a filiação socioafetiva como instrumento adequado de poder familiar.
Portanto, o presente estudo tem como principal objetivo, analisar a aplicação do princípio do melhor interesse da criança no âmbito do reconhecimento da paternidade socioafetiva. E especificamente, descrever a relevância no ordenamento jurídico da garantia da filiação socioafetiva; identificar o modelo de estrutura familiar justificado pelo resguardo do melhor interesse do menor; e pontuar a importância da manutenção ao afeto e carinho familiar frente os laços consanguíneos e sua aplicabilidade na lei e jurisprudência.
A metodologia de pesquisa aplicada ao estudo trata-se da abordagem dedutiva, na qual, parte da opinião geral para alcançar percepção particular, ou seja, extrai o conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis a “hipóteses concretas” (MARCONI; LAKATOS, 2019). Tomando ainda por referência, pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias (doutrinas em geral, artigos científicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado, etc.), além de documentação oficial (projetos de lei, mensagens, leis, decretos, súmulas, acórdãos, decisões, etc.).
2 CONCEITUANDO FAMÍLIA
O poder familiar não possui conceituação no código civil (BRASIL, 2022) por se tratar de um vocábulo bem amplo, que cabe inúmeros sentidos e formas de interpretá-lo, é difícil conceituar de forma simples, tendo em vista a constante evolução social.
Assim, “o vocábulo família abrange todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem” (GRISARD FILHO, 2009, p. 37), portanto, de um tronco ancestral comum, bem como as unidas pela afinidade e pela adoção. Compreende os cônjuges e companheiros, os parentes e os afins.
Ocorre que o conceito de família tem diversos aspectos, resultando de alta significação psicológica, sociológica e jurídica. No entanto os psicanalistas trazem a seguinte observação:
Entre todos os grupos humanos a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de materna (GRISARD FILHO, 2009, p. 39).
Já, quanto ao aspecto sociológico, vale ressaltar sobre a impossibilidade da delimitação de um conceito único de família, nos seguintes termos:
De acordo com Vasconcellos (2014, p.19), em uma definição sociológica, a família contém uma categoria específica de "relações sociais reconhecidas e, portanto, institucional". Nesse conceito, a família “não necessariamente atende a uma definição legal estrita”.
No mesmo sentido, pode-se interpretar que a família é “um grupo fechado de pessoas, composto pelos genitores e filhos, podendo haver a inclusão de outros parentes, unificados pela convivência e comunhão de afetos, em uma só economia” (PEREIRA, 2010, p.14) Todavia, um dos seus principais alicerces são os vínculos, o afeto propriamente caracterizado, como entende parte da doutrina ao destacar que “é formada por duas estruturas: os vínculos e os grupos, sendo que é a partir desses vínculos que surgem os grupos” (FIUZA, 2008, p. 35).
A sociedade do século XXI é uma sociedade diversificada, muito complexa, e diferenciada; está em evidência que para haver uma formação de família não é preciso ter exclusivamente homem e mulher, pai e mãe, más apenas pessoas com um único objetivo de conjugar suas vidas intimamente, por um afeto que as uni. Barros (2002, p. 09), chega a afirmar que:
O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e estreito, tão nítido e persistente – que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir família, Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente [...] (BARROS, 2002, p.09).
Cada estrutura familiar se apresenta de uma forma distinta, tem cada uma sua individualidade não se trata de um grupo igualitário, mas sim, distinto. A estrutura familiar se apresenta de um modo distinto, e são essas variantes que fazem o indivíduo decidir o modelo familiar que lhe parecer mais coerente com suas escolhas e ideologia, sendo um aspecto central e adequação com “o LAR: lugar de afeto e respeito entre seus membros” (DIAS, 2016, p. 33).
O direito de família está obrigatoriamente relacionado ao afeto familiar, pois a base do afeto familiar é o vínculo de parentesco, que é a materialização da família, tornando esse vínculo irrefutável. As famílias são fortalecidas quando o amor fala por elas. Dias (2016, p. 72) afirma que “o atual princípio norteador do direito de família é o princípio da emoção, porque a emoção tem valor jurídico”. Isso se reflete nas muitas decisões em que os critérios emocionais ficam lado a lado com os critérios biológicos.
Logo, a característica principal e fundamental da família agora passa a ser o afeto. Dessa forma, leva-se em consideração o seu fundamento, devendo ter um único objetivo, a plena realização do ser humano, a fim de consumar o bem-estar de seus membros.
2.1 Filiação
A filiação é um instituto do direito de família que trata das relações entre pais e filhos, ou seja, entre ascendentes e descendentes, o que, assim como o instituto da família, sofreu modificações e possui hoje um sentido mais amplo, incluindo filhos adotados, gerados por inseminação artificial, afetivos e etc.
Anteriormente a Constituição Federal de 1988, havia distinção entre filhos legítimos, concebidos no casamento, ilegítimos, concebidos fora do casamento e adotados. Os dois últimos não eram reconhecidos como filhos e por isso, tinham direitos diferentes dos outros. Não tinham, por exemplo, direitos sucessórios e alimentares (FARIAS; ROSENVALD, 2016).
Essa situação fazia com que, em prol do matrimônio, os filhos não fossem reconhecidos e sofressem discriminação, ou seja, os filhos eram responsabilizados pelos atos dos pais, de certa forma, culpados por não serem legítimos. Os filhos ilegítimos não tinham direito a identidade, a alimentos, herança, simplesmente em razão da forma que foram concebidos, o que, entretanto, não foi causada por eles e assim, prejudicava-se o filho, o menor que necessita de proteção e auxílio e beneficiava-se o pai, que não sofria as devidas consequências de seus atos (DIAS, 2016).
Tais regras foram mudando aos poucos, com novas leis e princípios, por exemplo, a possibilidade de dissolução do casamento e a lei do divórcio (DIAS, 2016), mas foi a Constituição Federal de 1988 que colocou fim a isso e estabeleceu a igualdade entre os filhos, através do art. 227, § 6º, já mencionado, sendo preceito da Convenção de Interamericana de Direitos Humanos. A ideia de que eram apenas filhos os concebidos matrimonialmente eram nitidamente patrimonialista e retrógrada, visando a manutenção dos bens entre a família “moralmente” estabelecida (FARIAS; ROSENVALD, 2016).
Segundo Venosa (2002), o Código Civil focava-se na família legítima, baseada no casamento, pois a família era tipicamente matrimonializada, patriarcal e biológica, entretanto novos preceitos surgiram na família e assim, definindo igualdade na filiação, princípio constitucional do direito de família e previsto no artigo 1596 do atual Código Civil, vide abaixo.
LEI Nº 10.406 DE 10 DE JANEIRO DE 2002 - Institui o Código Civil.
Das Relações de Parentesco
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (BRASIL, 2002, NÃO PAGINADO).
Filiação, segundo Lôbo (2012, p.101), é “a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por inseminação artificial heteróloga”. Pode ser biológica ou não, mas sem nenhum tipo de discriminação, tornou-se um conceito único sem demais distinções.
De modo simplificado e biologicamente falando, é a descendência direta em primeiro grau, entretanto, é mais adequado dizer que é a relação jurídica entre pais e filhos, que gera a maternidade e paternidade. Não está restrita a transmissão genética, pois o nascimento do filho não necessariamente coincide com a relação jurídica, pode haver o laço biológico sem o vínculo jurídico e da mesma forma, o contrário. Para tanto, utiliza-se a presunção de paternidade e o reconhecimento judicial ou voluntário.
Ainda que tenha sido estabelecida a igualdade entre os filhos, o Código Civil ainda define a presunção de paternidade aos filhos de pais casados e a não presunção em caso contrário. O meio para se reconhecer os filhos fora do casamento é através da voluntariedade ou ação judicial.
2.2 Paternidade
Com a promulgação da ordem constitucional em 1988, a família passou a ser responsável pelo desenvolvimento de seus membros, pois o afeto familiar está extremamente relacionado às relações familiares (BRASIL, 1988). Portanto, a relação entre pai e filho não se limita mais à sua origem biológica, pois passou-se a ter a relação socioemocional reconhecida como base para o desenvolvimento e formação da personalidade da criança. Nesse sentido, é importante enfatizar que uma vida familiar saudável pode garantir que os filhos sejam moral, mental e fisicamente saudáveis (PETRUCCI; BORSA; KOLLER, 2016).
O artigo 227 da Constituição Federal, bem como o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), atribui aos pais e responsáveis o dever geral de cuidado, criação e convivência familiar de seus filhos, bem como de preservá-los de negligencias, discriminação, violência, entre outros. Assim, não há como obrigar um pai a amar um filho, mas a legislação lhe assegura um direito de ser cuidado. Os responsáveis que negligenciam ou são omissos quanto ao dever geral de cuidado podem responder judicialmente por terem causado danos morais a seus próprios filhos.
Apesar da relevância do instituto da filiação socioafetiva no direito brasileiro percebe-se que esta noção exerce apenas um papel secundário, haja vista o tratamento legislativo apresentar lacunas, pois “a paternidade em que se fundamenta o direito positivo não alcança a realidade de diversos núcleos familiares.” (DELINSKI, 2003, p. 81).
Portanto, uma vez inserido no sistema, a noção de filiação socioafetiva faria cessar a presunção pater is est, determinando uma paternidade diversa, baseada no afeto (BOEIRA,1999).
3 RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
A afetividade é um ato de livre vontade, construído na convivência familiar e no exercício das funções parentais, é um princípio do direito de família constitucional, conforme artigos 226 e 227 da Constituição Federal, em que os laços afetivos, psicológicos, pessoais e emocionais valem mais que apenas a hereditariedade. A família é o ambiente de sua efetivação e instrumento de realização pessoal e da dignidade da pessoa humana.
Considerando que, as relações de parentalidade podem ser consideradas construções sociais, atravessadas por questões de gênero e de poder, sendo entendidas socialmente sob os conceitos de paternidade e maternidade, para o exercício saudável da parentalidade, é necessária uma relação potencializada entre pais e filhos no sentido de fornecer espaço de participação familiar à prole, através de relações compreensivas e do exercício construtivo e equilibrado da parentalidade (SCHOLZ et al., 2015; SANTOS et al., 2022).
A filiação socioafetiva consiste na filiação, ou seja, a relação estabelecida entre pais e filhos, baseada em laços de afetividade, não havendo hereditariedade. Farias (2016, p. 35) define: “pai afetivo é aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai (função)”. Ser mãe ou pai consiste em uma função protetora, assistencial, educacional e etc. que não precisa partir necessariamente de uma pessoa com os mesmos genes, pois é uma função de livre decisão e repleta de sentimentos pessoais.
Do ponto de vista psicológico, a capacidade dos pais em exercer a parentalidade segura e responsável passa pelas condições de atender às necessidades de seus filhos e promover seu desenvolvimento sem provocar prejuízos. Contudo, a filiação socioafetiva se caracteriza pela posse de estado de filho, que consiste num ato de vontade que estabelece os laços afetivos. A posse de estado é quando a situação jurídica não condiz com a verdade real, de modo que na filiação, acredita-se que uma pessoa é pai/mão da outra ainda que juridicamente não seja, mas é através dessa posse que se cria os laços e se efetiva a paternidade afetiva (DIAS, 2016).
Em relação a posse do estado de filho, ela corresponde à “relação de afeto, íntimo e duradouro, exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança, que se comportam e se tratam como pai e filho, exercitando os direitos e assumem as obrigações que essa relação paterno-filial determina” (TARTUCE, 2017, p. 53).
Assim sendo, o oficial de registro deve estar atento à comprovação da posse do estado de filho, mais especificamente, no tocante aos elementos do tratamento e da fama que, aliados ao requisito da manifestação de vontade, caracterizam a filiação socioafetiva.
Conforme Pereira e Alarcão (2015), a capacidade parental diz respeito ao que é possível ao prestador de cuidados fazer e refere-se à estrutura que permitirá (ou dificultará) a atualização e desenvolvimento das competências parentais, tais como: a vinculação, a empatia, os modelos de cuidado e capacidade de participar da vida comunitária, remetendo a uma dimensão evolutiva. Nesse contexto, tanto o pai quanto a mãe possuem responsabilidade afetiva com o filho, sendo passiveis de regulação e avaliação posterior ao desenvolvimento.
3.1 O pluralismo familiar e o princípio do melhor interesse do menor
A Constituição Federal revolucionou o direito de família, pois ampliou o conceito de família e assim, permitiu o reconhecimento de novas entidades familiares, o que na verdade já era presente na realidade brasileira. Passou a proteger qualquer manifestação afetiva e não apenas a família formada pelo casamento (FARIAS, 2016).
Essa revolução se deu pelo fato da CF/88 não elencar mais apenas a família formada por matrimônio, mas também pela união estável e monoparentais, conforme artigo 226, §§3º e §4º, sendo estes apenas exemplos, o que dá abertura para novas famílias. Há estudos que demonstram que mais de um quarto da sociedade brasileira vivo em uma família monoparental, chefiada por mulheres solteiras, viúvas ou separadas. É necessário hoje uma nova visão sobre o modelo de estrutura da entidade familiar (CARVALHO, 2015).
O princípio do pluralismo das entidades familiares quer o respeito e reconhecimento das diversas possibilidades de arranjos familiares sem nenhum tipo discriminação visto que a família é instrumento de desenvolvimento humano que não pode ser moldado de forma engessada e sofrer repressões (FARIAS; ROSENVALD, 2015). Logo, em respeito a esse princípio é que as leis, a jurisprudência e a sociedade devem respeitar e acolher as diversidades familiares.
O princípio do melhor interesse da criança surgiu com a evolução da família, que mudou de estrutura e passou a ser núcleo de afetividade, amor, companheirismo e assim perdeu sua função econômica. Tornou-se ambiente de valorização e dignidade do homem, o que deu abertura para a que os direitos do menor ganhassem destaque (PEREIRA, 2006).
A criança e ao adolescente encontram em situação de fragilidade, pois estão em processo de amadurecimento e formação e por isso o direito tem o dever de protegê-los, razão da existência desse princípio. É, entretanto um princípio bem relativo, o que é melhor para a criança pode variar e os princípios são geralmente abrangentes e circunstanciais, logo é melhor analisado em situações concretas que podem mudar a ideia de melhor (PEREIRA, 2006).
Esse princípio é resguardado pela Constituição Federal em seu art. 227, pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), especialmente em seus art. 3º, 4º e 6º e pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Estabelecem no geral, a proteção à criança e o adolescente, a prioridade de seus interesses, a garantia de seus direitos e necessidades básicas e o dever dos pais, da família, da sociedade, do Estado perante eles. Interessante citar que o princípio do melhor interesse da criança ilumina a investigação das paternidades e as filiações socioafetivas e assim, outros institutos também (LÔBO, 2012).
Cuidar do interesse do menor é cuidar da sua formação moral, social e psíquica, ou seja, utilizar esse princípio em todas as áreas e aspectos da vida do menor e buscar investigar a situação do menor garantindo o seu real bem-estar.
4 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA FRENTE A PRIMAZIA DO AFETO E CARINHO DO MENOR
De acordo com Oliveira (2018, p. 24) a “paternidade socioafetiva, é a prova da força que o afeto tem na vida dos indivíduos, é o vínculo gerado entre pai e filho, independente da consanguinidade”. Tal afirmativa se torna evidente quando se confirmou a constituição de uma família, desde que houvesse afeto, não importa de onde viesse ou de que forma pudesse ser constituída.
Ainda de acordo com o Oliveira (2018), o afeto surge como um novo paradigma no direito de família por estar intimamente relacionada aos fundamentos do núcleo familiar. Para as famílias, a relação pais-filhos também passou a ser vista na perspectiva do afeto familiar, resultando na despaternização da relação pais-filhos, que extrapola o código genético. A relação pais-filhos não é apenas um fato natural, mas também uma cultura, como o ditado popular “o pai é quem cria” (OLIVEIRA, 2018).
Em outros termos, o pai afetivo é aquele que educa, cuida, dá amor, está presente na vida da criança, assume responsabilidades, atua efetivamente com a figura paterna, é o pai que a criança vê a imagem da confiança, especialmente a imagem do amor. Em outras palavras, a relação afetiva pais-filhos é a relação que a vida cotidiana estabelece com a criança de forma cultural e psicológica.
O pai afetivo é aquele que ocupa na vida do filho, o lugar do pai (a função). É uma espécie de adoção de fato. É aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amor…ao filho, expõe o fato íntimo da filiação, apresentando-se em todos os momentos inclusive naqueles em que se torna a lição de casa ou verifica o boletim escolar. Enfim, é o pai das emoções, dos sentimentos e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos que sobre ele se projetam. Em suma, com base em tudo o que vimos anteriormente, entendemos que a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas (NOGUEIRA, 2015, p. 119).
A filiação afetiva é regulamentada implicitamente pela Constituição Federal e pelo Código Civil e na Constituição Federal de 1988, no artigo 226, § 6 que afirma que todos os filhos, independentemente de sua origem, são iguais, mesmo na Carta Magna há outras cláusulas que se referem ao afeto, como o § 226, § 3, 4 e 7. O Código Civil, em seu artigo 1.593, regulamenta o parentesco afetivo, a relação de parentesco é natural ou civil, conforme seja consanguínea ou de outras origens (BRASIL, 2002).
No entanto, é importante destacar que no Código Civil de 2002 existem outras referências relacionadas às relações socioemocionais pais-filhos, a saber:
a) Art. 1.593: Descreve o parentesco como natural ou civil, pois é resultado de consanguinidade ou outras origens. Portanto, o relacionamento de parentesco primário é configurado como um relacionamento pai (ou mãe) filho. Ao contrário dos persistentes equívocos da jurisprudência, inclusive do STJ, a norma é inclusiva na medida em que não atribui a primazia da origem biológica à paternidade de qualquer origem adotada com igual dignidade.
b) Art. 1.593: Reproduz a regra constitucional de que os filhos são iguais independentemente de serem de antigas relações jurídicas, ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. A Seção 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação, inaugurando um paradigma de abertura e inclusão.
c) Art. 1597: Reconhecimento de relação por inseminação artificial heteróloga, ou seja, o uso de sêmen de outro homem, desde que obtida autorização prévia do marido da mãe. A origem da criança, em relação ao pai, é parcialmente biológica, pois o pai é inteiramente um parceiro emocional e nunca pode ser contrariado por uma investigação mais aprofundada da relação pai-filho.
d) Art. 1.605: Se houver provas do estado de filiação, ou quando for feita uma presunção com base em fatos comprovados, e devotos do estado de pertença. As possibilidades para a segunda hipótese são amplas, pois em cada caso ficam de fora outras provas da situação factual. Na experiência do Brasil, tanto os filhos adotivos quanto as adoções de fato, também conhecidas como adoções à brasileira, são feitas por meio de declarações falsas ao estado dependente sem seguir o processo judicial. dados públicos.
e) Art. 1614: ambas normas mostram que reconhecer a subordinação não é uma imposição da natureza ou teste de laboratório, pois concedem a liberdade de rejeitá-la. A primeira norma torna a validade do reconhecimento dependente do consentimento do filho mais velho, e se não o fizer, mesmo biológico, não será reconhecido. A segunda regra permite que os filhos menores contestem o reconhecimento da paternidade dentro de quatro anos após atingirem a idade adulta. Se o filho não quiser o pai biológico, e o registro não for promovido após seu nascimento, poderá ser recusado o exercício de sua liberdade e autonomia. Portanto, os registros de nascimento manterão apenas o nome da mãe. Portanto, fica claro que este artigo não se aplica ao pai registrado cujo filho foi concebido em união estável ou união estável, uma vez que a declaração ao registro público de nascimento não atende ao conceito estrito de teste de paternidade.
Conforme descrito por Lôbo (2017), o Brasil avançou muito nas doutrinas jurídicas especializadas denominadas paternidade socioemocional, entendida como parte integrante da vida familiar, independentemente de serem filhos consaguíneos ou não. Porém, essa questão deve ser vista sob dois aspectos: um, é a integração final dos indivíduos no grupo social familiar; outros, a relação afetiva baseada no tempo entre quem assume a paternidade e o filho.
Destarte, a conexão socioemocional é vista como uma construção da realidade factual; o pai não é apenas aquele que transmite a carga genética, ele é quem exerce esse papel no cotidiano. A respeito disso:
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL. ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA. 1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativas à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família. 4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. 5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados. 6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado alegrar a própria torpeza em seu proveito (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica.7. Recurso especial provido. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA STJ – RECURSO ESPECIAL: REsp 1087163 RJ 2008/0189743-0) (grifo nosso).
De acordo com o supracitado Recurso Especial nº 1087163/2008, a filiação não é apenas uma razão para fornecer alimentos ou compartilhar itens genéticos. Trata da formação de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na vida familiar da infância e adolescência.
Portanto, a relação pais-filhos é um direito e uma obrigação, que se baseia na relação afetiva e assume a obrigação de cumprir os direitos básicos dos indivíduos, quais sejam vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e vida familiar (artigo 227 da Constituição). É o pai que assume essas responsabilidades, mesmo que não seja pai.
5 O ABANDONO AFETIVO, SEUS RESULTADOS E IMPLICAÇÕES PARA O MENOR
É imprescindível o reconhecimento de que a dor do abandono possui sim valor jurídico, sendo essa uma violação do direito fundamental ao afeto que nasce no seio da família e no texto da Constituição Federal, de modo que a indiferença afetiva gera dano que merece ser reconhecido e mensurado economicamente.
Conforme Arbex (2016), o abandono emocional ou afetivo resulta da omissão de um dos progenitores no cumprimento dos deveres de ordem moral gerados pelo poder familiar, nomeadamente o afeto familiar, a assistência moral, a educação e a atenção.
Até pouco tempo atrás, quando ocorria a separação do casal, a única obrigação do genitor era de pagar alimentos, permanecendo desonerado de todo e qualquer dever em relação ao filho.
Conforme Dill e Calderan (2011), em circunstâncias normais, o abandono afetivo ocorre com a separação dos pais. Pois, na maioria dos casos, a guarda do filho é concedida à mãe. Assim, o genitor se ausenta, de maneira que não cumpre com seus deveres e obrigações em relação à criança. Todavia, o dever dos sem tutela não se limita à alimentação, mas sim ajudar as crianças a formarem a sua personalidade e a se desenvolverem, pois têm os pais como referência e modelo.
Nesse caso, a psicologia e a psicanálise explicam que o abandono emocional, ou seja, a falta de afeto, amor e cuidado, pode fazer com que as crianças apresentem sintomas de baixa autoestima, rejeição, dano psicológico e saúde física (DAMIANI; COLOSSI, 2015).
O artigo 227 da Constituição Federal, bem como o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), atribui aos pais e responsáveis o dever geral de cuidado, criação e convivência familiar de seus filhos, bem como de preservá-los de negligencias, discriminação, violência, entre outros. Assim, não há como obrigar um pai a amar um filho, mas a legislação lhe assegura um direito de ser cuidado. Os responsáveis que negligenciam ou são omissos quanto ao dever geral de cuidado podem responder judicialmente por terem causado danos morais a seus próprios filhos.
Considerando então que, as relações de parentalidade podem ser consideradas construções sociais, atravessadas por questões de gênero e de poder, sendo entendidas socialmente sob os conceitos de paternidade e maternidade, para o exercício saudável da parentalidade, é necessária uma relação potencializada entre pais e filhos no sentido de fornecer espaço de participação familiar à prole, através de relações compreensivas e do exercício construtivo e equilibrado da parentalidade (SCHOLZ et al., 2015; SANTOS et al., 2019).
O primeiro passo a favor da elaboração da responsabilidade civil paterna pelo abandono afetivo aconteceu quando nasceu a possibilidade de se identificar a verdade biológica por meio do exame de DNA, de modo que a perversa alegação de que a genitora teria uma vida sexual promiscua, deixou de levar à improcedência da ação investigatória de paternidade.
Ainda, o Poder Judiciário despertou-se para critérios psicossociais que trouxeram à prova de que é indispensável a presença de ambos os genitores para o saudável crescimento do filho, sobretudo, em razão do pode afetivo em que a criança sente dos pais, mesmo que não biológicos.
A fim de ilustrar esse entendimento Calderón (2013, p. 328) expõe que um dos temas mais palpitantes e polêmicos no Direito de Família brasileiro, na atualidade, diz respeito à temática da possível reparação civil nos casos do denominado abandono afetivo.
Não é possível afirmar, no atual estágio, que exista um entendimento pacificado sobre o tema, tendo em vista decisões de diversas ordens que seguem sendo proferidas e os distintos entendimentos externados sobre o assunto. No quadro atual de complexidade das relações familiares e diversidade de decisões sobre situações aparentemente similares, influenciadas pelas peculiaridades do caso concreto em pauta, quiçá não se chegue a um lugar comum sobre a questão (ao menos em um período próximo). (CALDERÓN, 2013, p. 194)
O Superior Tribunal de Justiça inclusive já entende que é passivo de reparação civil o genitor ou responsável pelo menor que praticar abandono afetivo, conferindo ao afeto o valor jurídico relevante garantido constitucionalmente. A polemica, mas acertiva decisão, provocou debates no Supremo Tribunal Federal, onde o Min. Fachin (2014, p. 7) realizou as seguintes ponderações:
O tema resulta controvertido até não mais poder; parece-nos ser um passo à frente, possível dentro do atual ‘estado da arte’ do Direito Brasileiro, chancelar a reparação por abandono afetivo; contudo, questões correlatas, como os equivalentes funcionais, os parâmetros indenizatórios, o sentido e o alcance da própria formação da identidade como direito integrante da personalidade, imaterial e intangível por natureza, fazem nascer problemas complexos e merecer dita reflexão. Será a ‘ética da responsabilidade’ e não a ‘ética da convicção’ que dará em breve responder a essa questão (FACHIN, 2014, p.7).
Dessa maneira, subentende-se que a simplicidade e aplicação fria da lei não pode mais ser parâmetro e aceito pelos operadores de direito, muito mais que um princípio, o afeto torna-se um verdadeiro laço formador de núcleos familiares. Fato é que o STJ inovou na forma de interpretar o direito de família, conferindo maior responsabilidade aos genitores e responsáveis a fim de assegurar o melhor interesse do menor.
Noutro giro, os tribunais pátrios, seguindo o mesmo entendimento do STJ resolveram aplicar a interpretação da importância do afeto no seio familiar.
Ao julgar a Apelação Cível nº 0006422-26.2011.8.26.0286 (SÃO PAULO, 2012), o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, validou o reconhecimento da multiparentalidade no âmbito materno, ressaltando a memória da mãe biológica que já havia falecido ao mesmo tempo que reconheceu a importância do afeto presente entre a madrasta e o filho.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça (BRASÍLIA, 2013), ao decidir no Recurso Especial nº 1.167.993/RS e no Recurso Especial nº 1.274.240/SC, sobre a manutenção e validação da paternidade socioafetiva, sobrepondo-a à paternidade biológica, destacando que em casa caso concreto deve ser realizada uma análise minuciosa:
De acordo com Paiano (2017), PORTO ALEGRE. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: Apelação Civil AC 0077173102/RS. 2018, a inseminação heteróloga, realizada por casais homossexuais também pode ensejar a multiparentalidade, como decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos autos da APC 0077173102/RS (PORTO ALEGRE, 2018).
Entretanto, de acordo com o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, é preciso que o melhor interesse da criança e do adolescente seja observado e assegurado para só assim ser possível reconhecer a multiparentalidade, caso haja a real vontade e desejo das duas partes, como se observa:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. FILHO HAVIDO DE RELAÇÃO EXTRACONJUGAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE QUANDO ATENDER AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. APLICAÇÃO DA RATIO ESSENDI DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JULGADO COM REPERCUSSÃO GERAL. SOBREPOSIÇÃO DO INTERESSE DA GENITORA SOBRE O DA MENOR. RECURSO DESPROVIDO. [...] 2. O reconhecimento dos mais variados modelos de família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI n. 4.277/DF). 3. Da interpretação não reducionista do conceito de família surge o debate relacionado à multiparentalidade, rompendo com o modelo binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente. [...] 5. O reconhecimento de vínculos concomitante de parentalidade é uma casuística, e não uma regra, pois, como bem salientado pelo STF naquele julgado, deve-se observar o princípio da paternidade responsável e primar pela busca do melhor interesse da criança, [...] 7. Ressalva-se, contudo, o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, da menor pleitear a inclusão do nome do pai biológico em seu registro civil ao atingir a maioridade, momento em que poderá avaliar, de forma independente e autônoma, a conveniência do ato. 8. Recurso especial desprovido (BRASILIA, 2018, online).
Em uma publicação realizada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça (BRASÍLIA, 2018) determinou que o reconhecimento da multiparentalidade está diretamente ligado ao desejo da criança, o Tribunal esclarece ser necessária a prevalência do melhor interesse da criança, e assim, é possível manter somente a filiação socioafetiva no registro de nascimento do menor se o pai biológico não tem interesse em cuidar da criança.
Vale destacar ainda que o Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário nº 898060/SC, criou o Tema de Repercussão Geral nº 622, que tratou de reconhecer a multiparentalidade, onde, no julgado, ficou decidido que a paternidade mesmo que não declarada em registro, não é impeditivo para o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseando-se na origem biológica, e com efeitos jurídicos próprios. Ou seja, é uma evidente superação das limitações jurídicas para o desenvolvimento das famílias pautadas no afeto.
Com toda a análise jurisprudencial realizada no presente, é possível concluir que a multiparentalidade surgiu das decisões dos Tribunais Superiores, que reconheceram a possibilidade de coexistência da parentalidade biológica e socioafetiva. De acordo com Schuh (2006), a descrição do abandono emocional é recente e dificilmente foi escrita a esse respeito, se é que foi feita alguma. Nessas circunstâncias, ao analisar o caso e formar uma condenação, o juiz deve considerar, entre outras premissas, a capacidade litigiosa do demandante, sua vida familiar e se seus pais participaram ou participaram dela. Rezende et al. (2021) afirma que tendo em conta as responsabilidades tutelares dos pais para com os filhos, o abandono emocional na relação de responsabilidade civil dos pais para com os filhos é regulamentado pelo Estado.
Portanto, o abandono emocional traduz-se na violação deste tipo de responsabilidade parental, que pode causar danos e prejuízos aos filhos que são objetos da guarda dos pais. Esse dano tem contornos morais, psicológicos e emocionais, e afeta a formação da dignidade e da personalidade das crianças e adolescentes como seres humanos. O ato de abandono é a conduta consciente dos pais ao amplo dever de cuidar, sendo de responsabilidade subjetiva do sujeito que causou o dano.
6 CONCLUSÃO
Como demonstrado, a família é a base do desenvolvimento e evolução humana. Sendo a família um instrumento de desenvolvimento humano e sociológico. Assim, os laços de sangue, tão comuns no passado para delimitar o vínculo familiar, passaram a serem subjetivos, passando a ser considerado então, o vínculo ao nível emocional. Neste estudo, as relações socioemocionais pais-filhos foram abordados de forma geral, considerando que, é uma relação construída por laços que se desenvolvem entre pai e filho, mesmo sem herança genético-biológica. Essa conexão cria parentesco socioemocional, que faz com que haja o reconhecimento paternal com o filho.
O parentesco socioemocional continuará a ser reconhecido no contexto dos chamados direitos da criança. Ainda que não se baseie na realidade natural ou biológica, a posse estatal cimenta as relações parentais e tem relevância jurídica para todos os efeitos jurídicos no âmbito do direito civil. Uma vez que, não há distinção entre as crianças, sejam biológicas, adotivas, socioemocionais ou causadas por reprodução assistida. Assim, a devoção à emoção como direito fundamental reduz a resistência ao reconhecimento da igualdade entre pertencimento biológico e socioemocional.
Quando se respeita o direito de paternidade, seja ele biológico ou afetivo, torna-se plenamente viável a existência de ambos os tipos de vínculo, permitindo que os vínculos originários do mundo de fato sejam reconhecidos na esfera jurídica. Com tal decisão, não é mais possível exonerar ambos os pais de sua responsabilidade de cuidar adequadamente de seus filhos, seja emocional ou financeiramente. Portanto, embora existam algumas lacunas na lei sobre o assunto, a doutrina e a jurisprudência vêm se aprimorando continuamente no reconhecimento desse tipo de relação pais-filhos, garantindo a transferência de bens para aqueles que efetivamente satisfazem os requisitos estatais de posse de seus filhos, direitos, bens e obrigações. Assim, conclui-se que o direito de família não pode aparecer apenas em modelos já padronizados, mas deve ser analisado caso a caso e, sobretudo, como fundamento do princípio do melhor interesse.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EVANGELISTA, Beatrice Miglioranza. A primazia do princípio do melhor interesse da criança no âmbito do reconhecimento da paternidade socioafetiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60177/a-primazia-do-princpio-do-melhor-interesse-da-criana-no-mbito-do-reconhecimento-da-paternidade-socioafetiva. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Patricia de Fátima Augusta de Souza
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