RESUMO: Sabemos que a criação das criptomoedas se deu devido às muitas interferências do Estado em todas as transações financeiras conjugado com a falta de segurança dada pelos bancos aos usuários e clientes, em relação a ataques hackers, fraudes, divulgação de dados, dentre outros, de modo que, a ideia por trás das criptomoedas é dar ao usuário o poder e a responsabilidade de ele próprio gerir suas finanças e seu poder de compra. Portanto, o enfoque do presente artigo é demonstrar que o caráter libertário pelo qual o criptoativo foi criado, deve ser mantido e que a tributação seria um modo de desvirtuar a razão pela qual o Bitcoin foi criado, vez que a ideia inicial de liberdade ao usuário deve prevalecer; e ainda, que a privacidade garantida pela rede Bitcoin não deve ser confundida com anonimato, pois sempre que necessário, é possível, pelo meio legal, identificar o usuário da rede.
Palavras-chave: bitcoin; criptomoeda; criptoativo; blockchain; tributo.
ABSTRACT: We know that the creation of cryptocurrencies was due to the many interferences of the State in all financial transactions, combined with the lack of security given by banks to users and customers, in relation to hacker attacks, fraud, data disclosure, among others, so that the idea behind cryptocurrencies is to give the user the power and responsibility to manage his finances and purchasing power himself. Therefore, the focus of this article is to demonstrate that the libertarian character for which the crypto asset was created must be maintained and that taxation would be a way of distorting the reason why Bitcoin was created, since the initial idea of freedom for the user shall prevail; and also, that the privacy guaranteed by the Bitcoin network should not be confused with anonymity, since whenever necessary, it is possible, through legal means, to identify the network user.
Keywords: bitcoin; cryptocurrency; cryptoactive; blockchain; tribute.
Na década de 90 um movimento denominado como Cypherpunk[1], formado por hackers e criptógrafos, desenvolveram as primeiras criptomoedas, na qual buscavam dar maior liberdade financeiras aos usuários para que o Estado não interferisse em suas transações financeiras e evitasse o controle da moeda como ainda há.
Essas primeiras moedas, apesar da boa ideia em torno dessas, ainda possuíam alguns problemas que não foram solucionados à época, caindo um pouco no esquecimento. Anos após, exatamente em 2008, que tais erros foram solucionados, devido a nova tecnologia chamada de Blockchain[2], lançada juntamente com o Bitcoin, que atualmente é umas das moedas digitais mais conhecidas mundialmente. Até a data do presente artigo: segundo semestre de 2022, ninguém ainda sabe ao certo quem de fato é o criador do Bitcoin, é sabido apenas que a criação veio por um programador, que se autodenomina como Satoshi Nakamoto.
Um dos motivos pelos quais as criptomoedas foram criadas, deu-se devido aos questionamentos feitos às instituições bancárias no que diz respeito a segurança financeira dos clientes e pela falta de uma regulamentação do Estado que fornecesse uma melhor segurança para seus usuários. Desse modo, fazia-se então necessário a criação de um meio mais seguro para transações financeiras de confiança, surgindo então o sistema de Blockchain, que será abordado e explicado no decorrer desse artigo.
Com o avanço da tecnologia, logo as criptomoedas tornaram-se um diferencial para economia global, pois o aumento das transações que as envolvem e o sistema de proteção de dados que são oferecidos por elas, trazem ao usuário um sentimento de segurança ao realizar transações, compras e até mesmo especulações financeiras voltadas a investimentos. Com isso, o valor de uma criptomoeda chega a ser incomparável a nossa moeda vigente no momento: o real. No dia 20 de outubro de 2021, por exemplo, apenas “um” Bitcoin, bateu a incrível marca de US $65 mil (sessenta e cinco mil dólares)[3]. Em 2009, quando o Bitcoin foi disponibilizado para compra, seu preço era apenas 0,00076392 dólar (valor de apenas 1 BTC), ou seja, menos de R$ 0,01 (um centavo)[4], o que deixa claro que é inquestionável a valorização de tal moeda.
Com a crescente explosão e avanço das criptomoedas, os governos mundiais manifestam sobre a necessidade de regular as criptomoedas por meios jurídicos e tributários, visando, segundo o Estado, dar segurança às pessoas que as possuem. Em nosso ordenamento jurídico nacional, ainda não há regulamentação específica para circulação de criptomoedas, mesmo compreendendo que essas já ocupam um grande espaço na economia do país.
O artigo que segue se destina a buscar e comparar a natureza jurídica das moedas e quais tributos poderão ou deverão ser impostos sobre elas. Para esse desenvolvimento, serão apresentados o que são as criptomoedas/criptoativos, Blockchain, Bitcoin os conceitos inerentes a essas modalidades, trazendo as possíveis regulamentações jurídicas e questionamentos acerca da necessidade de regulamentação e a ideia por trás da criação das criptomoedas, mas, sem o intuito de esgotar o debate sobre a temática. Para tanto, será investigado como e até que ponto o Estado poderá intervir no que diz respeito a tributação e fiscalização das criptomoedas, buscando ainda entender os benefícios e malefícios de uma possível forma de tributar esse novo mercado. Ademais, será conceituado e diferenciado o que são as criptomoedas, Bitcoin, blockchain, além de identificar a natureza jurídica dos criptoativos, buscando entender a fungibilidade da natureza jurídica desses; identificar a tecnologia por trás do blockchain; analisar os projetos de regulamentação das criptomoedas no Brasil, fazendo alusões da forma que são regulamentadas no mundo e ainda a posição do Banco central no que diz respeito às criptomoedas.
A importância de estudar o assunto abordado está voltada ao futuro do Direito – sendo esse o instrumento que regula a vida em conjunto – e especialmente a forma de tratar o dinheiro, pois tais reflexões e preceitos, são de suma importância, tanto para a esfera acadêmica em geral, quanto para a sociedade.
Ademais, com o avanço da internet e as inúmeras possibilidades trazidas por essa ferramenta, além das grandes revoluções tecnológicas e as evoluções sociais em si, faz-se necessário debater sobre o tema.
Atualmente, com a internet dominando praticamente a maior parte do mundo, dificilmente há alguém que nunca ouviu sequer falar em Bitcoin e outras criptomoedas. Várias especulações rodeiam esse meio, alguns pensando em lucro, outros pensando em maneiras de efetuar transações sem ser notado, devido ao sistema de blockchain que traz “proteção” aos usuários. A ideia desse sistema é deixar a pessoa responsável pelo seu dinheiro, sem o envolvimento de terceiros em suas transações, e isso pode fazer com que haja transações ilegais. Entretanto, é importante ressaltar que já existe uma importante discussão referente regulamentação e a tributação desses tipos de novos “dinheiros”, cabendo ao Direito o papel fundamental de encontrar e incutir uma maneira mais eficaz e consciente do uso das criptomoedas.
Esse assunto, entre regulamentar ou não o mercado de criptomoedas, é uma enorme discussão, uma vez que a ideia inicial das criptos e do blockchain é justamente dar ao usuário o poder e a liberdade de fazer o que bem entender com seu dinheiro. Desse modo, é de extrema importância o estudo referente ao tema abordado, em caso de conflitos de interesse entre usuários e a fiscalização, o que reafirma a necessidade e valia do presente artigo para o universo acadêmico, servindo de debate e novas pesquisas relacionadas.
O presente artigo embasou-se em estudos consistentes já desenvolvidos até o momento, conceitos e apontamentos doutrinários, como o livro da mestre e especialista Emília Malgueiro Campos: “Criptomoedas e o Blockchain: o Direito no mundo Digital” bem como o white-paper de Satoshi Nakamoto, o criador do Bitcoin.
A obra da Emília Campos, aborda os pontos de vistas jurídicos que envolvem a tecnologia das criptomoedas e Blockchain, com apontamentos dentro de um contexto histórico até a criação do Bitcoin: sua natureza jurídica, tributação e regulamentação, no Brasil e no mundo:
(...) É certo, no entanto, que toda essa turbulência no processo de regulamentação gera insegurança e angústia nos empreendedores do setor, além de demonstrar o quanto o Poder Legislativo do nosso país está atrasado e em dissonância com os demais países desenvolvidos.[5]
O livro é uma ótima fonte de exploração para o artigo, pois proporciona acesso a um conteúdo relevante e atualizado do tema proposto, garantindo uma melhor compreensão da pesquisa.
Além disso, a artigo contará com diferentes fontes de pesquisa relacionadas ao tema, como obras sobre o tema, pesquisas acadêmicas em artigos científicos, leis infraconstitucionais, e, por se tratar de um artigo que visa a atualidade, contará também com pesquisas em vídeos e podcasts relacionados ao tema.
2 O BITCOIN
Satoshi Nakamoto é o nome do criador do Bitcoin, contudo, trata-se de nome inventado pelo próprio desenvolvedor, portanto, ninguém sabe ao certo quem é o verdadeiro inventor da moeda. Satoshi, define a sua criação como:
Bitcoin é uma coleção de conceitos e tecnologias que formam a base de um ecossistema de dinheiro digital, incluindo:
· Uma rede descentralizada ponto-a-ponto (habilitada pelo protocolo Bitcoin),
· Um livro de transações públicas (o Blockchain)
· Um mecanismo descentralizado, matemático e determinístico de emissão de moeda (mineração distribuída e conceito de “Prova de Trabalho”).
· Um sistema descentralizado de verificação de transações (script de transação) (ANTONOPOLOUS apud CAMPOS, 2020, p. 19)
A rede Bitcoin foi desenvolvida com intuito de permitir transações de valores diretamente entre pessoas, sem interferência de terceiros e de forma segura. Essa segurança é garantida por meio da Blockchain.
2.1 A distinção entre Bitcoin e Blockchain
Todas as transações realizadas na Rede Bitcoin, são processadas e registradas na Blockchain que pode ser comparada a uma espécie de livro contábil de uma empresa. Através da Rede Blockchain, é possível verificar todas as transações realizadas por meio do Bitcoin (desde a primeira feita em 2009 pelo próprio Satoshi Nakamoto) e graças a esse sistema de Blockchain, todos esses registros são públicos e sim – como muitas pessoas imaginam –, rastreáveis.
Dessa forma, entende-se que o “Bitcoin é o token nativo da Rede, enquanto o Blockchain é o banco de dados onde são realizadas e registradas as transações realizadas”[6]. Válido ressaltar que em nenhum momento é mencionado no White paper de Satoshi Nakamoto, algo relacionado ao Blockchain. Ele descreve a base de dados, onde são registradas as transações, apenas como “uma rede que marca o tempo das transações, colocando-as em uma cadeia contínua no ‘hash’, formando um registro que não pode ser alterado sem refazer todo o trabalho”[7]. Assim, a correlação do Blockchain e Bitcoin surgiu com tempo, haja vista que essa tecnologia não foi definida com essa nomenclatura no White paper da Rede Bitcoin. Em síntese, a concepção sobre Blockchain foi criada muito antes do Bitcoin, sendo que a tecnologia da Blockchain surgiu no final da década de 1970, por meio de um cientista da computação chamado Ralph Merkle.
Todo criptoativo hoje possui sua própria Blockchain, porém, com características diferentes as quais dependerão da forma que serão usados. Quando se trata de Bitcoin, as transações serão validadas em blocos ligados uns aos outros por meio de hashes, que são códigos criptografados consubstanciados em caracteres alfanuméricos, ao qual chamamos de Blockchain.
As pessoas que atuam na validação das transações da rede Bitcoin são chamadas de mineradores. Os mineradores possuem equipamento apropriado para execução desse trabalho, realizando download de uma versão específica do software do Bitcoin para se conectar com outros usuários. No início da era Bitcoin, um simples computador normal conseguia realizar esse tipo de trabalho, porém com a possibilidade de altos ganhos, hoje em dia torna-se um alto investimento para iniciar a mineração de Bitcoin, uma vez que são necessárias máquinas potentes e um alto uso de energia elétrica. Esses computadores servem como nós do sistema, fazendo a tarefa de validar as informações e transações, com papel fundamental de garantir segurança nos compartilhamentos de dados, tornando a rede segura sem depender de apenas um órgão centralizador[8].
Quando Satoshi Nakamoto arquitetou o protocolo para a Rede Bitcoin, acrescentou uma maneira de garantir a imutabilidade das transações que já haviam sido validadas, pois havendo algum fraudador, na intenção de prejudicar a rede tentando alterar as transações dentro da Blockchain, seria preciso alterar os hashs de todos os blocos já validados, tornando um trabalho praticamente impossível e absolutamente caríssimo. Isso prova ainda mais a eficiência e proteção de todas as transações feitas através da Rede Bitcoin e Blockchain. Vale ressaltar que a própria descrição da Rede já informa: “a peer-to-peer eletronic cash system”, ou seja, um sistema de dinheiro eletrônico ponto a ponto, deixando claro que a intenção do Bitcoin é proporcionar ao mundo (físico ou digital), as mesmas possibilidades de transações com dinheiro em espécies, porém, com privacidade, irreversibilidade e sem necessidade de intermediários. “(...) o objetivo da Rede Bitcoin é reproduzir no mundo digital as mesmas características das transações com dinheiro em espécie, o “cash”, em inglês, ou seja, privacidade, irreversibilidade e desnecessidade de intermediários”.[9]
2.2 Privacidade versus Anonimato na Rede Bitcoin
É muito importante destacar que quando se fala em Bitcoin, a fim de desmistificar as falas vistas por leigos, que a Rede Bitcoin não garante anonimato aos usuários, mas a privacidade, o que é diferente de praticar atos no anonimato, se comparado, por exemplo, às práticas no submundo da internet: a Deep Web (rede profunda). Dentro da Rede é garantida a privacidade dos usuários, uma vez que esses não são identificados por seus nomes, mas por números criados para suas carteiras públicas. Esses números, juntamente com as chaves privadas de cada usuário, é o que permite a transferências de bitcoins.
Sendo assim, o fato de ter privacidade na Rede, não impede que o usuário seja encontrado.
(...) se necessário, e mediante o devido processo legal, poder ser possível, por meio de perícia e combinação de métodos de investigação, descobrir quem é o titular de uma carteira. E todas as transações podem ser rastreadas e, ao mesmo tempo, transparência e rastreabilidade, se necessário para qualquer investigação, diferentemente do que ocorre no sistema financeiro tradicional, onde independentemente de qualquer ordem ou mandado judicial, as transações financeiras de todos os correntistas são, o tempo todo, monitoradas e controladas pelos bancos, e, consequentemente, pelas autoridades governamentais. (grifo nosso)[10]
Diante disso, se imaginarmos a ocorrência de alguma prática de crime financeiro ou qualquer outro, por meio de transações na Rede Bitcoin, é possível saber quem foi o infrator/ titular da conta, logo, quem realizou a operação/ infração, já que todas as transações efetuadas podem ser rastreadas por meio de sua chave. Sendo assim, é plausível compreender que a privacidade é garantida, mas, levando em conta a transparência, existe a possibilidade de rastreio por meio de processo legal; diferentemente do rastreio em nosso sistema financeiro comum, pois os bancos (e consequentemente as autoridades governamentais), independe de mandado ou ordem oficial já têm acesso aos dados e transações de seus usuários, fazendo com que monitoramento e controle sejam constantes, o que faz com que os usuários tenham apenas a autonomia relativa sobre o seu dinheiro em espécie depositados em tais instituições financeiras.
Sobre a privacidade, Satoshi Nakamoto destaca que:
O público pode ver que alguém está enviando uma quantidade para outra pessoa, mas sem informações que ligam a transação a qualquer um. Isto é semelhante ao nível de informação divulgada pelas bolsas de valores, onde o tempo e o tamanho dos negócios individuais, a “fita”, é tornada pública, mas sem dizer quem são as partes.
Como um firewall adicional, um novo par de chaves deve ser utilizados para cada transação para evitar que eles sejam ligados a um proprietário comum. (grifo nosso)[11]
Na própria política monetária do Bitcoin, foi determinada a criação de apenas 21 milhões de Bitcoins[12], a serem distribuídos ao longo do tempo e que são reduzidos pela metade a cada 4 anos, o que em tese terminaria por volta do ano de 2.140 e graças a essa limitada emissão de moedas, houve uma enorme valorização desde sua primeira transação até os dias atuais. Conforme dito no início da elaboração do presente artigo, em 05/10/2009, a primeira venda do Bitcoin, que ocorreu por meio do site New Liberty Standard, 1 (um) BTC equivalia a 0,00076392 dólar, correspondente a menos de R$0,01 (um centavo) e após 12 anos da primeira transação, em 20/10/2021, o Bitcoin, em sua oscilação no mercado, bateu pouco mais de US$ 67 mil, estabilizando-se em US$ 65 mil[13].
2.3 A natureza jurídica dos criptoativos
Com o crescimento da moeda – e talvez inesperado até mesmo por Satoshi Nakamoto –, ainda que existam momentos de queda, mas nada equiparado ao valor inicial, o Bitcoin vem sendo utilizado pelos usuários como meio de pagamentos, e se tornando objeto de grandes discussões e especulações.
Dessa forma, com o surgimento de várias outras criptomoedas, além do Bitcoin, faz-se necessário encontrar a natureza jurídica dessas “moedas”. Existe um Projeto de Lei do Deputado Áureo (PL 4401/2021 (nº anterior: PL 2303/2015), que dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de 'arranjos de pagamento' sob a supervisão do banco central), em trâmite na Câmara dos Deputados, com a missão de caracterizar as moedas virtuais, colocando-as como arranjo de pagamento. No Brasil, o primeiro órgão a definir a “moeda digital” para efeitos de tributação, foi a Receita Federal, que as equiparou a ativos financeiros, porém com interferência da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, se manifestou com entendimento de que as criptomoedas ou moedas digitais, não são ativos financeiros, como mostra o Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN, enviado aos Diretores Responsáveis pela Administração e Gestão de Fundos de Investimento:
(...) a interpretação desta área técnica é a de que as criptomoedas não podem ser qualificadas como ativos financeiros, para os efeitos do disposto no artigo 2º, V, da Instrução CVM nº 555/14, e por essa razão, sua aquisição direta pelos fundos de investimento ali regulados não é permitida.
O que é certo afirmar é que, juridicamente, as criptomoedas não podem ser tratadas como moedas, uma vez que no Brasil só será considerado moeda aquela de curso legal, ou seja, que possui reconhecimento como moeda determinado por lei, além de ter seus formatos previamente definidos e sua unidade monetário (no nosso caso: Unidade Real de Valor – URV) e ainda possuir poder liberatório, não podendo, portanto, ser recusada como pagamento, assim como estabelece a lei nº 8.880/1994. Logo, compreendemos, que nossa moeda, desde o ano de 1994, é apenas o Real.
Isto posto, é possível sustentar que a natureza jurídica do criptoativo do Bitcoin pode ser considerada híbrida, já que os efeitos jurídicos são diferentes a depender da maneira que são usadas. Nesse sentido, como exemplo, temos o Canadá, que entendo tal variação, tributa o criptoativo de acordo com a sua utilização.
2.4 O progresso da regulamentação dos criptoativos no Brasil e apontamentos das regulamentações estrangeiras
Sempre existirá a necessidade de criar conceitos e definições para acompanhar a evolução da sociedade e suas tecnologias – e, muito provavelmente, estamos em um desses momentos. “Nesse sentido, uma das características que considero mais significativa dos ativos digitais baseados em criptografia, sob o aspecto jurídico é a fungibilidade de sua natureza, de acordo com o uso.”[14]
À vista disso, deve-se considerar o usuário que compra seus criptoativos com a intenção de uma futura valorização, pois esse tipo de utilização é considerado como investimento com intenção de lucro futuro, atribuindo-se a um ativo financeiro. Portanto, esse usuário, deverá declarar à Receita Federal, os lucros adquiridos com tal “investimento”.
Outra hipótese, é o detentor de Bitcoin que efetua a compra de um veículo realizando o pagamento por meio de Bitcoin. Nessa situação, diferente da anterior, o fato se enquadra em arranjo de pagamento, e por isso não podem ser aplicados os mesmos efeitos de tributação, deverão ser aplicados os efeitos referentes à arranjo de pagamento.
Como já mencionado, o Projeto de Lei nº 4401/2021 (antes, PL 2303/2015), busca regulamentar as moedas virtuais como meios de arranjo de pagamentos, sob a supervisão do Banco Central. O projeto defende que o Banco Central juntamente com o Conselho de Controle de Atividades financeiras e órgãos do consumidor, têm competência para fiscalizar as moedas virtuais, porém, a regulação tornaria o assunto mais claro.
Em dezembro de 2017, na comissão especial destinada a proferir parecer ao projeto de lei nº 2.303, de 2015, dado pelo Relato da Comissão, o Deputado Expedito Neto, do PDB de Rondônia, afirmou em seu voto que:
(...) naquilo que diz respeito às moedas virtuais, digitais ou criptomoedas, decidimos nos posicionar pela proibição de emissão em território nacional, bem como de vedar sua comercialização, intermediação e mesmo aceitação como meio de pagamento para liquidação de obrigações no País. Para tal fim, optamos por inserir no Código penal o tipo específico para a prática descrita no parágrafo anterior, mas deixamos aberta a possibilidade de emissão para uso em ambiente restrito, sob a responsabilidade do emissor, desde que exclusivamente para a aquisição de emissor, desde que exclusivamente para a aquisição de bens e serviços oferecidos pelo emissor ou por terceiros.
Tal decisão mostrou total retrocesso equiparando o Brasil, com outros países que proíbem a utilização de criptomoedas, como Argélia, Bangladesh, Bolívia, Catar, Equador e Kirziquistão[15].
A proposta buscou criminalizar, desde a atividade de mineração até o uso de criptomoedas como meio de pagamento, abalando toda cadeia de negócios que envolve as criptos, o voto do relator surpreendeu negativamente até mesmo a Comissão, uma vez que o tema já havia sido discutido para apresentação do relatório.
Fazendo uma análise referente à regulamentação ao redor do mundo, alguns países já estão em um processo bem mais avançado quanto ao tema. A Austrália, por exemplo, realizou um processo de regulamentação das criptomoedas, que contou com entrevista ao especialista em criptomoedas, Andreas Antonopoulos, no evento chamado Australian Taxation Officer (ATO), realizado em 2014, em que trouxe diversos preceitos relacionados às moedas virtuais, equiparando-as a um acordo de troca, como a permuta do Direito brasileiro, tendo, portanto, consequências fiscais e tributárias derivadas[16].
Em 2015, o Senado do Canadá, com auxílio de Andreas Antonopoulos, decidiu pela pouca intervenção regulatória, passando a entender que as moedas digitais são consideradas commodities sob o regime do PPSA – Personal Property Security Act –estando submetidas assim às regras do Imposto de Renda por ganho de Capital, quando utilizadas na forma de investimentos. Por outro lado, quando a moeda virtual for utilizada como meio de pagamento, haverá tributação relacionada à operação de compra e venda de serviços, ou seja, o Canadá adotou em sua regulamentação o princípio da fungibilidade dos ativos, tributando-os de acordo com seu uso[17].
Em 2017, foi a vez do Japão criar a sua Lei de Moedas Virtuais (Virtual Currency Act), definindo, portanto, criptomoedas como meio de pagamento, não as considerando como instrumentos financeiros, mas, como ativos para efeitos contábeis sendo tributados com base no ganho de capital[18].
Já nos Estados Unidos, em 2015, o Commodity Futures Trading Commission, classificou o Bitcoin como um commodity, sendo para a Receita Federal Americana uma propriedade. Importante ressaltar que nos EUA, a legislação é delegada aos Estados, podendo ser interpretado de maneiras diferentes a depender da localidade, como exemplo, o Estado de Nova York, que em 2015, por meio do Departamento Estadual de Serviços Financeiros criou a Bit License: uma licença obrigatória para as empresas que atuam nesse segmento[19].
Dentre outros países que já possuem suas regulamentações, o Brasil teve uma manifestação por meio da Receita Federal referente ao tratamento dos tributos relacionas às criptomoedas. No caderno de perguntas e respostas de declaração de impostos de renda de 2016, o contribuinte tinha a necessidade de declarar a aquisição de moedas digitais, pois, segundo entendimento da Receita Federal, “as criptomoedas são ativos equiparados a financeiros e devem ser declaradas pelo valor de aquisição na Ficha Bens e Direitos da Declaração Anual, como “outros bens””[20]. Dessa maneira, a aquisição de R$5.000,00 em criptomoedas, quaisquer que sejam, deverão ser relacionados na declaração de impostos de renda, informando a data da aquisição, quantidade, valor em real e a cotação da moeda.
As transações realizadas por pessoa física, cujos ganhos ultrapassem R$35.000,00 mensais, serão tributadas de acordo com a tabela vigente definida pela Lei 13.25916[21]. Os impostos deverão ser recolhidos até o último dia do mês seguinte ao da transação através de guia própria.
Tratando-se de transações relacionadas à pessoa jurídica, não há valor definido. Será tributado qualquer valor mensal, de modo que a tributação por pessoa física se torna mais benéfica ao detentor de criptomoedas. Ressaltando que por não existir uma cotação oficial para criptomoedas, a Receita Federal deixa claro que todas as operações devem ser comprovadas por meio de documentação hábil e idônea. Apesar da declaração ser anual, o recolhimento dos impostos sobre o ganho de capital é sempre realizado no mês subsequente ao da realização, portanto, recomenda-se que o controle de compra e venda de criptomoedas seja salvo e arquivado com a cotação da tela do dia da transação. Certamente, dessa maneira, facilitará a declaração de ajuste.
Em 2019, foi publicada, no Diário Oficial da União – DOU, a Instrução Normativa n°1.888, da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, instituindo a obrigatoriedade de exchanges a pessoas físicas para prestarem esclarecimentos sobre transações com criptomoedas. O artigo 5° da referida IR, conceitua criptoativo e exchange como:
I - criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; e
II - exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos.
Além disso, devido às novas configurações de intermediação de operações, referentes a compra e venda entre os usuários, serão obrigados a declarar as transações, todas exchanges domiciliadas no Brasil de pessoas físicas, quando o valor mensal das operações ultrapassar R$30.000,00 mensais, com operações realizadas através de exchanges do exterior ou Peer-To-Peer (P2P). Em outras palavras, a Receita Federal beneficiou o contribuinte pessoa física, solicitando prestação de informações somente se ultrapassado o valor mensal citado, de modo que o “investimento” em criptomoedas – apesar de ainda ser necessário diversas atualizações e discussões sobre regulamentação e tributação dessas no Brasil –, é vantajoso quando o gerenciamento se der por meio do próprio CPF, ou seja, por meio da pessoa física.
É quase certo afirmar que as criptomoedas, principalmente o Bitcoin, serão – e há quem diga que já são – as moedas do futuro, e é inegável que a criação de Satoshi Nakamoto – seja quem ele for –, deve ser reconhecida, louvada, estudada e questionada mundialmente, por se tratar de uma das maiores criações com uma ideia de gestão e responsabilidade de suas ações financeiras, sem intermédio de terceiros.
A ideia de beneficiar o usuário pela honestidade dentro da rede é sensacional, uma vez que mantém a segurança e confiabilidade na rede evitando fraudes e tentativas de golpe. As pessoas que ainda insistem em confiar na Blockchain e não confiar no Bitcoin, devem aprofundar os estudos nesse sentido, visando o futuro, pois ainda haverá diversas surpresas relacionadas às criptomoedas e certamente, benéficas.
O presente artigo, em sua singela pesquisa, demonstrou claramente que não há que se falar em anonimato do Bitcoin, pois esse não deve ser confundido com a privacidade oferecida aos usuários da Rede e assim, sempre que for necessário, é possível rastrear e identificar o usuário dentro do devido processo legal. Portanto, não pode ser este o argumento de que os criptoativos não são seguros. Os infratores estão por toda parte e utilizam cada vez mais do âmbito virtual para cometer seus delitos, portanto, não será a criptomoeda que os fará anônimos ou “irrastreáveis”.
Apesar das nossas leis não acompanharem os avanços tecnológicos, os órgãos responsáveis precisam aprofundar nesse assunto, até mesmo com o auxílio de especialistas sobre a temática, principalmente no que diz respeito a tributação das criptomoedas, e assim, o Direito poderia facilmente se beneficiar dessa onda tecnológica que já perdura há mais 12 anos e com visões de crescimento com números inimagináveis.
Fato é: é preciso entender sobre as criptomoedas/ criptoativos para então, realizar sua regulamentação e possível tributação. Entretanto, por tudo o que foi explanado neste artigo, não seria a tributação uma forma de deturpar o motivo principal pelo qual o Bitcoin foi criado? Afinal, como já demonstrado muito bem, a razão última da criptomoeda é justamente a descentralização/distribuição e nova forma de governança, sendo sua criação considerada uma revolução, comparada a criação da internet[22], fazendo com que surja uma nova geração de modelos de negócios. “Um sistema de dinheiro digital, onde a figura do intermediador, garantidor de confiança, foi substituída por um protocolo matemático, baseado em criptografia”[23]. E assim, podemos dizer que “a “moeda virtual” é apenas a primeira de inúmeras possíveis aplicações do Blockchain, que certamente tem um longo e fascinante caminho pela frente.”[24] Sobre o assunto, temos que:
(...) a solução ideal seria o desenvolvimento de uma auto-regulamentação desse novo setor, que definitivamente não se encaixa no modelo existente para o sistema financeiro tradicional, além de ter sido criado justamente para servir como opção a esse monopólio.
No entanto, partindo da premissa de que praticamente todos os países tem regulado o tema adaptando-o para submetê-lo aos órgãos reguladores atualmente existentes, analisando-se os criptoativos sob a perspectiva da utilização como meio de pagamento, é compreensível que se cogite sobre regulamentação pelo Banco Central, que é o órgão que regula e fiscaliza os arranjos de pagamento.
(...) seria muito mais produtivo e inovador o desenvolvimento de uma auto-regulamentação para o setor, do que simplesmente tentar encaixá-lo no sistema existente, dada a especificidade do assunto e mesmo sua natural incompatibilidade com o sistema financeiro tradicional, centralizado e monopolista. (grifo nosso)[25]
Por fim, não apenas os nossos órgãos devem se atualizar e buscar mais conhecimento sobre o assunto, mas também a sociedade deve buscar entendimento sobre a temática e questionar se é viável centralizar um poder sobre as criptomoedas e igualar-se aos bancos – lembrando que essa não é a ideia das criptomoedas e sim descentralizar esses poderes –, ou regulamentar de forma que beneficie nosso país, bem como os usuários e investidores de criptoativos no Brasil, fazendo com que esses sejam impulsionados a crescerem e se ampliarem cada vez mais.
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CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 4401/2021 (nº anterior: PL 2303/2015). Dispõe sobre a prestadora de serviços de ativos virtuais; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nos 7.492, de 16 de junho de 1986, e 9.613, de 3 de março de 1998, para incluir a prestadora de serviços de ativos virtuais no rol de instituições sujeitas às suas disposições. Disponível em:<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1555470> Acesso em 18 de dezembro de 2021.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão especial destinada a proferir parecer ao projeto de lei nº 2.303, de 2015, do Sr. Aureo, que "dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de 'arranjos de pagamento' sob a supervisão do banco central. Disponível em:<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1632751> Acesso em 18 de dezembro de 2021.
CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain o Direito no Mundo Digital. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS – CVM. Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN. Disponível em: <https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/sin/oc-sin-0118.html> Acesso em 04 de outubro de 2022.
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Instrução Normativa nº 1.888, de 3 de maio de 2019. Institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB). Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/instru%C3%87%C3%83o-normativa-n%C2%BA-1.888-de-3-de-maio-de-2019-87070039> Acesso em 18 de dezembro de 2021.
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[1] CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e blockchain: o direito no mundo digital. 2ª ed. – Rio de Janeiro: 2020, p. 15.
[2] Ibid., p. 17.
[3]UOL. Bitcoin ultrapassa os US$ 65 mil e alcança maior valor da história da moeda. 2021. Disponível em:<https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2021/10/20/bitcoin-recorde-historico-maior-valor-eua.htm> Acesso em 14 de novembro de 2022.
[4] KALASHNIKOV, Henrique. Primeira negociação de bitcoin completa 12 anos, veja como foi e /quanto valia. Yahoo Finanças. 2021. Disponível em: <https://br.financas.yahoo.com/noticias/primeira-negocia%C3%A7%C3%A3o-bitcoin-completa-12-174356634.html> Acesso em 14 de novembro de 2022.
[5] CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e blockchain: o direito no mundo digital. 2ª ed. – Rio de Janeiro: 2020, p. 54.
[6] Ibid., p. 20.
[7] Ibdem.
[8] Ibid., p. 22
[9] Ibid., p. 22
[10] Ibid., p. 23
[11] NAKAMO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System (Bitcoin: Um sistema de caixa eletrônico ponto a ponto. Traduzido para português de <https://bitcoin.org/bitcoin.pdf> por Rodrigo Silva Pinto). Disponível em: <https://bitcoin.org/files/bitcoin-paper/bitcoin_pt_br.pdf> Acesso em 18 de dezembro de 2021.
[12] CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e blockchain: o direito no mundo digital. 2ª ed. – Rio de Janeiro: 2020, p. 25.
[13] UOL. Bitcoin ultrapassa os US$ 65 mil e alcança maior valor da história da moeda. 2021. Disponível em:<https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2021/10/20/bitcoin-recorde-historico-maior-valor-eua.htm> Acesso em 14 de novembro de 2022.
[14] CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e blockchain: o direito no mundo digital. 2ª ed. – Rio de Janeiro: 2020, pp. 27, 28.
[15] Ibid., p. 71.
[16] Ibidem.
[17] Ibid., p. 72.
[18] Ibid., p. 73.
[19] Ibid., p. 74
[20] Ibid., p. 79
[21] Ibidem
[22] Ibid., p. 9.
[23] Ibid., p. 17.
[24] Ibid., p. 18.
[25] Ibid., pp. 29, 30.
Graduando em Direito pelo Centro Universitário UNA Contagem.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BENTO, Jonatha Roberto. Reflexos do uso das criptomoedas e o ordenamento jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60182/reflexos-do-uso-das-criptomoedas-e-o-ordenamento-jurdico. Acesso em: 21 nov 2024.
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