VANUZA PIRES DA COSTA
(orientadora
RESUMO: A nova concepção de família é representada pela união de indivíduos ligados por vínculos afetivos e sociais. A origem da filiação socioafetiva existe em decorrência da socioafetividade entre pais e filhos por meio da posse de estado de filho, onde se cria a relação afetiva entre pais e filhos. Este presente trabalho busca analisar se é possível a descontinuação da filiação socioafetiva. Deste modo, partindo do método dedutivo por meio de ampla pesquisa doutrinária em livros jurídicos e em veículos virtuais de busca, pretende analisar a viabilidade jurídica da desconstituição da filiação socioafetiva na doutrina civilista brasileira, considerando o entendimento jurisprudencial vigente. Conclui-se pela impossibilidade em razão da principiologia que fundamenta os vínculos afetivos no direito de família contemporâneo.
Palavras-chave: Filiação Socioafetiva; Vínculos; Família; União de Indivíduos.
ABSTRACT: The new concept of family is represented by the union of individuals linked by affective and social bonds. The origin of socio-affective affiliation exists as a result of socio-affectiveness between parents and children through the possession of a child's state, where the affective relationship between parents and children is created. This present work seeks to analyze whether it is possible to discontinue socio-affective affiliation. Thus, starting from the deductive method through extensive doctrinal research in legal books and virtual search vehicles, it intends to analyze the legal feasibility of deconstitution of socio-affective affiliation in Brazilian civil doctrine, considering the current jurisprudential understanding. It is concluded that it is impossible due to the principle that underlies affective bonds in contemporary family law.
Keywords: Socio-affective affiliation; bonds; Family; Union of Individuals.
1 INTRODUÇÃO
Antigamente, o instituto de família era formado tão somente pelo laço consanguíneo entre pais biológicos e seus filhos; mas, com o passar dos anos, tal instituto ganhou uma nova forma de reconhecimento de filiação, a socioafetiva. Tema esse que se encontra no ramo do Direito Civil, mais especificamente na área de Direito de Família.
A filiação socioafetiva se inicia quando um homem e/ou uma mulher cria um filho como seu, mesmo não sendo o pai ou mãe biológica da criança ou adolescente. Tem reconhecimento jurídico com base no afeto, sem que haja a necessidade de vínculo de sangue entre ambos. Feito no âmbito da Justiça, o reconhecimento dessa filiação se dá durante o processo, onde o juiz busca averiguar se o vínculo declarado se caracteriza como uma relação comprovada de socioafetividade, que merece reconhecimento de relação filial.
Portanto, o presente trabalho objetiva abordar a evolução dos novos conceitos de família, com destaque para a possibilidade da descontinuação da filiação pautada unicamente na socioafetividade, ou seja, a relação entre pais e filhos onde não existe vínculo biológico, apenas o afetivo (amor, carinho, convivência e confiança). Sabe-se que uma relação parental construída independente de laço sanguíneo, é essencial para a formação da personalidade da criança e seu bem-estar emocional.
É de suma importância destacar que o crescimento da filiação de ordem socioafetiva, o que justifica o desenvolvimento da pesquisa, sendo oportuno ressaltar que tal filiação tem seu marco inicial no Direito Civil brasileiro em meados de 1979, mas seu maior destaque se deu a partir de 1988, com a nova Constituição, identificada como o novo estatuto da filiação.
Então, a pesquisa busca responder ao seguinte questionamento: é possível a desconstituição da filiação pautada unicamente na socioafetividade?
Para seu desenvolvimento utilizou-se o método dedutivo e foi realizada pesquisa bibliográfica por meio de consultas à legislação vigente, doutrinas e entendimentos jurisprudenciais, que visaram a proporcionar maior alcance teórico e técnico sobre o assunto.
Neste sentido, o artigo foi desenvolvido apresentando, de exórdio, a concepção de família, tanto tradicional quanto contemporânea, elucidando posteriormente a noção de filiação socioafetiva e discorrendo sobre o reconhecimento da filiação no direito das famílias do ordenamento jurídico brasileiro, dando especial atenção à paternidade e socioafetiva e, por fim, trazendo à baila o debate acerca da desconstituição do vínculo socioafetivo, analisando a sua viabilidade jurídica.
2 CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA
De acordo com Maria Berenice Dias (2021, p. 523), a concepção de “família” passou por variadas transformações ao longo da evolução do Direito de Família, desde o modelo clássico (liberal e paternalista) até aquele constituído tanto por laços biológicos quanto por laços afetivos. Trata-se da noção contemporânea de família, que é muito mais inclusiva. Depreende-se que o casamento deixou de ser a única forma de constituir o ente familiar, prezando pela vontade e autonomia dos indivíduos na forma de criação de sua própria família.
Noção relevante para a compreensão dos novos arranjos familiares parte do princípio da afetividade. Conforme Flávio Tartuce (2021, p. 789):
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana e da solidariedade.
É neste sentido que o renomado civilista brasileiro leciona que a defesa de aplicação da parentalidade socioafetiva, atualmente, é muito comum entre os doutrinadores do Direito de Família.
Em relevante artigos acerca do assunto, o Instituto Brasileiro de Direito de Família traz à discussão os enunciados 103 e 108 do Conselho da Justiça Federal, deliberando acerca de temas relacionados ao afeto.
Prevê o Enunciado n. 103, da I Jornada de Direito Civil que:
O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho. (IBDFAM, 2010).
Da mesma Jornada, há o Enunciado n. 108 do CJF/STJ:
No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”. Em continuidade, da III Jornada de Direito Civil (2004), o Enunciado n. 256: “A posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil. (IBDFAM, 2010).
A Constituição Federal de 1988 possui um capítulo específico que disciplina a família, a criança, o adolescente, o jovem e o idoso (Capítulo VII, do Título VIII – Da Ordem Social). Interpretando-se um dos muitos dispositivos constantes desse tópico, o art. 226 do Texto Maior, pode-se afirmar que a família decorre dos seguintes institutos:
a) casamento civil, sendo gratuita a sua celebração e tendo efeito civil o casamento religioso, nos termos da lei (art. 226, §§ 1.º e 2.º).
b) união estável entre homem e mulher, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento (art. 226, § 3.º).
c) família monoparental, comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4.º). (FARIA; ROSENVALD, 2021, p. 357).
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Faria (2021, p. 837) lecionam em seu Manual de Direito Civil que tem prevalecido, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, principalmente na dos tribunais superiores (STF e STJ), o entendimento segundo o qual o rol constitucional da família possui o caráter exemplificativo (numerus apertus), e não taxativo (numerus clausus). Portanto, são admitidas outras manifestações familiares, como é o caso das categorias a seguir, elencadas pelos referidos autores:
a) família anaparental, expressão criada por Sérgio Resende de Barros, que quer dizer o grupamento familiar constituído, em regra, pelos irmãos, sem que estejam presentes ascendentes ou descendentes;
b) família homoafetiva, constituída por pessoas do mesmo sexo, tendo sido a expressão criada e difundida por Maria Berenice Dias.
c) família mosaico ou pluriparental, aquela decorrente de vários casamentos, uniões estáveis ou mesmo simples relacionamentos afetivos de seus membros. (FARIA; ROSENVALD, 2021, p. 833)
Flávio Tartuce (2021, p. 726) aduz que tal ampliação faz com que se torne inconstitucional todo e qualquer projeto legislativo que vise a restrição do conceito de família, como é o que ocorre no Estatuto da Família, que tramita formalmente perante o Congresso Nacional. De acordo com o referido projeto, apenas seriam consideradas como famílias aquelas entidades formadas a partir da união entre pessoas de gêneros distintos, casadas ou em união estável e sua respectiva prole.
É desse modo que o mencionado autor arremata:
Como se pode notar, as novas categorias legais valorizam o afeto, a interação existente entre as pessoas no âmbito familiar. Destaque-se que a tendência é a de que tais construções sejam utilizadas em todos os âmbitos, em um sentido de complementaridade com as outras leis. Ambos os conceitos legais podem servir perfeitamente para conceituar a família contemporânea. (TARTUCE, 2021, p. 623).
3 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Com o brilhantismo que lhe é peculiar, Pablo Stolze (2020, p. 759) ministra que o parentesco que se origina da filiação socioafetiva tem como fundamento a relação de afeto existente entre indivíduos que se tratam e respeitam como se fossem pai e filho, sem que haja vínculo biológico. Desse modo, todos os direitos e deveres válidos para a relação de parentesco consanguíneo devem também estar presentes na relação de parentesco que decorre da socioafetividade.
Com o advento do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, tornou-se inadmissível a distinção entre filhos havidos dentro ou fora do casamento. A legislação civil cuidou para cessar a discriminação antes existente entre filhos legítimos e ilegítimos, prezando enfim pela dignidade humana e pelo normal desenvolvimento dos filhos.
Sobre o assunto, assim leciona Rolf Madaleno:
Durante longo tempo os filhos brasileiros eram discriminados por sua origem, entre filhos legítimos, quando oriundos do casamento, única entidade familiar então reconhecida, e filhos ilegítimos, subdivididos entre os naturais, nascidos sem que os pais fossem casados, adulterinos, quando havidos em relação paralela ao casamento, ou incestuosos, quanto concebidos entre parentes impedidos de se casarem. (MADALENO, 2018, p. 96).
Ainda segundo o citado civilista, a filiação não é mais analisada apenas pelo critério biológico, haja vista que toda paternidade necessita, sobretudo, do afeto como elemento essencial, caracterizador do conceito de família contemporâneo, não dependendo exclusivamente do fator genético (MADALENO, 2018, p. 103).
4 RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO
O reconhecimento da filiação, dada a sua enorme importância na dinâmica contemporânea do Direito de Família, possui capítulo próprio no Código Civil de 2002, presente entre os artigos 1.607 a 1.617, abrangendo ainda, por disposição expressa, os filhos havidos fora do casamento – trata-se do que, no passado, a sociedade conhecia como “filho bastardo”, que recebia tratamento discriminatório e pejorativo.
Conforme Carlos Rolf Madaleno:
Embora ainda não tenha sido atingido o modelo ideal de igualdade absoluta de filiação, porque esquece a lei a filiação socioafetiva, ao menos a verdade biológica e a adotiva não mais deveriam encontrar resquício algum de diferenciação e tratamento, como ainda ocorre, inadvertidamente, quando a lei trata de só presumir a paternidade no casamento e não na união estável e também quando outorga apenas ao marido de mulher casada impugnar a paternidade de filho gerado por sua esposa. (MADALENO, 2018, p. 96)
Ocorrendo o reconhecimento, nos termos da legislação de regência, não será possível que ocorra a revogação, já que havendo o reconhecimento do filho, não será possível que o ato seja desfeito pela manifestação de vontade daquele que o praticou, em razão do princípio da irrevogabilidade e conforme previsão do artigo 1.610 do Código Civil de 2002.
Insta mencionar que tanto o reconhecimento legal quanto o voluntário são irrevogáveis, de modo que descabe a sua desconstituição em momento posterior, isso porque o reconhecimento da filiação versa sobre estado de pessoas, sendo considerado incondicional. Como o estado do indivíduo, na forma prescrita pela Teoria Geral do Direito Civil, é permanente, não deve estar sujeita a flexibilizações, sob pena de dar causa à indesejada insegurança jurídica.
O reconhecimento voluntário é aquele que decorre da vontade do genitor. Trata-se de ato jurídico em sentido estrito, de caráter irrevogável e personalíssimo, com eficácia erga omnes. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha se limitado a admitir o reconhecimento de filhos “no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação” (art. 26), a Lei n. 8.560/92 veio possibilitar também o reconhecimento por “escrito particular, a ser arquivado em cartório” ou “manifestação direta e expressa perante o juiz”. (SCHREIBER, 2021, p. 851).
5 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
A filiação que decorre da posse de estado de filho, definida como sendo “de outra origem” pelo Código Civil de 2002 em sede de seu artigo 1.593, é aquela que se convencionou chamar de filiação socioafetiva, tratando-se de uma modalidade de adoção de fato, conforme se extrai da rica doutrina de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2021, p. 784).
Nesse sentido leciona Rolf Madaleno:
Não pode ser descartado o importante fenômeno da desbiologização da família, em que a filiação socioafetiva tem preponderado sobre vínculos unicamente biológicos e que já se faz presente na adoção judicial, adoção à brasileira e na reprodução assistida, a demonstrar que a identidade biológica cede espaço social e jurídico para uma nova base de unidade familiar escorada no valor supremo do afeto em sintonia com o princípio dos melhores interesses da criança e do adolescente. (MADALENO, 2018, p. 123).
Essa modalidade de filiação não decorre de fator puramente biológico, na verdade, baseia-se exclusivamente em laços afetivos que são desenvolvidos entre pais e filhos, sendo permanentemente vedado pelo ordenamento jurídico qualquer tipo de tratamento discriminatório referente à origem da filiação.
Ocorre a paternidade socioafetiva, dentre outras situações, quando o pai movido pelo afeto passa a considerar a prole de sua companheira como sendo seu próprio filho, e para tal finalidade é necessária comprovação e declaração judicial, requisitos para gerar plena eficácia.
O registro, nesse caso, deve ser voluntário pelo pai e, frise-se, o ato não poderá ser desfeito a bel prazer, isto é, pela simples manifestação de vontade daquele que manifesta o reconhecimento, sendo, ao filho reconhecido, dado a garantia do direito à filiação, nos limites do que dispõe o diploma cível brasileiro. Uma vez devidamente caracterizada, a paternidade socioafetiva não poderá ser relevada caso haja eventual separação entre o casal, e nesse caso o pai registral estará obrigado a todos os direitos e deveres decorrentes do estado de paternidade.
6 DESCONTINUAÇÃO DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2021, p. 623) discorrem sobre o assunto alegando que o afeto constitui elemento essencial da filiação socioafetiva, assim como a convivência familiar e o tratamento recíproco na relação entre pai e filho. Diante da possível ausência de qualquer desses requisitos fundamentais e, também, da ausência do vínculo biológico, não poderá ser caracterizada a paternidade socioafetiva, e, por consequência, não gerará qualquer tipo de vínculo parental, dando margem para que seja possível a revogação a paternidade já reconhecida por meio de judicialização adequada, demandada em Ação Negatória de Paternidade.
É nesse sentido que pondera Anderson Schreiber:
O reconhecimento judicial da filiação não deriva apenas da identificação do vínculo biológico. O direito civil contemporâneo reconhece que a filiação é um dado cultural, construído no cotidiano da convivência familiar, que pode corresponder ou não à descendência biológica. Já há algum tempo, a doutrina vinha empregando a expressão “posse do estado de filho”, para indicar a situação fática daquele que, independentemente da origem biológica, é tratado como filho por outra pessoa, de modo contínuo e notório. (SCHREIBER, 2021, p. 855).
Leciona o autor que quando não restar devidamente caracterizada a paternidade socioafetiva, tanto por inexistência de vínculo biológico quanto pela inexistência de vínculo afetivo, caberá ao pai requerer, por via judicial, que o seu nome seja anulado no registro civil da filiação afetiva.
Acrescentam ainda que, no momento em que se der o registro, o pai, que acreditar estar procedendo ao registro do próprio filho, passará a ter uma presunção legal de paternidade. No entanto, nas situações em que o registro decorrer de erro ou qualquer falsidade descoberta em momento posterior pelo pai, será possível o seu desfazimento judicial.
Pablo Stolze (2021, p. 743), no seu magistério, explica que o direito do pai afetivo de proceder à desconstituição da filiação deverá ser sempre ponderado no caso concreto, principalmente se houver qualquer tipo de prejuízo para o filho em decorrência do afastamento da situação jurídica de paternidade; sempre devem prevalecer os interesses que foram originariamente conferidos à prole, zelando pelo melhor desenvolvimento da criança e do adolescente, a fim de evitar, assim, que ocorra qualquer desgaste emocional indesejado.
Desse modo, Stolze (2021, p. 745) aduz que, para que se torne possível a desconstituição da paternidade socioafetiva, é mister comprovar que, no momento em que se procedeu ao registro, o pai foi teve o seu consentimento viciado de algum modo. O vício do consentimento é caracterizado pelo erro ou pela falsidade no instante em que ocorre a manifestação de vontade.
Entretanto, prossegue o supracitado autor, havendo relação assentada nos laços de afetividade entre pais e filhos, relacionando uns aos outros, de tais vínculos emergirão direitos e deveres a serem exercidos por ambos os pais para proporcionar o desenvolvimento do filho (STOLZE, 2021, p. 747).
Neste sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Tocantins em um recurso de apelação:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA QUE COMPROVA QUE O AUTOR/APELADO NÃO É O PAI BIOLÓGICO DA ADOLESCENTE RÉ/APELANTE. AUTOR/APELADO QUE FOI INDUZIDO A ERRO QUANDO DO RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE REGISTRAL DA RÉ/APELANTE. VÍCIO DE CONSENTIMENTO CONFIGURADO. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO ENTRE AS PARTES LITIGANTES. SENTENÇA DE DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE REGISTRAL CONFIRMADA. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E IMPROVIDA.
1. À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ, O RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO DA PATERNIDADE REGISTRAL SOMENTE PODE SER DESCONSTITUÍDO PELO PODER JUDICIÁRIO QUANDO DEMONSTRADOS 1.1) QUE O PAI REGISTRAL NÃO É O PAI BIOLÓGICO DA CRIANÇA OU ADOLESCENTE, DEVIDAMENTE COMPROVADO POR EXAME GENÉTICO DE PATERNIDADE (DNA); 1.2) A DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DE QUE O PAI REGISTRAL FOI INDUZIDO A ERRO QUANDO EFETUOU O REGISTRO DA PATERNIDADE, POR ACREDITAR FIRMEMENTE QUE ERA O GENITOR DA CRIANÇA OU ADOLESCENTE, O QUE FOI POSTERIORMENTE REFUTADO POR EXAME DE DNA; E 1.3) QUANDO NÃO HOUVER PROVA DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO ENTRE O PAI REGISTRAL E A CRIANÇA OU ADOLESCENTE REGISTRADA.
2. CASO CONCRETO EM QUE É DE SE CONFIRMAR A SENTENÇA DE DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE REGISTRAL, UMA VEZ QUE 2.1) O EXAME GENÉTICO DE PATERNIDADE (DNA) ATESTOU QUE O AUTOR/APELADO NÃO É O PAI BIOLÓGICO DA ADOLESCENTE; 2.2) RESTOU COMPROVADO QUE O AUTOR/APELADO FOI INDUZIDO A ERRO (VÍCIO DE CONSENTIMENTO) AO REGISTRAR A ADOLESCENTE COMO SUA FILHA, UMA VEZ QUE À ÉPOCA DA CONCEPÇÃO DESTA, MANTINHA RELACIONAMENTO AMOROSO COM A GENITORA DA MESMA, SENDO QUE A PATERNIDADE BIOLÓGICA RESTOU POSTERIORMENTE REFUTADA POR MEIO DE EXAME DE DNA; 2.3) HÁ PROVA DE QUE AO TEMPO DA PROPOSITURA DA AÇÃO ORIGINÁRIA JÁ NÃO HAVIA MAIS QUALQUER SOCIOAFETIVO ENTRE AS PARTES LITIGANTES, SENDO QUE NEM O AUTOR/APELADO RECONHECE A RÉ/APELANTE COMO FILHA, NEM ESTA TEM NAQUELE A FIGURA PATERNA.
3. NÃO SE PODE OBRIGAR O PAI REGISTRAL, INDUZIDO A ERRO SUBSTANCIAL, A MANTER UMA RELAÇÃO DE AFETO, IGUALMENTE CALCADA NO VÍCIO DE CONSENTIMENTO ORIGINÁRIO, IMPONDO-LHE OS DEVERES DAÍ ADVINDOS, SEM QUE, VOLUNTÁRIA E CONSCIENTEMENTE, O QUEIRA. A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA PRESSUPÕE A VONTADE E A VOLUNTARIEDADE DO APONTADO PAI DE SER ASSIM RECONHECIDO JURIDICAMENTE, CIRCUNSTÂNCIA, INEQUIVOCAMENTE, AUSENTE NA HIPÓTESE DOS AUTOS. A SOCIOAFETIVIDADE SE CONSOLIDARIA CASO O AUTOR/APELADO, MESMO APÓS TER OBTIDO CIÊNCIA DA VERDADE DOS FATOS, OU SEJA, DE QUE NÃO É PAI BIOLÓGICO DA RÉ/APELANTE, MANTIVESSE COM ESTA, VOLUNTARIAMENTE, O VÍNCULO DE AFETIVIDADE, SEM O VÍCIO QUE O INQUINAVA. PRECEDENTES.
4. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E IMPROVIDA.
(Apelação Cível 0029720-24.2019.8.27.0000, Rel. ETELVINA MARIA SAMPAIO FELIPE, GAB. DA DESA. ETELVINA MARIA SAMPAIO FELIPE, julgado em 04/03/2020, DJe 05/03/2020 13:19:35)
Seguindo esta mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça consolidou orientação, como se extrai da decisão a seguir:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. RELAÇÃO SOCIOAFETIVA. EXISTÊNCIA. JULGAMENTO: CPC/2015.
1. Ação negatória de paternidade cumulada com anulação de registro de nascimento ajuizada em 02/09/2017, da qual foi extraído o presente recurso especial interposto em 01/03/2019 e atribuído ao gabinete em 31/05/2019.
2. O propósito recursal é definir se é possível a declaração de nulidade do registro de nascimento do menor em razão de alegada ocorrência de erro e de ausência de vínculo biológico com o registrado.
3. O art. 1604 do CC/02 dispõe que "ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro". Vale dizer, não é possível negar a paternidade registral, salvo se consistentes as provas do erro ou da falsidade.
4. Esta Corte consolidou orientação no sentido de que para ser possível a anulação do registro de nascimento, é imprescindível a presença de dois requisitos, a saber: (i) prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto e (ii) inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho. Assim, a divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o registro. Precedentes.
5. Na hipótese, apesar da inexistência de vínculo biológico entre a criança e o pai registral, o recorrente não se desincumbiu do ônus de comprovar a existência de erro ou de outra espécie de vício de consentimento a justificar a retificação do registro de nascimento do menor. Ademais, o quadro fático-probatório destacado pelo Tribunal local revela a existência de nítida relação socioafetiva entre o recorrente e a criança. Nesse cenário, permitir a desconstituição do reconhecimento de paternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade.
6. Recurso especial conhecido e desprovido.
(REsp n. 1.814.330/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 28/9/2021.)
Assim, pode-se afirmar que o reconhecimento da paternidade socioafetiva constitui ato irrevogável (STOLZE, 2021, p. 753). Essa irrevogabilidade se dá justamente visando a proteção dos interesses dos filhos, tendo em vista que afeto e confiança são considerados inerentes ao exercício da filiação, não sendo cabível ao pai desfazer esse vínculo por livre e espontânea vontade. Para que seja possível reivindicar a desconstituição da paternidade socioafetiva no registro civil, portanto, o pai deverá provar que houve e erro ou falsidade no registro.
Dessarte, é claro que a paternidade socioafetiva desenvolvida pelos laços afetivos não se desfaz necessariamente com a intervenção jurídica, haja vista que prevalecem os princípios do melhor interesse da criança e adolescente, considerando a integridade física e psicológica do menor, conforme a brilhante doutrina de Flávio Tartuce (2021, p. 823).
Sabe-se que o interesse da figura paterna na desconstituição da paternidade está geralmente atrelado ao término da relação com a mãe da criança. Desse modo, a fim de ficar isento de quaisquer obrigações decorrentes do estado de paternidade, em muitos casos o obrigado afetivo busca a anulação do registro objetivando de afastar todos os seus deveres decorrentes do estado. (TARTUCE, 2021, p. 823).
Diante desse cenário, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm reconhecido a impossibilidade da desconstituição da paternidade socioafetiva, pugnando pela preservação dos interesses dos menores.
Conforme a doutrina de Rolf Madaleno:
Interessa ao Estado a sólida organização das famílias e dos vínculos que estas relações produzem em toda estrutura da sociedade, nela se assentando as colunas econômicas e as raízes morais da organização social.28A lei regula tanto as relações de parentesco, no seu aspecto mais restrito e pessoal, como disciplina os vínculos mais distantes e que igualmente interessam à ordem social. (MADALENO, 2018, p. 130).
Entende-se, portanto, com respaldo jurisprudencial e doutrinário, que a motivação existente para originar o término do relacionamento amoroso havido entre a mãe da criança e o citado pai registral não deverá atingir o filho. Importante ressaltar, sempre, que os deveres inerentes à paternidade não desaparecem com a separação conjugal, nos termos do que está disposto na obra de Carlos Roberto Gonçalves (2017, p. 427).
Por fim, Flávio Tartuce (2021, p. 812) entende que a filiação socioafetiva deve prevalecer sobre eventuais conflitos que tratem acerca da paternidade, a fim de que se busque sempre o melhor desenvolvimento da criança e do adolescente, não devendo os egoísmos pessoais dos genitores atravessar a segurança jurídica dada aos estados de filiação e paternidade.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o que restou analisado por meio deste trabalho, com base em pesquisa documental tendo por ponto de partida a doutrina majoritária brasileira em matéria de direito civil, com enfoque no Direito de Família, e a jurisprudência correlata, é possível tecer algumas conclusões acerca do tema cuja investigação foi proposta.
De exórdio, tem-se que o conceito de família mudou muito ao longo dos tempos. Aquela família heteronormativa e dependente do casamento, da existência das figuras paternas e da prole biológica sofreu mudanças radicais conforme a sociedade foi evoluindo em prol do alcance da dignidade humana.
Desse modo, a legislação cível brasileira não mais distingue o filho biológico do filho adotivo, vedando, inclusive, qualquer forma de discriminação que daí possa se originar. Assim, é possível que a filiação afetiva seja reconhecida por pai que possua conteúdo biológico diverso daquele que deu origem genética ao filho adotivo.
Entretanto, é importante ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro permite esse reconhecimento voluntário da filiação, todavia, por versar sobre estados dos indivíduos, tal reconhecimento será considerado irrevogável, isto é, o estado de paternidade/filiação adquirido não será disponível, de modo que não é dado ao pai que efetuar o reconhecimento desistir dele depois por motivos pessoais.
Dessarte, conclui-se que a descontinuidade da paternidade socioafetiva só será possível havendo fundadas razões para tanto, quais sejam: a existência de vícios do consentimento ou de fraude no registro. Caso o pai afetivo reconheça voluntariamente a paternidade, por livre e espontânea vontade, tanto a doutrina quanto a jurisprudência estão inclinadas na afirmação de que é impossível que se proceda a revogação.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2021.
BRASIL. Lei. nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o novo Código Civil. DOU de 11.01.2002.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.814.330/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 14/9/2021. DJe de 28/9/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201901331380&dt_publicacao=28/09/2021. Acesso em 09/11/2022.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª edição. Salvador: Juspodivm, 2021.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil – Volume Único. 6ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2021.
Instituto Brasileiro de Direito de Família. A importância dos Princípios Específicos do Direito das Famílias. https://ibdfam.org.br/artigos/615/A%20import%C3%A2ncia%20dos%20Princ%C3%ADpios%20Espec%C3%ADficos%20do%20Direito%20das%20Fam%C3%ADlias. Acesso em 17/11/2022.
Jornadas de Direito Civil – Conselho da Justiça Federal. https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej. Acesso em 10/10/2022.
MADALENO, Rolf. Direito de Família. 8ª edição. São Paulo, Grupo Gen, Editora Método, 2018.
SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 3ª edição. São Paulo: Saraiva Jur, 2021.
STOLZE, Pablo. Manual de Direito Civil – Volume único.6ª edição. São Paulo, Saraiva Jur, 2020
STOLZE, Pablo. Manual de Direito Civil – Volume único.7ª edição. São Paulo, Saraiva Jur, 2021.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 11ª edição. São Paulo, Grupo Gen, Editora Método, 2021.
TOCANTINS, Tribunal de Justiça do Tocantins. Apelação Cível 0029720-24.2019.8.27.0000. Rel. ETELVINA MARIA SAMPAIO FELIPE. Julgado em 04/03/2020. DJe 05/03/2020. Disponível em: https://jurisprudencia.tjto.jus.br/documento.php?uuid=325e0004e140eade831513b97985250d&options=%23page%3D1. Acesso em 09/11/2022.
Graduanda em Direito pela Universidade de Gurupi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, IZABELLA DE SOUZA. Descontinuação da filiação socioafetiva – possível ou impossível? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2022, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60183/descontinuao-da-filiao-socioafetiva-possvel-ou-impossvel. Acesso em: 23 dez 2024.
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