MAYDÊ BORGES BEANI CARDOSO[1]
(orientadora)
RESUMO: Dentre os princípios fundamentais que protegem o direito dos menores de idade, a busca pelo melhor interesse da criança e do adolescente se destaca, juntamente com a afetividade das relações formadas em ambientes familiares. No direito de família, mais precisamente na regulamentação da guarda dos filhos menores de idade, o dever de afeto está previsto na Constituição Federal, no Código Civil e também no Estatuto da Criança e do Adolescente, juntamente com a obrigação de cuidar, educar, proporcionar saúde e segurança. Com o advento da Lei da Guarda Compartilhada, esta modalidade de se tornou a regra de aplicação e passou a ser indicada aos casos concretos por representar igualdade de convívio para ambos os genitores do menor. Entretanto, diante da recorrência com que acontecem situações de abandono afetivo por parte de um dos genitores após o rompimento de relacionamento amoroso, esta pesquisa jurídica analisa a possibilidade de responsabilização afetiva até mesmo no compartilhamento de guarda e quais as suas consequências jurídicas admitidas nas leis nacionais. Classificada como revisão de bibliografia e elaborada segundo o método dedutivo, a produção científica se desenvolveu de acordo com opiniões e teses publicadas por autores, disponibilizadas em doutrinas, revistas jurídicas e periódicos.
Palavras-chave: Guarda compartilhada. Responsabilidade. Afetividade. Convivência. Dever de cuidado.
ABSTRACT: Among the fundamental principles that protect the rights of minors, the search for the best interests of children and adolescents stands out, along with the affection of relationships formed in family environments. In family law, more precisely in the regulation of the custody of minor children, the duty of affection is provided for in the Federal Constitution, in the Civil Code and also in the Statute of Children and Adolescents, together with the obligation to care, educate, provide health and safety. With the advent of the Shared Guard Law, this modality became the rule of application and started to be indicated to specific cases because it represents equality of coexistence for both parents of the minor. However, given the recurrence with which situations of affective abandonment by one of the parents occur after the breakup of a romantic relationship, this legal research analyzes the possibility of affective accountability even in the sharing of custody and what are its legal consequences admitted in national laws. . Classified as a bibliography review and elaborated according to the deductive method, the scientific production was developed according to opinions and theses published by authors, available in doctrines, legal journals and periodicals.
Keywords: Shared custody. Responsibility. Affectivity. coexistence. Duty of care.
Sumário: Introdução. Material e Métodos. 1. Noções Introdutórias sobre a Guarda Compartilhada. 2. O Melhor Interesse do Menor. 2.1 O Dever de Cuidado dos Guardiões. 3. A Responsabilidade Afetiva no Direito Brasileiro. 4. Requisitos Necessários para a Configuração do Abandono Afetivo. 5. O Abandono Afetivo e a Responsabilização dos Genitores. 5.1. O Abandono Afetivo e as Decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Objeto de um significativo avanço social, desde a sua inserção no direito de família brasileiro, a guarda de menores na forma compartilhada, tem sido objeto de estudo por parte dos operadores do direito que se debruçam sobre as obrigações e direitos dos pais em relação à criação dos filhos e especialmente como se dará a garantia de convivência igualitária com os genitores após o rompimento de relação conjugal ou de companheirismo.
Ao incluir a guarda compartilhada no ordenamento jurídico como regra nas dissoluções de uniões estáveis e casamento, pretendeu o legislador da Lei n. º 13.058/2014, assegurar aos pais e filhos uma convivência igualitária com os genitores, tal qual se dava antes da separação de residências.
Está estabelecido que ambos os genitores exercerão de forma idêntica os direitos e deveres em relação às crianças e aos adolescentes, de forma a suprimir a ausência que a separação poderia significar na vida dos menores.
Em tese, além da presença, será mantido também o relacionamento e o afeto entre pais e filhos. Isto porque, mesmo nas situações de convivência reduzida, persiste para os pais o dever de cuidado e de afeto perante os seus filhos, não se isentando os genitores da responsabilidade de participação efetiva da vida de seus filhos.
Ocorre que na prática, não são raras as vezes, em que o rompimento de relacionamento amoroso acaba por refletir na relação entre pais e filhos, especialmente nas situações em que há dificuldade de convivência harmoniosa e divisão de responsabilidades entre os guardiões, de modo que o afeto entre os envolvidos seja deixado de lado.
Apesar do exposto, a questão emocional não passa despercebida aos olhos da Lei e do Poder Judiciário, com destaque para os direitos afetivos dos menores e as suas expectativas em relação ao afeto dos pais para com eles. Por tal motivo é que esta pesquisa jurídica trata da responsabilidade afetiva dos genitores em regime de guarda compartilhada e as consequências do abandono afetivo de seus filhos.
MATERIAL E MÉTODOS
Produzida na cidade de Gurupi, no Tocantins, a pesquisa apresentada à Universidade de Gurupi – UnirG com vias à obtenção do título de Bacharel em Direito, se classifica como bibliográfica por ser redigida com base em material bibliográfico publicado antes da redação do artigo científico. Quanto aos objetivos se classifica como exploratória por indicar de forma completa o tema escolhido, apresentando o que diz a doutrina, a legislação e a jurisprudência relacionada ao assunto.
Com material selecionado através de pesquisa em sites, bibliotecas, jornais e revistas jurídicas, a metodologia utilizada para a análise dos dados e informações coletados consiste na implantação de técnicas de análise qualitativa do texto, compreendendo simultaneamente a análise de conteúdo, a análise do discurso e também o confrontamento de informações, uma vez que existem entendimentos contrários e favoráveis à possibilidade de ser o genitor responsabilizado pelo abandono afetivo.
A seguir, os resultados obtidos são apresentados na forma textual mediante a transcrição de trechos levantados na pesquisa bibliográfica.
1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A GUARDA COMPARTILHADA
Por muito tempo, entendeu-se que a guarda dos filhos menores somente poderia ser exercida em conjunto pelos genitores em regime de convivência conjugal ou unilateralmente em casos de separação dos pais, permitida a alternância de responsabilidade em determinadas situações. Não havia a possibilidade de simultânea responsabilidade de genitores que não mais se consideravam casais.
Ocorre que a evolução da sociedade, aliada à compreensão de que a responsabilidade dos genitores não se extingue com a separação de um casal, o ordenamento nacional passou a admitir o compartilhamento de direitos e deveres através da denominada guarda compartilhada.
A guarda compartilhada almeja assegurar o interesse do menor, com o fim de protegê-lo, e permitir o seu desenvolvimento e a sua estabilidade emocional, tornando-o apto à formação equilibrada de sua personalidade. Busca-se diversificar as influências que atuam amiúde na criança, ampliando o seu espectro de desenvolvimento físico e moral, a qualidade de suas relações afetivas e a sua inserção no grupo social. Busca-se, com efeito, a completa e a eficiente formação sócio-psicológica, ambiental, afetiva, espiritual e educacional do menor cuja guarda se compartilha (MELO, 2008, p. 01).
Segundo Maria Berenice Dias (2021, p. 384), a guarda compartilhada advém do dinamismo nas relações familiares que levaram ao maior comprometimento de ambos os genitores com o cuidado de seus filhos, posto que a participação no processo de desenvolvimento integral da criança e do adolescente leva à pluralização das responsabilidades, com democratização de sentimentos.
“A guarda, no direito brasileiro, é o munus atribuído aos pais para cuidar dos filhos. A guarda compartilhada implica numa equilibrada participação dos pais na vida deles” (PEREIRA, 2021, p. 682).
No Brasil, a regulamentação e as regras da guarda compartilhada estão dispostas na Lei n. º 13.058, de 22 de dezembro de 2014, que alterou os artigos 1.583 ao 1.585 e o 1.634 do Código Civil para estabelecer o significado da guarda compartilhada e determinar sua aplicação em território nacional.
É da lei a conceituação da guarda compartilhada e a sua diferenciação da guarda unilateral:
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
§ 1 o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5 o ) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
§ 2 o Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos (BRASIL, 2002).
Em síntese, a guarda compartilhada expressa não apenas um direito dos pais, mas também das crianças e dos adolescentes, uma vez que assegura a todos a manutenção da convivência e do afeto.
A convivência dos filhos com seus pais é um direito “sagrado” que decorre desses vínculos familiares. Independentemente da conjugalidade dos pais, deve ser assegurado aos filhos, o maior convívio com ambos os pais, ou com todos os pais, se tiverem mais de dois pais, como é o caso da multiparentalidade. Embora guarda e convivência não estejam, necessariamente vinculados à conjugalidade, a maior parte das desavenças e disputas decorre do fim da conjugalidade (PEREIRA, 2021, p. 677).
Dito isso, é possível afirmar que a fixação da modalidade de guarda compartilhada quebra a estrutura de poder expressada na unilateral, promovendo a igualdade entre genitores (PEREIRA, 2021), motivo pelo qual passou a ser a regra nas separações de casais, expressada no §2º do artigo 1.584 do Código Civil, nos seguintes termos:
Art. 1.584. [...] § 2 o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor. (BRASIL, 2002)
O motivo da previsão anteriormente citada advém do princípio do direito de família do melhor interesse do menor.
2 O MELHOR INTERESSE DO MENOR
O direito civil brasileiro se fundamenta nas diretrizes trazidas pela Constituição Federal de 1988 que em seu texto não deixa dúvidas acerca da proteção integral das crianças e dos adolescentes, o qual pode ser extraído o artigo 227 da Lei Maior que estabelece o dever da família, da sociedade e do Estado os direitos fundamentais dos menores de idade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é categórico ao dispor sobre os direitos desses cidadãos:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990)
A partir dessas previsões legais, tem-se o princípio do melhor interesse do menor.
O que interessa na aplicação deste princípio fundamental é que a criança/adolescente, cujos interesses e direitos devem sobrepor-se ao dos adultos, sejam tratados como sujeito de direitos e titulados de uma identidade própria e também uma identidade social. E, somente no caso concreto, isto é, em cada caso 2.3.4 especificamente, pode-se verificar o verdadeiro interesse sair da generalidade e abstração da efetivação ao Princípio do Melhor Interesse. Para isso é necessário abandonar preconceitos e concepções morais estigmatizantes. Zelar pelo interesse dos menores de idade é cuidar de sua boa formação moral, social, relacional e psíquica. É preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social (PEREIRA, 2021, p. 178-179).
É esse princípio que fundamenta o surgimento e a manutenção da guarda compartilhada no direito brasileiro:
Sabe-se hoje que uma boa mãe ou um bom pai, pode não ser um bom marido ou boa esposa. Em outras palavras, as funções conjugais são diferentes das funções parentais, e devem ser diferenciadas para que se faça um julgamento justo sobre guarda e convivência de filhos. Mudou-se não só os julgamentos, mas também a concepção de guarda de filhos, que deverá ficar com quem atender seu melhor interesse, não necessariamente o pai ou a mãe. E foi exatamente atendendo a este interesse maior que a ideia de guarda única perdeu lugar para a guarda compartilhada (também denominada de guarda conjunta) como regra geral (Lei nº 11.698/08). É também em atendimento ao Princípio do Melhor Interesse da Criança e Adolescente, que surgiram novas concepções e institutos jurídicos (p. PEREIRA, 2021, P. 177-178).
O Código Civil prevê que em caso de fixação judicial de guarda de menores, deverá o juiz observar as necessidades específicas do filho quando da determinação do tempo de convívio com seus genitores (artigo 1.584, inciso II) (BRASIL, 2002).
O fundamento é utilizado nos julgamentos de casos concretos, até mesmo para alterar a guarda anteriormente fixada, conforme a jurisprudência faz prova:
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. GUARDA COMPARTILHADA. ALTERAÇÃO PARA GUARDA UNILATERAL. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. OBSERVÂNCIA. 1. A implementação da guarda unilateral não se sujeita à conveniência ou transigência dos pais, devendo-se observar o princípio do melhor interesse do menor. 2. Ainda que não haja consenso entre os pais, a guarda compartilhada representa a proteção do melhor interesse dos filhos, porque possibilita a divisão de responsabilidade dos genitores, proporcionando ao desenvolvimento humano a aproximação ao ideal psicológico do duplo referencial. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJ-DF: XXXXX-74. 2018.8.07.0016 – Segredo de Justiça. 8ª Turma Cível. Relator Mariozam Belmiro. Julgamento do Acórdão em 30/07/2019).
Superada a dissolução da união dos pais, uma vez fixada a guarda com base no interesse da criança e do adolescente, surge para os genitores o dever de cumprir com suas obrigações legais.
2.1 O DEVER DE CUIDADO DOS GUARDIÕES
Conforme dito anteriormente, a Lei n. º 13.058, de 22 de dezembro de 2014, em suas disposições, trouxe a conceituação legal da guarda compartilhada e também a tornou a modalidade de guarda considerada regra geral aos casos em concreto, prevendo o convívio equilibrado com a mãe e com o pai, se caracterizando o compartilhamento de guarda como um instrumento de garantia da isonomia entre pais separados em relação à criação de seus filhos.
Com está modalidade de guarda os genitores puderam igualitariamente e em conjunto desfrutar de todos os direitos e deveres, além de não haver uma exclusividade entre os genitores, pois ambos são solidariamente responsáveis pelo menor, pela educação, saúde, sustento, lazer, benefícios esses que apenas dizem respeito a guarda compartilhada, nenhuma outra modalidade de guarda permite essa igualdade entre os genitores, sendo recomendável pois é a que menos afeta a vida do menor, e dos seus genitores (VIAN et.al., 2021, p.1).
Sobre os deveres dos guardiões, o Estatuto da Criança e do Adolescente menciona no caput do seu artigo 33: “A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais” (BRASIL, 1990).
Deste modo, ao fixar a divisão igualitária das obrigações, a legislação civil permite também a responsabilização do genitor que descumpre as regras fixadas no compartilhamento da guarda.
Com o advento da guarda compartilhada os genitores passam a ter direitos como também deveres como cuidar, educar, fornecer o essencial para o bem estar do menor em conjunto, respeitando as decisões de ambos e criando um bom convívio, além de disso, quando houver descumprimento desses direitos e deveres haverá punição cabível (VIAN et.al., 2021, p.1).
Uma vez desobedecida a obrigação por parte de um dos genitores, deixando de dar afetividade a criança e ao adolescente na guarda compartilhada, poderá ser responsabilizado pelo abandono emocional do menor.
3 A RESPONSABILIDADE AFETIVA NO DIREITO BRASILEIRO
Dos dispositivos legais que regulamentam as relações familiares, especialmente entre pais e filhos, tem-se como implícito o inegável dever de criar os filhos com amor e carinho para que cresçam em um lar saudável e dotado de dignidade.
Justamente por tal motivo é que se mantém em destaque, a responsabilidade afetiva nas relações familiares, que decorre do princípio da afetividade, que em um sentido geral, aborda o seguinte:
O princípio da afetividade aborda, em seu sentido geral, a transformação do direito mostrando-se uma forma aprazível em diversos meios de expressão da família, abordados ou não pelo sistema jurídico codificado, possuindo em seu ponto de vista uma atual cultura jurídica, e dando enfoque no que diz respeito ao afeto atribuindo uma ênfase maior no que isto representa (NUNES, 2014, p. 1).
Do princípio mencionado, outro conceito passa a ser observado, a responsabilidade afetiva, que nada mais é do que o indivíduo se responsabilizar pelo sentimento e pelas expectativas criadas nas outras pessoas com quem se relaciona (TUCHLINSKI, 2020, p. 1).
Assim, em uma relação entre pais e filhos, fixada a guarda compartilhada é inegável o surgimento de expectativas de convívio e participação do guardião na vida do infante tal qual se daria em caso de união amorosa entre os genitores, minimizando os danos que a separação ocasiona.
Há vantagens na guarda compartilhada que são nítidas como a oportunidade de ambos desfrutarem de igual direito a convivência com o filho, e este é um ponto de grande relevância na vida do menor, que passa a sofrer em menor proporção o efeito do fim do afeto que unia os seus genitores, a criança se sentirá mais acolhida mesmo sabendo que seus pais não estão mais juntos, para a maior parte da doutrina, este modelo é que provoca menos impacto no desenvolvimento do menor e é de suma importância (VIAN et.al., 2021, p.1).
Portanto, nas relações familiares, a afetividade entre os membros é essencial, tanto em relação à figura materna, como também a paterna. O ordenamento jurídico, consequentemente, destaca a relevância do afeto tal qual os alimentos, etc.
Atualmente, não se consegue dimensionar o direito de família sem direcioná-lo à afetividade como requisito essencial nas relações; a cada dia mais e mais este fundamento é agregado nos conceitos pertinentes à universalidade familiar, pois é daí que se faz cumprir a aludida paternidade responsável, que se preocupa com os recursos materiais e os morais.
Não se pode pesar que uma criança precise mais dos recursos materiais do que dos morais. Os dois apresentam elevado sentido de composição do ser humano, pois se o corpo não vive sem comida, o corpo mental, psicológico e social não vivem sem as relações, uma vez que elas são a expressão do amor e do afeto (OLIVEIRA, 2010, p. 10).
De fato, os genitores possuem ampla responsabilidade em relação aos seus filhos, não se limitando ao fornecimento de suporte material, mas igualmente o suporte afetivo, tanto que, deixando de fornecer ao infante o afeto necessário, podem vir a ser penalizados através da configuração do abandono afetivo.
4 REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO ABANDONO AFETIVO
Objeto de demandas indenizatórias, o abandono afetivo “acontece quando pais negligenciam a relação com seus filhos, faltando com o afeto e com os deveres garantidos pelo art. 227 da Constituição Federal às crianças e adolescentes (VERZEMIASSI, 2021, p. 1)”.
O doutrinador Álvaro Villaça Azevedo destaca que não se trata de um dever de amor, mas da obrigação de cuidado:
Os pais não são obrigados a amar seus filhos, mas a cuidar deles, material e imaterialmente. O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º , III, da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, exige esse respeito devido à pessoa. Os direitos e deveres da personalidade devem ser cumpridos, para que se valorize a pessoa com a dignidade necessária no convívio social (AZEVEDO, 2019, p. 364).
Maria Berenice Dias complementa:
[...] a convivência dos pais com os filhos não é um direito, é um dever. Não há direito de visitá-lo, há a obrigação de conviver com eles. O distanciamento entre pais e filhos produz consequências de ordem emocional e pode comprometer o seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida (2021, p. 140).
Na prática, o abandono afetivo, assim como se dá com a alienação parental, costuma ocorrer após a separação de um casal, mas não se limita a tais situações, uma vez que, pode ocorrer em caso de filhos de pais solteiros, que não tenham mantido prévia convivência marital.
Sem uma definição legal precisa, tem-se que o abandono afetivo se caracteriza pela violação de qualquer das obrigações dos genitores impostas pelas leis aplicáveis, quais sejam: o artigo 227 da Constituição Federal; o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente e do artigo 1.634 do Código Civil (VERZEMIASSI, 2021).
Uma vez caracterizado o abandono, poderá haver a responsabilização civil do responsável.
5 O ABANONO AFETIVO E A RESPONSABILIZAÇÃO DOS GENITORES
Conforme visto até aqui, o motivo para a responsabilização dos genitores pelo abandono afetivo advém da ideia de que não se justifica mais a privação do direito dos filhos de pais divorciados ou solteiros de convivência, afeto, carinho e amor igualitário de ambos os pais, já responsáveis pela divisão da educação e criação dos filhos (PEREIRA, 2021).
O fundamento da responsabilização advém do fato de que o abandono viola diretamente uma série de princípios constitucionais.
A configuração da conduta omissa pelos pais e a ofensa direta aos princípios constitucionalmente assegurados, como o da Dignidade da Pessoa Humana, Paternidade Responsável, Solidariedade Familiar, Intimidade, Integridade Psicofísica, Convivência Familiar, Assistência, Criação e Educação, deve acarretar uma reparação ao filho, pois a reparação civil ou a indenização vem exatamente contemplar aquilo que não se pode obrigar. Não se trata de atribuir um valor ou um conteúdo econômico ao afeto. Admitir que somente o pagamento de pensão alimentícia é o bastante na relação entre pais e filhos é que significa monetizar tal relação. O abandono paterno/materno não tem preço e não há valor financeiro que pague tal falta. Como se disse, o valor da indenização é simbólico, mas pode funcionar como um lenitivo e um conforto para a alma. É que não se pode deixar de atribuir uma sanção às regras jurídicas. E, exatamente, por não ter como obrigar um pai ou uma mãe a amar seu filho é que se deve impor a sanção reparatória para a ausência de afeto, entendido como ação, cuidado, repita-se. Não admitir tal raciocínio significa admitir que os pais não são responsáveis pela criação de seus filhos. (PEREIRA, 2021, p. 661 - 622)
Além disso, o resultado advindo do abandono é o sofrimento do filho abandonado, representado por episódios de dor pelo não reconhecimento do amor. Apesar de não ser obrigatório o amor, a falta de cuidado em relação ao filho deve ser apenada em razão da responsabilidade social dos genitores. Quer isto dizer que os pais não estão autorizados a desprezar seus filhos, independentemente da sua concepção ter sido ou não desejada. (AZEVEDO, 2019).
Em situações reais, em disputa de guarda entre a mãe e o pai, o abandono afetivo foi objeto de análise judicial, influenciando diretamente na fixação da guarda unilateral apenas do genitor.
Agravo de instrumento. Ação de modificação de guarda. Genitor contra genitora. Decisão proferida no exercício do juízo de retratação restabeleceu guarda comum de filhos menores. Insurgência do autor. Alegação de que requerida não possui condições de exercer a guarda compartilhada. Indicação de abandono afetivo e material. Demonstrado o preenchimento dos requisitos do artigo 300, do CPC. Alteração constante da modalidade de guarda não é adequada aos menores. Manutenção de decisão anterior, que fixou guarda unilateral paterna. Genitores possuem relação altamente conturbada. Dúvida quanto à capacidade para o exercício da guarda por ambos os genitores. Condutas inadequadas e nocivas. Menores que, entretanto, têm amparo dos avós paternos. Necessária a realização de estudo psicossocial para eventual nova alteração. Data já designada pelo setor. Visitas virtuais da genitora mantidas. Agravo provido. (TJ-SP – AI: 21680782520208260000 SP 2168078-25.2020.8.26.0000, Relator: Adson Luiz de Queiróz, Data de Julgamento: 27/10/2020, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/10/2020).
Mas além disso, o abandono pode ensejar a condenação do genitor causador do dano ao pagamento de danos morais, uma vez comprovado o preenchimento dos requisitos legais da responsabilidade civil.
A possibilidade de responsabilização do genitor foi reconhecida pelo Colendo Tribunal Superior de Justiça:
EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à Responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Epecial nº 1.159.242. 3ª Turma Recursal. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. São Paulo, SP, data de Julgamento: 24.04.2012).
Todavia, apesar da decisão anterior que abriu um precedente no Judiciário brasileiro, na prática, o deferimento da indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo consiste em situação excepcional. Isto porque, sem comprovar a coexistência de conduta, dano e nexo causal, o pedido indenizatório será indeferido:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E DE FAMÍLIA. REPARAÇÃO DE DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO. CONDUTA, DANO E NEXO CAUSAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO. ATO ILÍCITO. AUSÊNCIA. PRESSUPOSTOS NÃO DEMONSTRADOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. A configuração da responsabilidade civil do genitor, para compensação, por abandono afetivo, exige a presença dos requisitos caracterizadores: a conduta omissiva ou comissiva do genitor (ao ilícito); o trauma ou prejuízo psicológico sofrido pelo filho (dano); e o nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano; e, ainda, a prova do elemento volitivo caracterizado pelo dolo ou a culpa. 2. O fato de existir pouco convívio com o genitor não é suficiente, por si só, a caracterizar o abandono afetivo a legitimar a correlata pretensão indenizatória. Para tanto, é preciso evidências robustas de que o comportamento de descaso, rejeição e desprezo acarretou danos psicológicos irreversíveis ao filho. 3. Os sentimentos de tristeza e saudades do filho, em relação à ausência de contato mais amiúde com o pai, não caracteriza situação de abandono afetivo. Outrossim, a eventual necessidade de majoração de pensão alimentícia e visitação mais condizente com as necessidades do filho não se convertem em obrigação jurídica resolvida por meio de pretensão de natureza indenizatória. 4. Recurso conhecido e desprovido. (TJDF – 00053551220168070017 DF 0005355-12.2016.8.07.0017. 4ª Turma Cível. Relator Soníria Rocha Campos D’Assunção. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/1307224236>. Acesso em 18 set. 2022.)
Com a popularização do dever de cuidado e da compreensão acerca dos princípios da afetividade e da dignidade humana nas relações familiares, os pedidos indenizatórios em todo o território nacional, com enfoque nas situações de abandono afetivo se tornaram mais comuns, inclusive no Estado do Tocantins.
5.1 O ABANDONO AFETIVO E AS DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO TOCANTINS
A exemplo do que se dá em todos os demais estados nacionais, o ingresso de ação indenizatória pelo abandono afetivo tem se concretizado também no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.
Todavia, as análises das situações têm levado ao indeferimento dos pedidos autorais sob o argumento de ausência de prova do ato ilícito do genitor. Nesse sentido, o exemplo concreto a seguir:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO SOFRIDO. EFETIVA COMPROVAÇÃO DO DANO. NECESSIDADE. INEXISTÊNCIA DA PRÁTICA DE ILÍCITO. CONFIGURAÇÃO. CONJUNTO PROBATÓRIO DOCUMENTAL. REPARAÇÃO DE DANOS. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
- Por se tratar de resultado danoso específico causado a terceiros, o dano moral deve ser efetivamente demonstrado, o que não ocorreu no caso vertente.
- Não restando efetivamente demonstrado o dano sofrido, bem como o ilícito que caracteriza a responsabilidade civil de reparação, inexiste, o dever de indenizar, uma vez que, não se configurou a prática de ato ilícito ou irregular, por parte da recorrida, inocorrendo ofensa a direito da autora/recorrente e, consequentemente inexistindo lesão a ser reparada, ou dever de indenizar por danos morais, nos moldes pleiteados pelas recorrentes. Inteligência do art. 927, do CC.
- Hipótese em que, no caso em concreto denota-se que não existe esta vinculação causal entre o aludido abalo moral sofrido pelo apelado, bem como inexiste a prática de ato ilícito perpetrado pela recorrida, uma vez que observa-se dos autos, consoante as declarações testemunhais, que o pedido indenizatório a título de danos morais está assentado na suposta ocorrência de constrangimentos gerados a autora/apelante pela expulsão e proibição de utilização do laboratório de informática da instituição pública requerida, ato este, que teria sido praticada na presença de outras pessoas. Entretanto, conforme consta da sentença, a recorrente nada trouxe aos autos para comprovar sua alegação, uma vez que no depoimento da testemunha NATALICE CARVALHO, perguntada sobre o momento em que a Autora recebeu a informação de que não mais poderia utilizar as dependências do laboratório, respondeu ao juízo: "que foi desrespeitoso? Não. Utilizou palavrões? Não..." (sic) AUDIO_MP32 evento 129: processo originário. Assim, outras testemunhas não relataram fatos diferentes ou não tinham conhecimento de tal situação. Ademais não prospera a alegação de constrangimento suportado pela recorrente, afirmando que o Diretor da Universidade apelada, Sr. Raimundo Bezerra Rodrigues as recebeu com palavras de sarcasmo e seu tratamento foi desumano: "não foi um tratamento cordial". Pois a simples afirmação de que o tratamento não foi cordial, não configura dano moral, como também não demonstra prática de ato ilícito.
- Não há os pressupostos para a majoração dos honorários recursais (precedentes do STJ: AREsp 1349182/RJ), especialmente porque inexiste condenação em verba honorária em primeira instância.
- Recurso conhecido e desprovido, para manter a sentença de primeiro grau. (TJTO - Apelação Cível 0003117-79.2017.8.27.2716, Rel. Adolfo Amaro Mendes, Gab. do Des. Adolfo Amaro Mendes, julgado em 12/08/2020, DJe 27/08/2020 11:25:42)
O que se observa é que os Tribunais de Justiça encontram-se alinhados no tocante à análise dos requisitos legais da responsabilização civil. Neste sentido, há possibilidade de reconhecimento do dever de indenização, desde que o requerente se desincumba de seu ônus probatório sobre a caracterização do abandono afetivo.
CONCLUSÃO
Está consolidado no ordenamento jurídico que os pais têm obrigações em relação aos seus filhos, as quais não se limitam à alimentação, moradia e segurança, sendo indispensável também o cuidado para com sua prole independentemente do status de relacionamento.
Quer isto dizer que, independentemente da modalidade de guarda fixada, permanecem os deveres dos pais para com os filhos menores. Em se tratando de guarda compartilhada mais divididas ainda são as responsabilidades dos genitores após a separação do casal, posto que, persiste a obrigação de cuidado tal qual o status familiar anterior.
Com isso, entende-se que, de acordo com o princípio da afetividade no direito de família, não basta o suporte material aos filhos, exigindo-se também o psicológico. A paternidade e a maternidade devem ser afetivas, fundamentada no amor e respeito aos filhos que não podem ser abandonados e esquecidos.
Uma vez que se tratam de indivíduos em desenvolvimento, o suporte emocional das crianças e adolescentes é indispensável e, uma vez violado esse direito, o Poder Judiciário está autorizado a apreciar os pedidos de responsabilização civil pelo abandono afetivo. Contudo, a condenação ao pagamento de indenização dependerá da comprovação de ato ilícito, nexo causal e dano, haja vista que ninguém é obrigado a amar outra pessoa, mesmo que seja um descendente seu.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJ-DF: XXXXX-74. 2018.8.07.0016 – Segredo de Justiça. 8ª Turma Cível. Relator Mariozam Belmiro. Julgamento do Acórdão em 30/07/2019. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/900768389>. Acesso em 10 set. 2022.
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[1] Orientadora do Curso de Direito da Universidade de Guruoi- UnirG. E-mail: [email protected].
Graduanda do curso de Direito pela Universidade de Gurupi- UnirG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, RUTE ALVES. A responsabilidade afetiva dos genitores na guarda compartilhada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2022, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60199/a-responsabilidade-afetiva-dos-genitores-na-guarda-compartilhada. Acesso em: 23 dez 2024.
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