GUILHERME AUGUSTO MARTINS SANTOS[1]
(orientador)
RESUMO: Os filhos concebidos por inseminação post mortem são aqueles em que um cônjuge decide usar o material genético do outro, que se encontrava armazenado em uma clínica especializada, após a morte dele. O objetivo principal deste trabalho é discutir os direitos sucessórios desses filhos tidos dessa maneira, uma vez que se presume que nesses casos já tenha existido a abertura da sucessão do de cujus e, por vezes, até a sua finalização. As técnicas de reprodução assistida podem e devem ser utilizadas pelos casais que não conseguem alcançar o sonho de ter um filho a partir dos métodos naturais. O ordenamento jurídico brasileiro permite, inclusive, que essa reprodução assistida seja na forma de inseminação artificial homóloga post mortem, embora existam algumas lacunas sobre o tema. Atualmente existem alguns projetos de leis que buscam tratar sobre esse assunto. Foi possível chegar a conclusão de que a inseminação artificial post mortem não pode ser considerada um tabu, muito menos uma prática odiosa. Trata-se de um meio de garantir a consecução do planejamento familiar do casal que sofreu uma perda repentina. Por fim, entende-se que é possível que todos os direitos sucessórios do filho havido dessa maneira sejam resguardados. Foi utilizado nesta pesquisa o método dialético, se baseando em discussões e argumentações de especialistas acerca do tema, além de pesquisas bibliográficas e documentais.
Palavras-chave: Direitos Sucessórios; Inseminação Artificial; Planejamento Familiar.
INTRODUÇÃO
É de conhecimento geral que o conceito de família e sua própria constituição no meio social passam cotidianamente por diversas modificações, principalmente nas últimas décadas, com o advento da tecnologia e com a mudança de foco, no aspecto legislativo, do patrimonial ao existencial, no que tange aos critérios de leis e as Constituições Federais ao redor do mundo.
O presente artigo vem propor uma análise aprofundada, no que tange as possibilidades sucessórias, quanto ao vínculo na esfera cível no que tange à reprodução humana post mortem. Mais especificamente, aos critérios necessários para comprovar a filiação na sucessão hereditária.
Há a necessidade, obviamente, de se aprofundar quantos aos pontos específicos do direito de sucessão, vez que o tema de pesquisa implica, principalmente, na questão do direito de herança.
Referente à metodologia utilizada na presente pesquisa optou-se pelo método dialético, se baseando em discussões e argumentações de especialistas acerca do tema, além de pesquisas bibliográficas e documentais, por meio de artigos científicos e outros materiais já publicados sobre o assunto, com foco principalmente, nas matérias disponíveis do STJ sobre o tema herança na reprodução assistida post mortem, ou seja, atingirá tanto o campo de uma pesquisa bibliográfica como uma pesquisa no âmbito exploratório.
E por fim, pesquisar e investigar quanto à comprovação de filiação por intermédio da inseminação artificial após a morte do cônjuge, como será relatado posteriormente, pois é graças às mudanças ocorridas no contexto familiar, e por consequência na sociedade que proporcionou o surgimento da pesquisa do referido artigo.
Tal como aconteceu com as pesquisas com células-tronco, a tecnologia de reprodução humana artificial levantou uma série de questões que devem ser consideradas, das quais estão principalmente ligadas no âmbito da lei. Essas questões não precisam apenas ser discutidas e amplamente divulgadas para tirá-las da zona de isolamento onde residem atualmente.
A infertilidade já não é um obstáculo intransponível para o nascimento de uma criança, várias técnicas de inseminação artificial estão cada vez mais comuns e estão disponíveis para mulheres e casais que desejam ter filhos. O planejamento familiar e a decisão de inseminação artificial, no caso da reprodução natural não ser possível, é apenas para os diretamente envolvidos. Nas palavras da jornalista italiana Oriana Fallac (1975, tradução livre), a maternidade é “não uma profissão; nem mesmo um dever: é apenas um direito entre muitos outros".
Todavia, as divergências iniciam quando a Medicina evolui a ponto de uma criança poder nascer mesmo após a morte do pai.
Na atualidade, os debates sobre o direito de continuar herdando uma criança nascida por meio de inseminação artificial post mortem homóloga têm causado polêmica em sistemas judiciais no Brasil e no mundo. Apesar de que assunto não seja pacífico na doutrina brasileira e cada caso é analisado separadamente, o número de crianças nascidas com técnicas de inseminação artificial cresce a todo momento no mundo, e os casos em que ocorre também após a morte são graças ao desenvolvimento da medicina. Por intermédio disso, a primeira decisão sobre o assunto foi tomada no Brasil em 2008 na forma de tutela liminar, e desde então o assunto não foi compreendido de forma uniforme no judiciário.
No primeiro capitulo iremos tratar das variações da reprodução assistida, no que tange a utilização da inseminação artificial post morten. Já no segundo capítulo, irá ser debatido os direitos sucessórios, quanto ao ser que venha a nascer do procedimento de inseminação artificial, após a morte do cônjuge falecido, e por fim, os andamentos quanto ao posicionamento dos tribunais superiores referente a matéria que está em pauta no presente artigo científico.
1. A FILIAÇÃO NO QUE SE REFERE À REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
O Código Civil Brasileiro de 1916 estabelecia a relação familiar em duas esferas, quais sejam legítima e ilegítima. A primeira contemplava as relações que se formavam segundo as normas legais, ou seja, sob a égide do casamento e, assim, eram resguardadas juridicamente. A segunda se referia às relações não provenientes do casamento e, portanto, marginalizadas na concepção dos direitos das partes envolvidas.
A forma como as relações se formavam era determinante sobre os direitos sobre paternidade que as resguardariam. Os filhos concebidos fora da constância do casamento, por serem considerados como ilegítimos encontravam se em posição de desigualdade e desamparo legal em relação aos considerados legítimos, não havendo qualquer garantia de direitos.
Em contrapartida, o Código Civil de 2022 apresentou uma nova concepção de família e, consequentemente, de paternidade, na qual houve a equipação de direito entre os filhos. Abandonando, portanto, os conceitos de legitimidade e ilegitimidade.
Embora o Código Civil reconheça e garanta a presunção de paternidade, o ordenamento jurídico é omisso quanto aos direitos sucessórios decorrentes da inseminação artificial após a morte. Na ausência de previsão legal, para os filhos nascidos após a morte do pai, a regra geral deve ser aplicada, pois somente estão compreendidos na presunção de paternidade aqueles já gerados no momento da sucessão, ou seja, do falecimento do genitor. Diante disso, coloca-se a questão de saber se os filhos gerados após a morte têm direito à herança (FREITAS, 2022).
Por não terem sido concebidos durante o casamento, os filhos nascidos após a morte de um dos cônjuges mudaram o foco da discussão de questões de relacionamento entre pais e filhos para se concentrar no debate de consentimento e decisões de direito de primogenitura. Pode haver divergências sobre paternidade e direitos na avaliação da ordem sucessória, uma vez que a viúva dá à luz ao filho do falecido, e os direitos entram em vigor imediatamente se ela obtiver o consentimento informado (SARDINHA, 2017).
Portanto, torna se necessário debatermos acerca das questões de presunção de paternidade nos casos de reprodução assistida post mortem, para isso, é essencial que se entenda como esse tipo de reprodução surgiu e se desenvolveu ao longo da história, o que pode ser visto a seguir.
1.1 ORIGEM E CONCEITO DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
É de conhecimento geral, que a reprodução humana sempre foi um assunto que gera e continua a gerar muita divergência de ideologias e curiosidade, principalmente ao longo dos anos, com o advento da tecnologia e as inovações na medicina de forma geral. Ou em nosso cotidiano, pois tal assunto não aguça somente a curiosidade, mas influencia diretamente no contexto social e cultural da sociedade, vez que a cada lapso temporal surge uma novidade a respeito disso, seja para se ter uma qualidade de vida melhor e mais segura, no que tange a questão de gerar um filho, como o surgimento de novos contextos na Lei e na ciência para a realização, muitas vezes de um sonho. Pode-se dizer assim, a respeito daqueles que apresentam alguma deficiência ou impossibilidade de gerar um filho nos aspectos naturais.
Na Grécia e em Roma Antiga, um dos principais objetivos da fertilidade era a procriação. As mulheres inférteis podiam ser rejeitadas por seus maridos, pois a infertilidade era motivo de degradação familiar podendo, inclusive, invalidar um casamento por ser considerada como um defeito inaceitável. As mulheres inférteis eram consideradas amaldiçoadas e deveriam ser banidas da vida social. A fertilidade, por outro lado, está associada aos conceitos de alegria, abundância e dons divinos (ALBUQUERQUE, 2008).
De acordo com Amaral (2018), o primeiro marco da reprodução assistida no Brasil foi o nascimento de Anna Paula Caldeira em 1984. Ela foi a primeira criança na América Latina a ser produzida por fertilização in vitro (FIV) e nasceu 6 anos após o nascimento da primeira paciente do mundo, Louise Brown, no Reino Unido. Mas tudo começou em meados da década de 1890. Walter Heape, também da Universidade de Cambridge, Reino Unido, relata a primeira transferência de embriões (TE) entre espécies de coelhos, resultando em descendentes saudáveis.
A reprodução assistida é um conjunto de técnicas utilizadas pela medicina especializada para ajudar pacientes a terem filhos. Por este método, a manipulação de pelo menos uma enzima gameta do aparelho de fertilização proporciona condições ideais para que o processo decorra conforme planejado (BARREIRAS, 1997).
Existem dois tipos de reprodução humana assistida, a inseminação artificial, que envolve o procedimento no próprio corpo da mulher, e a fertilização in vitro, uma técnica laboratorial que ocorre fora do corpo da mulher. A inseminação artificial é uma técnica de reprodução assistida na qual o sêmen é passado diretamente para a cavidade uterina da mulher durante seus anos reprodutivos, aumentando assim as chances de gravidez, principalmente em casos de infertilidade (FREITAS, 2022).
Dessa forma, a reprodução humana assistida é o conjunto de procedimentos no sentido de contribuir na resolução de problemas da infertilidade humana, facilitando assim o processo de procriação quando outras terapêuticas ou condutas tenham sido ineficazes para a solução e obtenção da gravidez desejada. (FRANÇA, 2001)
A seguir, iremos discorrer acerca dos tipos de inseminações artificiais disponíveis, bem como dos efeitos jurídicos no que se refere aos direitos sucessórios no ordenamento jurídico.
1.2 TIPOS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL
As técnicas de reprodução assistida podem ser divididas entre duas categorias, a homóloga, quando é utilizado o semêm do próprio companheiro ou então utilizar-se da reprodução heteróloga, quando é utilizado o material genético para tratar-se de um terceiro doador.
A inseminação artificial envolve a introdução de espermatozoides no útero sem relação sexual com a ajuda de métodos mecânicos e recursos médicos. A inseminação artificial pode ser dividida em homóloga e heteróloga. A inseminação homóloga é a inseminação com o esperma do marido ou parceiro. Quando o material genético do marido ou parceiro não é usado para inseminação artificial, é chamada de inseminação heteróloga (BARREIROS, 1997).
A inseminação homóloga é um tipo de fertilização que utiliza os gametas masculino e feminino de um casal que se interessa por esse processo de fecundação, sejam eles casados ou vivam em união estável (FREITAS, 2022).
A referida inseminação artificial, apresenta-se nesse contexto de forma mais branda com relação a inseminação heteróloga, uma vez que envolve somente o material genético do casal, ou seja, não há um envolvimento de terceiros nessa relação. Partindo na ideia da presunção de paternidade, nos moldes do artigo 1597 do Código Civil, contudo, tem-se a necessidade de autorização expressa do de cujus, à luz da Resolução CFM, artigo 1, inciso IV.
Quando elaborado os referidos dispositivos, em especial no tocante às técnicas de reprodução, o legislador, como ora já mencionado, optou por não adentrar e aprofundar melhor as técnicas, criando um impasse ainda maior, sobre a forma que ocorreria a tutela e resguardaria o interesse post mortem. Diante disso, cria-se o imbróglio, pois o legislador não fez qualquer menção de necessidade de prévia autorização do marido, para que a esposa possa utilizar o seu sêmem, bem como não houve indicação se a mulher necessitaria manter o estado de viuvez para o seu uso (FREITAS, 2022).
A utilização do material genético do marido somente é permitida diante da sua expressão de vontade e enquanto estiver vivo, pois a titularidade de partes destacadas de seu corpo apenas lhe incumbe. (MADALENO, 2013).
É imprescindível o consentimento livre e esclarecido das partes, com s finalidade de proteger a dignidade dos seres humanos envolvidos, inclusive da prole a nascer. (BERALDO, 2012).
Observa-se que, mesmo com a omissão legislador no que tange a autorização do de cujus para dar andamento nos procedimentos da reprodução assistida, principalmente a homóloga, tem-se posicionamento a respeito do respectivo assunto a exigência de uma autorização expressa do de cujus para que ocorra a procriação, não apenas por uma questão de proteção de direitos, mas também para se ter um respaldo jurídico mais efetivo.
A inseminação artificial heteróloga, uma das tecnologias de reprodução assistida, tem sido criticada pelo uso de material genético de terceiros, causando disputas judiciais, insegurança jurídica para marido e mulher e até mesmo batalhas morais até certo ponto, porque um terceiro está envolvido na relação conjugal do casal (FREITAS, 2022).
É notório que o assunto em questão traz uma grande insegurança jurídica por ser de certa forma uma novidade no contexto social e legal, pois a sociedade é dinâmica e o Direito e as leis têm a difícil tarefa de acompanhar as diversas mudanças que se ocorre no cotidiano e ao longo dos anos. Referente à inseminação artificial heteróloga, esta é, um instrumento novo que surgiu tanto no cenário social como jurídico, mas sua aplicação, principalmente na esfera jurídica, é complexa, em razão do envolvimento de terceiros em uma relação jurídica e social com pouco respaldo legal.
Essa metodologia sofre bastante crítica, em razão de diversos desdobramentos, tanto de ordem jurídica, quanto de ordem moral, em razão da intervenção de um terceiro na relação conjugal, não tendo sido abordada de forma aprofundada pela legislação sobre a temática. Um dos imbróglios pode ser exemplificado nos casos em que o filho proveniente da inseminação tenha o interesse em conhecer o doador do material, o que pode é definido como “o pai biológico”. A situação acima exemplificada esbarra num impasse, visto que aquele que doa o material genético à inseminação é resguardado pelo sigilo (FREITAS, 2022).
É do saber de todos que a situação apresentada no posicionamento de Freitas não está distante da realidade cotidiana de todos, pois muito embora se tenha a questão do sigilo assegurada pela lei, e, além disso, a lei assegura todas as prerrogativas em favor de quem é dado como pai, no que tange ao filho concebido por inseminação artificial. Trata-se, contudo, de relações sociais permeadas por seres humanos nutridos por sentimento, que muitas vezes dificulta a aplicabilidade de uma legislação eficaz para ambas as partes envolvidas nesse contexto.
A inseminação post mortem é uma técnica que consiste na inseminação da mulher com sêmen de marido já falecido. Por não ser considerada homóloga nem heteróloga, pode ser chamada, também, de intermediária e, é uma técnica de criopreservação do material genético de um marido ou parceiro, usando o sêmen do parceiro para permitir que a esposa produza um filho a partir do material criopreservado, mesmo após a morte. Essa operação era improvável ou mesmo impossível décadas atrás, mas com os avanços da biotecnologia, é possível que os casais tenham filhos mesmo após a morte do marido (FREITAS, 2022)
Muitos países regulamentam e legalizam o processo de doação de órgãos e tecidos para pacientes com morte encefálica, incluindo o Brasil, por meio da Lei 9.434/97 e a Resolução 1.480/97. Nesse processo, além das dificuldades trazidas pelo tema, os médicos também enfrentaram a solicitação de suas esposas ou familiares para a coleta do material genético para serem utilizados na concepção, ou seja, o sêmen. Essa situação incomum aumenta o risco de conflito moral significativo entre profissionais médicos, esposas/requerentes e famílias, produz direitos da criança e questiona a coleta e uso de materiais póstumos (SARDINHA, 2017).
Nesse diapasão, é imprescindível ressaltar que, no ordenamento jurídico atual, três principais critérios são determinantes para a presunção de paternidade, quais sejam, o critério jurídico/legal, que tem como fundamento a presunção de paternidade relativa, fixada pelo legislador em dispositivo legal; no que se refere ao critério biológico, esse está intrinsicamente ligado ao vínculo genético e, por fim, o critério baseado nos laços de afeto formado pela convivência entre as pessoas envolvidas, ou seja, socioafetivo (FARIAS, 2017).
O ordenamento jurídico brasileiro carece de dispositivos legais que determinam os efeitos sucessórios para os filhos concebidos por meio da reprodução assistida post mortem, isso gera instabilidade e vários conflitos, que serão abordados a seguir.
2. DA FILIAÇÃO POR INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA "POST MORTEM" E OS EFEITOS SUCESSÓRIOS
Apesar do tema de pesquisa ter bastante respaldo no Código Civil de 2002, principalmente pelo direito de sucessões, que, como relatado anteriormente faz grande interferência, pois com o advento do novo Código Civil de 2002 e da Constituição Federal Brasileira de 1988, mais especificamente com a habilitação do art. 227, § 6º, o direito de sucessão teve um novo direcionamento, no que tange a filiação. Esse posicionamento foi ainda mais fortalecido pelas previsões estabelecidas pela Lei de Introdução ao Estudo do Direito, mais especificamente em seu artigo 4º, quando se utiliza a analogia com os artigos 1.799, I e 1.800, § 4º do Código Civil de 2002, nos casos que se tem uma lacuna a respeito da sucessão testamentária.
Cumpre ressaltar que o Direito de Sucessão é o ramo responsável pelas normas jurídicas de regulamentação e fiscalização das relações referentes ao patrimônio de uma pessoa falecida, ou seja, determina a destinação à terceiros dos bens deixados após a morte de seu titular.
No ordenamento jurídico do Brasil nota-se uma escassez de normas específicas para garantir os direitos das crianças decorrentes da fecundação post mortem. Nosso ordenamento jurídico não é suficientemente normativo e nem mesmo a própria sociedade está se posicionando sobre essa questão.
Por isso o presente tema de pesquisa é relevante, pois está cada vez mais frequente a ocorrência desta situação, e isso torna cada vez mais difícil aos operadores do Direito no que tange a aplicabilidade na sucessão aos filhos concebidos após a morte do genitor, sujeitos de direitos e deveres.
2.1 DOS DIREITOS INERENTES À FILIAÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 19888, não apenas prevê a igualdade de homens e mulheres perante a lei, sem distinção de qualquer espécie, mas também estipula que todos os filhos devem ser tratados de forma igualitária, independentemente de sua forma de filiação. Ademais, o próprio Código Civil de 2002 reconhece em seu artigo 1.597, inciso III, a filiação oriunda da concepção por inseminação artificial homóloga póstuma.
Não obstante, quando vista na condição de filho, reconhecido como tal pela sociedade e pela família em que vive, ou seja, nas relações sociais, as necessidades da criança tais como alimentação, moradia e educação são atendidas. Formar uma criança como um ser humano talvez seja uma das mais valiosas tarefas e traz-lhe o maior benefício, mas nem a lei nem o sangue podem garantir isso. Talvez a verdadeira ligação, segundo o artigo 227 da Constituição Federal, esteja na dedicação e acuidade, e não na fonte do sêmen (SARDINHA, 2017).
Assim, é natural pensar que os devidos direitos devem ser conferidos às pessoas concebidas após a morte, tanto no âmbito familiar quanto no direito sucessório. Ele não é nem mais nem menos do que os demais filhos, e sua dignidade e direitos devem ser reservados desde o momento de sua concepção (FABRE, 2014).
Em contrapartida, a norma civilista estabelece em seu art. 1.798 que é legítima "a pessoa nascida ou concebida no início da sucessão", donde decorre que, por força de diploma estatutário, não terá direito a ser legal após a morte de seus pais herdar. Em outras palavras, o doutrinador concebeu a possibilidade de a mãe e os profissionais que executam a técnica serem responsabilizados civilmente por danos materiais ao filho por não receberem a herança do pai, pois seriam responsáveis por sua concepção (REZZIERI, 2015).
Segundo essa corrente, tando a maternidade e quanto a paternidade só pode ser concebida com a anuência de ambos os envolvidos, nesta senda, a reprodução assistida post mortem, é manifestação unilateral da vontade, sendo suprimida a vontade expressa da outra parte, no caso, o falecido.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, vários princípios surgiram para nortear o direito. Dentre eles, destacam-se o princípio da igualdade dos filhos contido no art. 227, Capítulo 6 da CF.
Este princípio reconhece o princípio da dignidade da pessoa humana que é o princípio fundamental da Constituição acima mencionada, ou seja, sustenta todos os outros princípios, portanto toda discriminação expressamente prevista no Código Civil de 1916 é descontextualizada e deve ser removida. e lutar de acordo com os princípios acima.
Portanto, uma vez que o filho tem um pai, ele deve ser tratado como qualquer outro filho do mesmo genitor, incluindo não apenas, mas principalmente, a herança legal, que é consequência direta e obrigatória da sucessão e não há espaço para interpretação. (FABRE, 2014)
No entanto, se um embrião for implantado, os direitos dos pais têm precedência sobre os direitos reprodutivos, e a criança deve ser reconhecida mesmo contra a vontade do pai. A estrutura da relação entre pais e filhos dada pela Constituição impede qualquer forma de tratamento diferenciado dos filhos com base na origem, não existindo quaisquer barreiras quanto à determinação da relação pais-filhos e proibindo a fixação de restrições em relação aos direitos de filiação, seja ela qual for.
2.2 DIREITO DE SUCESSÃO INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM
Cumpre nos esclarecer que sucessão não se trata de sinônimo de herança, uma vez que o ato de suceder ocorre, tanto por ato entre vivos, quanto em função da morte de um titular de bens e direitos. Já herdar, remete se à transmissão de direitos e obrigações de um falecido à terceiros.
Ao preceituar o Art. 1.798 do Código Civil de 2002, o legislador não se atentou ao avanço na reprodução humana assistida, tendo em vista que menciona que terá garantias de direitos sucessórios os que, direitos que estavam previstos no início da herança, pois as disposições atenham sido concebidos na data da abertura da sucessão. Tal menção é causa de conflito entre direito de família e herança direito em diferentes áreas da relação jurisprudencial (FREITAS, 2022).
Ao conceder à mulher o direito de inseminar artificialmente o sêmen do marido falecido, deve se conceder à criança todos os direitos inerentes como se tivesse nascido por reprodução natural. Portanto, parece inconcebível que, uma vez que a criança nasceu, tenha havido qualquer discussão sobre suas origens. Assim, é inadmissível que, uma vez reconhecida sua paternidade, ela perca seus direitos naturais de herança para quaisquer outros filhos dos mesmos pais. (FABRE, 2014)
Considerando que os embriões são seres concebidos, a doutrina diverge quanto ao tema de análise, ou seja, o direito de sucessão dos filhos nascidos de embriões implantados no útero após o momento da morte do progenitor. Neste caso, distinguem-se duas hipóteses. Se o embrião criopreservado já existe no momento da morte do autor do espólio, mesmo que demore muito tempo, esse embrião é implantado no útero da mãe, e seu nascimento vivo lhe confere a capacidade de herdar. (SOUSA, 2014)
Essa intenção seria uma expressão implícita de vontade, extraída das ações dos mortos, que passaram por todos os procedimentos necessários e exaustivos para preservar seu material biológico. Caso não quisesse que o autor utilizasse seu sêmen, poderia manifestar sua vontade ao assinar o contrato com a clínica de reprodução assistida. Presume-se que, não é uma atitude comum um homem armazenar seu material genético à toa em um banco de sêmen. Se ele o mantém, ele tem uma intenção, que só pode ser presumida como a intenção de reprodução.
No entanto, se ainda não houver embriões no início da herança, mas apenas gametas criopreservados do falecido, uma vez que esse material genético tenha sido usado para a concepção, a pessoa não terá nenhum direito de herança relacionado ao espólio do provedor de sêmen congelado, isto porque o filho ainda não havia sido concebido no momento de sua morte. (SOUSA, 2014)
Importante destacar que há uma discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de se reconhecer a capacidade sucessória em si dos filhos havidos na forma de reprodução assistida post mortem.
Há uma parte da doutrina que entende não ser possível a concessão da capacidade sucessória a esses filhos. Defendem que para que posssam possuir o direito de herdar, devem já estar concebidas no momento do óbito de seus genitores. Entendem, ainda, que a possibilidade de se atribuir capacidade sucessória a esses filhos configuraria uma insegurança jurídica, uma vez que teria de haver reabertura do inventário (PINTO, 2008).
No entanto, outra corrente doutrinária defende ser possível a concessão de capacidade sucessória aos filhos havidos após a morte do de cujus através de inseminação artifical homóloga post mortem, desde que tenha autorização expressa dele para tanto (PINTO, 2008).
Essa parcela da doutrina entende que os direitos sucessórios decorrem unicamente da filiação, pouco importando qual tenha sido o momento da concepção. Fato é que tanto aqueles que são favoráveis quanto os que são contrários defendem que a reprodução assistida post mortem deve ser evitada, pois pode gerar muitos problemas psicológicos para essa criança que virá ao mundo (PINTO, 2008).
Insta consignar que a lei é omissa quanto a este fato, isto é, não há previsão legislativa sobre a possibilidade – ou mesmo a impossibilidade – de reconhecimento de capacidade sucessória ao filho oriundo de uma reprodução assistida post mortem.
Entre os princípios constitucionais que podem ser mencionados frente à concessão dos direitos de suceder da criança fruto de inseminação post mortem, estão os princípios da dignidade humana, liberdade, igualdade, igualdade dos filhos, melhor interesse da criança e livre planejamento familiar. (REZZIERI, 2015)
Vale mencionar que é justamente o princípio da igualdade entre os filhos, previsto no artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, que permite o reconhecimento dos direitos sucessórios dos filhos havidos na forma de reprodução assistida post mortem.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios já entendeu pela concessão de capacidade sucessória a um filho havido da referida forma, pois a Carta Magna prevê o princípio da igualdade entre os filhos (BRASIL, 2014).
Entendeu o aludido Tribunal que ainda que o Código Civil não preveja essa forma de capacidade sucessória, o fato de a Constituição Federal dispor sobre esse princípio autoriza a concessão de direitos sucessórios a esses filhos (BRASIL, 2014).
Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e do livre planejamento familiar protegem os direitos dos cônjuges sobreviventes de dar continuidade ao planejamento e proteção do material biológico que começou com a vida de duas pessoas: ter um filho.
Na ausência de legislação aplicável, o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas Jurídicas, análogo aos artigos 1.799-I e 1.800-4 do Código Civil, podem ser tomados como ponto de partida, uma vez que regulamenta a sucessão testamentária e dispõe sobre a finalidade de preservar o direito de herança das crianças não concebida, por um período de até dois anos. Tal prazo parece razoável, pois não importa qual seja o direito de herança, ele não pode ser preservado parcialmente para a eternidade. Desta forma, a viúva tem tempo suficiente para decidir conceber após a morte e começar a tentar conceber sem prejudicar os outros herdeiros. Se a criança não estiver concebida no final deste período, os demais herdeiros terão direito a uma parte reservada. (FABRE, 2014)
A verdade é que não importa quantos casos sejam resolvidos por analogia ou qualquer outra forma de preenchimento de lacunas, sempre faltam leis que regulem melhor a matéria. Idealmente, a ordem existente seria discutida e analisada para criar normas que trouxessem respostas a essas questões para abordar todas as questões sociais e acadêmicas no campo dos métodos de reprodução assistida.
O Superior Tribunal de Justiça entende pela possibilidade da inseminação artificial homológa post mortem, desde que o cônjuge falecido tenha deixado uma autorização para tanto, atravéz de um testamento ou de um documento análogo. Nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DE OFENSA A ATOS NORMATIVOS INTERNA CORPORIS. REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA. REGULAMENTAÇÃO. ATOS NORMATIVOS E ADMINISTRATIVOS. PREVALÊNCIA DA TRANSPARÊNCIA E CONSENTIMENTO EXPRESSO ACERCA DOS PROCEDIMENTOS. EMBRIÕES EXCEDENTÁRIOS. POSSIBILIDADE DE IMPLANTAÇÃO, DOAÇÃO, DESCARTE E PESQUISA. LEI DDE BIOSSEGURANÇA. REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM. POSSIBILIDADE. AUTORIZAÇÃO EXPRESSA E FORMAL. TESTAMENTO OU DOCUMENTO ANÁLOSO. PLANEJAMENTO FAMILIAR. AUTONOMIA E LIBERDADE PESSOAL.
[...]
5. Especificamente quanto à reprodução assistida post mortem, a Resolução CFM n. 2.168/2017 prevê sua possibilidade, mas sob a condição inafastável da existência de autorização prévia específica do (a) falecido (a) para o uso do material biológico criopreservado, nos termos da legislação vigente.
6. Da mesma forma, o Provimento CNJ n. 63 (art. 17, § 2º) estabelece que, na reprodução assistida post mortem, além de outros documentos que especifica, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.
7. O Enunciado n. 633 do CJF (VIII Jornada de Direito Civil) prevê a possibilidade de utilização da técnica de reprodução assistida póstuma por meio da maternidade de substituição, condicionada, sempre, ao expresso consentimento manifestado em vida pela esposa ou companheira.
[...] (BRASIL, 2021).
Nesta oportunidade, reconheceu o referido Tribunal Superior que o filho havido através de reprodução assistida post mortem teria todos os seus direitos sucessórios garantidos.
Além disso, não há necessidade de falar de egoísmo sobre uma criança nascida sem pai, porque mesmo que o pai esteja vivo no momento da concepção, não há garantia de que a criança estará viva nove meses depois de nascido. Mesmo vivo, não há garantia de que será um pai amoroso, muito menos presente, uma ausência que o equipara à condição de pai falecido.
Como o artigo 1.597, III, do Código Civil brasileiro reconhece a relação pais-filhos dos filhos nascidos por inseminação artificial homóloga, este método de reprodução é presumido mesmo que o marido esteja morto. Apesar das divergências na doutrina e na jurisprudência quanto aos direitos das viúvas ao material genético do falecido, é geralmente aceito que há presunção de paternidade quando a criança engravida (FABRE, 2014).
Negar os devidos direitos sucessórios das crianças concebidas por inseminação artificial homóloga póstuma equivale a regredir ao ordenamento jurídico anterior, onde ainda prevalecia a discriminação entre as crianças.
No entanto, considerando a concepção por inseminação artificial homóloga póstuma, a questão desloca-se para o domínio do direito sucessório. O princípio constitucional da igualdade, que se estende ao direito de família, pois o princípio da igualdade de tratamento dos filhos, juntamente com o princípio do melhor interesse da criança, constitui a base para a proteção dos incapazes, que será sempre mais forte do que a divisão herdar.
3. DOS PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS
Muito embora o tema de pesquisa tenha respaldo em sua maioria pelo entendimento dos tribunais, algumas turmas recursais demostram por meio de julgados que o referido caso ainda não está pacificado, pois há uma discrepância entre as decisões no que tange a autorização do material genético do de cujus para o procedimento de inseminação artificial, como bem demostra os julgados abaixo.
Em uma decisão de primeiro grau, proferida pela 7ª Vara de Família de Brasília foi autorizado o procedimento para realização do ato de procriação póstuma assistida dessa decisão houve recurso. Ao apreciar o recurso do hospital que preservou o sêmen criopreservado, a 3ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do distrito Federal e territórios, por maioria de votos, reverteram a decisão e negaram o direito pleiteado pela viúva, entendendo que não havia provas suficientes nos autos para demonstrar a intenção do falecido (de cujus) de liberar o uso de seu material genético caso viesse a falecer.
O contexto fático dessa decisão relata que no ano de 2007, a recorrida por ter mantido união estável por 14 anos com o companheiro, falecido de câncer, alegou que o casal havia tentado engravidar durante a união a mulher (não identificada, por sigilo judicial) razão pela qual recorreu à Justiça para obter autorização para liberação de material genético do de cujus criopreservado para realização do ato de procriação póstuma assistida. (FABRE.2014)
Uma outra decisão, proferida em maio de 2010, pela 13ª Vara Cível de Curitiba, autorizou a professora Katia Lenerneier, de 38 anos, temporariamente (liminarmente) a tentar engravidar com o esperma congelado do marido falecido em fevereiro do mesmo ano, vítima de câncer de pele.
O caso em questão narra que o casal estava casados há cinco anos e tentavam engravidar há três anos quando Roberto Jefferson Niels ficou surpreendido com a descoberta do melanoma. Devido ao risco de infertilidade, este decidi seguir o conselho do seu médico em congelar seu esperma antes de iniciar o tratamento de câncer. Como nem o laboratório nem o Conselho Regional de Medicina desejavam autorizar o procedimento pois não havia consentimento expresso de Roberto para usar o sêmen após sua morte, Kátia acionou a justiça. Ela recebeu permissão e oito meses após a morte do marido ficou grávida de uma garotinha. Luiza Roberta nasceu em junho de 2011 com peso de 3 kg. Foi à primeira concepção conhecida no Brasil por inseminação artificial post mortem homóloga, e a criança tinha direito à descendência. (BRASIL. 2010)..
O clímax do referido assunto está ligado diretamente autorização expressa do de cujus para a utilização do seu material genético, após a sua morte. Essa questão já foi mencionada anteriormente sobre o polo do posicionamento doutrinário, que em sua maioria entende ser necessário uma autorização expressa de vontade do de cujus para o procedimento.
No entanto, a inseminação artificial post mortem sobre o foco social, é uma novidade, assim como, um assunto de foro íntimo, principalmente entre os cônjuges, que na prática dificulta provar, principalmente a vontade do de cujus, em relação à vontade do cônjuge sobrevivente em constituir família, já que assuntos dessa natureza não se tem o costume social de deixar expresso o animus de constituir família.
Outra situação que apresenta essa lacuna legislativa, no que tange a viabilidade da inseminação artificial post mortem, é uma apelação cível (47.2020.8.26.0510), interposta por Debora Baboni Dominiquini, em 09 de fevereiro de 2021 ao Tribunal de Justiça de São Paulo, com o objetivo de conseguir a autorização judicial para utilização do material genético de seu marido (de cujus) para a inseminação artificial. (FABRE.2014)
Uma vez que, este era policial, foi baleado em frente a residência que morava, vindo a óbito em razão disso. Como os cônjuges não tinham filhos, a referida viúva veio em prol da autorização da inseminação artificial. Mas o tribunal negou provimento sob o argumento de que o material genético não foi fornecido pelo de cujus, mas sim recolhido após o óbito, ou seja, não se teve demonstrado a prévia autorização expressa por escrito do de cujus.
No recurso de Apelação Cível (nº 0100722-92.2008.8.07.0001), a 3ª Turma Cível do Tribunal do Distrito Federal e Territórios decidiram por maioria em setembro de 2021 contra a utilização do material genético pela viúva. No entanto, alguns fundamentos das decisões dos desembargadores podem ser extraídos para contribuir para o debate em relação ao tema de pesquisa. Pois o desembargador Getúlio Moraes Oliveira explicou que, em sua opinião, o direito à herança do nascituro é óbvio, mesmo que a lista seja encerrada na concepção. Para ele, "desde 1912, antes do antigo Código Civil, o Supremo Tribunal Federal estabelecia a noção de que os filhos têm parte na herança, ainda que contingente". (TJDF – 3ª Turma – APC 2008 01 1 149300-2 0100722-92.2008.807.0001– Relatora: Nídia Corrêa Lima– Publicação: 23/09/2014).
Ainda haveria espaço para os herdeiros chegarem a um acordo sobre o conceito de herança e a consequente divisão. A juíza Nídia Corrêa Lima foi além, declarando que o sonho daquela viúva de ter um filho com o companheiro com quem viveu tantos anos e fez tantos planos, não pode ser frustrado. Para ele, o fato de a falecida ficar com o material genético seria uma prova da intenção de constituir família com o companheiro. A relatora também entendeu que a questão da herança não poderia impedir o nascimento desta criança, pois teria um propósito claro e o direito de conceber a criança.
Essa intenção seria uma declaração tácita de vontade decorrente do comportamento do falecido quando ele passa por todas as medidas necessárias e exaustivas para preservar seu material biológico. Se ele não quisesse que o seu material genético fosse usado pelo cônjuge sobrevivente, este poderia manifestar sua vontade para a clínica de inseminação artificial. No entanto, isso não aconteceu, e embora estivesse em tratamento de uma doença grave, ciente do risco de morte, deixou o material genético em um banco de sêmen. Segundo a relatora, não seria uma atitude geral de um homem deixar sem rumo seu material genético em um banco de esperma. Se ele o mantivesse, serviria a um propósito que só pode ser considerado a procriação.
Apesar de no presente trabalho frisar-se intensamente sobre a autorização expressa do de cujus para a utilização de seu material genético após a sua morte, que em sua maioria é pleiteada pelo cônjuge sobrevivente. Teve-se a ocorrência de um caso no qual o cônjuge sobrevivente consegui por meio de liminar a retirada do sêmem do de cujus apos a morte, ou seja, não se teve a realização de uma autorização prévia. Porém houve uma excepcionalidade no caso em questão, em razão, do de cujus ter falecido em razão de um aneurisma cerebral, e este não teve o tempo cabível para deixar sua vontade intitulada de forma expressa.
Ressalte-se que a decisão foi aplicada apenas para a retirada do material genético, que pelo aspecto jurídico é uma evolução considerável, e a real necessidade da respectiva liminar foi atendida, porque o sêmem não resistiria muito tempo no corpo do de cujus, com isso, sendo necessário realoca-los para um banco de criopreservação.
É sabido que a matéria não envolve somente um assunto que é novidade no meio social e jurídico, mas também uma questão emocional entre os envolvidos que o Direito ainda não consegue atender de forma ampla e eficaz, ou seja, é um assunto que tem muitas lacunas no aspecto legislativo, e isso tem que ser resolvido, como também se exige tanto do legislador como do julgador uma visão e consequentemente uma sensibilidade mais voltada para a questão existencial em suas decisões.
Pois esses casos de inseminação requeridos na ala judicial, de forma geral são aqueles, em que um casal ao longo de sua união estável ou conjugal não concebeu herdeiros, e infelizmente por uma fatalidade ou doença grave um dos conjugues ou companheiro venha a falecer e o sobrevivente tem o desejo de deixar o que representa ou representou a respectiva união que foi desfeita, por um evento natural (a morte) de forma consolidada no meio social, e a forma mais sólida ao qual uma união pode ser celebrada é por meio do fruto, ou seja, um filho.
CONCLUSÃO
Embora tenhamos previsão sobre a possibilidade de inseminação artificial póstuma, o ordenamento jurídico é omisso sobre como tal procedimento deve ser realizado, após a morte do de cujus o que levantou dúvidas sobre a necessidade de o doador (o de cujus) expressar especificamente a autorização para o uso do seu material genético. Isso o que causou uma enorme discordância doutrinária sobre a necessidade ou dispensa da autorização prévia.
Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e do livre planejamento familiar protegem o direito do cônjuge sobrevivente de continuar com os projetos que iniciou quando o falecido ainda estava vivo, e isso inclui obviamente a preservação do material biológico do falecido, casos estes tinham vontade de ter um filho. Além disso, não há necessidade de falar em egoísmo em relação a uma criança nascida sem pai, porque mesmo que o pai esteja vivo no momento da concepção , não há garantia de que ele estará vivo nove meses depois quando a criança nasce. Mesmo vivo, não há garantia de que seja um pai amoroso, muito menos presente, cuja ausência o equipara à condição de pai morto.
Enfim, deve-se lembrar que, apesar do silêncio da lei, projetos de lei estão na fase de elaboração e casos específicos são compreendidos não só no Brasil, mas em todo o mundo, e que a utilização do direito comparado é sempre uma alternativa enriquecedora para esses casos, quando se tem a falta de legislação nacional. Já é muito oportuno promover discussões sobre temas que possuem escassa bibliografia e jurisprudência, ainda mais quando esses temas na prática só aumenta no contexto social, conforme a medicina e a tecnologia avançam. A complexidade da sociedade nunca deve impedir o desenvolvimento do conhecimento, porque a prosperidade da ciência depende da complexidade da vida.
REFERÊNCIAS
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[1] Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Professor de Direito da Faculdade Serra do Carmo. Advogado.
Graduando em Direito pela Faculdade Serra do Carmo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDRO CÂMARA GUIMARÃES, . Direitos sucessórios dos filhos concebidos por inseminação artificial homóloga post mortem Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2024, 04:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60225/direitos-sucessrios-dos-filhos-concebidos-por-inseminao-artificial-homloga-post-mortem. Acesso em: 23 dez 2024.
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