DARIO AMAURI LOPES DE ALMEIDA
(orientador)
RESUMO: O Tribunal Popular do Júri foi introduzido no ordenamento jurídico nacional antes mesmo da Constituição Imperial de 1924. Inicialmente, tinha competência para julgar os crimes de imprensa. Ao logo dos anos, essa competência foi se alterando, algumas vezes foi ampliada e outras vezes encurtada. Atualmente, conforme expressa determinação da Constituição Federal de 1988, lhe compete julgar os crimes dolosos contra a vida, tanto na modalidade tentada como na consumada. Além dessa competência, goza a instituição dos seguintes princípios/garantias, todos igualmente previstos de forma expressa na Carta Política: a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e o sigilo das votações. Na presente dissertação, tenta-se demonstrar que essas garantias, esses princípios não vêm sendo respeitados na sua inteireza. Propõe-se, portanto, a dissertação, a analisar cada um dos princípios/garantias conferidos ao Júri, e a forma como eles vêm sendo desrespeitados na prática. Com isso, registra-se que o instituto corre o sério risco de, em razão do sucessivo desacato às suas molas mestras, perder sua essência, sua razão de existir, tornando-se, eventualmente, num tribunal caricato. Sugere-se, no decorrer da dissertação, algumas soluções para as mais diversas questões levantadas.
PALAVRAS-CHAVE: Tribunal do Juri. Videoconferencia. Covid-19. Ineficácia Juri Popular. Direito Penal.
ABSTRACT: The purpose of this article is to talk about the Municipal Guard, having as main subject to analyze the possibility of carrying firearms by Municipal Guards, observing the public interest and the safety of society. In addition, the article tends to examine the doctrines and the legal system, the study contributes to identifying the activities of the Municipal Guard and its relevance in the maintenance of fundamental rights, one of which is public safety. Therefore, the study presents the main aspects of the Municipal Guards Statute (Law 13,022 of 2014), as well as the Disarmament Statute (Law 10,826 of 2003), in order to address the requirements for carrying a firearm, the prerogatives and function of the Municipal Guard. Therefore, the study concludes that it is possible for Municipal Guards to use firearms, as recently (March 1, 2021), the Federal Supreme Court, by a majority of votes, guaranteed the possession of firearms for all Municipal Guards, regardless of the number of inhabitants, the Ministers overturned the prohibition of the Disarmament Statute that prohibited the carrying of firearms by members of Municipal Guards in municipalities with less than 50 thousand inhabitants.
KEYWORDS: Municipal Guards. Weapon carrying. Disarmament Statute. Public security.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar a imppossibilidade e a ineficácia da aplicação de videoconferência ao Tribunal do Júri. O aprofundamento do estudo desse instituto é, portanto, de fundamental importância para o direito (constitucional e processual penal, principalmente), e isso ocorre por se tratar de uma das mais democráticas instituições jurídicas do estado brasileiro, justamente pelo fato de que há participação direta e essencial do povo.
Por essa particular razão, ou seja, em função da fundamental participação popular, conta, o Tribunal Popular do Júri, com um número imenso de ardorosos defensores, e, também, com uma quantidade semelhante de intransigentes detratores. Sem dúvida alguma, é o Júri um instituto que oportuniza calorosas discussões, sendo certo que, enquanto seus simpatizantes exigem acréscimo de competência, seus adversários auguram sua extinção. É justamente nesses momentos que se soerguem, com vigor tremendo, os críticos, vociferando que a causa estaria melhor se entregue fosse a um juiz togado.
Esse, entretanto, não é o principal problema da instituição, mesmo porque não é possível, de forma alguma, a extinção do Tribunal do Júri, a não ser que através de uma Assembléia Nacional Constituinte, já que a instituição foi sabiamente incluída entre as clausulas pétreas, o que torna totalmente estéril essa particular controvérsia.
Na realidade, o problema fundamental gira em torno da real aplicação da videoconferência sem preservar as garantias constitucionais previstas para o Tribunal Popular do Júri. Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 prescreveu quatro garantias para o Júri, todas absolutamente essenciais a sua subsistência e sem as quais o Tribunal não gozaria do menor crédito, pois que não passaria de um órgão burlesco.
É exatamente o que se pretende fazer no presente trabalho: avaliar a ineficácia de tal aplicação sem suporte da legislação infringindo as garantias constitucionais conferidas ao Tribunal Popular do Júri não sendo respeitadas em sua essência.
Enfim, com esse trabalho, tenta-se esclarecer alguns dos pontos mais relevantes e intrincados da Instituição do Júri, e, sobretudo, como esses diversos temas vêm sendo compreendidos pela doutrina e jurisprudência, principalmente a do Supremo Tribunal Federal pela sua atualidade em pós pandemia.
2 JÚRI POPULAR: CONCEITO E COMPOSIÇÃO
O Tribunal do Júri ou júri popular tem a finalidade de julgar crimes intencionais (dolosos), tentados ou consumados, contra a vida: assassinatos (homicídios e feminicídios, por exemplo), aborto ou participação em suicídio. Assim, o acusado é condenado pelos jurados (pessoas da comunidade).
O júri é formado pelo juiz (que preside a sessão) e 25 jurados, entre os quais sete são sorteados para compor o Conselho de Sentença. Esses sete cidadãos têm a responsabilidade de decidir se houve crime e se a pessoa julgada foi quem o cometeu, o chamado veredicto. O Tribunal do Júri configura um dos mais antigos institutos de deliberação popular, mantido pelo Poder Judiciário. Não se sabe precisar ao certo a data de sua instituição. Entretanto, como lembra Nucci (2015, p. 42) a propagação do Tribunal Popular pelo mundo ocidental teve início, perdurando hodiernamente, com o seguinte preceito: “ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude julgamento de seus pares, segundo as leis do país.”
No Brasil fora instituído pela primeira vez em 1824, por Decreto do Príncipe Regente, conforme assevera Nucci (2015, p.43): “Criou-se o Tribunal de Júri no Brasil, atendendo-se ao fenômeno de propagação da instituição corrente em toda a Europa. Afirmando-se ainda que, se era bom para a França era bom para o resto do mundo.”
Posteriormente, sofrera diversas alterações legislativas, alternado a estrutura do instituto, no que tange a competência, procedimentos, legitimidade, etc. Esteve presente em todas as Constituições brasileiras, até alcançar seu ápice na Constituição de 1988, intitulada Carta Cidadã. Neste diapasão Nucci (2015, p.44) disciplina que:
Em 1988, visualizando-se o retorno da democracia no cenário brasileiro, novamente previu- se o Júri no capítulo dos direitos e garantias individuais, trazendo de volta os princípios da Carta de 1946. Soberania dos vereditos, sigilo das votações e plenitude de defesa. A competência tornou-se mínima para os crimes dolosos contra a vida.
O Tribunal do Júri consiste em meio pelo qual julgar-se-á indivíduo que comete crime doloso contra a vida. No qual juízes são pessoas do povo, cidadão escolhidos dentre aqueles inseridos no mesmo contexto sócio cultural do acusado. Exteriorizando-se o verdadeiro e real sentido de um Estado democrático de Direito, muito valorado e presente na essência da Constituição de 1988. Como bem retrata Távora (2016, p.188): “Um Estado democrático de Direito é aquele em que traz para o centro todas as decisões políticas, econômicas e sociais o cidadão/povo. Não obstante, não o poderia ser diferente com o julgamento de crimes dolosos contra a vida.”
O Tribunal do Júri representa a exteriorização de um Estado Democrático de Direito, em que qualquer cidadão, maior de dezoito, com notória idoneidade moral, comporá o conselho de sentença e realizará o julgamento dos casos que lhes são apresentados, condenando ou absolvendo. Não se admitindo a recusa de cidadãos que indispõe de condições técnicas caso queiram atuar como jurado, conforme preleciona o Artigo 436, parágrafo 1º do Código de Processo Penal:
Art. 436. O serviço do júri é obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade.
§ 1o Nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução. (BRASIL, 1941)
Pessoa leiga, na acepção da palavra, quer dizer, “indivíduo com pouco ou nenhum conhecimento em determinada matéria”. E justamente neste ponto, surgem inúmeros debates acerca do tema questionando-se a possibilidade do indivíduo que não detém nenhum ou pouco conhecimento técnico sobre a matéria figurar como juiz, condenando ou absolvendo terceiro. Na brilhante visão de Nucci (2015, p. 173) afirma que:
Jurados incultos tem a tendência de abstrair as teses e julgar o ser humano, tal como ele se apresenta. Ilustrando, o jurado de melhor nível intelectual esforçava-se a entender o significado de princípios constitucionais fundamentais, como a presunção de inocência ou o direito ao silencio. Outro, mais limitado, com menor instrução, apresentava a tendência de levar em consideração de antecedentes do acusado, além de se filiar ao entendimento de que quem cala consente, desprezando, pois, o direito constitucional, que todos possuem, de não produzir prova contra si mesmo.
Diante disso, não se pode conceber o fato de que pessoas leigas, que desconhecem termos jurídicos, tais como legitima defesa, estado de necessidade, dolo ou culpa, por exemplo, sejam capazes de sentenciar um indivíduo. Guilherme Nucci, (2015, p. 176) corrobora com esse entendimento ao considerar que: “a incompreensão de determinadas teses, por mais didáticas que sejam as partes durante a exposição, pode levar a condenações injustificadas ou, também, a absolvições ilógicas”.
3 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO TRIBUNAL DO JURI
No que tange ao Tribunal do Júri, o legislador constituinte foi categórico ao trazer os princípios norteadores do Tribunal do Júri arrolados na Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXVIII.
Observe:
XXXVIII - É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (BRASIL, 1988).
3.1 A plenitude de defesa
O direito de defesa encontra amparo expresso na Constituição Federal de 1988. No artigo 5º, inciso LV, prescreve a Lei Maior: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes ”.
No Direito Processual Penal, a importância do direito de defesa é bem elevada, razão porque, o Supremo Tribunal Federal, depois de ter se debruçado sobre o tema reiteradas vezes, editou a Súmula nº 523, publicada no Diário de Justiça da União em 10 de dezembro de 1969, com a seguinte redação: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.
É fácil concluir, portanto, que a defesa é muito mais que um direito, trata-se de uma garantia, e não só do acusado, que fique claro, mas da própria sociedade. Embora possa ser, sob uma ótica subjetiva, considerado apenas um direito daquele contra quem se instaurou uma ação penal, no direito processual penal moderno, o perfil objetivo da defesa adquire relevância bem maior, ganhando status de função social. A necessidade de defesa (minimamente eficiente, ressalte-se) termina por ser uma condição de regularidade procedimental, sem a qual nem mesmo a jurisdição possuiria legitimidade (GRINOVER, 1990). Nesse sentido, defende Firmino Whitaker:
A defesa, pois, não é só interesse individual, mas, também, de interesse geral; e é por isso que a sociedade a protege com mais largueza que no direito civil, e facilita seu exercício. Do princípio de que a sociedade tem interesse no direito de defesa, resultam como corolários: que tal direito não pode ser renunciado; que a sociedade é obrigada a dar defensor, não só ao incapaz, como ao ausente é àquele que não o tem. (WHITAKER, 1930)
Quanto à defesa técnica, que deve ser produzida por profissional habilitado – advogado, enfim – essa de forma alguma pode ser objeto de renúncia. Além de ter obrigatória existência, deve a defesa técnica apresentar-se minimamente eficiente, como sói exigir a súmula 523 do Supremo Tribunal Federal.
3.2 O sigilo das votações
Uma das principais condições para se proteger a livre manifestação do pensamento dos Jurados é o sigilo das votações, garantia prevista para a instituição do Júri de forma manifesta, clara, precisa.
Inúmeros são os doutrinadores (Entre eles: Fernando da Costa Tourinho Filho, René Ariel Dotti e Afrânio da Silva Jardim.) que sustentam a falta de constitucionalidade do artigo 481 do Código de Processo Penal, norma essa que, como dito, determina que a votação da causa pelos Jurados deva obrigatoriamente ser efetivada a portas fechadas ou em sala especial (sala secreta). Pelo dispositivo da lei adjetiva penal, só podem estar presentes à colheita dos votos o escrivão, dois oficias de justiça, os acusadores e os Defensores, todos sob a orientação do Juiz-Presidente:
Fechadas as portas, presentes o escrivão e dois oficiais de justiça, bem como os acusadores e os defensores, que se conservarão nos seus lugares, sem intervir nas votações, o conselho, sob a presidência do juiz, passará a votar os quesitos que lhe forem propostos.
Parágrafo único. Onde for possível, a votação será feita em sala especial.
O sigilo do voto, conforme expressa previsão constitucional, deve ser irrestrito, incondicional, absoluto. Ou seja, impede a Carta Magna que terceiros tomem conhecimento de como os Jurados votaram em cada um dos casos concretos que lhes são submetidos, sendo, esse sigilo, uma garantia para a própria Instituição do Júri:
O sigilo do voto deve ser absoluto, vedando a lei maior, em conseqüência, que haja qualquer conhecimento de terceiros acerca do modo como o jurado optou por votar (se absolveu ou condenou). Evidente que o segredo preserva a segurança lato sensu da Instituição do Júri, a partir da proteção strictu sensu (física, psicológica, moral e política) do jurado (e mesmo seus familiares), ciente de que ninguém (que de fato não queira ele, posteriormente) saberá quais as monossílabas que depositou em defesa dos seus deveres de cidadão. (RANGEL, 2005)
Por fim, traga-se a colação o escólio de Rui Barbosa (1999) sobre o assunto:
Tão absoluto é o império desse preceito, de tal modo se liga às funções da instituição, que, para encerrar o sigilo das responsabilidades do jurado no Mistério mais impenetrável, a jurisprudência francesa anula os veredictos, quando precisarem o número de sufrágios da maioria, em vez de atestarem apenas que ela transcende o mínimo de sete, ou quando condenarem com a declaração de unanimidade, porque a resposta nesses termos dá virtualmente a conhecer a opinião de todos os jurados.
Enfim, para que se protejam os Jurados e a própria instituição do Tribunal Popular do Júri, urgem providências no sentido de garantir de forma realmente efetiva o sigilo das votações.
3.3 A soberania dos veredictos
No dicionário Aurélio, o verbete soberania tem a seguinte definição:
[De soberano + -ia1.] S. f.
1. Qualidade de soberano.
2. Poder ou autoridade suprema de soberano.
3. Autoridade moral, tida como suprema; poder supremo.
4. Propriedade que tem um Estado de ser uma ordem suprema que não deve a sua validade a nenhuma outra ordem superior.
5. O complexo dos poderes que formam uma nação politicamente organizada.
Nicola Abbagnano (1962), por seu turno, conceitua soberania da seguinte forma:
O maior poder do Estado, que pela primeira vez Jean Bodin reconheceu como peculiaridade do próprio Estado em ‘Six livres de la république’ (1576). A soberania consiste, segundo Bodin, negativamente, no estar desligado ou dispensado das leis e dos costumes do Estado e, positivamente, no poder de abolir ou promulgar leis. O único limite da soberania é a lei natural e divina (Six livres de da republique, 9ª ed., 1576, I, págs. 131-132). O termo e o conceito foram aceitos por Hegel: “Estas duas determinações, que os negócios e os poderes particulares do Estado não são autônomos e estáveis nem em si mesmos, nem na vontade particular dos indivíduos, mas têm a sua profunda origem na unidade do Estado, que outra coisa não é senão a identidade deles, constituem a soberania do Estado (Fil. do Dir. § 278). Hegel esclarece esta noção dizendo: “O idealismo que constitui a soberania é a mesma determinação conforme a qual, no organismo animal, as assim chamadas partes deste não são partes mas membros, momentos orgânicos, cuja separação ou existência por si é enfermidade (Ibid., § 278). Estas determinações de Hegel são dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução francesa de que a soberania está no povo. Rousseau tinha chamado soberano o corpo político que nasce com o contrato social (Contat Social, I, 7) e assim havia definido o seu poder: “O corpo político ou soberano, derivando a própria essência somente da santidade do contrato, não pode nunca obrigar-se, mesmo pelo que se refere a outros, a nada que derrogue aquele ato primitivo como seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a outro soberano. Infringir o ato pelo qual este existe significa anular-se; e o que é nada não produz nada” (Ibid., I, 7). O princípio da soberania é então o de ser o poder mais alto num certo lugar: isso não quer dizer que seja um poder absoluto ou arbitrário. Na doutrina moderna do Direito, a soberania é considerada intrínseca à ordenação jurídica (Estado) e como a característica pela qual “a ordenação jurídico-estatal é uma ordenação sobre a qual não existe uma ordenação superior” (Hans Kelsen, General Theory of Law and State, 1945; tradução italiana, pág. 390). Conforme Kelsen, se admitimos a hipótese da prioridade do direito internacional, o Estado pode ser chamado soberano somente em sentido relativo; se admitimos a hipótese da prioridade do direito estatal, pode ser chamado no sentido absoluto e originário da palavra. A escolha entre as duas hipóteses é arbitrária (Ibid., pág. 390).
Interpretando-se literal e etimologicamente o termo soberania, chega-se à tranqüila conclusão de que se trata de um poder supremo, que está acima de tudo e de todos, não prescindindo de nenhuma ordem superior. Seria uma espécie de onipotência.
A expressão soberania dos veredictos, segundo o entendimento de José Frederico Marques, foi empregada no sentido de que a decisão do Júri não poderá de nenhuma forma ser substituída por outra que não seja de um novo Tribunal Popular51.
Se soberania do Júri, no entender da communis opinio doctorum, significa a impossibilidade de outro órgão judiciário substituir o júri na decisão de uma causa por ele proferida, soberania dos veredictos traduz, mutatis mutandis, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados se substituída por outra sentença sem esta base. Os veredictos são soberanos porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva.
Júri sem soberania não é júri. É corpo sem alma. Não passaria de um órgão ridículo, grotesco, com o único propósito de satisfazer uma platéia ansiosa por oratórias exibicionistas.
3.4 A competência do júri
Além das garantias da plenitude de defesa, do sigilo das votações e da soberania dos veredictos, prescreve a Carta Magna brasileira, também expressamente, como uma das vigas mestras do Tribunal do Júri, a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Os crimes dolosos contra a vida, previstos no dispositivo constitucional, são os seguintes:
a) homicídio (art. 121, §§ 1º e 2º, CP);
b) o infanticídio (art. 123, CP); e
c) induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122, p.ú., CP);
d) aborto (art. 124 a 127, CP).
Entretanto, a Constituição, ao estabelecer que os crimes dolosos contra a vida devam ser, necessária e obrigatoriamente, julgados pelo Tribunal do Júri, não proibiu que a lei processual ordinária viesse arrolar novas infrações penais como de competência do Tribunal do Povo.
Ou seja, defende-se que o Tribunal do Júri possa julgar outros crimes, além dos dolosos contra a vida. Lênio Streck, um desses ardorosos defensores, afirma não haver qualquer embaraço a ampliação, principalmente pelo fato de que a instituição representa importante mecanismo de participação popular:
Desse modo, considerando-se o Tribunal do Júri como importante mecanismo de participação popular – participação essa não meramente retórica –, não há qualquer óbice no sentido de o legislador ordinário incluir, no campo de sua abrangência, outros crimes como: a) crimes contra a economia popular e Código do Consumidor; b) crimes de sonegação fiscal e os demais cometidos contra o erário público, como os de improbidade administrativa e os de corrupção; c) crimes contra o meio ambiente; d) crimes patrimoniais violentos e com morte – roubo extorsão e extorsão mediante seqüestro. (STRECK, 1994)
Registre-se, aliás, que tramita perante o Senado Federal dois projetos de lei, ambos de iniciativa do Senador paulista Eduardo Suplicy (Projetos nº 108/93 e 73/95), com o objetivo ampliar a competência do Tribunal do Júri. Pelo projeto, que alterará o artigo 74 do Código de Processo Penal, a instituição do Júri terá competência para julgar, além dos crimes dolosos contra a vida, as infrações penais contra a Administração Pública, contra o sistema financeiro nacional, contra a seguridade social e contra a ordem tributária, isso quando apenados com reclusão (NUCCI, 1999).
Os crimes de grande comoção social são observados de perto pelos telespectadores, através de seus televisores, computadores ou mesmo, na palma das mãos, através dos smartphones. A todo tempo noticiários informam sobre o desenrolar da marcha processual, mostram de perto o sofrimento por parte dos familiares da vítima, bem como, as consequências lastimáveis do crime. Conforme observa Câmara (2012, p. 271):
O exagero na atuação da mídia e na transmissão das informações por seus veículos muitas vezes ultrapassa os limites da ponderação e da ética e se desvirtua, como quando o jornalista investigativo passa a deflagrar uma atuação policial amadora, atuando de forma política, ou até mesmo de forma julgadora, fabricando vítimas e réus nas suas estórias. É neste tipo de ocasião que a mídia frequentemente vem esquecendo os direitos individuais emnome do desvirtuado direito de informar. Por óbvio, a grande maioria desses direitos são os do acusado, que confrontados com o também direito constitucional de liberdade de imprensa, acabam sendo deixados de lado.
4 PROPOSTA DE REALIZAÇÃO DE SESSÕES VIRTUAIS DO TRIBUNAL DO JÚRI
Num primeiro momento, de modo emergencial, vários Tribunais suspenderam o expediente integralmente presencial e buscaram diversas medidas de implementação de tele- trabalho, como a Resolução n.º 313, do Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu regime de Plantão Extraordinário no âmbito do Poder Judiciário Nacional no período emergencial e autorizou o regime de trabalho remoto. O segundo ponto crítico foi a adoção de ferramentas de reunião on-line, como Google Meet e Microsoft Teams, para a realização de audiências de modo virtual.
A fim de evitar o acúmulo de demandas processuais e dar fluidez ao trabalho, o Poder Judiciário lançou mão de instrumentos tecnológicos, com a chancela do CNJ, o qual tornou cabível a realização de audiências através de videoconferência. Tal fato foi ratificado com a edição da Resolução nº 314/2020, que estabeleceu diretrizes gerais para o trabalho remoto de servidores em geral e magistrados, mediante a realização de atos processuais através de meios digitais.
Além da Resolução nº 314/2020, já mencionada, vale destacar que o CNJ também editou a Recomendação nº 62/2020, trazendo a possibilidade da audiência virtual nos casos criminais que envolvem acusados presos e estabelecendo diretrizes de desencarceramento no período, por motivação sanitária.
Com efeito, o fundamento central da proposta se alicerça em alguns preceitos constitucionais, tais como a duração razoável do processo e a celeridade processual. Para os que sustentam essa possibilidade – que chegou a ser ventilada em minuta de Resolução encaminhada com voto de aprovação por parte do Conselheiro Relator, o que conta com o apoio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) –, o contexto da pandemia em que o país se encontra e o excessivo número de réus presos que aguardam julgamento fazem exsurgir uma situação alarmante, o que legitimaria a adoção, por parte do Poder Judiciário, de medidas extraordinárias (Ato Normativo nº 0004587- 94.2020.2.00.0000 – CNJ).
5 AS GARANTIAS DO SIGILO DAS VOTAÇÕES E DA INCOMUNICABILIDADE DOS JURADOS
A existência da garantia do sigilo das votações reveste-se de natureza defensiva ao próprio jurado, blindando-o contra a violação de seu próprio voto. Com o fito de acautelar a formação livre da convicção dos juízes leigos, repele-se a eclosão de quaisquer origens de constrangimento, defluindo de tal garantia a salvaguarda da formação e da manifestação da sentença (PORTO 2005, p. 49).
Malgrado o sigilo das votações, em tese, permaneça no formato virtual, não há como garantir a incomunicabilidade dos jurados, uma vez que não haverá fiscalização para evitar o contato entre os jurados. Decerto, a determinação legal de incomunicabilidade dos jurados obtempera a vedação de quaisquer manifestações da posição dos juízes leigos, evitando-se a influência aos demais jurados por ocasião da tomada de decisão, devendo ser objeto de advertência “pelo juiz no momento do sorteio para composição do conselho de sentença e [...] certificada pelo oficial de justiça, além de que sua violação acarreta nulidade do julgamento” (VASCONCELOS 2008, p. 133).
Sem que haja um controle acerca da incomunicabilidade dos jurados e do sigilo das votações, sublinha-se que haverá violação ao sistema adotado pelo ordenamento jurídico penal, qual seja o sistema da íntima convicção dos jurados, em que a incomunicabilidade dos jurados e o sigilo traduzem os instrumentos de proteção da livre formação da opinião dos jurados, que não deverão sofrer influência alguma. (LUCINDO 2003, p. 77)
Daniel Bialski afirma ser de difícil verificabilidade o respeito ao princípio em comento, especialmente pelo fato de que não se deve esquecer que a incomunicabilidade significa que “os jurados não podem conversar com outras pessoas sobre o caso, nem debater algo relacionado ao que foi dito no julgamento”, o que torna praticamente impossível de controle e aferição quando se trata da realização do ato em ambiente virtual (CONJUR 2020, Online).
O fenômeno jurídico, em sua vastidão de complexidades, pode ser compreendido, em algumas de suas definições operacionalmente úteis, a partir de concepções diversificadas, a exemplo do que se pondera sobre a arte e a técnica no direito, duas significações que se entrelaçam de forma bastante contundente quando o assunto é o tribunal do júri (MACIEL 2012, p. 401).
No tribunal do júri – e na atuação diária, de modo geral –, arte e técnica (e ciência) caminham pari passu. Entrementes, tem-se, ontologicamente, por ocasião do processo de tomada de decisão por parte dos juízes leigos – jurados –, a prevalência do direito em sua acepção arte, sobretudo pelo fato de essa decisão ser regida pela íntima convicção dos respectivos julgadores, tornando despicienda qualquer fundamentação (OLIVEIRA 2011, p.189).
6 PREJUÍZO AO EXERCÍCIO DA ARGUMENTAÇÃO E O DIREITO À AUTODEFESA
Com efeito, ainda que a tecnologia esteja auxiliando bastante o Poder Judiciário na pandemia, como visto na definição alhures, não se pode perder de vista que o tribunal do júri não só é composto pela técnica processual das partes, mas toda a emoção presenciada pelos jurados, a postura e os gestos corporais exercem influência no momento em espeque, de modo que não se pode olvidar o fato de que os juízes naturais da causa se deixam levar pela voz e pelos demais elementos desse contexto, emanados dos atores processuais (GARAPON 1997, p. 72).
São detalhes que os meios tecnológicos não conseguem captar em sua plenitude, pois há limitações evidentes (MONTEIRO 2015, p. 31). Tal problemática ainda mais se agrava quando envolve réus presos, em que há o direito de presença garantido ao acusado, sob pena de suspensão do julgamento, conforme dispõe a regra do art. 457 do CPP.
As sessões através de videoconferência não garantirão a amplitude da defesa, haja vista a inobservância de variadas questões que obstam a ampla possibilidade de defesa, incluindo o direito de autodefesa, que compreende também o direito de presença.
Aury Lopes também leciona acerca da impossibilidade de interpretação extensiva ou analógica nas formalidades do tribunal do júri, pois as regras trazidas pela CF e pelo CPP asseguram não só a especialidade do júri, mas também as garantias instituídas por este. Para o festejado autor, a sistemática legal do júri “está desenhada nos arts. 406 a 497 do CPP, tendo sido substancialmente alterada pela Lei nº 11.689/208. A competência do júri é assim muito bem definida no art. 74, § 1º, de forma taxativa e sem admitir analogias ou interpretação extensiva (LOPES 2020, p. 1.243).
As lições de Paulo Rangel também são enfáticas:
No júri, o contato pessoal dos jurados com as testemunhas e o réu é fundamental para que possam ser captadas as reações deste às perguntas que lhe são formuladas. Ademais, a virtualidade do interrogatório do réu lhe retira a possibilidade ter contato presencial com os jurados, que são os juízes naturais da causa (RANGEL 2012, p. 125-127).
Com efeito, evidencia-se que as regras concernentes ao procedimento comum ordinário, no que diz respeito ao interrogatório por videoconferência, não devem ser ampliadas ao procedimento do júri, o qual trata de matéria de maior complexidade e especificidade.
7 INAPLICABILIDADE DAS DISPOSIÇOES DE VIDEOCONFERÊNCIA PREVISTAS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL
Repentinamente, assustoso até, a videoconferência entrou na vida profissional dos operadores do Direito como uma das tantas consequências da pandemia da Covid-19. Em verdade, a adaptação de todos no meio jurídico: advogados, juízes, desembargadores e ministros; foi surpreendentemente pacífica. O uso dos recursos eletrônicos em audiências e julgamentos foi naturalizado no dia-a-dia, perdendo assim quaisquer vontade de retomar o antigo “normal”. A não ser em uma guerra silenciosa onde a videoconferência tem causado enorme controvérsia e cautela: o Tribunal do Júri.
Devido a Covid-19, julgamentos pelo Tribunal do Júri foram suspensos em todo o país, já que sua prática requer um ambiente fechado com uma grande quantidade de pessoas dentre os quais o réu, o advogado, o promotor, o juiz, os jurados, e possiveis espectadores. Toma-se como consequência disso, a prisão de muitos acusados e mantendo os tais mais tempo do que o razoável antes ou depois do julgamento, o que é inaceitável.
O CNJ propos que a tecnologia seria usada em três únicos momentos: sorteio dos jurados, oitiva do acusado e depoimentos das testemunhas. Logo, será consideravelmente reduzido o número de pessoas no local do julgamento. Portanto, dentre 15 e 25 jurados que iriam ao fórum e sete seriam os sorteados para compor o conselho de sentença, com a videoconferência, apenas nove se deslocarão para o ato. O entusiasmo em razão eventual, para o uso dos recursos tecnológicos de comunicação no Tribunal do Júri não é compartilhado pelos advogados criminalistas. Ao contrário disso, a rejeição à ideia entre eles é quase unânime, a ponto de distintas entidades de classe terem instado manifestações contra a iniciativa do CNJ, dentre elas a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa).
Cabe ressaltar que a introdução da videoconferência no Tribunal do Júri só pode ocorrer por lei, de acordo com nosso ordenamento juridico, nao tendo o CNJ competência para adotar essa medida de modo imperativo.
Diante do reconhecimento de que a plenitude de defesa teria sido prejudicada, existe riscos dos pedidos de anulação de julgamentos completos. Pois, ausentar o réu no recinto influencia significativamente nas decisões sobre seu futuro. Processualmente, no Tribunal do Júri existe a defesa direta e a defesa indireta. Faz parte da defesa indireta o comportamento do réu durante os dias de julgamento, observar se uma testemunha está nervosa, tremendo ou balançando as pernas. Os jurados observam tudo, e isso tudo é levado em consideração na construção da convicção do conselho de sentença, ou seja, o corpo de jurados."
Destarte, em razão da garantia constitucional concernente à duração razoável do processo e do princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII e LXXVIII, da CF), as custódias cautelares devem ser revistas, como já determina o artigo 316 do CPP sendo então insustentável via videoconferencia induzindo o processo a um vicio. Devem serem mantidas as prisões, por meio de decisão motivada e fundamentada, somente em caso de fundado receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.
Ao fim desse trabalho, onde se procurou analisar de forma mais aprofundada alguns aspectos do Tribunal Popular do Júri, sobretudo sob a ótica constitucional, foi possível concluir que os princípios constitucionais da soberania dos veredictos, do sigilo das votações e da plenitude de defesa recebem dos intérpretes o prestígio devido, sendo que, na maioria das vezes, faz-se uma inadequada adaptação do texto constitucional às leis ordinárias e não o contrário, o que não deveria acontecer.
Pensa-se que esse desprestígio ocorre em razão de uma forte resistência que o Tribunal do Júri vem sofrendo ultimamente. Fosse a instituição bem aceita pela sociedade e, principalmente pelo meio jurídico, certamente suas linhas estruturais seriam bem mais respeitadas, veneradas, garantindo-se uma interpretação mais condizente com os princípios constitucionais orientadores.
Como vem acontecendo justamente o contrário, ou seja, como o Júri nos últimos tempos não tem sido muito bem aceito, principalmente por grande parte dos juristas, que defendem, inclusive, sua extinção, seus princípios acabam sendo solenemente desprezados, ganhando interpretação superficial, tímida.
O fato é que não tem o intérprete o direito de, por mais que discorde da existência do Tribunal Popular do Júri, considerar suas linhas estruturais de forma tão acanhada, tão restrita. Deve ser entendido, definitivamente, que se trata de uma instituição inserida propositalmente pelo constituinte no âmbito das garantias individuais do cidadão, e, como tal, deve ser celebrado por tantos quantos se consideram democratas
Assim, podemos salientar que a tendência municipalista de segurança pública ganhou mais espaço com a publicação do Estatuto das Guardas Municipais,ressaltando a necessidade de sua criação para o combate à violência atual, para a proteção de bens, serviços e instalações e, principalmente, para a proteção de vidas.
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Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, gabrielle alves de azevedo. A impossibilidade e ineficácia da aplicação de videoconferência ao Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2022, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60366/a-impossibilidade-e-ineficcia-da-aplicao-de-videoconferncia-ao-tribunal-do-jri. Acesso em: 23 dez 2024.
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