VICTOR ANDRÉ CONTE
(orientador)
RESUMO: Os animais de estimação no âmbito familiar ocupam grande espaço na atual sociedade brasileira. E nessa nova realidade familiar estão as disputas pela “guarda” desses seres não humanos, quando há a dissolução dos laços conjugais ou de uniões estáveis. Assim, o objetivo é investigar a possibilidade de concessão de guarda compartilhada e a necessidade de uma legislação específica que abrange a guarda de animais doméstico a partir da dissolução da relação. E a problemática: Até que ponto o instituto da guarda tem aplicabilidade viável como solução nos conflitos de interesse pelo animal de estimação diante da extinção do casamento ou da união estável? A metodologia empregada é uma Revisão Bibliográfica e a justificativa, aponta-se sobre a importância de discutir no ambiente acadêmico sobre a evolução dos novos contornos sociais e se o direito acompanha essas novas concepções, que nesse caso sobre o tratamento dado aos animais na família multiespécie. Conclui-se que o melhor caminho é legislação específica que atenda às necessidades dessa concepção familiar, e também o espaço dos animais de estimação na sociedade, pois a utilização de uma lei em paralelo é apenas uma medida paliativa, ao qual contribui para a falta de consenso na jurisprudência e na doutrina.
Palavras-chaves: Animais domésticos. Guarda Compartilhada. Dissolução. União Estável. Laços Conjugais.
ABSTRACT: Pets in the family environment have been occupying a large space in current Brazilian society, so that, in this new social perspective, it is possible to see something alien to the fact that the Civil Code of 2002 is merely considered positive. And in this new family reality are the disputes for the “guardianship” of these non-human beings, when there is the dissolution of marital ties or stable unions. So that, by analogy, the judiciary resorts to family law in its decisions. Thus, the theme of this research is to investigate the possibility of granting shared custody and the need for specific legislation that covers the custody of domestic animals from the dissolution of the affective relationship from the perspective of the multispecies family. And the problem: To what extent does the guardianship institute have viable applicability as a solution to conflicts of interest for the pet in the face of the extinction of the marriage or stable union of its owners? The methodology used is a Bibliographic Review and the justification, points out the importance of discussing in the academic environment about the evolution of new social contours and if the law follows these new conceptions, which in this case about the treatment given to animals in the multispecies family . It is concluded that the best way is specific legislation that meets the needs of this family concept, and also the space of pets in society, since the use of a law in parallel is only a palliative measure, which contributes to the lack of consensus in jurisprudence and doctrine.
Keywords: Domestic animals. Shared Guard. Dissolution. Stable union. Conjugal Ties.
1 INTRODUÇÃO
A mudança comportamental das famílias brasileiras é refletida no campo da jurisprudência no país. Tanto que, o que se verifica é o aumento da presença de animais nos lares como parte integrante. Isto é um reflexo dos novos contornos sociais no campo do Direito de Família.
Nesse contexto, com a dissolução conjugal ou da união estável, seja de maneira amigável ou não entre o ex casal, faz parte inerente do cotidiano da sociedade pós-moderna. E a parte importante dessa situação é a divisão dos bens materiais, sempre buscando uma divisão justa entre as partes.
Um objeto de estudo nesse ambiente pós-moderno é a questão dos animais domésticos e a quem ficará com a posse ou a guarda. Apesar de obviamente se tratar de seres vivos que não tem o raciocínio equiparado ao humano, e positivado no Código Civil Brasileiro como seres semovente e patrimônio de seu dono, atualmente esses animais recebem tratamento familiar de seus donos considerados física e emocionalmente parte das famílias ao qual estão inseridos com designação de tutores responsáveis por sua guarda e segurança.
E em casos de dissolução de um matrimônio ou união, são tratados por seus donos como legítimos filhos, e seus respectivos “pais” não abrindo mão de sua guarda, seja definitiva ou a compartilhar. É por isso que, o tema desse estudo científico consistem em investigar a possibilidade de concessão de guarda compartilhada e a necessidade de uma legislação específica que abrange a guarda de animais doméstico a partir da dissolução da relação afetiva sob a óptica da família multiespécie.
De maneira que, a legislação vigente brasileira cuida apenas de fatores relacionados a partilha de bens, guarda de crianças, etc. Contudo, em relação aos animais de estimação ainda carece de regulamentação, havendo uma lacuna que necessita ser preenchida pela ordenamento jurídico pátrio. Consequentemente, o problema de pesquisa é voltado para a seguinte indagação: Em separações conjugais no direito de família. Até que ponto o instituto da guarda tem aplicabilidade viável como solução nos conflitos de interesse pelo animal de estimação diante da extinção do casamento ou da união estável de seus proprietários?
O objetivo geral tem como propositura em investigar a questão da guarda ou posse do animal doméstico diante da dissolução conjugal ou da união estável no direito brasileiro. E os objetivos específicos: pesquisar sobre os animais domésticos e a proteção jurídica no ordenamento jurídico no Brasil; abordar sobre a família multiespécie e a afetividade entre pessoas e animais de estimação; por fim, analisar sobre a possibilidade da guarda compartilhada e a necessidade de uma regulamentação legislativa no Brasil no trato ao guarda ou posse dos animais domésticos diante da dissolução conjugal ou da união estável.
Portanto, a metodologia utilizada neste artigo foi à de uma revisão de bibliográfica, com utilização de doutrinas, jurisprudências, legislações, dissertações e teses publicados nos últimos sete anos, utilizando-se como método de pesquisa o hipotético dedutivo, por meio de uma pesquisa qualitativa que busca analisar sobre a problemática levantada nesse estudo científico. Portanto, a pesquisa se justifica na medida em que é um tema de interesse nacional e relacionado ao tratamento dado aos animais domésticos no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no campo do direito de família.
Conclui-se que, o melhor caminho é legislação específica que atenda às necessidades dessa concepção familiar, e também o espaço dos animais de estimação no âmbito social. E a melhor maneira é de separar o conceito de pessoa e de sujeito de direito, uma vez que, numa legislação própria concederá a esses animais na qualidade de sujeito de direito sem personalidade e não apenas como objeto (uma propriedade).
É por isso, que a legislação específica sobre o respectivo tema é tão relevante, pois atenderá os pontos chaves e parâmetros, na atual conjuntura a margem para mal entendimentos do poder e não poder normativo sobre a guarda de animais domésticos diante da ruptura de união ou dissolução conjugal.
Assim, no primeiro capítulo abordará sobre o tratamento jurídico no Brasil dado aos animais domésticos; no segundo capítulo será aprofundado sobre a questão da família multiespécie e o princípio da afetividade; e no último capítulo sobre a problemática que nesse caso da necessidade de regulamentação legislativa no trato da guarda de animais domésticos diante da dissolução do vínculo conjugal ou de união estável.
2 ANIMAIS DOMÉSTICOS E A PROTEÇÃO JURÍDICA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
2.1 CONCEITO JURÍDICO E LEGISLAÇÕES PROTETIVAS
É nítido que, a Constituição Federal de 1988, normatiza que, o meio ambiente deve ser considerado patrimônio comum da humanidade e o ente público deve direcionar suas condutas no sentido de integral proteção legislativa interna e adesão aos pactos protetivos internacionais. Verifica-se que, o texto constitucional, estabelecido no artigo 225, apresenta como primazia a promoção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental; posteriormente o dever (obrigatoriedade) do Estado e da coletividade de promover e defender o meio ambiente; bem como, de assegurar a efetividade deste direito fundamental, com prescrições de normas impositivas de condutas, por exemplo (MORAES, 2015).
O direito ambiental é uma ciência nova, mas autônoma e essa independência lhe é avalizada porque o direito ambiental tem os seus próprios princípios diretores, contidos no art. 225 da Constituição. Vale explanar que o advento da Constituição proporcionou a recepção da Lei n. 6.938/81 em quase todos os seus aspectos, dando prosseguimento à Política Nacional de Defesa Ambiental. Esta política ganha destaque na Carta Magna de 1988, ao ser empregado à expressão ecologicamente equilibrado, porquanto isso determina harmonia em todos os aspectos que compõem o meio ambiente. Nota-se não ser proposital o uso da referida expressão (política) pela Lei n. 6.938/81, na medida em que pressupõe a existência de seus princípios norteadores (FIORILLO, 2013).
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 configura o meio ambiente equilibrado como um direito fundamental, dando ensejo a Política Nacional do Meio Ambiental, ao qual, objetiva a melhoria e recuperação a qualidade ambiental propícia a vida, integrando nesse contexto, a proteção a fauna como um dever do Estado.
Por conseguinte, é necessário destacar que, a Carta Magna de 1988 em seu artigo 225, quando trata sobre o meio ambiente, não disciplina explicitamente que os animais são dotados de direitos fundamentais, contudo, destaca que eles necessitam de proteção. Que in verbis: “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (BRASIL, 1988, p. 01).
Nota-se que a Constituição de 1988 tem por finalidade de estabelecer os deveres jurídicos de proteção aos animais, proibindo quaisquer práticas de crueldades, no entanto, há necessidade de prover uma legislação infraconstitucional sobre o que se atribui o tratamento cruel para fins legais, e as diferenças entre os animais domésticos e silvestres no âmbito jurídico (ANTUNES, 2021).
Nesse contexto, no âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, informa que, todos os animais possuem direitos, que nascem iguais diante da vida e têm o direito à existência. Sendo vedado maus-tratos e a tratamento cruéis, visto que, aos animais que o homem escolher para companheiro tem o direito a uma duração de vida de acordo com sua longevidade natural e o abandono consiste num ato cruel e degradante (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1978).
Em consonância com esses dispositivos a legislação pátria também assegura a proteção aos animais, além de assegurar que os animais silvestres de quaisquer espécies, que vivem fora do cativeiro, são propriedades do Estado, ao qual, ratifica a proibição da sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha, no artigo 1º da Lei de nº 5.197 de 1967 (BRASIL, 1967). Também no âmbito domésticos é crime a pratica de abuso e maus-tratos, com pena de detenção de três meses a um ano e multa, conforme a Lei nº 9.605 de 1998, que in verbis:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal (BRASIL, 1998, p. 01).
Verifica-se que, o Código Civil de 2002 também regulamenta sobre a questão da proteção dos animais, de maneira que, está inserindo no Livro II (Dos Bens), no capítulo I (Dos Bens considerados em si mesmos), na Seção II, (Dos Bens Móveis), e qualificados como semoventes como dispõe o artigo 82: “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social” (BRASIL, 2002, p. 01).
Tartuce (2020, p. 345) informa que coisa constitui um gênero que consiste tudo aquilo que não é o ser humano, recaindo o interesse econômico e jurídico, que in verbis: “Dessa forma, coisa constitui gênero e bem a espécie – coisa que proporciona ao homem uma utilidade sendo suscetível de apropriação. Todos os bens são coisas; porém nem todas as coisas são bens”.
Nesse contexto, o legislador brasileiro infraconstitucional atentou-se apenas para o enfoque patrimonialista, não se importando para questões relacionais e afetivas para com os animais domésticos, tampouco para questões de interesses das espécies sobre seres dotados de sensibilidade (ALMEIDA, 2020).
Porquanto, é nítido que, a legislação ainda não tratou adequadamente (ou precisamente), pois ao classificar como semovente, teria em tese atribuído sobre a definição do status jurídico dos animais, apenas dispositivos que trata sobre a proteção e o tratamento patrimonialista. Nesse viés, há necessidade de que seja debatido sobre a ampliação dos direitos dos animais e sua dignidade, principalmente sobre a diferença concepção entre tratamento de “coisas”, dotados ou não de direitos, ou apenas propriedades sobre seus donos.
2.2 SEMOVENTES X SENCIENTES
No âmbito internacional, de acordo com Issa (2018), já foi pacificado em diversos países sobre a mudança da concepção dos animais de seres semoventes para sencientes, uma vez que, o entendimento é de que os animais deixaram de ser estimados como coisas, para ser acatados como seres sencientes ou seres sensíveis, desponta que estão adquirindo um novo status jurídico que lhes coloca entre os objetos e os sujeitos de direito.
Essas mudanças legislativas, trata da perspectiva de que os animais são sencientes, capazes de perceber através dos sentidos. Issa (2018, p. 35) informa que, na “[...] A Nova Zelândia já reconheceu legalmente os animais não humanos como seres sencientes, enquanto nos Estados Unidos, em 2015, uma ação judicial defendeu que o chimpanzés Tommy [...] deveriam ser reconhecidos como pessoas”.
Contudo, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2017) a rigor, nada disso é permitido no Brasil. Semoventes e coisas são, no sistema brasileiro, bens, não tendo personalidade jurídica, de modo que cita a questão da vocação hereditária. Que no contexto da herança, o que é possível é o estabelecimento de ônus para determinados herdeiros, em disposições testamentárias, para que realizem o encargo, por exemplo, de cuidar de determinado animal, enquanto ele viver.
Calgaro et. al. (2015) defende que, os animais são bens móveis da espécie semovente, ou seja, aquele passível de movimento próprio. Com efeito não é admissível a possibilidade de qualquer outro ser vivo, a não ser o animal humano venha a ser titular de direitos. De modo que, a sociedade é instituída por seres humanos e os animais são apenas coisas e objetos de direito, e jamais serão sujeitos de direitos, pois isso é atributo do ser humano.
Informa-se também Calgaro et. al. (2015) que, os avanços internacionais trilham um caminho legislativo no Brasil sobre a ampliação do debate e regulamentação dos animais como sujeitos de direitos (sencientes e sujeitos de direito despersonalizados) e não como coisas, ao qual, configura como status jurídico de propriedades (semoventes).
Antunes (2021) revela que, as visões convencionalistas sobre os animais não humanos, notadamente aquelas advindas de uma clássica dogmática civilista patrimonialista, não mais atendem aos anseios de determinados grupos sociais, ao passo que, do outro lado, também se têm por incerto os efeitos jurídicos dos voos progressistas pretende alçar.
Ainda Antunes (2021) destaca que a reclassificação como possível substituição ao status de mera coisa, no direito brasileiro, tendo como possível solução como entes despersonalizados. O que se caminha no Brasil, a descaracterização dos animais como coisas, sem lhes conferir a subjetividade ou personalidade jurídica, portanto, como objetos de direitos, mas com tratamento que lhes confira proteção especial.
Na atualidade, já se verifica na Constituição Federal de 1988 e os avanços do Direito Ambiental e do Direito Animal como um ramo autônomo, observa-se na legislação a preocupação no que concerne a proteção animal contra a crueldade e maus-tratos, e alguma reflexão quanto ao status da coisa.
Nesse sentindo, em várias partes do mundo e também para uma vertente doutrinária já há o entendimento que os animais são considerados sujeitos de direitos subjetivos, por consequência das leis que os protegem e por poderem ser representados em juízo. Também o fato de somente os homens assumirem deveres jurídicos em contraposição aos seus direitos não pode servir de argumento para negar os direitos aos animais, que, justamente o fato de serem objeto dos deveres humanos que os tornam sujeitos de direitos (PULZ; SCHEFFER, 2021).
Coelho (2022, p. 304-305) também aborda que, o que se busca enfrentar é a exploração das outras espécies e a regulação da conduta destrutiva do ser humano, mas que essa proteção é limitada, pois os animais são seres semoventes, não sendo sencientes que in verbis:
O que se busca combater não é a utilização dos demais animais para atender as prioridades humanas básicas, como alimentação, criação de remédios, divertimento e outros. O que se busca na realidade é combater o sofrimento e a exploração demasiada de outras espécies que possuem as mesmas sensações que possuímos perante as emoções como a alegria, medo, excitação, tristeza ou dor.
O Direito, como criação do homem para regular o convívio social, deveria, então, regular a proteção de valores e ideais contra a própria conduta destrutiva do ser humano.
[...].
No entanto, é nessa utilização dos animais como ‘bens’ que percebemos que a intenção da proteção pode ser limitada, pois os animais não humanos tem a natureza jurídica reconhecida no Código Civil brasileiro como de coisas ou semoventes (res), não tendo dessa forma seus direitos fundamentais como seres vivos e sencientes valorados.
O debate sobre a descoisificação dos animais é imperativo quando se discute sobre até que ponto se estende a personificação, principalmente quando se atribui a personificação plena, ao qual seria dado ao tratamento humano absolutamente incapaz, o que seria incompatível com a realidade social. Outra situação é a personalidade animal, como uma questão intermediária entre coisa e pessoa, considerando os animais como sujeitos de direitos específicos. Por fim, a Teoria dos Entes despersonificados, entende que os animais são dispensados a titularidade de direitos subjetivos (PULZ; SCHEFFER, 2021).
Portanto, há um longo caminho em assegurar os animais como seres sencientes, o que se configura na atualidade jurídica brasileira que esses seres são semoventes e são tratados como coisas, e que merecem proteção jurídica pelo Estado, principalmente no aspecto dos maus-tratos, quanto à caracterização de sujeitos de direitos há uma grande discussão doutrinária, que ainda não foi pacificada, pois o que se deve considerar que esses são seres vivos, que por conta de sua sensibilidade (senciência), detém determinados direitos fundamentais, principalmente a dignidade.
3 FAMÍLIA MULTIESPÉCIE: A AFETIVIDADE ENTRE PESSOAS E ANIMAIS DOMÉSTICOS
Antes de abordar sobre a família multiespécie e a questão da afetividade entre pessoas e animais domésticos, há necessidade de se aprofundar sobre o conceito de família e seu aspecto jurídico (direito de família) e social na atualidade brasileira.
Destaca-se primeiramente, para a evolução histórica do direito da família deu-se no decorrer do século XX, uma vez que até a Constituição Federal de 1988, vigorava-se o Código Civil de 1916 que institucionalizava vários aspectos civilistas no direito brasileiro, moldados numa estrutura fixa e centralizada na figura do homem provedor e chefe da família (GONÇALVES, 2020).
Percebe-se que a padronização da família brasileira, normatizada pelo Código Civil de 1916, era regida pela presença do pai, mãe e filhos concebidos nesta união, de modo que, as demais formações eram desprovidas de quaisquer proteções legais. Venosa (2012, p. 55) informa que: “O legislador do Código Civil de 1916 ignorou a família ilegítima, fazendo apenas raras menções ao então chamado concubinato unicamente no propósito de proteger a família legítima, [...]” e jamais reconhecendo os direitos da família ilegítima.
Desta forma, “o casamento era a única forma padronizada de família, sendo regrado por este código como uma união indissolúvel, no qual, os filhos gerados no matrimônio eram considerados legítimos e aqueles fora do casamento ilegítimos” (VENOSA, 2012), perante a sociedade patriarcalista fundamentados no Código de 1916.
A família, como mediação entre sujeito e cultura, torna-se um espaço em que o individualismo tende a se firmar. O progresso no sentido da redução da autoridade paterna foi se moldando e a tendência do nivelamento das relações entre pais e filhos foi incorporada pelos novos padrões que tende a substituir a família hierarquizada e patriarcal (SIERRA, 2012).
Dessa forma, salienta-se que, no decorrer do século XX houve várias transformações sociais, principalmente no tocante a constituição da essência da família na sociedade brasileira, e esses novos moldes propiciaram que o legislativo acordasse para a consagração da igualdade de filiação e o exercício do princípio da dignidade da pessoa humana, colocando em xeque a distinção de filiação legítima e ilegítima.
Por isso, a Carta Magna de 1988 rompeu com os parâmetros da família patriarcal e fundamentou a igualdade entre filhos, não mais admitindo a retrógrada distinção entre filiação legítima ou ilegítima, e adotiva, bem como, estabeleceu direitos e deveres entre conjunge, filhos e pais (SIERRA, 2012).
Verifica-se também que a família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. Em qualquer aspecto, a família aparece como uma instituição necessária e sagrada, que possui uma ampla proteção do Estado. A Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 reportam e estabelece normatizações protetivas, contudo, o legislador não definiu, pois não existe uma identidade de conceitos tanto no ramo do direito quanto no aspecto social (GONÇALVES, 2020).
Dessa forma, a história da humanidade, assim como os estudos antropológicos sobre o homem no espaço e tempo, esclarece que há variadas formas de família aos quais se evoluem e se modificam, consistindo não apenas a um fenômeno natural, mas uma instituição social que apresenta formas e finalidades relacionadas à característica cultural e histórica do homem na sociedade (PRADO, 2017).
Gonçalves (2020) informa que o direito de família é o mais intimamente ligado à própria vida, dentre todos os ramos do direito, uma vez que, os indivíduos provêm de um organismo familiar e a ele conservam-se vinculadas durante a sua existência, mesmo que venham a constituir nova família pelo casamento ou pela união estável.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 foi um marco em relação aos direitos relacionado à família no Brasil, pois desconstituiu a normatização do Código Civil de 1916, advinda de um período em que as relações familiares sobressaíam o patriarcalismo. Com a promulgação desta Carta Magna a diferenciação entre os filhos frutos da relação do matrimônio (legítimos) e aqueles adventos extraconjugais (ilegítimos) deixou de ser contemplada, de modo que, os termos legítimos e ilegítimos foram abolidos de nossa legislação.
Assim, a Carta Magna de 1988 contemplou a promoção da igualdade entre os filhos, e nos direitos e deveres dos indivíduos em suas relações familiares, independentemente do contexto social e familiar, uma vez que, o Código Civil de 2002 (legislação infraconstitucional) selou a igualdade ao normatizar os direitos inerentes à filiação no contexto social brasileiro, bem como, a questão dos direitos e deveres do poder familiar.
Calgaro (2015, p. 35) evidencia que:
A família clássica, onde o homem era o senhor dono das decisões e comando ao longo do século XX sofreu inúmeras transformações e a mulher passa a ocupar espaço, ganhando autoridade, compartilhando com o homem a gerência da entidade familiar, tanto que o quarto poder deixa de existir, sendo substituído pelo poder familiar.
Verifica-se que, a entidade familiar deve ser entendida na atualidade como um grupo social fundado, essencialmente em laços de afetividade, e que o Estado tem por dever de proteção, conforme preceitua o caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, “a família, a base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988, p. 01).
No contexto social atual há diversos arranjos familiares, desde famílias decorrentes do casamento ou união estável, homoafetivas (elo afetivo do mesmo sexto), monoparentais (vínculo entre filhos e genitores), anaparentais (vínculo entre irmãos), etc. E dentro da perspectiva do direito de família já também se remonta a família “multiespécie”, que trouxe uma nova concepção da entidade familiar pós-moderna.
A família multiespécie é compreendida como aquela formada pela afetividade demonstrada na relação humano-animal, que parte do pressuposto de que os animais são considerados seres sencientes sendo, portanto, dotados de sentimentos. É uma consequência do reflexo mais moderno da sociedade atual, pois os animais domésticos estão presentes em praticamente todos os lares e ultrapassa a noção de que são meros objetos inseridos no seio familiar (GONÇALVES, et. al., 2022).
André (2019, p. 161), ao tratar da responsabilidade civil por usurpação ou esbulho do alheio, entende que “não se pode deixar de reconhecer certas particularidades como a possibilidade de formação natural de um elo afetivo por certas coisas, como ocorre no caso de animais de estimação”, e defende que a perda da coisa em tais casos pode, inclusive, caracterizar danos morais a serem indenizados em montante superior ao indicado no art. 952 do Código Civil. Inclusive, para o autor, “pode ser que a coisa nem mesmo tenha um valor de mercado e a sua perda resulta em sofrimento para o seu dono que a mantém em seu poder exatamente em razão do seu valor de afeição”.
Venosa (2017, p. 833), ao comentar o mesmo art. 952, defende que:
De lege ferenda, melhor que o dispositivo apegue-se preferencialmente ao valor de afeição quando esta existir e, caso contrário, subsidiariamente, pelo valor material da coisa desaparecida. Nesse mesmo sentido, se o ofensor se apossa de cão de estimação que não mais possa ser devolvido em razão de sua morte ou fuga, o valor afetivo deverá ser devidamente estimado e, certamente, será superior ao valor do cão como espécime, ainda que de raça e com pedigree.
A essa nova concepção tem como um dos fatores o crescimento dos laços e cuidados com os animais domésticos e a indústria de petshop, bem como, a queda da taxa de fecundidade. É verídico que as configurações familiares estão se alterando, ao qual, as famílias monoparentais são também chefiadas por mulheres e casais que optaram por não terem filhos, dando oportunidade para o aparecimento de laços afetivos entre o ser humano e os animais domésticos (BARBOSA, 2021).
Barbosa (2021, p. 78) afirma que:
Nota-se, portanto, que a contemporaneidade trouxe diversas mudanças na sociedade que levaram a reconstrução, primeiro, da identidade do indivíduo, depois, dos grupos sociais, como a família. O homem passou a olhar o seu entorno, ver que é possível se conectar com outras espécies, reconhecer-se em outros seres, partilhar experiências e construir laços. Ao mesmo tempo, a crise ambiental com repercussões negativas na economia, contou para o homem a história da natureza e da sua interconexão com tudo que a cerca. O homem, inserido no meio ambiente, foi tomado por novos sentimentos e sensações. Pode-se dizer que um novo capítulo da história da família se desenvolveu, com novos atores, sentimentos, composições, dinâmicas, situações, espaços, consequências – sociais e jurídicas. Se a sociedade estava preparada para isso, é possível dizer que já havia uma abertura para uma nova concepção de família, formada, a partir e pelo amor
É perceptível que o reconhecimento da família multiespécie é fruto de uma geração globalizada, que busca a internalização na sociedade dos direitos das minorias e dá ensejo as pluralidades das novas constituições familiares, que até mesmo ultrapassa a linha limítrofe da idealização jurídica, havendo necessidade do Poder judiciário intervir diante da falta de legislação que cuida do caso concreto que fora acionado na justiça.
Ramos (2018, p. 114) reporta que:
Ao se falar no surgimento da família multiespécie, nasce a perspectiva da responsabilidade e da solidariedade assimétrica interespécie, o que sustenta a relação afetiva entre seres humanos e animais, desdobrando-se em estreitos vínculos, razões pelas quais os casais passam a oferecer aos animais os mais diversos sentimentos, sobretudo o de “filhos” não humanos.
O afeto e a senciência são qualificadoras jurídicas que atraem a proteção do direito de família aos animais. De maneira que, nos tempos atuais mostra a necessidade de uma releitura jurídica sobre o papel dos animais domésticos e seu verdadeiro lugar nas normas. Uma vez que não há dúvidas que o presente estudo científico leva o posicionamento de o Direito de Família, ao dar lugar aos animais, os transforma em sujeito de direitos e não mais como um objeto do direito (ALMEIDA, 2020).
A ideia da felicidade familiar, inclui sobremaneira a presença dos animais de estimação. Assim, a guarda de animais por escritura pública na dissolução da união estável ou laço conjugal é um tema relevante para a defesa do animal. De modo que, os vínculos de afeto entre animais e humanos são reparadores, mas também em caso de rompimento pode causar abalos graves para ambos (GONÇALVES, et. al., 2022).
Obviamente não se nega que, ao menos na cultura brasileira, os animais considerados de estimação, mormente cães e gatos, já vem recebendo tratamento bem mais digno do que outros animais que exploramos para diversos fins, tais como, alimentação, entretenimento, pesquisas, testes e vestimentas. No entanto, eles ainda são tratados como propriedade corolário a desconsideração de seus sentimentos e necessidades biológicas, uma vez que, são dados como objetos e não como parte da família no ordenamento jurídico brasileiro (GAGLIANO, 2015).
Pulz e Scheffer (2021) relatam que o momento de novas descobertas, de questionamentos e da formação de novos conceitos se equivale a momentos de crise, quando há rupturas de paradigmas e emergem as novas teorias no âmbito social, doutrinárias e científicas que permeia as mudanças de concepções. Se ainda hoje os animais domésticos são considerados coisas é porque ainda existe costumes, tradições e falta de vontade política de discutir sobre a questão da família multiespécie na atual sociedade brasileira.
Nota-se que o caminho é longo para a caracterização e normatização da família multiespécie no direito brasileiro. Nesse sentido, Ramos (2018, p. 118) informa que:
É de suma importância destacar a aceitação da existência e o reconhecimento da família multiespécie como sendo aquela composta a partir da relação afetiva entre seres humanos e animais não humanos. Contudo, considerando que o status jurídico dos animais não humanos deveriam ser o de sujeitos de direitos não humanos despersonalizados, fica descartada a possibilidade dos mesmos realizarem ações humanas, como o ato jurídico do casamento que, como afirma Coelho (2003), é um ato para o qual o atributo da humanidade é pressuposto.
Desta forma, a relação de afeto entre os animais domésticos e os demais integrantes da família é recíproco e faz parte da essência da família multiespécie, contudo, no tocante ao status jurídico do animais são considerados como sujeitos de direitos não humanos despersonalizados, pois os animais de estimação não realizam ações humanas, como por exemplo, o ato jurídico do casamento.
Portanto, não há que se negar que as transformações dessa nova concepção familiar “multiespécie” derivada dos novas concepções pós-modernas sociais, já se vislumbra no âmbito judicial, principalmente em decisões sobre a guarda dos animais domésticos após o fim da dissolução conjugal. Contudo, como ainda a legislação no Brasil é omissa (e também a vários aspectos da tutela animal), cabe ao órgão julgador decidir da maneira que julgar adequado ao caso concreto.
4 A DISSOLUÇÃO DO VINCULO CONJUGAL/ UNIÃO ESTÁVEL E A GUARDA DE ANIMAIS DOMÉSTICOS: UMA NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO LEGISLATIVA NO BRASIL
Primeiramente, sobre a questão do término das relações afetivas, no contexto histórico, o Estado se preocupou em evitar a dissolução desses vínculos conjugais, de maneira que, não havia a previsão legal da separação se um dos entes não provasse o motivo elencados na legislação para que seja concedida o término do laço matrimonial, como atesta o Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916).
Contudo, a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977 trouxe a regulamentação de casos da dissolução da sociedade conjugal e do casamento, tornando o caminho mais simples para o término da vida em comum (BRASIL, 1977). Após esse fato histórico, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 ratificaram significativos avanços no Direito de Família, principalmente no que tange a liberdade dos relacionamentos, pois as relações são baseadas no afeto e os laços conjugais nascem e também morrem.
A realidade atual trouxe novos contornos nos laços familiares, uma vez que, a valorização do afeto como base da composição familiar, com repercussão jurídica fez com que temas como a união estável, o concubinato, poliamorismo, a união homoafetiva e a necessária isonomia entre filhos gerassem e continuem gerando novos prismas para se visualizar no sistema jurídico brasileiro (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017).
Nesse contexto, ao atrelar os animais de estimação a essa realidade social tem se discussão da questão da guarda dos animais domésticos quando acontece a dissolução do vínculo conjugal e a necessidade de uma regulamentação legislativa. Verifica-se que numa ótica puramente legislativa, o artigo 82 do Código Civil de 2002 informa que esses seres são apenas de natureza mobiliária, que in verbis: “Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social” (BRASIL, 2002, p. 01).
Dessa forma, na legislação pátria, conforme preceitos do Código Civil de 2002 a regulamentação que ampara os animais domésticos é a que se destina aos bens patrimoniais, sendo considerados apenas objetos e a possibilidade de atribuição valorativa. Assim, Tartuce (2020, p. 298) reporta que:
Quanto aos animais, são enquadrados atualmente como coisas no Direito
Privado Brasileiro. Todavia, há uma tendência em se sustentar que seriam
sujeitos de direito, tratados não como coisas, mas até como um terceiro
gênero. Vale lembrar que o tratamento como terceiro gênero consta do BGB Alemão, estabelecendo o seu art. 90-A que os animais não são coisas (“Tiere ind keine Sachen”). O mesmo comando prevê, em continuidade, que os animais são protegidos por estatutos especiais. Todavia, na falta dessas normas, são regulados pelas regras aplicáveis às coisas, com as necessárias modificações.
É mediante a essa situação que, as demandas jurídicas são recorrentes, pois mesmo com a destinação legislativa, quando tratam os animais domésticos como objetos ou coisas, há uma incansável busca no direito de família sobre quem ficará com a guarda e obterá a custódia do animal, diante do divórcio ou a dissolução da união estável.
Isto é fruto, dos apegos e laços afetivos entre os animais domésticos e seus tutores nos lares brasileiros. Com base em dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE) (2020) em 2019 a pesquisa estimou que, 46,1% dos lares havia pelo menos um cachorro, já os gatos estavam presentes em 19,3% dos domicílios. O equivale a 47,9 milhões de cães e gatos.
Nesse sentido, Issa (2018, p. 66) informa que:
O fato de haver mais animais de estimação do que filhos humanos nos lares brasileiros aliado às descobertas científicas acerca da senciência de vários deles são divisores de água no Direito Civil e de Família. Se por um lado, a legislação ignora as novas famílias, a realidade social escancara a existência delas. Não há como retroceder.
Verifica-se que, essa realidade social não pode ser depreciada no ordenamento jurídico brasileiro, juntamente com a problemática levantada nesse estudo científico. Uma vez que, os laços afetivos entre os tutores e seus animais domésticos vêm demandando as varas de família no Brasil, para decidir qual tutor terá a guarda em casos de divórcios e dissolução da união estável.
Outro posicionamento a ser levantado é sobre a competência da Vara de Família de ajuizar essas causas, pois a discussão que impera se na atualidade quem deverá cuidar desse assunto é a Vara Cível, pois ainda vigora no país o artigo 82 do Código Civil de 2002. Nesse caso, se for levar em consideração, o status jurídico dos animais como seres semoventes a competência para decidir seria a Vara Cível.
Informa-se que, no plano da jurisprudência, são encontradas decisões que aplicam, nas ações de divórcio, as mesmas regras previstas para a guarda de filhos, por analogia, para os animais de estimação.
De modo que, numa decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, teve o entendimento do juízo da guarda provisória e regulamentação de visitas do animal de estimação adquirido pelo casal, apreciado pelo juízo de Família, que in verbis:
TJ- SP 2069305-71.2022.8.26000
Data julgamento: 23/08/2022
Data da publicação: 23/08/2022
A respeito do tema vale mencionar também o Enunciado nº 11 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM): “na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal”.
Diante desse contexto e respeitado o entendimento do juízo de primeiro grau, deve o pedido de guarda provisória e regulamentação de visitas dos animais de estimação adquiridos pelo casal ser apreciado pelo Juízo da Família, qual seja a 7ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central. Quanto ao pedido de fixação de alimentos provisórios em favor da agravante deve ser mantido o indeferimento.
[...]
Pelo exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso apenas para reconhecer a competência do Juízo da Família, qual seja, a 7ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central, para conhecer do pedido de guarda provisória e regulamentação de visitas dos animais de estimação adquiridos pelo casal, mantido o indeferimento quanto ao pedido de fixação de alimentos provisórios em favor da agravada (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2022, p. 01).
Outro processo em que a decisão se pauta no princípio da afetividade no vínculo estabelecido entre pessoas e animais domésticos e o dever de alimentos ao cônjuge e companheiro a quem competir a guarda do animal.
TJ – MG 1.0000.21.136589-5/001
Data de Julgamento: 29/09/2022
Data da publicação da súmula: 30/09/2022
Ementa:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO- AÇÃO DE DIVÓRCIO C/C PARTILHA DE BENS, FIXAÇÃO DE CUSTÓDIA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO E DE PENSÃO ALIMENTÍCIA TRANSITÓRIA - DIVÓRCIO - DIREITO POTESTATIVO DO CÔNJUGE - DECRETAÇÃO IMEDIATA - ALIMENTOS ENTRE CÔNJUGES - DEVER DE MÚTUA ASSISTÊNCIA - DEPENDÊNCIA ECONÔMICA COMPROVADA CABIMENTO - ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO - FAMÍLIA MULTIESPÉCIE - RESSARCIMENTO DE PARTE DAS DESPESAS REALIZADAS PELO CÔNJUGE GUARDIÃO - POSSIBILIDADE.
- A partir da Emenda Constitucional nº 66, foi suprimida a separação judicial, desaparecendo também o requisito temporal para o divórcio, que passou a ser exclusivamente direto, tanto por consentimento dos cônjuges, quanto na modalidade litigiosa.
- A obrigação alimentar em favor do cônjuge tem por fundamento o dever de mútua assistência, conforme exegese do inciso III do artigo 1.566 c/c artigo 1.694, ambos do Código Civil.
- O dever de prestar alimentos entre cônjuges, fundamentado no dever de mútua assistência, é considerado uma exceção, incidente somente quando configurada a dependência econômica e nas hipóteses de incapacidade laboral permanente ou impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho.
- Demonstrado nos autos a existência de dependência financeira entre os cônjuges, devem ser estabelecidos os alimentos provisórios em favor do agravante.
- O Superior Tribunal de Justiça firmou o seu entendimento no sentido de que "os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ser fixados por prazo certo, suficiente para, levando-se em conta as condições próprias do alimentado, permitir-lhe uma potencial inserção no mercado de trabalho em igualdade de condições com o alimentante" (REsp 1531920/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/04/2017, DJe 11/04/2017).
- Os alimentos provisórios devem ser fixados na proporção das necessidades do alimentando e das possibilidades do alimentante, consoante o §1º, do artigo 1.694, do Código Civil.
-Diante da evolução do conceito de família, que passou a incluir entre seus membros os animais de estimação, dentro do conceito de família multiespécie, os custos com saúde e alimentação dos "pets" deve ser suportado de forma solidária pelos cônjuges e, em caso de rompimento do núcleo familiar, são devidos alimentos ao cônjuge ou companheiro a quem competir a guarda dos animais (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, 2022, p. 01).
Nessa linha, cite-se o julgamento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.713.167/SP, em 2018. Como se retira da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, “decerto, porém, que coube ao Código Civil o desenho da natureza jurídica dos animais, tendo o referido diploma os tipificado como coisas – não lhes atribuiu a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica, não podendo ser tidos como sujeitos de direitos – e, por conseguinte, objeto de propriedade. De fato, os animais, via de regra, se enquadram na categoria de bens semoventes, isto é, ‘móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico social’ (art. 82). Não há dúvidas de que o Código Civil tipificou-os na categoria das coisas e, como tal, são objetos de relações jurídicas, como se depreende da dicção dos arts. 82, 445, § 2.º, 936, 1.444, 1.445 e 1.446. Nessa perspectiva, resta saber se tais animais de companhia, nos dias atuais, em razão de sua categorização, devem ser tidos como simples coisas (inanimadas) ou se, ao revés, merecem tratamento peculiar diante da atual conjectura do conceito de família e sua função social” (TARTUCE, 2020).
A respeito dessa temática é importante salientar sobre o ativismo judicial, ao qual, expande o sentido e o alcance do ato normativo constitucionalista, por meio de uma interpretação judicial, isto acontece quando há uma retração do Poder Legislativo, havendo através das jurisprudências uma antecipação da formulação da legislação.
Grostein (2019) destaca que a atuação do Poder Judiciário na formulação de políticas públicas em detrimento dos demais ramos institucionais, expande as fronteiras da província jurisdicional. De fato, é o ativismo, enquanto atitude prévia dos juízes, que condiciona a ocorrência ou não da judicialização. Visto que o ativismo judicial é a participação mais ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização dos valores constitucionais, com maior interferência na atuação das necessidades sociais. Assim, nessa linha de pensamento a judicialização impõe a postura ativista atuante no Poder Judiciário (GROSTEIN, 2019).
Salienta-se que, nesse cenário as situações concretas num mundo do dever ser deveriam ser incorporadas pelo Direito, no entanto, é notório que existe um descompasso, uma vez que, a realidade social sempre antecedeu ao direito, de modo que, há a necessidade de se tornar os fatos em atos jurídicos. Assim, quando a legislação não alcança a necessidade social, é cabível ao juiz suprir a lacuna legislativa, pois o magistrado não pode negar os direitos assecuratórios, por motivo de ausência normativa (GROSTEIN, 2019).
Dessa forma, a guarda compartilhada dos filhos no direito de família, por analogia é uma das soluções judiciárias encontradas para solucionar os litígios que envolvem animais domésticos em casos de dissolução conjugal ou da união estável, demonstrando uma postura bastante ativa do Poder Judiciário.
Nota-se que, por falta de uma legislação específica que atenda a necessidade dessa problemática abordada no estudo científico, o presente instituto fica a cargo do mero entendimento do juiz, que pode ou não considerar a aplicação da guarda compartilhada, permitindo que aconteça no cenário jurisprudencial uma diversificação jurisprudencial.
Verifica-se que na atualidade há três correntes tanto na jurisprudência quanto doutrinária. A primeira reporta a elevar os animais ao status de pessoa, pois coloca o ser humano biologicamente como animal, ser vivo com capacidade de locomoção e de resposta a estímulos, por isso, os animais são atribuídos direitos de personalidade.
Medeiros (2018, p. 109) assevera que:
O animal como sujeito de direitos já é concebido por grande parte de doutrinadores jurídicos de todo o mundo. Um dos argumentos mais comuns para a defesa desta concepção é o de que, assim como as pessoas jurídicas ou morais possuem direitos de personalidade reconhecidos desde o momento em que registram seus atos constitutivos em órgão competente, e podem comparecer em Juízo para pleitear esses direitos, também os animais tornam-se sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem e protegem seus interesses.
Já a segunda vertente entende que a melhor maneira é separar o conceito de pessoa e de sujeito de direito, possibilitando a proteção dos animais na qualidade de sujeito de direito sem personalidade, dando a proteção em razão do próprio animal, e não apenas como objeto (qualidade de patrimônio do seu proprietário) ou de direito difuso como forma de proteção ao meio ambiente (TARTUCE, 2020).
A ética do meio ambiente referida destaca o valor intrínseco das formas de vida além do ser humano. Quando se afirma a proteção dos maus tratos dos animais busca o reconhecimento de um valor inerente, pelo fato dele ser sujeito de uma vida. E cabe ao Estado prover proteção jurídica de quaisquer maus tratos aos animais (MEDEIROS, 2019), contudo, não se pode olvidar de que a personalidade é atribuída apenas ao homem, é por isso, que Medeiros (2019, p. 128) “[...] devem ter reconhecidas suas condições de sujeitos de direito, saindo do status de coisas para uma terceira categoria, intermediária – nem coisa, nem pessoa – de sujeito”.
Por fim, a terceira é a mais tradicional, sendo que, os animais, mesmo aqueles de companhia ou estimação, pertencem dentro da categoria de coisas e bens, uma vez que, só o fato de o animal ser tido como de estimação, e havendo laços de afetividade na entidade familiar, não altera sua substância, a ponto de converter a natureza jurídica. O que se evidencia para a existência dessa corrente é a falta de uma legislação específica, uma vez que, mesmo que haja a corrente tradicional, o atual regramento jurídico dos bens para resolver, não se mostra satisfatoriamente para resolver tal disputa familiar (TARTUCE, 2020).
É importante destacar que não há dúvidas que a disputa da guarda dos animais domésticos é uma realidade pós-moderna, ao qual, é atribuída a esses seres um aspecto não patrimonial diante das significativas mudanças institucionais nas famílias, adquirindo novas molduras sociais. Isto é protegido na Carta Magna de 1988 que implicitamente protege a família sem suas diversas formas, com o reconhecimento da família multiespécie.
Ramos (2018, p. 169) defende que:
Ao considerar essa perspectiva lógica, tornou-se necessário, o implemento de dispositivo legal, que assim os definam. Em vista disso, os animais, como sujeitos de direito não humanos despersonalizados, poderiam ser “tutelados” e “representados” (enquanto integrantes da família multiespécie) e “representados” (quando não fossem integrados à família multiespécie), entretanto, em ambos os casos, estes figurariam como objetos dos deveres de proteção humana, o que os tornariam, portanto, sujeitos titulares de direito.
É por isso da relevância de uma norma que atende das necessidades desse novo modelo de família, pois os animais domésticos possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos nos entes familiares, totalmente diversos do que qualquer outro tipo de propriedade privada. Contudo, deve ponderar os princípios em conflito, para que se assegurem os direitos fundamentais e uma vida digna desses seres não humanos (TARTUCE, 2020).
Nesse contexto, a guarda de animais doméstico não pode ser tratada com banalidade, pois abre portas para implicações injustas e graves no ambiente social. De maneira que, a legislação não pode se omitir diante dessa nova realidade pós-moderna. O melhor caminho é uma legislação específica que atenda às necessidades dessa nova concepção familiar, ao passo que, a melhor maneira é de separar o conceito de pessoa e de sujeito de direito, concedendo a proteção aos animais na qualidade de sujeito de direito sem personalidade e não apenas como objeto (uma propriedade), visto que, possuem vínculos afetivos.
Verifica-se que mesmo que as situações relativas a custódia e guarda de animais sejam similares de crianças e adolescentes, a condição desses seres não humanos são diferentes, é por isso que é imperativo a criação de um estatuto jurídico próprio que atenda às necessidades e singularidades das relações entre humanos e animais domésticos.
Issa (2018, p. 66) informa que:
O direito como instrumento de composição de conflitos deve racionalizar os fatos sociais, afastando qualquer tipo de preconceito, dogmas ou autoritarismo que em nada combinam com a diversidade. A lei precisa abarcar essa realidade, ao invés de buscar um ideal que não existe dentro das famílias, atendendo especificamente a essas demandas e às particularidades da relação entre humanos e pets. Sendo isso, não restam dúvidas sobre a possibilidade jurídica de demandas envolvendo a guarda dos pets.
Portanto, a elaboração de uma legislação específica é de extrema importância e de grande necessidade social, pois irá institucionalizar os interesses dos animais de estimação, bem como, posicionar o seu papel na sociedade pós-moderna e a nova realidade familiar. E com uma norma específica, promoverá significativas mudanças no campo judiciário, pois evitará demoradas discussões, entendimentos diversos sobre a questão da custódia do animal doméstico, evitando assim, o ativismo judicial e litígios entre os casais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema levantado nesse estudo científico teve a preocupação de analisar a possibilidade de concessão de guarda compartilhada e a necessidade de uma legislação específica que abrange a guarda de animais doméstico a partir da dissolução da relação afetiva sob a óptica da família multiespécie, com o objetivo de atender as características únicas que os diferenciam dos humanos e também respeite os vínculos afetivos criados nessa nova concepção de família pós-moderna.
A problemática destacada é aliada ao fato do medo de criar personalidade jurídica para animais, de causar um problema ideológico quantos aos demais animais e grupos que presam pela vida animal. Em um país que grande parte do PIB se trata da área de criação de animais para o abate e consumo de sua carne, sendo muito pouco interessante que os demais animais além dos domésticos tenham personalidade, pois isso seria definido pela ligação afetiva do indivíduo com o animal, ignorando a espécie do animal ou qualquer outra característica, podendo causar essa confusão quanto a limites.
Assim, o melhor caminho é legislação específica que atenda às necessidades dessa concepção familiar, e também o espaço dos animais de estimação no âmbito social. E a melhor maneira é de separar o conceito de pessoa e de sujeito de direito, uma vez que, numa legislação própria concederá a esses animais na qualidade de sujeito de direito sem personalidade e não apenas como objeto (uma propriedade).
É por isso, que a legislação específica sobre o respectivo tema é tão relevante, pois atenderá os pontos chaves e parâmetros, na atual conjuntura a margem para mal entendimentos do poder e não poder normativo sobre a guarda de animais domésticos diante da ruptura de união ou dissolução conjugal.
A prerrogativa do uso de Lei como paralelo para amparar essas situações em alguns casos envolvendo animais domésticos pode ser válida como medida paliativa, mas não garante que as especificidades das situações geradas por esse tipo de situação sejam sanadas, sendo assim as ferramentas dispostas atualmente não são suficientes para que se atendam as demandas.
O cenário desses casos fica nebuloso partindo do pressuposto que a decisão sobre tal tema pode ficar vinculado ao entendimento e a empatia da figura decisória sobre cada uma das situações, sendo assim vinculados diretamente a pessoa que vai tomar a decisão, e uma situação arbitrária se considerar que não tem nenhuma forma legal de garantir que haja a padronização das decisões quanto a este tipo de situação.
De modo que, o número de acerto se compromete, se tornando abaixo do aceitável, uma vez que pessoas e animais neste cenário precisam de garantias e direitos explicitamente expostos para que fique claro quais os direitos a se mitigar quando entrar com ação jurídica referente a tal assunto.
Portanto, entende-se que é de fundamental importância a promulgação de uma lei que abrange o espaço dos animais de estimação no âmbito familiar brasileiro, pautando pela consideração dos laços afetivos criado, havendo a possibilidade da concessão da guarda compartilhada, contudo, deixando claro, que não pertencem ao mesmo espaço de sujeito de personalidade do ser humano.
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Graduando em Direito. Faculdade de Ensino Superior de Linhares.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Wilian Araújo. A guarda compartilhada de animais domésticos a partir da dissolução da relação afetiva: família multiespécie Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 dez 2022, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60721/a-guarda-compartilhada-de-animais-domsticos-a-partir-da-dissoluo-da-relao-afetiva-famlia-multiespcie. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: gabriel de moraes sousa
Por: Thaina Santos de Jesus
Por: Magalice Cruz de Oliveira
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