RESUMO: Este trabalho busca apresentar a discussão acerca da competência para o julgamento das contas dos chefes do poder executivo municipal. Inicialmente, faz-se uma revisão bibliográfica acerca das possíveis formas de controle da Administração Pública, dando ênfase no controle externo exercido pelos Tribunais de Contas. Posteriormente, realiza-se uma exposição do caso que compeliu o Supremo Tribunal Federal a enfrentar essa temática, e expõe-se a tese de repercussão geral que restou firmada no âmbito do recurso extraordinário nº 848.824. Por fim, defende-se a competência do Tribunal de Contas para o julgamento das contas de gestão dos prefeitos.
Palavras-chave: Controle Externo. Direito Administrativo. Direito Constitucional. Tribunal de Contas.
ABSTRACT: This paper seeks to present the discussion about the competence to judge the accounts of the heads of municipal executive power. Initially, a bibliographic review is done on the possible forms of control of the Public Administration, emphasizing the external control exercised by the Audit Courts. Subsequently, an exposition of the case that compelled the Federal Supreme Court to deal with this issue is made, and the thesis of general repercussion that has been signed in the scope of extraordinary appeal no. 848.824 is presented. Finally, it is defended the competence of the Court of Auditors for the judgment of the management accounts of mayors.
Keywords: External Control. Administrative law. Constitutional right. Audit Office.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O TRIBUNAL DE CONTAS E O CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 1.1 Os fundamentos constitucionais do controle externo exercido pelos Tribunais de Contas; 1.2 A natureza jurídica dos Tribunais de Contas; 1.3 Os sujeitos do controle externo; 1.4 A composição dos Tribunais de Contas; 1.5 As atribuições dos Tribunais de Contas; 1.6 Os tribunais de contas nos âmbitos municipais e estaduais. 2. A TESE DE REPERCUSSÃO GERAL FIRMADA NO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 848.826. 2.1 Histórico do julgamento; 2.2 A tese vencedora no julgamento do recurso – competência exclusiva da Câmara de Vereadores para o julgamento dos prefeitos; 2.3 Os efeitos jurídicos de uma tese de repercussão geral; 3. O TRIBUNAL DE CONTAS COMO ÓRGÃO COMPETENTE PARA JULGAMENTO DAS CONTAS DOS PREFEITOS. 3.1 Critério constitucional para fixação da competência: a natureza das contas analisadas; 3.2 A competência da Câmara Legislativa para julgamento das contas de governo dos chefes do poder executivo municipal; 3.3 A competência do Tribunal de Contas para o julgamento das contas do prefeito ordenador de despesas; CONSIDERAÇÕES FINAIS.
INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2016 foi publicado em diversos veículos midiáticos do país o resultado da pesquisa realizada pela Organização Não Governamental (ONG) Transparência Internacional. Produzido anualmente desde 1995, esse ranking busca conceber um relatório que demonstre a corrupção no mundo - mais precisamente nos 168 países e territórios participantes da pesquisa - por meio de estudos que avaliam a percepção da corrupção no setor público dos Estados participantes. O resultado, para os brasileiros, não foi animador.
O Brasil ocupa a 76ª posição e obteve 38 pontos, de uma escala que vai de 0 a 100 – apresentando uma queda de 05 (cinco) pontos em relação ao último resultado, apresentado no ano de 2014, quando o país ficou na posição 69 do ranking. Entre os motivos causadores da piora, a ONG citou a intensa corrupção política vivenciada no país, indicando o caso da Petrobrás como o maior esquema de corrupção já investigado na história do Brasil.
Fica evidenciada, portanto, a grave crise institucional instaurada no país, movida, em grande parte, pelos escândalos envolvendo a temática da corrupção em todos os âmbitos da federação – federal, estadual e municipal. Esse cenário demonstra a importância dos Tribunais de Contas para o ordenamento jurídico brasileiro.
As Cortes de Contas são órgãos autônomos que auxiliam o Poder Legislativo no exercício do controle externo da Administração Pública. Dentre as suas atribuições, encontra-se a competência para realizar o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público. Desta forma, é instituição indispensável para o aprimoramento da gestão da coisa pública.
Ocorre que, em janeiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal enfrentou questionamento que discutia a competência para o julgamento das contas dos chefes do poder executivo municipal, firmando tese de repercussão geral que determinou ser a Câmara de Vereadores, de forma exclusiva, o órgão responsável pelo julgamento das contas dos prefeitos. Ao assumir esse posicionamento, a Suprema Corte usurpou parte da competência atribuída constitucionalmente aos Tribunais de Contas.
O cerne da presente pesquisa será, portanto, a tese de repercussão geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 848.826. Dentro desse marco analítico será discutida a competência das Cortes de Contas para o julgamento dos prefeitos ordenadores de despesas.
Não há dúvidas sobre a relevância desse estudo: é necessário analisar a fundo essa temática para que se possa demonstrar por que a Suprema Corte Brasileira agiu de forma temerária ao firmar a referida tese. Ademais, estudar esse tema é de extrema importância para que a sociedade compreenda quais serão as consequências que deverão ser suportadas em razão da aludida decisão.
1. O TRIBUNAL DE CONTAS E O CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
1.1 Os fundamentos constitucionais do controle externo exercido pelos Tribunais de Contas
As normas acerca do controle externo exercido pelo Tribunal de Contas da União encontram-se consignadas no título IV (da organização dos poderes), mais precisamente no capítulo I (do poder legislativo), seção IX (da fiscalização contábil, financeira e orçamentária) da Constituição da República. Nesse segmento estão localizados os art. 70 a 75, que tratam acerca da organização, composição e das atribuições da Instituição.
A primeira parte do caput desse artigo demonstra o alcance da fiscalização tradicionalmente realizada pelos órgãos de controle externo. De forma exemplificativa, Luiz Henrique Lima preleciona que se cuida de um exame acerca: da correção dos lançamentos contábeis (fiscalização contábil); da legalidade da abertura de créditos adicionais (fiscalização orçamentária); da correção de pagamentos (fiscalização financeira); e da probidade das licitações e dos contratos administrativos (fiscalização patrimonial). (LIMA, 2015).
Há ainda a fiscalização realizada pela ótica operacional. Esta corresponde a uma importante inovação trazida pela CF/88 e refere-se a uma avaliação acerca da eficiência da Administração Pública. Como instrumento representativo dessa forma de controle, pode-se citar o sistema de auditorias, que passa a permitir uma análise sistemática dos programas, ações e projetos governamentais – abrangendo todos os órgãos e entidades que se encontram sob a jurisdição dos Tribunais de Contas.
Na segunda parte do caput do art. 70, o constituinte originário estabeleceu que o controle externo deve ser realizado sob o enfoque dos princípios da legalidade, legitimidade e economicidade. Mas qual seria propriamente a diferença desses conceitos? O primeiro deles, de compreensão mais fácil, diz respeito à conformação dos atos praticados pelo administrador público ao ordenamento jurídico positivo, isto é, suas normas e princípios.
Já a legitimidade, de forma mais profunda, exige não apenas essa conformidade do ato ao Direito. Sob este prisma, faz-se necessário a formação de um juízo de valor, ponderando-se as circunstâncias em que o ato será praticado, as despesas com ele realizadas e as demais necessidades da comunidade. Deste modo, uma fiscalização sob essa perspectiva torna-se essencial para que os anseios da sociedade sejam atendidos naquelas situações em que não há previsão expressa em uma norma legal, exigindo que o administrador vá além da mera submissão do ato administração ao direito positivado e enxergue o interesse público na sua realização.
O exame da economicidade de um ato, de modo semelhante ao que ocorre com a análise da legitimidade, também implica uma avaliação qualitativa. Neste caso, porém, de modo mais específico, avaliar-se-á se o administrador público pautou-se nos princípios da eficiência e da razoabilidade durante a prática do ato administrativo. A intenção é controlar a alocação dos recursos públicos, no anseio de que as necessidades da comunidade sejam atendidas com um custo razoável.
Por fim, destaca-se a menção à fiscalização da aplicação das subvenções e renúncias de receitas realizada na parte final do enunciado do art. 70 da CF. Consideram-se subvenções, segundo disposto no art. 12, §3º da Lei 4.320/64, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio de entidades beneficiadas. Essas subvenções podem ser classificadas como sociais, isto é, com destinação a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa; ou como econômicas, que seriam aquelas destinadas às empresas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril. Certo é que os beneficiários deverão sujeitar-se à fiscalização do controle externo.
Já as renúncias de receita, conforme dispõe a Lei de Responsabilidade Fiscal – LC nº 101/2000 –, em seu art. 14, § 1º
[...] compreendem a anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondem a tratamento diferenciado.
Trata-se de mecanismo por meio do qual o Estado abdica do seu direito de arrecadar, ora para intervir na economia, ora para permitir que os recursos sejam utilizados diretamente pelos contribuintes. Em todo caso, há a necessidade de sujeição ao controle externo exercido pelas Cortes de Contas.
1.2 Natureza jurídica dos Tribunais de Contas
Antes de iniciar um estudo acerca das normas que regulamentam os Tribunais de Contas, faz-se necessário analisar a sua natureza jurídica, que pode ser inferida da localização dos dispositivos que tratam do controle externo na Constituição Federal Brasileira. Como já exposto, estes se encontram dispostos título IV, capítulo I, seção IX. Trata-se de um detalhe de bastante relevância, pois indica a intenção do constituinte originário em relação a essa forma de controle.
Existia na doutrina grande discussão acerca da posição ocupada pelos Tribunais de Contas no tocante aos poderes do Estado. Acerca dessa temática, havia três correntes, que tinham como premissa básica a teoria da separação dos poderes, de Montesquieu: aquela que entendia serem as cortes de contas instituições vinculadas ao poder judiciário; a que as enxergavam como órgãos do poder executivo; e ainda a que as concebiam como integrantes do poder legislativo.
A primeira corrente entendia que os Tribunais de Contas eram instituições integrantes do Poder Judiciário. Esse posicionamento, que teve como expoente José Luiz de Anhaia Mello, defendia que as decisões das Cortes de Contas possuíam a mesma força das proferidas pelo judiciário e que seus integrantes deveriam receber tratamento semelhante àquele dispensado aos membros da magistratura. Esse entendimento decorreu de uma interpretação dada ao art. 73 do texto constitucional, que determina possuir o Tribunal de Contas da União jurisdição em todo o território nacional. Esse dispositivo será analisado de maneira mais aprofundada posteriormente.
A segunda corrente defendia serem os Tribunais de Contas órgãos da estrutura do Poder Executivo. Trata-se de um entendimento ultrapassado, uma vez que essa composição ocorreu no Brasil apenas durante o período do regime ditatorial. Neste ínterim, a função de controle da Administração Pública era exercida apenas por órgãos vinculados à Fazenda Pública e seus integrantes eram escolhidos pelo Chefe do Poder Executivo, ou seja, esse poder era responsável, simultaneamente, pela função típica de administrar a coisa pública e pelo poder de controlar essa atuação. Por esse motivo não é possível conciliar essa corrente com o Estado Democrático vivenciado atualmente no país.
A terceira corrente preconizava que os órgãos de controle externo eram vinculados, por força da constituição, ao poder legislativo. Dentre os expoentes desse entendimento encontra-se Michel Temer, que em sua obra Elementos do Direito Constitucional preleciona que “o Tribunal de Contas é parte componente do Poder Legislativo, na qualidade de órgão auxiliar, e os atos que praticam são de natureza administrativa” (TEMER, 2002, p. 134).
Essa última corrente é alvo de fortes críticas doutrinárias. Isso porque defender a existência de órgãos de controle externo como órgãos de mera assessoria do poder legislativo, sem nenhuma autonomia, poderia significar atribuir o poder de fiscalização exclusivamente a um poder, que por muitas vezes, poderia ser composto majoritariamente por representantes do grupo político ao qual pertence o Chefe do Poder Executivo. Nessa ocasião, indubitavelmente haveria um comprometimento por parte desse órgão de controle.
Por essa razão, prevalece atualmente o entendimento de que os Tribunais de Contas são órgãos vinculados ao Poder Legislativo, porém dotados de autonomia, e independentes, portanto, de qualquer disputa partidária. Desta forma, o art. 71 da CF/88, que estabelece ser o controle externo competência do Congresso Nacional, exercido com o auxílio do Tribunal de Contas, não deve ser interpretado como se houvesse um vínculo de subordinação entre a instituição e o legislativo. Trata-se, na verdade, de um termo utilizado no sentido de que deve haver uma colaboração entre eles.
Deste modo, conclui-se que o Tribunal de Contas é uma instituição independente e de matiz constitucional, não sendo um Poder do Estado e nem se encontrando subordinado a quaisquer deles. Sua finalidade é exercer o controle externo da Administração Pública, ora como cooperador do Poder Legislativo, ora de maneira autônoma. Em razão da sua importância para a presente pesquisa, essas atribuições constitucionais serão objeto de tópico específico.
1.3 Os sujeitos do controle externo
Mas, afinal, quem está sujeito à fiscalização exercida pelas Cortes de Contas? Para responder a esse questionamento, imperioso destacar a previsão do parágrafo único do art. 70 do texto constitucional, segundo o qual “prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos”.
Percebe-se, portanto, que qualquer pessoa que assuma a gestão de um recurso público encontra-se obrigada a prestar contas pelos atos praticados em sua administração. Assim, o controle externo alcançará todos os agentes públicos, incluindo-se entre eles os agentes políticos, administrativos, honoríficos, delegados e credenciados[1]; as entidades da administração indireta, sejam prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica[2]; as organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público[3], quanto aos recursos recebidos; os serviços sociais autônomos, dentre outros.
Importante ressaltar que a omissão no dever de prestar contas enseja a tomada de contas especial; configura ato de improbidade administrativa por desrespeito aos princípios da Administração Pública, nos moldes do art. 11, VI, da Lei no 8.429/1992; e caracteriza crime de responsabilidade, conforme disposto no art. 9º da Lei no 1.079/1950. Ademais, essa omissão poderá acarretar o reconhecimento da inelegibilidade, prevista no art. 1º, inciso I, alínea g da Lei Complementar 64 de 1990.
i. A composição dos Tribunais de Contas
Quanto a sua formação, o Tribunal é composto por nove Ministros, que são escolhidos e nomeados dentre brasileiros maiores de trinta e cinco e menores de sessenta e cinco anos de idade; que possuam reconhecida idoneidade moral e reputação ilibada; detenham notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; e tenham exercido mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos nas áreas anteriormente citadas (art. 73, §1º, CF).
Esses ministros são escolhidos na seguinte forma: um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento; e dois terços pelo Congresso Nacional (art. 73, §2º, CF).
Ademais, os ministros dos Tribunais de Contas gozarão das mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (art. 73, §3º). Essa previsão objetiva conferir aos integrantes da instituição a mesma autonomia dispensada aos magistrados, possibilitando que exerçam suas funções de maneira imparcial, livres de qualquer influência dos órgãos, entidades e poderes da Administração Pública.
ii. As atribuições dos Tribunais de Contas
As competências atribuídas pelo legislador ordinário às Cortes de Contas encontram-se previstas, em sua essência, no artigo 71 da Constituição da República. Da leitura do artigo mencionado, extrai-se que o Tribunal de Contas exerce várias funções, que podem ser classificadas como: fiscalizadoras, sancionadoras, coercitivas, de ouvidoria, informativas, judicantes e consultivas. Passa-se agora a analisar cada uma dessas competências, com a ressalva de que apenas as duas últimas comporão o objeto central a ser debatido nessa pesquisa.
De acordo com a função fiscalizadora, compete ao Tribunal realizar inspeções e auditorias nas unidades da Administração direita e indireta dos três poderes da União (art. 71, IV, CF). Ademais, exerce-se essa função quando a instituição fiscaliza diretamente as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe e também a aplicação dos recursos repassados pela União aos Estados, ao Distrito Federal ou aos Municípios (art. 71, V e VI, CF).
A função sancionadora consiste no poder que possui a instituição para aplicar penalidades àqueles que causarem prejuízo à Fazenda Pública ou que tiverem suas contas julgadas irregulares (art. 71, VIII, CF). Esta, entretanto, não se confunde com a função coercitiva, que é verificada quando o Tribunal atua concedendo prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias, quando apurada ilegalidade, para o restabelecimento do cumprimento da lei (art. 71, IX, CF).
A função de ouvidoria é exercida no momento em que há apresentação de denúncia por parte do controle interno dos poderes, dos cidadãos, partidos políticos, sindicatos ou associações, ao Tribunal de Contas, para que este tome as providências que pautar serem cabíveis (art. 74, IV e §2º da CF). No sentido contrário, a função informativa é verificada quando compete às Cortes de Contas o papel de prestar informações sobre as fiscalizações por ela exercidas ou sobre os resultados das auditorias e inspeções realizadas (art. 71, VII e XI da CF).
Por fim, há ainda as funções judicante e consultiva. A primeira consiste na possibilidade do Tribunal de realizar o julgamento das contas públicas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, assim como das contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (art. 71, II da CF). Essa função é alvo de controvérsia pelos motivos a seguir expostos.
Segundo estabelece o caput do art. 73 da Lei Maior, o Tribunal de Contas da União, com sede no Distrito Federal, detém jurisdição em todo o território nacional. Há doutrinadores que defendem que essa instituição, por não constituir órgão do poder judiciário (art. 92 da CF), não se encontra legitimada para exercer a função jurisdicional do Estado. Deste modo, sustentam que o uso do termo jurisdição nesse dispositivo é fruto de uma impropriedade técnica do constituinte originário, visto que essa seria função exclusiva do poder judiciário.
Segundo os adeptos dessa corrente, alguns dos fatos que indicam a ausência de jurisdição das Cortes de Contas são: ausência da figura dos litigantes, prevista no art. 5º, LV do texto constitucional; a importância dada aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, posto que esses só ganham destaque a partir do momento em que alguém passa à condição de réu; a submissão das decisões ao controle do poder judiciário (incapacidade para gerar coisa julgada[4]), dentre outros.
Nesse sentindo posicionou-se Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, em artigo publicado na revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro:
A função jurisdicional do Estado é exclusiva do Poder Judiciário e é por isso que as Cortes de Contas: a) não fazem parte da relação dos órgãos componenciais desse Poder (o Judiciário), como se vê da simples leitura do art. 92 da Lex Legum; b) também não se integram no rol das instituições que foram categorizadas como instituições essenciais a tal função (a jurisdicional), a partir do art. 127 do mesmo Código Político de 1988.
[...]
Em síntese, pode-se dizer que a jurisdição é atividade-fim do Poder Judiciário, porque, no âmbito desse Poder, julgar é tudo. Ele existe para prestar a jurisdição estatal e para isso é que é forrado de competências. Não assim com os Tribunais de Contas, que fazem do julgamento um dos muitos meios ou das muitas competências para servir à atividade-fim do controle externo (BRITTO, 2014, p. 16).
Ocorre que tal entendimento não deve prosperar. De acordo com o conceito clássico apresentado pela doutrina, jurisdição é o poder que possui o Estado de, visando resolver controvérsias entre particulares, entre esses e o Estado ou até mesmo entre dois organismos estatais (litigantes), aplicar o direito ao caso concreto que lhe foi apresentado. Assim, seria uma atividade exercida em face de um litígio, denominando-se por esse motivo, de jurisdição contenciosa.
Entretanto, essa concepção foi superada pelo atual ordenamento jurídico. O Código de Processo Civil de 2015, seguindo a linha já apresentada pelo código de 1973, estabeleceu capítulo próprio para tratar dos procedimentos de jurisdição voluntária. Trata-se de forma excepcional, na qual, não existem partes em situação antagônica, mas tão somente interessados que pretendem obter um mesmo bem da vida. Certo é que nesses casos também haverá jurisdição. Conforme Daniel Amorim:
Mesmo que se admita a inexistência da lide clássica – conflito de interesses qualificados por uma pretensão resistida –, é evidente que há uma insatisfação das partes [...]. O mais importante não é o conflito em si, mas o estado de insatisfação das partes por terem sua pretensão resistida por uma exigência legal. (NEVES, 2014, p. 38).
Portanto, em que pese o sistema de jurisdição única vigente no país (art. 5º, XXXV da CF), isso não significa que não há jurisdição fora do Poder Judiciário. Não seria compatível com o regime democrático brasileiro a ideia de se restringir a um único poder o monopólio de alguma das funções estatais. Como exemplo dessa afirmação, pode-se citar a função típica que possui o Poder Legislativo para julgar, o Presidente da República por crime de responsabilidade (art. 52 da CF).
Nessa linha de raciocínio, imperioso se faz reconhecer o exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas, posto que, indubitavelmente, essa instituição exerce atividade estatal que tem por objetivo combater o descumprimento da norma legal, almejando a restauração da ordem jurídica. Isso, por exemplo, ocorre na situação narrada anteriormente: quando as Cortes de Contas realizam o julgamento das contas dos gestores públicos, imputando-lhes débitos ou multas com eficácia de título executivo.
Já a segunda (função consultiva) consiste na atuação do Tribunal na emissão de pareceres prévios, de caráter opinativo, sobre as contas do Chefe do Poder Executivo. Trata-se de manifestações de caráter técnico, que tem por objetivo auxiliar o julgamento a ser realizado posteriormente pelo Poder Legislativo (art. 71, I da CF).
iii. As cortes de contas no âmbito estadual e municipal
De acordo com o art. 75 da Constituição Federal, todas as normas dispostas naquela seção (da fiscalização contábil, financeira e orçamentária), deverão ser aplicadas, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Esse dispositivo consagra o princípio da simetria entre os entes federativos que compõe o Estado Brasileiro.
Atualmente, todos os Estados da Federação possuem Tribunais de Contas próprios – sendo o mais recente o do Estado do Tocantins, instalado no ano de 1989 –, responsáveis pelo controle da administração pública estadual. Em algum deles – mais precisamente na Bahia, Ceará. Goiás e Pará – há ainda Tribunais de Contas dos Municípios, firmados também no âmbito estadual, responsáveis por exercer a fiscalização de todos os municípios do estado.
Nos demais estados da federação, o Tribunal de Contas Estadual exerce, simultaneamente, o controle externo da administração pública estadual e municipal. Isso porque o constituinte de 1988 vedou expressamente a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais. As únicas exceções a essa regra são as capitais dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, que já possuíam Tribunal de Conta próprio quando da promulgação da constituição federal.
No que diz respeito à fiscalização dos municípios, a Constituição Federal em seu art. 31, estabeleceu que esta será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal. Firmou ainda que esse controle deverá ser realizado mediante auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
Ocorre que, em que pese essa previsão constitucional, até meados de 2016, não havia na doutrina e na jurisprudência pátria um entendimento consolidado acerca do controle externo em âmbito municipal. Isto porque há casos em que o prefeito poderá portar-se não apenas como chefe do poder executivo, mas também como típico ordenador de despesas, assumindo diretamente a responsabilidade por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta municipal.
Por esse motivo, a controvérsia apresentava duas vertentes. Uma parte defendia que o critério a ser levado em consideração para firmar o órgão competente para o julgamento das contas públicas seria a autoridade que as conduziu, isto é, tratando-se das contas dos prefeitos, assumindo ele ordenador a posição de ordenador de despesas ou não, a competência seria da Câmara de Vereados. A outra parte entendia que, nas hipóteses em que há o acúmulo de funções por parte do chefe do poder executivo municipal, existiriam dois tipos de contas a serem julgadas: as de governo e as de gestão. Por essa razão, deveria o prefeito ser submetido a duplo julgamento: as primeiras, julgadas pela Câmara; e as demais, pelo Tribunal de Contas.
Cuida-se de discussão de relevante consequência prática. Definir o (s) órgão (s) competente (s) para realizar o julgamento das contas dos prefeitos infere, automaticamente, nos termos em que poderá ocorrer o reconhecimento da inelegibilidade, prevista no art. 1, inciso I, alínea g da Lei Complementar 64 de 1990, conhecida popularmente como Lei da Ficha Limpa. Trata-se de sanção aplicada àqueles que tiveram suas contas, relativas ao exercício de cargos ou funções públicas, rejeitas por decisão definitiva do órgão competente, que consiste na perda da capacidade passiva eleitoral. E foi exatamente em um caso envolvendo a aplicação dessa penalidade que o Supremo Tribunal Federal se viu obrigado a enfrentar essa questão.
2. A TESE DE REPERCUSSÃO GERAL FIRMADA NO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 848.826
No mês de agosto de 2016 o Supremo Tribunal Federal, ao julgar conjuntamente os Recursos Extraordinários (RE) nº 848.826 e 729.744, enfrentou questionamento que envolvia a competência para o julgamento das contas do chefe do poder executivo municipal. Ao apreciar o tema, a Suprema Corte firmou tese de repercussão geral, segundo a qual, para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas câmaras legislativas – com auxílio dos tribunais de contas, cujo parecer prévio torna-se meramente opinativo.
A decisão adotada gerou polêmicas e foi severamente repudiada por diversas instituições. A associação dos membros dos Tribunais de Contas do Brasil, por meio de nota pública, atacou a tese firmada, alegando que esta representa um imenso retrocesso no controle das contas governamentais e vai na contramão do combate à corrupção dos recursos públicos, uma vez que limita as atribuições constitucionais atribuídas às Cortes de Contas. Segundo o presidente da associação, “trata-se de uma das maiores derrotas da República brasileira após a redemocratização” [5].
Nesse mesmo sentindo, manifestou-se a Associação Nacional do Ministério Público de Contas, que além de defender a competência do Tribunal de Contas para o julgamento das contas do prefeito ordenador de despesas, demostrou bastante preocupação com a efetividade da Lei da Ficha Limpa. Conforme descrito na nota pública, tal interpretação torna a referida legislação praticamente sem efeitos, na medida em que:
[...] comprovadamente, a rejeição de contas pelos Tribunais vem sendo a principal causa de impugnação de candidaturas por parte do Ministério Público Eleitoral. Além disso, retira a possibilidade de o Tribunal de Contas atuar tempestivamente para corrigir desvios e assegurar o imediato ressarcimento do dano ao erário, já que as prestações de contas anuais não são julgadas pelo Poder Legislativo em prazo inferior a seis meses contado do encerramento do exercício em que o desvio ocorrer.[6]
Posto isso, em que pese ainda não tenha sido publicado o acórdão dos julgados, faz-se necessário realizar uma análise detalhada do caso concreto do RE nº 848.826, para que se possa compreender as peculiaridades dessa decisão, qual será o seu alcance e que consequências trará para o controle externo da Administração Pública, mais especificamente no que diz respeito às atribuições dos Tribunais de Contas.
2.1 Histórico do caso
Em julho do ano de 2014, o Ministério Público Eleitoral do Estado do Ceará (MPE-CE) ajuizou ação de impugnação de registro de candidatura em face de José da Rocha Neto, candidato ao cargo de Deputado Estadual. Segundo o órgão ministerial, a parte impugnada encontrava-se inelegível em virtude de condenação (processo nº 2000.HRZ.TCS.03842/05) decorrente da desaprovação das contas de gestão, por parte do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará (TCM-CE), da prefeitura de Horizonte/CE, referentes ao período em que o impugnado assumia o cargo de prefeito do município (2000).
O candidato apresentou contestação e, dentre as teses de mérito, alegou que a decisão proferida pelo Tribunal de Contas dos Municípios, relativa à tomada de contas de gestão, não atraía a incidência da inelegibilidade do art. 1°, I, g, da LC nº 64/90, pois não havia sido submetida à apreciação da Câmara de Vereadores, conforme entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral, no ano de 2008:
REGISTRO DE CANDIDATURA. PREFEITO. INELEGIBILIDADE. ART. 1°, I, G, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90. COMPETÊNCIA.
1. A competência para o julgamento das contas de prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica tanto às contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas. Não há falar em rejeição de contas de prefeito por mero decurso de prazo para sua apreciação pela Câmara Municipal, porquanto constitui esse Poder Legislativo o órgão competente para esse julgamento, sendo indispensável o seu efetivo pronunciamento. Agravo regimental à que se nega provimento.
(TSE, AgR-REspe 33747, ReI. Min. Arnaldo Versiani Leite Soares, PSESS 27.10.08).
Assim, sustentou não possuir o Tribunal de Contas legitimidade para julgamento exclusivo das contas do chefe do Poder Executivo, porquanto, nessa hipótese incidiria a norma especial do art. 71, I da CF, que atribuiria a competência ao Poder Legislativo.
O Egrégio Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Ceará (TRE-CE) ao apreciar o caso julgou procedente a ação de impugnação ajuizada pelo Parquet, indeferindo assim a candidatura de José da Rocha Neto. Eis a ementa do acórdão:
ELEIÇÕES DE 2014. IMPUGNAÇÃO AO REGISTRO DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE CONTAS PARA JULGAMENTO DE CONTAS DE GESTÃO. PRECEDENTE DO TRE/CE. REJEIÇÃO DE CONTAS DE GESTÃO. ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE NOTA DE IMPROBIDADE NO JULGADO DO TCM. DESNECESSIDADE. AUSÊNCIA DE REPASSE DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. IRREGULARIDADE INSANÁVEL. ATO DOLOSO DE IMPROBIDADE. PRESENÇA DOS REQUISITOS EXIGIDOS NO ART. 1°, I, "G", DA LC N° 64/90. INELEGIBILIDADE CONFIGURADA.
01. Para a configuração da causa de inelegibilidade prevista no art. 1°, I, "g", da LC nO 64/90 exige-se a presença dos seguintes requisitos: contas rejeitadas; irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa; decisão irrecorrível proferida pelo órgão competente e a inexistência de decisão judicial suspendendo ou anulando a decisão administrativa.
02. A decisão oriunda do TCM, ao destacar a ausência de repasse de contribuição previdenciária, impõe o reconhecimento de inelegibilidade do candidato, notadamente por ser tal ato insanável e insuscetível de regularização, caracterizando ato de improbidade administrativa.
03. A Ausência da nota de improbidade administrativa no acórdão do Tribunal de Contas dos Municípios não impede a Justiça Eleitoral de, no caso concreto, acaso constatada a sua ocorrência, reconhecê-la e declarar a inelegibilidade do candidato, quando do julgamento do respectivo pedido de registro de candidatura e/ou impugnação.
04. Impugnação procedente.
05. Registro de candidatura indeferido.
(TRE/CE. Impugnação a Registro de Candidatura nº 879-45.2014.6.06.0000. Relator Des. Joriza Magalhães Pinheiro. Julgado em 28 de julho de 2014).
Inconformado com a decisão proferida pelo TRE-CE, o impugnado interpôs recurso ordinário, com fundamento no art. 121, §4º, III da CF/88. O Ministério Público apresentou contrarrazões, requerendo o não provimento do recurso e a manutenção do acórdão. No TSE, firmou o relator a mesma orientação adotada pelo órgão ministerial, negando o recurso e reafirmando a nova jurisprudência daquele Corte, que passou a reconhecer como suficiente a existência de decisão irrecorrível do Tribunal de Contas que rejeita as contas do Prefeito que age como ordenador de despesa para o reconhecimento da inelegibilidade. Eis o precedente citado na decisão:
ELEIÇÕES 2014. REGISTRO DE CANDIDATURA. RECURSO ORDINÁRIO. INELEGIBILIDADE. ALÍNEA G. REJEIÇÃO DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS. PREFEITO. ORDENADOR DE DESPESAS. CARACTERIZAÇÃO.
1. As alterações das hipóteses de inelegibilidades introduzidas pela Lei Complementar n° 135, de 2010, foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.578 e das ADCs 29 e 30, em decisões definitivas de mérito que produzem eficácia contra todos e efeito vinculante, nos termos do art. 102, § 20 , da Constituição da República.
2. Nos feitos de registro de candidatura para o pleito de 2014, a inelegibilidade prevista na alínea g do inciso 1 do art. 1 0 da LC n° 64, de 1990, pode ser examinada a partir de decisão irrecorrível dos tribunais de contas que rejeitam as contas do prefeito que age como ordenador de despesas.
3. Entendimento, adotado por maioria, em razão do efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal e da ressalva final da alínea g do art. 1 0, 1, da LC n° 64/90, que reconhece a aplicação do "disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição".
4. Vencida neste ponto, a corrente minoritária, que entendia que a competência para julgamento das contas do prefeito é sempre da Câmara de Vereadores.
5. As falhas apontadas pelo Tribunal de Contas, no caso, não são suficientes para caracterização da inelegibilidade, pois não podem ser enquadradas como ato doloso de improbidade. No caso, não houve sequer condenação à devolução de recursos ao erário ou menção a efetivo prejuízo financeiro da Administração. Recurso provido, neste ponto, por unanimidade. Recurso ordinário provido para deferir o registro da candidatura.
(RO n° 401-37.2014.6.06.0000/CE, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, PSESS em 26.8.2014).
Por esse motivo, a defesa do impugnado interpôs agravo regimental, nos moldes do art. 36, §8º e seguintes do regimento interno do TSE c/c art. 28 da Lei 8.038/90, na tentativa de reformar a decisão agravada. Entretanto, por mais uma vez a defesa do candidato não obteve sucesso, visto que o Tribunal, por unanimidade, desproveu o agravo regimental, nos termos do voto do Relator. Coleciona-se abaixo a ementa da decisão:
ELEIÇÕES 2014. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO ESTADUAL. RECURSO ORDINÁRIO. REJEIÇÃO DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS. PREFEITO. ORDENADOR DE DESPESAS. INELEGIBILIDADE. ALÍNEA G. CARACTERIZAÇÃO.
1. Conforme decidido no julgamento do Recurso Ordinário n° 401-35, referente a registro de candidatura para o pleito de 2014, a inelegibilidade prevista na alínea 9 do inciso I do art. 1 ° da LC n° 64/90 pode ser examinada a partir de decisão irrecorrível dos tribunais de contas que rejeitam as contas do prefeito que age como ordenador de despesas, diante da ressalva final da alínea 9 do inciso I do art. 1 ° da LC n° 64/90.
2. O não recolhimento de contribuições previdenciárias constitui irregularidade insanável que configura ato doloso de improbidade administrativa, apta a configurar a causa de inelegibilidade prevista no art. 1°, I, g, da LC n° 64/90. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.
(TSE. AgR em RO nº 879-45.2014.6.06.0000/CE. Rel. Min. Henrique Neves Silva. Julgado em 18 de setembro de 2014)
Diante dessa decisão, a defesa do ex-prefeito interpôs recurso extraordinário (nº 848.826), com fundamento no art. 102, III, alínea a da CF, questionando o acórdão do TSE. No mérito, o recorrente alegou que o entendimento adotado pelo tribunal viola os arts. 31, §§ 1º, 2º, 3º e 4º, e 71, incisos I e II, da Lei Maior - dispositivos que estabeleceriam a competência da Câmara de Vereadores para o julgamento das contas (de governo e de gestão) dos prefeitos.
Ademais, aduziu o recorrente que a Suprema Corte, na oportunidade em que realizou o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29 e nº 30 e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4.578, não teria enfrentado de modo satisfatório a questão central discutida no recurso. Para o autor, não houve no julgamento das referidas ações um detalhado exame da inconstitucionalidade do art. 1º, inciso I, alínea g da LC 64/90, que, para ele, teria usurpado da Câmara Municipal a competência para o julgamento das contas dos prefeitos, ainda quando este aja como ordenador de despesas.
O recurso foi admitido pelo STF como representativo de controvérsia, nos termos do art. 543-B, §1º do Código de Processo Civil, e a matéria discutida teve sua repercussão geral reconhecida, por meio da decisão assim ementada:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. JULGAMENTO DAS CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO COMO ORDENADOR DE DESPESAS. COMPETÊN CIA: PODER LEGISLATIVO OU TRIBUNALDE CONTAS. REPERCUSSÃO GERAL.
1. Inadmissão do recurso no que diz respeito às alegações de violação ao direito de petição, inafastabilidade do controle judicial, devido processo legal, contraditório, ampla defesa e fundamentação das decisões judiciais (arts. 5o, XXXIV, a, XXXV, LIV e LV, e 93, IX, da CF/1988). Precedentes: AI 791.292 QO-RG e ARE 748.371 RG, Rei. Min. Gilmar Mendes.
2. Constitui questão constitucional com repercussão geral a definição do órgão competente - Poder Legislativo ou Tribunal de Contas - para julgar as contas de Chefe do Poder Executivo que age na qualidade de ordenador de despesas, à luz dos arts. 31, § 2o; 71,1; e 75 todos da Constituição.
3. Repercussão geral reconhecida.
(RE 848826 RG/DF, rel. Min. Roberto Barroso, DJe 3.9.2015).
Assim, por todo o exposto, verifica-se que o cerne da discussão consiste em saber a que órgão compete o julgamento das contas do titular do poder executivo municipal. A relevância dessa controvérsia é colossal, uma vez que, a depender da decisão, estar-se-á diante de evidente violação aos preceitos ditados na Constituição Federal, mais especificamente no que diz respeito à atuação do Tribunal de Contas no combate contra possíveis e prováveis abusos dos gestores da coisa pública.
2.2 A tese vencedora no julgamento do recurso – competência exclusiva da Câmara de Vereadores para o julgamento dos prefeitos
O julgamento do recurso extraordinário 848.826 teve início no dia 04 de agosto de 2016. O relator, ministro Luís Roberto Barroso, que teve seu voto vencido, posicionou-se no sentido de negar provimento ao recurso, determinando ser competência das Cortes de Contas o julgamento dos prefeitos quando estes atuarem como ordenadores de despesas. Esse entendimento, cerne da presente pesquisa, será abordado com maior profundidade em tópicos posteriores.
A sessão teve continuidade no dia 10 de agosto de 2016. O presidente do Supremo, ministro Ricardo Lewandowski, abriu divergência na votação, dando provimento ao recurso. Seu voto foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Celso de Mello. Restando vencido o relator e mais quatro ministros que o acompanhavam: Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli.
A tese decorrente do julgamento do recurso extraordinário 848.826 apresenta o seguinte teor:
Para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores.
Não se trata de entendimento inovador, visto que alguns ministros da Suprema Corte já haviam se posicionado nesse sentido. Nos acórdãos proferidos por esta Corte nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 3.715/TO, 1.779/PE e 849/MT afirmou-se ser a Constituição Federal bastante clara ao estabelecer, em seu art. 75, que as normas constitucionais relativas ao Tribunal de Contas da União são de observância integral e obrigatória pelos estados e municípios. Posto isso, reconheceu-se uma distinção entre as competências previstas no inciso I e II do art. 71 da CF.
Na primeira hipótese, a Corte de Contas seria competente para, mediante parecer prévio, apreciar as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo. O julgamento, nos moldes do art. 49, inciso IX da CF, caberia ao Poder Legislativo. No segundo caso, competiria ao tribunal o próprio julgamento dos demais administradores e responsáveis por bens e valores públicos e daqueles que derem causa à perda, extravio, ou outra irregularidade que resulte prejuízo ao erário. Nessa oportunidade, não haveria necessidade de que a decisão do tribunal fosse ratificada pelo do poder legislativo.
Após essas decisões foram ajuizadas várias reclamações[7] contra decisões de Tribunais de Contas que haviam julgado prefeitos por suas contas de gestão, alegando-se violação à autoridade da Suprema Corte, em virtude do posicionamento assumido nas aludidas ADI’s. A título de demonstração é possível citar a decisão proferida na reclamação 10.551/CE, em junho de 2014. Nesta ação o relator, ministro Gilmar Mendes, concedeu medida liminar, no sentindo de suspender os efeitos do acórdão do TCE-CE, que julgou irregulares as contas de prefeito ordenador de despesas.
Percebe-se, portanto, que a tese firmada – e as decisões anteriormente proferidas – pautam-se exclusivamente no cargo ocupado pelo ordenador de despesas, sem realizar qualquer análise acerca da natureza do ato praticado ou do conteúdo das contas analisadas. O questionamento a ser realizado agora, e que demonstrará a relevância desta pesquisa, é: como deverão se posicionar os demais tribunais do país? Estarão vinculados ao entendimento da Suprema Corte? Qual o alcance de uma tese de repercussão geral?
2.3 Os efeitos jurídicos de uma tese de repercussão geral
O Supremo Tribunal Federal constitui órgão de cúpula do Poder Judiciário, competindo-lhe precipuamente, nos moldes do art. 102 da Constituição Federal, a guarda da Constituição. Dentre as diversas competências expressamente previstas pelo constituinte originário, encontra-se o julgamento do recurso extraordinário. Trata-se de recurso cabível nas hipóteses, previstas taxativamente no art. 102, inciso III da CF.
Percebe-se, portanto, que cabe ao STF, por meio do recurso extraordinário, decidir questões de natureza constitucional, exercendo assim o controle de constitucionalidade difuso de leis e decisões judiciais. Nessa forma de controle, a declaração de inconstitucionalidade, a princípio, gera efeitos inter partes, isto é, apenas no processo em que foi proferida[8]. Ocorre que, não havia como desconsiderar o fato de que, em algumas situações, essas decisões passavam a originar uma espécie de “jurisprudência dominante”, que por muitas vezes tornava-se fator de convencimento para os aplicadores do direito (juízes).
A par desse cenário, o instituto da repercussão geral foi inserido na CF/88 pela Emenda Constitucional nº 45, popularmente conhecida como a “Reforma do Judiciário”, com regulamentação dada pelo Código de Processo Civil e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Esse instrumento processual incluiu dentre os requisitos para a admissibilidade dos recursos extraordinários a necessidade de que a questão constitucional objeto da controvérsia apresente relevância jurídica, política, social ou econômica, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
A finalidade precípua desta ferramenta é possibilitar que a Suprema Corte realize um filtro dentro os recursos extraordinários que lhe são encaminhados, selecionando, de acordo com os critérios acima indicados, apenas um para que seja representativo da controvérsia analisada. A consequência imediata desse “filtro recursal” é a diminuição do número de processos dirigidos ao STF, ensejando, em longo prazo, maior celeridade ao processamento das demandas já existentes.
A grande polêmica reside nos efeitos assumidos pelos julgados da Suprema Corte em sede de recursos extraordinários com o reconhecimento de repercussão geral. Acerca dessa controvérsia, o ministro Gilmar Mendes preconiza, em seu curso de Direito Constitucional, que ao realizar o julgamento de um recurso extraordinário, o Plenário do STF fixa tese jurídica que acaba por antecipar o posicionamento de seus julgados em sede de controle de constitucionalidade incidental. Por esse motivo, preleciona:
Se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a interpretação do texto constitucional por ele fixada deve ser acompanhada pelos demais Tribunais e Turmas dos Juizados Especiais, em decorrência do efeito definitivo outorgado à sua decisão. Pouco importa que a decisão do Tribunal de origem tenha sido proferida antes daquela do Supremo Tribunal Federal no leading case, pois, inexistindo o trânsito em julgado e estando a controvérsia constitucional submetida à análise deste Tribunal, não há qualquer óbice para aplicação do entendimento fixado pelo órgão responsável pela guarda da Constituição da República. (MENDES, 2012, p.1528)
Sobre essa questão, o procurador federal Fábio Victor Da Fonte Monnerat, em seu artigo “Efeitos objetivos do julgamento do recurso extraordinário”, publicado na revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, posiciona-se no mesmo sentindo, defendendo que:
É possível falar-se em efeito erga omnes dado que a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca de repercussão geral de determinada questão constitucional será aplicada a todos aqueles que se encontrarem na mesma situação processual, isto é, que discutam em um determinado recurso extraordinário a mesma questão constitucional.
[...]
Portanto, ainda que a legislação não se valha da expressão ‘efeito vinculante’, o precedente do Supremo Tribunal Federal que resolve a existência da repercussão geral de determinada questão de direito é de obrigatória observância pelos demais órgãos do Poder Judiciário que enfrentem a matéria. (MONNERAT, 2014, p. 233).
O procurador cita ainda o entendimento adotado pelo processualista Luiz Guilherme Marinoni, em seu livro “Precedentes Obrigatórios”, no qual preconiza que:
[...] não há como conciliar a técnica de seleção de casos com a ausência de efeito vinculante, já que isso seria o mesmo que supor que a Suprema Corte se prestaria a selecionar questões constitucionais caracterizadas pela relevância e transcendência e, ainda assim, permitir que estas pudessem ser tratadas de modo diferente pelos diversos juízos inferiores. (MARINONI, 2010, p. 472).
Conclui-se, portanto, que em relação aos efeitos vinculantes de uma tese de repercussão geral, em que pese a ausência de previsão expressa na Constituição Federal ou em legislação infraconstitucional dispondo nesse sentido – tal como se deu com as súmulas vinculantes –, não é possível negar que um resultado muito próximo a esse acaba por ser alcançado na prática forense. Ademais, a ausência de um efeito vinculante configuraria uma afronta às atribuições constitucionais conferidas ao Supremo Tribunal Federal, vez que compete a este, por meio do instituto da repercussão geral, uniformizar a interpretação constitucional no território nacional.
3. O TRIBUNAL DE CONTAS COMO ÓRGÃO COMPETENTE PARA JULGAMENTO DAS CONTAS DOS PREFEITOS
3.1 Critério constitucional para fixação da competência: a natureza das contas analisadas
Ao contrário do entendimento que foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal – competência exclusiva da Câmara de Vereadores para julgamento das contas dos prefeitos em razão do cargo ocupado –, a Constituição Federal apresenta outro critério para fixação da competência ora debatida. Ao realizar uma análise sistemática e literal do texto constitucional, acredita-se que o constituinte originário adotou como critério fixador de competência o conteúdo das contas a serem submetidas a julgamento.
Para compreender esse raciocínio, primeiro se faz necessário estabelecer, com nitidez, o significado da expressão “contas”. Entende-se por “contas públicas” o conjunto dos atos praticados por administradores públicos, em determinado exercício financeiro, voltados para uma finalidade específica. Trata-se de gênero, do qual fazem parte duas espécies: as denominadas contas de governo e as intituladas contas de gestão.
Concebe-se o conceito de contas de governo da análise do art. 71, I combinado com o art. 49, IX, ambos da Constituição Federal. Esses dispositivos, já transcritos em tópico anterior, estabelecem, respectivamente, a competência dos Tribunais de Contas para emitir parecer prévio acerca das contas prestadas anualmente pelo chefe do poder executivo, e a competência das Casas Legislativas para realizar o seu julgamento.
A prestação de contas de governo é, portanto, o meio pelo qual, anualmente, o Presidente da República, os Governadores e os Prefeitos demonstram os resultados de sua atuação como agentes políticos no exercício financeiro a que se referem. Por meio dessas contas analisa-se se o administrador atuou de modo a cumprir as metas, diretrizes e programas estabelecidos no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual.
Já o conceito de contas de gestão provém da previsão do art. 71, II do texto constitucional. Esse dispositivo estabelece serem os tribunais de contas órgãos competentes para o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, da administração direta e indireta, e daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.
O foco dessa espécie de contas incide, portanto, nos atos administrativos propriamente ditos, isto é, em cada ato praticado pelo agente no exercício de uma gestão pública. Como exemplo desses atos, pode-se citar: a admissão e pagamento de pessoal, a concessão de aposentadoria, a realização de licitações, o fechamento de contratos, a captação de receitas e ordenação de despesas, dentre outros.
Os dois conceitos acima apresentados foram os mesmos utilizados pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 11060. Eis parte da ementa da decisão:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ATOS PRATICADOS POR PREFEITO, NO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO ADMINISTRATIVA E GESTORA DE RECURSOS PÚBLICOS. JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DE CONTAS. NÃO SUJEIÇÃO AO DECISUM DA CÂMARA MUNICIPAL. COMPETÊNCIAS DIVERSAS. EXEGESE DOS ARTS. 31 E 71 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
[...] O conteúdo das contas globais prestadas pelo Chefe do Executivo é diverso do conteúdo das contas dos administradores e gestores de recurso público. As primeiras demonstram o retrato da situação das finanças da unidade federativa (União, Estados, DF e Municípios). Revelam o cumprir do orçamento, dos planos de governo, dos programas governamentais, demonstram os níveis de endividamento, o atender aos limites de gasto mínimo e máximo previstos no ordenamento para saúde, educação, gastos com pessoal. Consubstanciam-se, enfim, nos Balanços Gerais prescritos pela Lei 4.320/64. Por isso, é que se submetem ao parecer prévio do Tribunal de Contas e ao julgamento pelo Parlamento (art. 71, I c./c. 49, IX da CF/88). As segundas – contas de administradores e gestores públicos, dizem respeito ao dever de prestar (contas) de todos aqueles que lidam com recursos públicos, captam receitas, ordenam despesas (art. 70, parágrafo único da CF/88). Submetem-se a julgamento direto pelos Tribunais de Contas, podendo gerar imputação de débito e multa (art. 71, II e § 3º da CF/88) [...].
(STJ - RMS: 11060 GO 1999/0069194-6, Relator: Ministra Laurita Vaz, Data de Julgamento: 25/06/2002, T2 - Segunda Turma; Data de Publicação: DJ 16/09/2002 p. 159)
Nesse sentido também já se pronunciou a Suprema Corte, no julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 849:
TRIBUNAL DE CONTAS DOS ESTADOS: COMPETÊNCIA: OBSERVÂNCIA COMPULSÓRIA DO MODELO FEDERAL: INCONSTITUCIONALIDADE DE SUBTRAÇÃO AO TRIBUNAL DE CONTAS DA COMPETÊNCIA DO JULGAMENTO DAS CONTAS DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA - COMPREENDIDAS NA PREVISÃO DO ART. 71, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, PARA SUBMETÊ-LAS AO REGIME DO ART. 71, C/C. ART. 49, IX, QUE É EXCLUSIVO DA PRESTAÇÃO DE CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO.
[...] II. A diversidade entre as duas competências, além de manifesta, é tradicional, sempre restrita a competência do Poder Legislativo para o julgamento às contas gerais da responsabilidade do Chefe do Poder Executivo, precedidas de parecer prévio do Tribunal de Contas: cuida-se de sistema especial adstrito às contas do Chefe do Governo, que não as presta unicamente como chefe de um dos Poderes, mas como responsável geral pela execução orçamentária: tanto assim que a aprovação política das contas presidenciais não libera do julgamento de suas contas específicas os responsáveis diretos pela gestão financeira das inúmeras unidades orçamentárias do próprio Poder Executivo, entregue a decisão definitiva ao Tribunal de Contas.
(STF - ADI: 849 MT, Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 11/02/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 23-04-1999 PP-00001 EMENT VOL-01947-01 PP-00043)
3.2 A competência das Casas Legislativas para julgamento das contas de governo dos chefes do poder executivo municipal
Por se tratar de contas que demonstram o desempenho do chefe do poder executivo na gestão do ente federativo, submetem-se a julgamento de cunho político, realizado pelo Poder Legislativo, isto é, pelos representantes do povo. Segundo Ayres Britto, ex-ministro do STF, “os julgamentos legislativos se dão por um critério subjetivo de conveniência e oportunidade, critério esse que é forma discricionária de avaliar fatos e pessoas” (BRITTO, 2002, p. 98).
Isto porque, o art. 14 §3º da CF estabelece quais requisitos constituem condição de elegibilidade. Através da leitura desse artigo, depreende-se que não exigiu o constituinte originário qualquer formação técnica como condição para aquisição da capacidade eleitoral ativa. No que se refere ao grau de instrução, a única imposição estabelecida é de que o candidato seja alfabetizado.
Diante desse cenário, descabido seria exigir que as Casas Legislativas realizassem um julgamento técnico, de caráter profissional, das contas públicas do chefe do poder executivo. Por esse motivo, para operacionalizar esse julgamento político, atribuiu-se ao Tribunal de Contas à função de emitir parece prévio acerca das contas de governo, que fornecerá subsídios para que o julgamento possa ser realizado pelo parlamento.
É tão verdadeira essa afirmação que o STF já firmou entendimento no sentido de não ser possível o julgamento das contas dos prefeitos sem que tenha sido emitido parecer prévio pelas Cortes de Contas. Entenderam os ministros da Suprema Corte que essa situação violaria o sistema de controle de contas previsto na Constituição Federal. A decisão ficou ementada do seguinte modo:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
2. Parágrafo 3º do art. 113 da Constituição do Estado de Santa Catarina, que permite que as contas do município sejam julgadas sem parecer prévio do Tribunal de Contas caso este não emita parecer até o último dia do exercício financeiro.
3. Violação ao art. 31 e seus parágrafos da Constituição Federal.
4. Inobservância do sistema de controle de contas previsto na Constituição Federal.
5. Procedência da ação.
(STF - ADI: 261 SC, Relator: Gilmar Mendes. Data de Julgamento: 14/11/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 28-02-2003).
Em âmbito federal e estadual, a deliberação das Casas Legislativas será tomada por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros (art. 47, CF). Já no âmbito municipal, para que o parecer do Tribunal de Contas deixe de prevalecer, exige-se que a decisão seja firmada por 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara Municipal (art. 31, §2º, CF).
Importante ressaltar ainda que a aprovação das contas de governo pelo Poder Legislativo, por constituir julgamento meramente político, não afasta a responsabilidade do chefe do poder executivo nas demais instâncias. Dessa forma, ele ainda poderá ser responsabilizado nas esferas civil, penal e por ato de improbidade administrativa.
3.3 A competência do Tribunal de Contas para o julgamento das contas do prefeito ordenador de despesas
A controvérsia acerca dessa competência surge, entretanto, quando o prefeito passa a acumular duas funções: a de agente político e a de ordenador de despesas. O decreto 200/67 definiu a figura do ordenador de despesas da seguinte maneira: “Art. 80. [...] § 1° Ordenador de despesas é toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou pela qual esta responda”.
Faz-se referência exclusivamente ao chefe do poder executivo municipal porque se trata de uma situação que ocorre apenas nesse âmbito, uma vez que, na administração estadual e federal, os Governadores e o Presidente da República não atuam ordenando despesas diretamente, sendo essas funções hierarquizadas entre seus órgãos e agentes.
Nesses casos, em que os prefeitos assumem funções típicas de ordenadores de despesas, entende-se que a competência para julgamento de suas contas ainda seja da alçada dos Tribunais de Contas. Isto porque, como já demonstrado no tópico 5.1, a competência para o julgamento das contas dos chefes do poder executivo deve ser estabelecida levando-se em consideração a natureza das contas analisadas, e não os cargos por eles ocupados. Esse entendimento, ao contrário do que foi defendido pelo STF, não contraria o texto constitucional.
Realizando-se interpretação literal do art. 71, II da Carta da República, conclui-se que todo aquele responsável por bens, valores e dinheiros públicos deverá submeter suas contas ao controle do Tribunal, incluindo-se entre eles os chefes do poder executivo. Caso fosse o desejo do constituinte originário excluí-los da presente norma, teria feito uma ressalva no texto legal, no mesmo molde do que foi realizado no inciso anterior. Se assim houvesse sido feito, não restariam dúvidas acerca da competência exclusiva do Poder Legislativo para julgamento das contas do Poder Executivo, independentemente de sua natureza.
Ressalte-se que não há qualquer contradição entre esse posicionamento e a previsão do art. 31 da Constituição Federal. Esse dispositivo assim consigna:
Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.
§ 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
§ 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
§ 3º As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
§ 4º É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.
Certo é que, pela literalidade do §2º, o constituinte originário demonstrou sua intenção de referir-se tão somente as contas de governo, isto é, aquelas prestadas anualmente pelos chefes do poder executivo. Deste modo, apenas nessa espécie de contas devem as Cortes de Contas apresentar parecer prévio conclusivo. Nas demais, compete a essa instituição o efetivo julgamento das contas, sem qualquer necessidade de submeter a decisão tomada ao crivo do Poder Legislativo.
Nas palavras do doutrinador José Jairo Gomes:
[...] Ao ordenar pagamentos e praticar atos concretos de gestão administrativa, o Prefeito não atua como agente político, mas como técnico, administrador de despesas públicas. Não haveria, portanto, razão para que, por tais atos, fosse julgado politicamente pelo Poder Legislativo. Na verdade, a conduta técnica reclama métodos e critérios técnicos de julgamento, o que – em tese, ressalve-se – só pode ser feito pelo Tribunal de Contas. (GOMES, 2016, p. 238)
Esse também é o posicionamento adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral. No julgamento de recurso ordinário, esta Corte admitiu o reconhecimento da inelegibilidade prevista no art. 1, inciso I da LC 64/90, a partir de decisão irrecorrível dos Tribunais de Contas que rejeitavam as contas do prefeito que havia agido como ordenador de despesas – firmando, assim, a sua competência para a realização desse julgamento. Segue ementa abaixo:
ELEIÇÕES 2014. REGISTRO DE CANDIDATURA. RECURSO ORDINÁRIO. INELEGIBILIDADE. ALÍNEA G. REJEIÇÃO DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS. PREFEITO. ORDENADOR DE DESPESAS. CARACTERIZAÇÃO.
1. As alterações das hipóteses de inelegibilidades introduzidas pela Lei Complementar n° 135, de 2010, foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.578 e das ADC’s 29 e 30, em decisões definitivas de mérito que produzem eficácia contra todos e efeito vinculante, nos termos do art. 102, § 20, da Constituição da República.
2. Nos feitos de registro de candidatura para o pleito de 2014, a inelegibilidade prevista na alínea g do inciso 1 do art. 1º da LC n° 64, de 1990, pode ser examinada a partir de decisão irrecorrível dos tribunais de contas que rejeitam as contas do prefeito que age como ordenador de despesas.
3. Entendimento, adotado por maioria, em razão do efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal e da ressalva final da alínea g do art. 1 0, 1, da LC n° 64/90, que reconhece a aplicação do "disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição".
4. Vencida neste ponto, a corrente minoritária, que entendia que a competência para julgamento das contas do prefeito é sempre da Câmara de Vereadores.
5. As falhas apontadas pelo Tribunal de Contas, no caso, não são suficientes para caracterização da inelegibilidade, pois não podem ser enquadradas como ato doloso de improbidade. No caso, não houve sequer condenação à devolução de recursos ao erário ou menção a efetivo prejuízo financeiro da Administração. Recurso provido, neste ponto, por unanimidade. Recurso ordinário provido para deferir o registro da candidatura.
(RO n° 401-37.2014.6.06.0000/CE, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, PSESS em 26.8.2014).
No mesmo sentindo, decisão do Superior Tribunal de Justiça:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ATOS PRATICADOS POR PREFEITO, NO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO ADMINISTRATIVA E GESTORA DE RECURSOS PÚBLICOS. JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DE CONTAS. NÃO SUJEIÇÃO AO DECISUM DA CÂMARA MUNICIPAL. COMPETÊNCIAS DIVERSAS. EXEGESE DOS ARTS. 31 E 71 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
[...] Destarte, se o Prefeito Municipal assume a dupla função, política e administrativa, respectivamente, a tarefa de executar orçamento e o encargo de captar receitas e ordenar despesas, submete-se a duplo julgamento. Um político perante o Parlamento precedido de parecer prévio; o outro técnico a cargo da Corte de Contas. Inexistente, in casu, prova de que o Prefeito não era o responsável direto pelos atos de administração e gestão de recursos públicos inquinados, deve prevalecer, por força ao art. 19, inc. II, da Constituição, a presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo da Corte de Contas dos Municípios de Goiás. Recurso ordinário desprovido.
(STJ - RMS: 11060 GO 1999/0069194-6, Relator: Ministra Laurita Vaz, Data de Julgamento: 25/06/2002, T2 - Segunda Turma. Data de Publicação: DJ 16/09/2002 p. 159).
Há outro argumento, de ordem consequencialista, que justifica o entendimento ora defendido. Acredita-se que a interpretação que atribui à Câmara de Vereadores a competência exclusiva pra o julgamento dos prefeitos acaba por minar a função fiscalizadora dos Tribunais de Contas, prejudicando o controle externo da Administração Pública e comprometendo os princípios da probidade e da eficiência, insculpidos no caput do art. 37 e no §9º do art. 14.
Apenas a atuação efetiva por parte dos Tribunais de Contas sobre as contas dos gestores municipais faria com que houvesse um zelo maior pelos princípios acima elencados. Isto porque as consequências práticas do julgamento realizado sobre suas contas seriam diversas, podendo-se elencar um rol de possibilidades, dentre elas:
a) Aplicação de multas e outras cominações em caso de ilegalidade ou irregularidade das contas (art. 71, VIII, CF);
b) Reconhecimento pela Justiça Eleitoral da sanção de inelegibilidade, nos termos do art. 1, inciso I, alínea g da LC 64/90, em razão da rejeição de contas pelo Tribunal (art. 71, II, CF);
c) Possibilidade de afastamento da autoridade de seu respectivo cargo, caso haja indícios de que prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento (art. 44, Lei 8.443/92);
d) Decretação, por prazo não superior a um ano, da indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos considerados bastantes para garantir o ressarcimento dos danos em apuração (art. 44, §2º, Lei 8.443/92);
e) Identificação de condutas irregulares, tipificadas como atos de improbidade administrativa, e o seu fornecimento aos órgãos competentes para servir de subsídio para ajuizamento de ações criminais e administrativas (art. 16, §3º, Lei 8.429/92).
Assim, posicionou-se o Conselheiro do Tribunal de Contas do Maranhão, José de Ribamar Caldas Furtado:
[...] bastaria o Prefeito chamar a si as funções atribuídas aos ordenadores de despesas estaria prejudicada uma das mais importantes competências institucionais do Tribunal de Contas, que é julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por recursos públicos (CF, art. 71, II). Sem julgamento de contas pelo Tribunal, também estaria neutralizada a possibilidade do controle externo promover reparação de dano patrimonial, mediante imputação de débito prevista no artigo 71, §3º, da Lei Maior, haja vista que a Câmara de Vereadores não poder imputar débito ao Prefeito. (FURTADO, 2007, p. 366).
Por fim, importante ressaltar que, diferentemente do que ocorre com as contas de governo, o julgamento das contas de gestão exige um conhecimento técnico por parte de quem as avalia. Por essa razão foi atribuído às Cortes de Contas, instituição composta por indivíduos que atestem ter notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; e comprovem ter mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional nessas áreas.
A câmara de vereadores é órgão, acima de tudo, de natureza política. E por assim ser, seus componentes são integrantes do jogo político, possuem interesses de índole partidária e, por muitas vezes, defendem os interesses privados daqueles que assumem o cargo de chefe do Poder Executivo. Atribuir o controle externo, em âmbito municipal, apenas a essa Casa Legislativa significa enfraquecer a atuação dos Tribunais de Contas, uma vez que o julgamento dos atos de gestão passará a ser meramente político, e não mais técnico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho foi desenvolvido visando analisar a tese de repercussão geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do julgamento do Recurso Extraordinário nº 848.826 e, dentro desse marco analítico, discutir a competência das Cortes de Contas para o julgamento dos prefeitos que avocam para si a função típica de ordenadores de despesas.
A partir da análise desenvolvida nesse estudo foi possível perceber que o prestígio dispensado ao Tribunal de Contas – e às funções a ele atribuídas – é consequência imediata e direta dos ideais republicanos adotados pelo Estado Democrático Brasileiro. Isto porque, em uma República, a ação de controlar contas é inerente ao ato de administrar coisa alheia.
Esse ato de fiscalizar pressupõe um dever de prestar contas, imposto a todos que assumam a responsabilidade pela administração da res pública – bens, valores ou dinheiros pertencentes a uma coletividade –, que demanda um vasto aparato legal e estrutural para o seu controle. Este, por sua vez, pode assumir várias formas, a depender do seu enfoque: quanto ao órgão que o exercita, poderá assumir a feição de um controle administrativo, legislativo ou judicial; em relação ao seu objeto, poderá ser um controle de mérito ou de legalidade; relativo ao momento de sua realização, poderá constituir-se como controle preventivo, concomitante ou posterior; e por fim, quanto ao posicionamento do órgão controlador, será classificado como controle interno, externo e social.
No meio dessa estrutura, localizam-se os Tribunais de Contas, órgãos vinculados ao Poder Legislativo – vínculo de colaboração e não subordinação –, dotados de autonomia e que assumem o papel de instituição responsável pelo controle externo da Administração Pública – ora auxiliando a Casa Legislativa nessa função, ora atuando de maneira completamente independente.
No que diz respeito ao controle externo da Administração Pública, a grande polêmica residia na fiscalização em âmbito municipal. Até o mês de agosto do ano de 2016, não havia um entendimento consolidado acerca da competência dos Tribunais de Contas nesse contexto: seria a instituição responsável pelo julgamento das contas dos prefeitos? Ou, conforme ocorre em âmbito federal e estadual, o chefe do poder executivo municipal deveria ser julgado exclusivamente pela Casa Legislativa? Essa última hipótese foi a adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 848.826.
Trata-se de posicionamento temerário e dissonante com os preceitos estabelecidos pelo constituinte originário de 1988. Primeiramente, porque esse entendimento ignora as peculiaridades dos municípios brasileiros, nos quais, por muitas vezes, os prefeitos assumem dupla função: a de agente político e a de ordenador de despesas.
Além disso, realizando-se uma interpretação sistemática da Constituição Federal, percebe-se que o critério constitucional que fixa a competência para julgamento das contas dos chefes do poder executivo leva em consideração a natureza das contas analisadas, e não os cargos por eles ocupados. Assim, nos casos em que há dois tipos de contas públicas – as de governo e as de gestão –, entende-se que deve ser o prefeito submetido a duplo julgamento: a ser realizado pela Câmara de Vereadores e pelos Tribunais de Contas.
Nesse sentido, o julgamento das contas de gestão passa a ser atribuição das Cortes de Contas, visto que estas exigem um conhecimento técnico por parte de quem as avalia. Assim, a decisão da Suprema Corte de concentrar o controle externo, em âmbito municipal, no Poder Legislativo acaba por enfraquecer o próprio sistema de controle das contas públicas, visto que o julgamento dos atos de gestão passará a ser meramente político, e não mais técnico.
Por fim, esse posicionamento asfixiará a atuação dos Tribunais de Contas no combate ao “desgoverno”. Isto porque essa instituição representa uma grande conquista da democracia brasileira, instituída com o objetivo de aumentar o zelo e a proteção ao patrimônio público e garantir à sociedade a probidade dos atos praticados pelas autoridades administrativas.
Retirar a competência para julgamento, concedendo-lhe apenas a atribuição de emitir pareceres prévios sobre os atos de gestão, significa retirar dessa instituição a possibilidade de agir no sentido de combater e corrigir desvios de condutas que acarretem danos ao erário. Isto porque apenas os Tribunais de Contas podem aplicar sanções e imputar débitos ao mau gestor, proferindo decisões com eficácia de título executivo contra os responsáveis por desvio de bens e dinheiros públicos.
Conclui-se, portanto, que a tese de repercussão geral firmada pela Suprema Corte Brasileira que determina ser competência exclusiva da Câmara de Vereados o julgamento das contas dos prefeitos, configura verdadeiro retrocesso jurisprudencial, que vai na contramão dos preceitos constitucionais que lutam pelo aprimoramento do controle da gestão dos recursos públicos, e torna letra morta uma das principais atribuições conferidas às Cortes de Contas pela Constituição Federal: o julgamento das contas de gestão.
REFERÊNCIAS
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[1] Classificação adotada pelo administrativista Hely Lopes Meirelles. (MEIRELLES, 2012, p.79).
[2] Posicionamento adotado em 2005 pelo Tribunal de Contas da União no julgamento do Mandado de Segurança Nº 25.092, de relatoria do Ministro Nelson Jobim.
[3] Instituídas, respectivamente, pelas Leis nº 9.637/1998 e no 9.790/1999.
[4] Art. 502/CPC. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
[5] Disponível em http://www.atricon.org.br/imprensa/destaque/nota-publica-sobre-o-re-848826/
[6] Disponível em http://www.ampcon.org.br/noticia/nota-publica-em-defesa-da-lei-da-ficha-limpa-e-das-competencias-dos-tribunais-de-contas
[7] A Reclamação é um processo sobre preservação de competência do Supremo Tribunal Federal (STF). Está prevista na Constituição Federal de 1988, artigo 102, inciso I, letra “l”, e regulamentada pelos artigos 156 e seguintes, do Regimento Interno do STF. Sua finalidade é preservar ou garantir a autoridade das decisões da Corte Constitucional perante os demais tribunais. Além dos requisitos gerais comuns a todos os recursos, deve ser instruída com prova documental que mostre a violação da decisão do Supremo. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=R&id=204>.
[8] Existe a possibilidade de ser estendida para todo, isto é, gerar efeitos erga omnes. Estabelece o art. 52, inc. X, da Constituição Federal, que compete privativamente ao Senado Federal, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional UNINTER.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Marisa Bezerra Cortes. A competência para julgamento das contas de gestão dos prefeitos e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 fev 2023, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61037/a-competncia-para-julgamento-das-contas-de-gesto-dos-prefeitos-e-a-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
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Por: Fábio Gouveia Carneiro
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