JOSÉ AUGUSTO BEZERRA LOPES[1]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo objetiva elucidar a utilização de cartas psicografadas como meio de prova no processo penal e sua utilização no Tribunal do Júri. A problemática refere-se à discussão da admissibilidade e da idoneidade dessa comunicação póstuma no que tange ao princípio da verdade real, analisando, de sistematicamente o que é a psicografia, seu conceito, as provas, os princípios constitucionais relativos ao direito de prova e a utilização de sua aplicabilidade como meio de defesa do réu e o exame grafotécnico. Pautado em pesquisa bibliográfica, utilizou-se a metodologia do estudo descritivo analítico e hipotético dedutivo, visando explanar o tema, sua constitucionalidade, utilizando, para tanto, artigos e sítios eletrônicos, bem como a legislação vigente, portanto, trata-se de pesquisa bibliográfica documental. Pôde-se concluir que as cartas psicografadas utilizadas em defesa do réu tem gerado controvérsias no mundo jurídico no que diz respeito ao respaldo legal, de forma que se possa garantir que os direitos constitucionais não sejam violados, devendo-se preservar a igualdade de tratamento religioso, de forma que crenças não sejam privilegiadas em detrimento de outras, considerando a laicidade do estado, assegurando, portanto, o direito ao contraditório, bem como à plenitude de defesa e a igualdade processual.
Palavras-chave: Processo Penal. Tribunal do Júri. Cartas Psicografadas.
ABSTRACT: This study aims to elucidate the use of psychographed letters as evidence in criminal proceedings and their use in the Jury Court. The problem refers to the discussion of the admissibility and suitability of this posthumous communication regarding the principle of real truth, systematically analyzing what psychography is, its concept, the evidence, the constitutional principles related to the right of proof and the use of its applicability as a means of defending the defendant and the graphotechnical examination. Guided by bibliographical research, the methodology of the descriptive analytical and hypothetical deductive study was used, aiming to explain the theme, its constitutionality, using, for that, articles and electronic sites, as well as the current legislation, therefore, it is a bibliographical research documentary. It was possible to conclude that the psychographed letters used in defense of the defendant have generated controversies in the legal world with regard to legal support, so that it can guarantee that constitutional rights are not violated, and that equal religious treatment must be preserved, so that beliefs are not privileged over others, considering the secular nature of the state, thus ensuring the right to adversarial proceedings, as well as full defense and procedural equality.
Keywords: Criminal proceedings. Jury court. Psychographed Letters.
Sumário: Introdução. 1. Das provas no processo penal. 1.1 Princípios constitucionais relativos ao direito à prova. 1.1.1 Princípio da ampla defesa. 1.1.2 Princípio do contraditório. 1.1.3 Princípio do livre conhecimento motivado. 1.1.4 Princípio do favor innocentiae. 1.1.5 Princípio da vedação à obtenção de provas ilícitas. 1.1.6 Princípio da verdade real.1.2 Direito a prova. 2. Psicografia como prova no processo penal. 2.1 Origem e definição de psicografia. 2.2 Psicografia como documento. 2.3 Exame grafotécnico. 2.4 Casos de psicografia como prova processual no tribunal do júri. Considerações finais. Referências
Essa pesquisa objetiva discutir a admissibilidade e a constitucionalidade da carta psicografada como prova no processo penal brasileiro. O estudo justifica-se pela importância do tema para o sistema processual brasileiro, logo que o mesmo é extremamente polêmico no âmbito judiciário.
Sabendo que no processo penal são aceitos diversos tipos de prova para que a veracidade dos fatos seja comprovada, a carta psicografada tem sido aceita em julgamentos, baseando-se no princípio da ampla defesa, logo que, ao réu, é garantida todas as condições legais que possibilitem o esclarecimento da verdade em seu julgamento. Cumpre esclarecer que apenas as provas de origem lícita podem ser admitidas, portanto o sistema judiciário brasileiro utiliza-se do exame grafotécnico para comprovar a veracidade da carta psicografada, de forma que a mesma possa ser admitida como meio de prova perante ao Tribunal do Júri.
Conforme disposto na Constituição Federal do Brasil, em seu art. 5º, inciso XXXVIII,
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – [...]
XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) A plenitude de defesa; (BRASIL, 1988)
Assim, o Tribunal do Júri é um instituto que possui competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, devido a isso, e em razão da natureza dos delitos por ele julgados, ele possui diversas regras e princípios, permitindo, assim, interpretações mais abertas das provas admitidas no processo.
Sendo o brasil um país laico, onde os povos possuem diversas religiões, ainda que o catolicismo predomine, a doutrina espírita cresce a cada dia, estando entre as cinco religiões com mais membros, apresentando indicadores educacionais, destacando-se por tratar de temas polêmicos como a morte, a reencarnação e a mediunidade (IBGE, 2010). Dessa forma, é imprescindível analisar se a prova obtida através das cartas psicografadas podem ser admitidas como instrumento probatório lícito, principalmente considerando a laicidade do Estado.
Devido a isso, este estudo tem o escopo de analisar a problemática da admissibilidade e da idoneidade dessa comunicação póstuma através do exame grafotécnico, no que tange ao princípio da verdade real, analisando, sistematicamente, o que é a psicografia, seu conceito, as provas, os princípios constitucionais relativos ao direito à prova e a utilização de sua aplicabilidade como meio de defesa do réu perante o Tribunal do Júri.
1 DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL
De acordo com Nucci (2013, p. 338):
“O termo prova origina-se do latim – probatio -, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação ou confirmação. Dele deriva o verbo provar – probare -, significando ensaiar, verificar, reconhecer por experiência, aprovar, estar satisfeito com algo, persuadir alguém a alguma coisa ou demonstrar”
Conforme ensinamentos de Lima (2009, p. 371), o processo penal é uma relação jurídica de atos complexos que objetiva à decisão final de um processo penal condenatório, reunindo elementos para que, ao final do processo, possa haver uma sentença baseada na verdade real e capaz de trazer a justiça para o réu. De acordo com Filho (2010, p. 553), provar é estabelecer a verdade do que é afirmado, ou seja, a condenação em desfavor do ato jurídico reprovado. Dessa forma, o objetivo principal da prova é reconstituir as ações investigadas no processo, buscando maior comparativo com a verdade dos fatos, e como o ato ilícito ocorreu no tempo e no espaço, sendo considerada, dessa forma, uma das mais difíceis missões (OLIVEIRA, 2013, p. 325).
Segundo Lima (2009, p. 371),
No processo dificilmente, ou nunca, se atingirá certeza absoluta, pois como a instrução probatória equivale à busca do fato histórico, deverá haver uma reconstrução dos fatos com dados do passado, através da prova para se buscar a verdade e consequentemente, a certeza, e esta forma de reconstrução não permite, em regra, uma certeza absoluta, mas meramente relativa, tendo em vista as próprias deficiências humanas. O que terá o juiz é uma aproximação, ou seja, uma probabilidade, significando que deve buscar algo mais que a simples possibilidade, algo mais próximo da certeza, e isto é que é, em maior ou menor grau, a probabilidade. É o que se chama de certeza possível.
Dessa maneira, havendo a prática de conduta definida como crime, é necessária a intervenção do direito penal, de forma que o processo penal possa construir a verdade dos fatos. A prova, portanto, é o elemento produzido pelas partes e até mesmo pelo Juiz para estabelecimento dos fatos acerca do crime cometido pelo agente (OLIVEIRA, 2013, p. 326).
Nesse contexto, Capez (2010, p. 260) descreve prova como:
[...] o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz e por terceiros, destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação. Por outro lado, no que toca a finalidade da prova, destina-se à formação da convicção do juiz acerca dos elementos essenciais para o deslinde da causa.
Seguindo o mesmo raciocínio, Pacelli (2010, p. 341),
A prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorrido no espaço e no tempo. A tarefa, portanto, é das mais difíceis, quando não impossível: a reconstrução da verdade.
[...]
As provas, no processo penal, desempenham uma função muito bem definida, a saber: a reconstrução da realidade histórica, sobre a qual se pronunciará a certeza quanto a verdade dos fatos, para fins de formação da coisa julgada.
E tratando-se da construção do que deverá ser a expressão de verdade judicial, parece-nos perfeitamente possível a exigência de meios de prova específicos para a constatação de determinados fatos. Fala-se-ia, então, na regra da especificidade da prova, cuja consequência, entretanto, não seria a existência de uma hierarquia de provas (PACELLI, 2010, p. 354)
Dessa forma, a Carta Magna elenca alguns princípios acerca dos direitos de prova, que objetivam basear os demais diplomas legais do nosso ordenamento jurídico. Conforme ensinamentos de Tourinho (2013, p. 58),
O processo penal é regido por uma série de princípios e regras que outra coisa não representam senão postulados fundamentais da política processual penal de um Estado. Quanto mais democrático for o regime, o processo penal mais se apresenta como um notável instrumento a serviço da liberdade individual. Sendo o processo penal, como já se disse, uma expressão de cultura, de civilização, e que reflete determinado momento político, evidente que os seus princípios oscilam à medida que os regimes políticos se alteram.
Mirabete (2007, p. 250) classifica as provas como:
Quanto ao objeto, a prova pode ser direta, quando por si demonstra o fato, quando dá a certeza deles por testemunhas, documentos etc., ou indireta, quando comprovado outro fato, se permite concluir o alegado diante de sua ligação com o primeiro, como na hipótese de um álibi, em que a presença comprovada do acusado em lugar diverso do crime permite concluir que não praticou o fato ilícito.
Em razão de seu efeito ou valor, a prova pode ser plena, completa, convincente ou não plena, uma probabilidade de procedência da alegação.
As provas também podem ser reais ou pessoais. São reais as provas que consistem em uma coisa ou bem exterior e distintas do indivíduo. São pessoais as que exprimem o conhecimento subjetivo e pessoal atribuído a alguém: o interrogatório, os depoimentos, as conclusões dos peritos, etc.
No tocante a sua forma ou aparência, as provas podem ser documentais, testemunhais e materiais.
1.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELATIVOS AO DIREITO À PROVA
1.1.1 Princípio da Ampla Defesa
O princípio da ampla defesa é previsto no art. 5º, inciso LV da CF/88 e dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela iminentes”. Conforme Badaró (2016), o acusado possui o direito à autodefesa, bem como a defesa técnica, e à produção de provas, bem como a possibilidade de defesa proporcionada pelo Estado. Seguindo o mesmo raciocínio, Pacelli (2014, p. 47), explica que “pode-se afirmar, portanto, que a ampla defesa realiza-se por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado.
1.1.2 Princípio do Contraditório
Esse princípio garante a possibilidade de resposta ao acusado, bem como a utilização de meios de defesa previstos constitucionalmente. Segundo Tourinho (2013, p. 73):
Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audinatur et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Assim, a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade de condições, com os mesmos direitos, poderes e ônus, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”, para, afinal, depois ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, “dar a cada um o que é seu”.
De acordo com Capez (2014, p. 60-61), esse princípio resta classificado na doutrina pelo binômio ciência e participação, dessa forma, em tratando-se da admissão das provas de origem psicografada, esse princípio não é ofendido, haja vista a possibilidade de contradição da prova aos autos, bem como a possibilidade de impugnação da prova pela outra parte.
1.1.3 Princípio do Livre Conhecimento Motivado
Esse princípio defende que a convicção do juiz deve ser feita pela apreciação das provas produzidas, de forma que ele possa apreciar e valorar a prova, devendo, necessariamente, motivar sua decisão.
Por tal sistema, o juiz é livre na formação de seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente. Um único testemunho, por exemplo, poderá ser levado em consideração pelo juiz, ainda que em sentido contrário a dois ou mais testemunhos, desde que a consonância com outras provas (PACELLI, 2014, p. 340)
No que se refere ao instituto do Tribunal do Júri, são os jurados quem decidem a causa, de forma livre, sendo desnecessária a apresentação de razões (NUCCI, 2016, p. 62).
1.1.4 Princípio do Favor Innocentiae
Este princípio, também conhecido por Princípio Favor do Rei, ou princípio indubio pro reu, é decorrente do princípio de presunção da inocência, defendido na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LVII, que defende que, havendo dúvidas acerca da culpa, o acusado deverá ser considerado inocente. Dessa forma, havendo discrepância na interpretação normativa, deve prevalecer a norma que seja mais benéfica ao acusado (POLASTRI, 2014).
1.1.5 Princípio da vedação à obtenção de provas ilícitas
O Código Penal brasileiro, em seu art. 157, dispõe que “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação as normas constitucionais legais” (BRASIL, 1941). No mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988, traz em seu bojo do art. 5º, inciso LVI, que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Conforme Nucci (2016), as provas ilícitas são as provas produzidas em desconformidade aos preceitos do direito material, ou seja, aquelas obtidas em desacordo à legislação, capazes de violação de direitos morais, éticos e aos princípios do direito.
1.1.6 Princípio da verdade real
O princípio da verdade real advém do princípio da liberdade de provas, e tem sua base na não aceitação de limitações acerca das buscas dos meios probatórios, ou seja, buscando-se o cumprimento da verdade, o juiz pode produzir provas quando, de sua análise, perceber que as provas produzidas pelas partes restarem insuficientes para a formação de sua convicção acerca da veracidade dos fatos. Nesse sentido, Mougenot (2014, p. 92), explana que:
O dever de produção das provas não é apenas das partes, portanto. Havendo interesses maiores em discussão, as provas são produzidas em favor da sociedade. Para tanto, além das próprias partes, também o órgão julgador deverá diligenciar na busca de todos os elementos que permitam a reconstrução dos acontecimentos levados em juízo. Nesse sentido, o juiz, por expressa previsão legal, poderá determinar a produção das provas que repute relevantes.
No mesmo sentido, Nucci (2016, p. 157) explica que “O princípio da verdade real significa, pois, que o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes, não se contentando com o que lhe é apresentado, simplesmente”. Assim, caso haja inércia das partes, o juiz determinará a produção de provas para instruir a ação, objetivando chegar à verdade real.
De acordo com Pelegrini (2006, p. 33),
O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização de poderes ilimitados na busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza próxima da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência das partes pelos poderes instrutórios do juiz e de uma verdade ética, processual e constitucionalmente válida. Isso para os dois tipos de processo, penal e não penal. E ainda, agora exclusivamente par ao processo penal tradicional, indica uma verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem incontroversos, com a finalidade de o juiz aplicar a norma de direito material e aos fatos realmente ocorridos, para poder pacificar com a justiça.
Os meios de prova são mecanismos para que a verdade do processo seja alcançada, devendo possibilitar a elucidação dos fatos. De acordo com Mirabete (2007, p. 252),
Meios de prova são as coisas ou ações utilizadas para pesquisar ou demonstrar a verdade: depoimentos, perícias, reconhecimentos etc. Como no processo penal brasileiro vige o princípio da verdade real, não há limitação dos meios de prova. A busca da verdade material ou real, que preside a atividade probatória do juiz, exige que os requisitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao mínimo, de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade. Visando o processo penal o interesse público ou social de repreensão ao crime, qualquer limitação a prova prejudica a obtenção da verdade real e, portanto, a justa aplicação da lei. A investigação deve ser a mais ampla possível, já que tem como objetivo alcançar a verdade do fato, da autoria e das circunstâncias do crime.
O Código de Processo Penal não traz de forma taxativa todos os meios de prova, mas sim, um rol exemplificativo. Ou seja, o diploma legal não limita as provas apenas nos meios previstos expressamente em lei. De acordo com Feitoza (2010, p. 755), os meios de prova elencados explicitamente no Código de Processo Penal são:
[...] podemos classificar as provas em:
a) Provas nominadas ou meios legais de prova: as que s]ao especificadas em lei, por exemplo, art. 158 a 250 do CPP;
b) Provas inominadas: as que não são especificadas em lei.
O CPP estabelece como meios legais de prova os seguintes:
a) Exame de corpo de delito e outras perícias (arts. 158 a 184);
b) Interrogatório do acusado (arts. 185 a 196);
c) Confissão (arts. 197 a 200);
d) Perguntas ao ofendido (art. 201);
e) Testemunhas (arts. 202 a 225);
f) Reconhecimento de pessoas ou coisas (art. 226 a 228);
g) Arrecadação (arts. 229 a 230);
h) Documentos (arts. 232 a 238);
i) Indícios (art. 239);
j) Busca e apreensão (arts. 240 a 250).
No estudo em tela, a prova documental se destoa das outras, logo que a mesma possui ligação íntima com o tema proposto, ou seja, a admissibilidade ou não da carta psicografada no processo penal e sua aceitação como prova perante o instituto do tribunal do júri como prova, logo que, o Código de Processo Penal, em seu art. 232, dispõe que “consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares”, inserindo, portanto, a carta psicografada no conceito de “documento”. Nesse sentido, Nucci (2010, p. 497), define documento como sendo:
[...] toda base materialmente disposta a concentrar e expressar um pensamento, uma ideia ou qualquer manifestação de vontade do ser humano, que sirva para demonstrar e provar um fato ou acontecimento juridicamente relevante. São documentos, portanto: escritos, fotos, fitas de vídeo e som, desenhos, esquemas, gravuras, disquetes, CDs, entre outros.
Capez (2010) assevera que “o objetivo principal da produção de provas está na busca da verdade real, para que o convencimento do juiz coincida com a realidade expressa na certeza de uma decisão justa”.
2. PSICOGRAFIA COMO PROVA NO PROCESSO PENAL
2.1 ORIGEM E DEFINIÇÃO DE PSICOGRAFIA
Allan Kardec (2013, p. 411), explica a origem da psicografia “do grego psiké, borboleta, alma, e graphô, escrevo – aquele que faz psicografia; médium escrevente”.
Mello (2012, p. 97) assevera:
O termo psicografia é originário do grego psyché, que significa mente ou alma; assim, a psicografia é a escrita, a transcrição que se encerra na mente e insere-se como fenômeno natural, conhecido por mediunidade, e, desde o princípio dos tempos, faz parte da história da humanidade, não sendo privilégio nem tampouco invenção de uma crença ou religião.
Garcia (2010, p. 55), define psicografia como:
- Comunicação escrita entre encarnados e desencarnados;
- Uma das várias formas de mediunidade, em que o espírito escreve através de médium;
- A escrita dos espíritos pela mão do médium;
- Comunicação escrita de médiuns com o Além;
- Uma forma de comunicação entre vivos e mortos;
- Transmissão de mensagens escritas, ditadas por espíritos aos seres humanos;
- [...]
Kardecc (1996, p. 36) assevera que a psicografia é:
A transmissão do pensamento dos Espíritos por meio da escrita pela mão do médium. No médium escrevente a mão é o instrumento, porém a sua alma ou espírito nele encarnado é intermediário ou interprete do espirito estranho que se comunica.
2.2 PSICOGRAFIA COMO DOCUMENTO
Como já mencionado, o Código de Processo Penal, em seu art. 232, dispõe que “consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares”, nessa senda, a carta psicografada pode ser classificada como documento.
Segundo Mirabete (2005, p. 277),
Os documentos chamados públicos, aqueles expedidos na forma prescrita em lei, por funcionários públicos no exercício de suas atribuições, gozam de proteção “juris tantum” de autenticidade, sendo impossível imputar-lhes valor diverso do que contém. Já os documentos chamados particulares, assinados ou mesmo feitos por particulares, sem a presença oficializante dos funcionários públicos, no exercício de suas funções, só são considerados autênticos quando reconhecidos por oficial público, quando aceitos ou reconhecidos por quem possa prejudicar e quando provocados por exame pericial.
Ante o exposto, pode-se extrair que o documento particular pode ser legitimado através de exame pericial. Assim, reconhecendo a possibilidade de produção de provas, cumpre saber o momento de sua produção perante o Tribunal do Júri, logo que, o art. 403 do Código de Processo Penal é taxativo quanto ao momento de juntada do documento no processo e dispõe, no art. 479, in verbis:
Art. 479. Durante o julgamento não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte.
Parágrafo único. Compreende-se na proibição deste artigo a leitura de jornais ou qualquer outro escrito, bem como a exibição de vídeos, gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer meio assemelhado, cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e julgamento dos jurados”.
Em se tratando da psicografia, Kardec (2000, p. 233), destaca que:
Um fenômeno muito comum nos médiuns escreventes é a mudança da caligrafia, segundo os espíritos que se comunicam. E o que há de mais notável é que a mesma caligrafia se reproduz constantemente com o mesmo Espírito, e às vezes é idêntica com a que tinha em vida; veremos, mais tarde, as consequências que disso se podem tirar, quanto à identidade. A mudança de caligrafia não ocorre senão com os médiuns mecânicos e semi-mecânicos, porque neles o movimento da mão é involuntário e dirigido pelo Espírito; não ocorre o mesmo com os médiuns puramente intuitivos, tendo em vista que, nesse caso, o Espírito atua unicamente sobre o pensamento, e a mão é dirigida pela vontade, como nas circunstâncias comuns; mas a uniformidade da caligrafia, mesmo nos médiuns mecânicos, não prova absolutamente nada a faculdade, não sendo a mudança uma condição absoluta na manifestação dos Espíritos; ela se prende a uma aptidão especial da qual os médiuns, os mais mecânicos, não estão sempre dotados. Nós designamos os que têm essa aptidão sob o nome de médiuns polígrafos.
Assim, resta claro que, há uma mudança na caligrafia do médium receptor da mensagem para a grafia do espírito comunicante, e mesmo que haja a mudança, não exclui a legitimidade do documento, havendo a necessidade da realização do exame grafotécnico.
De acordo com Melo (2012, p. 81), o exame grafotécnico “consiste no ato de observar, com profundidade e técnica, a constituição e o desenvolvimento do escrito, estudando a manifestação gráfica a partir de suas causas geradoras, que são chamadas gêneses gráficas”.
A carta psicografada é classificada como documento e é necessária que seja submetida ao exame grafotécnico, pois há a necessidade de integração de meios técnicos e científicos, visando a comprovação e autenticação, ou comprovação de falsificação das perícias de caligrafia.
Nesse sentido, Melo (2012, p. 92) explica que:
Conforme disposto no art. 478 do NPCP, quando o exame tiver por objeto a autenticidade ou a falsidade de documento, o perito será escolhido, preferencialmente, entre os técnicos dos estabelecimentos oficiais, como o Instituto de Criminalística. O mesmo artigo dispõe que, em caso de exame para a verificação de autenticidade de letra e firma, o perito poderá requisitar documentos em repartições públicas com a finalidade de obter a peça corporativa.
Estulano (2006, p.24) assevera que
No exame pericial devem ser confrontadas as grafias da mensagem psicografada e a grafia da pessoa quando viva. Aqui não se trata de “adivinhação”, e sim de exame respaldado cientificamente, porquanto são comparados vários hábitos gráficos (pontos característicos) tais como, pressão, direção, velocidade, ataques, remates, ligações, linhas de impulso, cortes do t, pingo do i, calibre, gênese, letras (passantes, não passantes e dupla passantes), alinhamento gráfico, espaçamento gráfico, valores angulares e curvilíneos.
Já o art. 174 do Código de Processo Penal, estabelece regras para o exame de escritos:
I- a pessoa quem se atribui ou se possa atribuir o escrito será intimada para o ato, se for encontrada;
II- para a comparação, poderão servir quaisquer documentos que a dita pessoa reconhecer ou já tiverem sido judicialmente reconhecidos como de seu punho, ou sobre cuja autenticidade não houver dúvida;
III- a autoridade, quando necessário, requisitará, para o exame, os documentos que existirem em arquivos ou estabelecimentos públicos, ou nestes realizará a diligência, se daí não puderem ser retirados;
IV- quando não houver escritos para a comparação ou forem insuficientes os exibidos, a autoridade mandará que a pessoa escreva o que lhe for ditado. Se estiver ausente a pessoa, mas em lugar certo, esta ultima diligência poderá ser feita por precatória, em que se consignarão as palavras que a pessoa está intimada a escrever.
2.4 CASOS DE PSICOGRAFIA COMO PROVA PROCESSUAL NO TRIBUNAL DO JÚRI
De acordo com Pittelli (2014, p. 66-91), no Brasil, a utilização de cartas psicografadas no Tribunal do Júri como prova remete-se a década de 1940:
“O primeiro caso de que se tem notícia no Brasil, ocorreu no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1944, no âmbito Cível. As partes envolvidas na Ação Declaratória eram: a viúva e os três filhos do escritor, Humberto de Campos, contra a Federação Espírita Brasileira e o médium, Chico Xavier. Requerendo, como titulares dos direitos autorais das obras do escritor, explicações, uma vez que tais livros encontravam-se expostos nas prateleiras das livrarias, sem que estes tivessem autorizado ou recebido qualquer valor por eles (TIMPONI, 1945). Neste caso o juiz concluiu que não havia interesse legítimo, julgando a suplicante carecedora da ação proposta. Desta sentença houve recurso, porém esta foi confirmada pelo Tribunal de Apelação do antigo Distrito Federal, em 03 de novembro de 1944.
No âmbito Penal, quatro são os casos, já julgados, que geraram grande repercussão social e mundial, em que a Justiça aceitou as cartas psicografadas, como meio de prova. São casos de julgamentos históricos, em que cartas “sobrenaturais” foram utilizadas a fim de absolver réus de crime de homicídio (Linha Direta Justiça, 2006). Antes, porém, cabe esclarecer que estas cartas foram psicografadas por “Chico Xavier”, médium respeitado mundialmente e precursor da Religião Espírita no Brasil. Destes, dois ocorreram no Estado de Goiás, em 1976, e ambos foram submetidos em momentos diversos, ao Juiz de Direito, Doutor Orimar de Bastos.
No primeiro processo o réu, João B. França, foi absolvido, a decisão se deu pela impronúncia por falta de dolo, bem como quaisquer elementos da culpa, por entender que se tratava de uma fatalidade, um acidente. O réu nem chegou a julgamento popular.
No segundo caso, o réu, José Divino Nunes, foi absolvido pelo Tribunal do Júri, por seis votos a um. Houve recurso de apelação por parte da promotoria. O Tribunal negou provimento à apelação e confirmou por unanimidade a decisão do júri popular, absolvendo o réu.
O terceiro caso se deu em 1980, no estado do Mato Grosso do Sul, o réu, João Francisco M. De Deus foi condenado inicialmente, por homicídio doloso e os autos foram remetidos ao Tribunal do Júri, em março de 1982. O réu então foi absolvido por unanimidade. Houve recurso de apelação. Submetido a novo Júri, foi condenado a um ano e meio de detenção, por homicídio culposo, porém o crime já estava prescrito.
O quarto caso se deu no estado do Paraná, em 1982, o réu, Aparecido Andrade Branco, foi considerado culpado pelo Tribunal do Júri, por cinco votos a dois e condenado a oito anos e vinte dias de reclusão. (Linha Direta Justiça 2006). Em maio de 2006, a imprensa divulgou um novo caso, ainda em trâmite, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Folha On Line, 2006). O crime se deu em 2003, a ré, Iara M. Barcelos foi inocentada, por cinco votos a dois, da acusação de mandante do crime de homicídio. Foram utilizadas pela defesa duas cartas psicografadas pelo médium Jorge J. Santa Maria, ou seja, sem o respaldo da figura de Chico Xavier. Houve recurso de apelação. A decisão do Tribunal se deu por maioria, dando provimento ao apelo do Ministério Público para declarar a nulidade do julgamento, pela ocorrência de nulidade absoluta, com fundamento no art. 564, inc. II, do CPP. Consistente no fato de que um dos integrantes do Conselho de Sentença mantém estreita relação profissional com um dos defensores que atuaram em plenário. O caso está em trâmite.
O presente estudo demonstrou que a carta psicografada utilizada como prova no processo penal não viola garantis constitucionais inerentes à pessoa humana, e menos ainda é caracterizada como prova ilegal, logo que, ao ser inserida no processo, o magistrado possui liberdade para sua apreciação e formação de convicção, sendo que, ao ser inserida como prova documental, a mesma passa pelos mesmos trâmites impostos na legislação brasileira.
Destarte, resta evidente que haja certa insegurança no que tange à oposição a este tipo de prova psicografada, pois a mesma vai de encontro com os pretextos que ofendem a laicidade do Estado, logo que a carta psicografada não se refere a material religioso, mas sim, científico.
Tratando-se do exame grafotécnico, resta demonstrado que a metodologia utilizada para a legitimação documental é empregada na mesma forma, tanto à carta psicografada quando a quaisquer tipos de documentos inseridos no processo legal como provas, podendo ser contestado, restando evidente a defesa do princípio do contraditório e ampla defesa.
Assim, evidencia-se que a prova é extremamente imprescindível para a resolução da lide, entretanto, há a necessidade de pacificação do tema, levando em conta que ele está interligado à religião, à ciência e ao Direito.
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[1]Professor do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – Unirg. E-mail: joseaugusto@unirg.edu.br
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Gurupi- UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMALHO, Ana Maria Martins. Cartas psicografadas como meio de prova no processo penal e sua utilização no Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61171/cartas-psicografadas-como-meio-de-prova-no-processo-penal-e-sua-utilizao-no-tribunal-do-jri. Acesso em: 23 dez 2024.
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