RESUMO: O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. As condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989. Os ministros do Supremo votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria[1].
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Lei nº 7.716/89 e tipos penais. 3. Racismo e suas formas contemporâneas. 4. Ativismo judicial. 5. Conclusão. 6. Considerações Finais. 7. Bibliografia.
1. Introdução
A CF/88 possui mandados de criminalização direcionadas ao legislador infraconstitucional (Congresso Nacional) no sentido de que ele deveria editar lei punindo criminalmente condutas que configurem discriminação e racismo.
O Congresso Nacional previu punição para diversas condutas discriminatórias na Lei nº 7.716/89, lei esta que define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Contudo, continua sendo omisso que tange à homofobia e transfobia.
Para suprir essa lacuna legislativa, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedentes o Mandado de Injunção 4733 e a ADO 26 para o fim de estender a tipificação prevista na lei 7.716/89 à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero e isso até que venha ser edita lei específica tratando da homofobia e transfobia como crimes.
2. Lei nº 7.716/89 e tipos penais
A Lei nº 7.716/89 prevê os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, ou seja, a prática de condutas ilícitas decorrentes de discriminação ou preconceito quanto à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
O preconceito é o pensamento que existe no sentido de que certas pessoas ou grupos sociais são inferiores, nocivos, prejudiciais. “O preconceito é subjetivo, interior, está no intelecto da pessoa, configura um pré-julgamento negativo com relação a outro indivíduo ou grupo.” [2]; Discriminação é a prática de atos que demonstram e exteriorizam o preconceito.
A Lei nº 7.716/89 não previu, expressamente, que os crimes nela tipificados podem ser aplicados em caso de manifestações de preconceito relacionadas com orientação sexual e não há nenhum comando legal que preveja punição de condutas homofóbicas e transfóbicas.
A doutrina e a jurisprudência, por sua vez, afirmavam que o rol de elementos de preconceito e discriminação do art. 20 era taxativo. Nesse sentido: STF. 1ª Turma. Inq 3590/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 12/8/2014.[3]
Existe um dever imposto pela CF/88 ao Congresso Nacional para que se crie normas de punição das condutas discriminatórias: art. 5º, incisos XLI e XLII.
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) impetrou mandado de injunção no STF no qual pediu o reconhecimento de que a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito de racismo ou, subsidiariamente, que sejam entendidas como discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais. Já o Partido Popular Socialista (PPS) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) na qual pediu que o STF declarasse a omissão do Congresso Nacional por não ter votado projeto de lei que criminaliza atos de homofobia.
O STF, por maioria, julgou procedente o Mandado de Injunção 4733 para a) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e b) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.
Quanto à ADO 26, o STF, também por maioria, julgou procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para: a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT; b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99; d) dar interpretação conforme a Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional; e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento.[4]
Entendeu o Supremo Tribunal Federal, que as práticas homofóbicas e transfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social e representam verdadeira ofensa a direitos e liberdades fundamentais.
Para o Min. Celso de Mello, a aplicação da Lei nº 7.716/89 para condutas homofóbicas e transfóbicas resulta da aplicação do método da interpretação conforme e não de aplicação da analogia. Também não houve violação da reserva legal. Em verdade a decisão do STF limitou-se a realizar a subsunção de condutas de homofobia e de transfobia aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente (Lei 7.716/1989) por configurarem racismo.
Segundo Márcio André Lopes Cavalcante, o princípio da proporcionalidade, na modalidade de proibição de proteção insuficiente, é o fundamento pelo qual o STF tem reconhecido que o Direito Penal pode ser um instrumento adequado para a proteção dos bens jurídicos expressamente indicados pelo texto constitucional.
À luz dos tratados internacionais e da análise dos preceitos constitucionais, conclui-se que há um mandado constitucional de criminalização no tocante a toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, incluída a de orientação sexual e de identidade de gênero.
3. Racismo e suas formas contemporâneas
O racismo é um conceito aberto que abrange preconceitos contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Assim, a noção de racismo – para efeito de configuração típica dos delitos previstos na Lei nº 7.716/89 – não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológica ou biológica. Projeta-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica, a abranger até mesmo situações de agressão injusta resultante de discriminação ou de preconceito contra pessoas por sua orientação sexual ou sua identidade de gênero.[5]
4. Ativismo judicial
O ativismo judicial costuma ser definido como a postura ativa do judiciário que regula matérias de políticas públicas. É vista como a extrapolação da função de julgar e passando a atuar como legislador ativo.
Há correndo doutrinária que argumenta que, ao estender os efeitos da lei 7.716/89 às condutas homofóbicas e transfóbicas, o Supremo Tribunal Federal atuou de forma proativa e expansiva, atingindo esferas de atuação de poderes diversos do Judiciário, evidenciando o chamado ativismo judicial.
Contudo, é evidente que há uma proteção deficiente dos direitos da população homossexual e transexual, grupo que padece de hipervulnerabilidade.
Apenas cientificar o Congresso Nacional para que ele adotasse, em prazo razoável, as medidas necessárias à efetivação da norma constitucional não se mostrou medida que surtiria efeito, isso porque há no Congresso Nacional inúmeros projetos de lei tratando da matéria. Contudo, há uma grande resistência de certos setores da sociedade com relação aos direitos de tal segmento social e, em razão disso, esses projetos nunca foram aprovados e os apelos ao legislativo não têm se mostrado eficaz.
Diante da gravidade da situação e da patente necessidade de solução jurídica para o caso, o procedimento hermenêutico realizado STF atendeu ao mandamento constitucional sem usurpar a competência do Poder Legislativo.
5. Conclusão
Foi fixada como tese pelo Supremo Tribunal Federal que até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989.
6. Considerações Finais
O presente estudo analisa detalhadamente as duas decisões do Supremo Tribunal Federal que levaram à extensão dos efeitos jurídicos da Lei 7.716/1989 quando praticadas condutas homofóbicas e transfóbicas. É um tema que encontra grande repercussão jurídica e social.
A presente análise partiu dos estudos acerca do tema, principalmente de outros artigos científicos, especialmente publicados pelo professor Márcio André Lopes Cavalcante.
7. Bibliografia
ALMEIDA, Aline Vieira. Equiparação da homofobia ao crime de racismo diante da tendência ao ativismo judicial. Direitonet, 2020. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/11807/Equiparacao-da-homofobia-ao-crime-de-racismo-diante-da-tendencia-ao-ativismo-judicial>. Acesso em: 04/03/2023.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. Lei n. 7.716 de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 5 de janeiro de 1989.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Atos homofóbicos e transfóbicos são formas contemporâneas de racismo social. Entenda a decisão do STF. Dizer o Direito, 2019. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2019/07/atos-homofobicos-e-transfobicos-sao.html>. Acesso em: 04/03/2023.
CORI-SC. Notícias 14/06 - STJ: STF criminaliza homofobia e transfobia com aplicação por analogia à Lei do Racismo. Disponível em: <https://www.colegiorisc.org.br/noticias/novidades/stj-stf-criminaliza-homofobia-e-transfobia-com-aplicacao-por-analogia-a-lei-do-racismo/>. Acesso em 04/03/2023.
GONÇALVES, Antônio Baptista. STF e a criminalização da homofobia. Migalhas, 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/319644/stf-e-a-criminalizacao-da-homofobia>. Acesso em: 04/03/2023.
IBDFAM. Criminalização da homotransfobia pelo STF completa dois anos. IBDFAM, 2021. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/noticias/8580/Criminaliza%C3%A7%C3%A3o+da+homotransfobia+pelo+STF+completa+dois+anos>. Acesso em: 04/03/2023.
LAURIA, Mariano Paganini. Leis Penais Especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 534.
Supremo Tribunal Federal (STF). STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. STF, 2019. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010>. Acesso em: 04/03/2023.
[1] STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. STF, 2019. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010>. Acesso em: 04/03/2023.
[2] LAURIA, Mariano Paganini. Leis Penais Especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 534.
[3] AVALCANTE, Márcio André Lopes. Atos homofóbicos e transfóbicos são formas contemporâneas de racismo social. Entenda a decisão do STF. Dizer o Direito, 2019. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2019/07/atos-homofobicos-e-transfobicos-sao.html>. Acesso em: 04/03/2023.
[4] AVALCANTE, Márcio André Lopes. Atos homofóbicos e transfóbicos são formas contemporâneas de racismo social. Entenda a decisão do STF. Dizer o Direito, 2019. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2019/07/atos-homofobicos-e-transfobicos-sao.html>. Acesso em: 04/03/2023.
[5] AVALCANTE, Márcio André Lopes. Atos homofóbicos e transfóbicos são formas contemporâneas de racismo social. Entenda a decisão do STF. Dizer o Direito, 2019. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2019/07/atos-homofobicos-e-transfobicos-sao.html>. Acesso em: 04/03/2023.
Artigo publicado com autoria exclusiva. ISSN - 1984-0454. Especialista em Direito Penal, Processo Penal, Processo Civil e Direito Civil. Aprovada no TJ/RO e Defensoria de Roraima e na fase de títulos da Defensoria de Rondônia. Assessora de juiz de segunda entrância.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CIZMOSKI, GIOVANNA DE MORAES. Homofobia e transfobia como crime de racismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 mar 2023, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61173/homofobia-e-transfobia-como-crime-de-racismo. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.