1.INTRODUÇÃO
A Lei nº 14.230, publicada no final de 2021, foi responsável por profunda modificação na Lei de Improbidade Administrativa desde a sua edição. Não se tratou de alterações pontuais, mas de uma considerável reforma no sistema de combate à improbidade que terá relevante impacto na atuação do Ministério Público e outros legitimados no combate aos atos de improbidade administrativa, indiscutivelmente.
Este artigo analisará as inovações da nova legislação, observados os fundamentos desenvolvidos pelo legislador infraconstitucional. Será demonstrado que a tensão entre os agentes políticos e a Lei de Improbidade perdura desde o seu nascedouro, com inúmeras tentativas de suavizar ou abrandar o teor original da lei, o que resultou na Lei nº 14.230/21, com o fundamento de que seria para valorizar a segurança jurídica e evitar a responsabilização de agentes públicos por simples erros.
Devido a magnitude da reforma, não se comentará todas as suas novidades, não obstante a influência que cada uma produziu.
Para verificar se o escopo almejado pelo legislador foi alcançado, serão elencados os seguintes pontos: a) modificação no regime jurídico da vontade pela prática de ato ímprobo; b) novo tratamento conferido à sanção de suspensão dos direitos políticos e, por fim; c) a transformação do rol das improbidades que violam os princípios da administração pública em taxativo.
Com base em pesquisas bibliográfica e jurisprudencial, o objetivo das novas normas não é seguramente o de respeito ao princípio da segurança jurídica, muito menos prestígio à moralidade administrativa.
2.DESENVOLVIMENTO
2.1 DA GÊNESE DA REFORMA
A Lei nº 8.429/92 concretizou o mandamento estabelecido pelo legislador constituinte originário (art. 37, § 4º, da Constituição Federal) e disciplinou o tratamento jurídico dos atos de improbidade praticados contra o patrimônio público. Desde o seu nascimento, a convivência entre o diploma legislativo e seus eventuais destinatários, principalmente alguns agentes políticos, não tem sido pacífica, com severas críticas daqueles que não aceitam a mutação constitucional em busca da probidade no exercício das atividades públicas.
A primeira tese levantada pelos exercentes de mandato eletivo para não se submeterem aos ditames da LIA foi, possivelmente, a alegação de que eles já respondiam por crimes de responsabilidade e, assim, não poderiam estar sujeitos ao duplo regime sancionatório, o que foi repelido pelo Supremo Tribunal Federal (STF. Plenário. Pet 3240 AgR/DF, rel. Min. Teori Zavascki, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 10/5/2018).
Em 24 de outubro de 2002, foi promulgada a Lei nº 10.628, e esta inseriu o § 2º ao art. 84, do Código Penal, com a previsão de que a responsabilidade para julgar as ações de improbidade administrativa seria do tribunal competente para julgar eventuais infrações penais praticadas pelo agente público, todavia a norma foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte, que defendeu a argumentação de que a prerrogativa de foro não poderia ser ampliada para ações civis (ADI 2797).
A Lei nº 14.230/21, norma que viabilizou a maior reforma no sistema de improbidade desde a sua promulgação, contou com apoio expressivo dos parlamentares do Congresso Nacional. A título de exemplo, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados com 408 votos a favor e agregou, de forma incomum, governo e oposição. As justificativas apresentadas pelos parlamentares estavam fundadas na necessidade de segurança jurídica, pois a interpretação deles foi a de que as disposições anteriores da lei permitiam uma responsabilização injusta de gestores públicos.
O pronunciamento dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, na Marcha dos Prefeitos, ocorrida em 26 de abril de 2022, extraída de reportagem do jornal O Valor Econômico, sintetiza os argumentos defendidos pelos parlamentares:
Mudança na lei da improbidade administrativa dá oportunidade de homens e mulheres de bem entrarem e permanecerem na política, disse Lira. Prefeitos se libertaram do prefeito ad hoc nos municípios, que é membro do Ministério Público estadual a perseguir os prefeitos por qualquer erro administrativo.
No mesmo evento, Pacheco disse que o Congresso revisou a lei de improbidade administrativa “para que se tenha clareza taxativa do que é ou não improbidade”. “Espero que Judiciário e MP façam prevalecer aquilo que o Congresso estabeleceu”. O presidente do Senado disse ainda que não pode haver “presunção de desconfiança e mal feito de prefeitos”[1]
Embora não mencionado, o discurso acima transcrito se coaduna com a “teoria do apagão das canetas”, que descreve o afastamento de bons quadros do serviço público pelo medo de responsabilização nas instâncias de controle. Explicação constante no artigo de Sandro Pereira:
De acordo com a doutrina que já se debruçou sobre a matéria, o tal "apagão" seria resultado de um empoderamento desmedido que se atribuiu aos órgãos de controle externo, sobretudo com a Constituição de 1988 e os instrumentos legislativos de combate à corrupção que lhe sucederam. Criou-se, assim, um ambiente institucional propício para o fortalecimento da atividade controladora do Estado, reconhecidamente fundamental para o regime republicano e democrático, mas que, com o decorrer dos anos, teria passado a ser exercida de modo disfuncional, desproporcional e atentatória à separação dos poderes. Sob essa perspectiva, portanto, o controle externo, a pretexto de combater a corrupção e de exigir a estrita observância da legalidade, ainda que bem-intencionado, tem sido fonte de verdadeira paralisia e ineficiência administrativa. ("Apagão das canetas", inovação e controle externo: o que os gestores têm a dizer? Revista Consultor Jurídico, 21 de julho de 2022)
Operou-se, dessarte, um verdadeiro efeito backlash em sentido amplo e inédito, com o objetivo de superar não apenas entendimentos jurisprudenciais, mas a prática institucional de vários órgãos de controle.
No entanto, o efeito prático imediato da reforma é o afrouxamento no controle da administração pública, o qual ganha materialidade por meio de diversas alterações introduzidas, as quais impedem ou dificultam a responsabilização por atos de improbidade, conforme se verá a seguir.
2.2 DA MODIFICAÇÃO DO TRATAMENTO JURÍDICO DA VONTADE NA IMPROBIDADE
Originalmente, a LIA previa, em seu art. 10, a possibilidade de responsabilização por culpa em caso de atos que causassem danos ao erário, e, nos demais casos, somente haveria a configuração da improbidade em caso de dolo. Com a reforma promovida pela Lei nº 14.230/21, a culpa é incapaz produzir ato ímprobo.
Como prevê o § 2º, do art. 1º, da Lei nº 8.429/92, considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11, pois não basta a voluntariedade do agente. Ou seja, é imprescindível, para a caracterização do ato de improbidade, o especial fim de agir, sendo insuficiente o dolo genérico. Arremeta ainda o § 1º, do art. 11, que somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade, norma esta estendida a todos os tipos de improbidade pelo § 12 do mesmo artigo.
Em outras palavras, a configuração da prática de ato de improbidade administrativa depende da demonstração de que o agente quis se comportar de acordo com a tipificação prevista na LIA e com fito de obter benefício indevido, para si ou para outrem.
A modificação legislativa tem forte repercussão no âmbito processual, pois a demonstração do dolo específico é de grande dificuldade, já que se trata de pesquisar o elemento psicológico que rege o agente na sua conduta. Ao defender a ineficácia da Nova Lei do Abuso de autoridade, (Alves e Silva, INEFICÁCIA NA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE COM A APLICAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO, p. 9) defendem:
O dolo específico necessário para que a conduta dos agentes seja típica, constituí um elemento que excepcionalmente se exterioriza no mundo dos fatos, sua caracterização torna-se uma tarefa completamente dificultosa de comprovar, pois a intenção a qual se cometeu tal conduta criminosa é pessoal, íntima e subjetiva do sujeito ativo, portanto inacessível para o órgão julgador.
A norma criou um especial fim de agir exigido de forma geral para todos os atos ímprobos, situação que sequer ocorre no direito penal, no qual o dolo específico apenas é necessário para os tipos expressamente previstos pelo legislador.
Embora o legislador tenha tentado aproximar o regime jurídico da improbidade do campo penal, ao estabelecer a aplicação dos princípios do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º, da LIA), não há como se estabelecer equivalência de tratamento, uma vez que um tutela o bem mais caro que pode retirado pelo Estado brasileiro em tempos de paz: a liberdade. De fato, o que ocorreu não foi, nem mesmo, uma uniformização, e sim, indubitavelmente, uma disciplina mais dificultosa no campo da improbidade.
A Suprema Corte pronunciou-se, recentemente, sobre a impossibilidade de aplicação indiscriminada de preceito do Direito Penal no âmbito da LIA, ao definir a irretroatividade da Lei nº 14.230 de 2021. Um dos fundamentos utilizados pela Corte foi de que “o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica baseia-se em particularidades do direito penal, o qual está vinculado à liberdade do criminoso (princípio do favor libertatis), fundamento inexistente no direito administrativo sancionador. ” (CAVALCANTE, Márcio André Lopes, p. 3).
Conforme defende Tourinho, Rita. O elemento subjetivo do tipo na nova Lei de Improbidade Administrativa: avanço ou retrocesso? p. 9):
Acolher-se a tese do dolo específico na caracterização da improbidade administrativa, principalmente nas hipóteses de enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário, viola frontalmente o princípio da proibição de proteção deficiente, viés do princípio da proporcionalidade, que não admite a deficiência na proteção de um direito fundamental, seja pela eliminação de figuras típicas, seja pela cominação de penas que ficam aquém da importância exigida pelo bem que se quer proteger ou pela aplicação de institutos que beneficiam indevidamente os agentes, além de tantas outras hipóteses.
Tudo visto, existem severas dúvidas sobre a constitucionalidade do dispositivo, uma vez que impõem ao membro do Ministério Público, em muitos casos, verdadeira prova diabólica, o que pode afetar o equilíbrio entre as partes no processo.
Outra modificação implementada no elemento volitivo foi a extinção da culpa como elemento caracterizador da improbidade. Na justificativa do projeto, o deputado federal Roberto de Lucena assim dispôs:
Não é dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia. Evidentemente tais situações não deixam de poder se caracterizar como ilícitos administrativos que se submetem a sanções daquela natureza e, acaso haja danos ao erário, às consequências da lei civil quanto ao ressarcimento.
O que se compreende neste anteprojeto é que tais atos desbordam do conceito de improbidade administrativa e não devem ser fundamento de fato para sanções com base neste diploma e nem devem se submeter à simbologia da improbidade, atribuída exclusivamente a atos dolosamente praticados.
A culpa compreende a imprudência, a negligência e a imperícia que podem ser descritas, doutrinariamente, como uma ação sem a observância dos cuidados necessários, o descumprimento de regras imperativas para o caso e a falta de habilidade técnica ou profissional.
Na culpa, o agente não persegue o resultado, mas este apenas ocorre em função da ausência de um zelo a ele imputado. Com a nova orientação, incontáveis situações de enorme gravidade deixarão de ser responsabilizadas sob o aspecto da LIA, e permitirá que agentes públicos que atuam com elevado grau de culpa escapem das referidas sanções.
2.3 DA SANÇÃO DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS
Na redação anterior, a LIA estipulava que a sanção de suspensão dos direitos políticos seria aplicada no patamar de 8 a 10 anos para atos que ensejassem enriquecimento ilícito, 5 a 8 anos, em caso de dano ao erário, e 3 a 5 anos nos atos que violam os princípios da administração pública. Atualmente, a sanção de suspensão dos direitos políticos foi extinta para o último caso e aumentadas para 14 e 12 anos, respectivamente, nas primeiras situações, sem estipulação de pena mínima.
O leitor desatento poderia considerar que houve um agravamento nessa sanção. No entanto, a lei criou um regime fictício de cumprimento da pena, que incentiva a interposição de recursos meramente protelatórios, com o fito de tornar letra morta o cumprimento da sanção. Prevê o § 10 do art. 12 da LIA que, para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Isso significa que, após o trânsito em julgado, o juiz deverá contar o tempo transcorrido desde a prolação do acórdão condenatório, ainda que, a esse tempo, o réu não estivesse, efetivamente, com seus direitos suspensos, uma vez que a própria lei exige a formação da coisa julgada para a execução de qualquer sanção (§ 9, art. 12, da LIA).
Um exemplo ajuda a elucidar melhor o caso. Imagine que um servidor público está sendo processado pela prática de ato de improbidade que cause prejuízo ao erário e seja condenado, dentre outras penas, a de suspensão dos direitos políticos por 6 anos. A sentença foi confirmada, nos mesmos termos, pelo tribunal, em 1º de janeiro de 2022. Após alguns recursos aos tribunais superiores, o processo chega ao seu termo final em abril de 2028. Como a sanção deve ser contada desde janeiro de 2022, na data do trânsito em julgado o réu já teria cumprido a sua pena.
O raciocínio do legislador foi o de que, em certas situações, por existir condenação por órgão colegiado, o cidadão se torna inelegível, nos termos da Lei Complementar nº 64, de 1990. É patente a confusão entre institutos jurídicos distintos. A inelegibilidade é apenas uma das consequências da suspensão dos direitos políticos, que é bem mais grave, assim como não há identidade entre os tipos previstos na LIA e na Lei de Inelegibilidade.
Com base na flagrante inconstitucionalidade, recentemente, em 10 de janeiro de 2023, o Ministro Alexandre de Moraes concedeu medida cautelar na ADI 7.236, do Distrito Federal, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - Conama, com o objetivo de suspender o referido dispositivo, com a seguinte fundamentação:
No que se relaciona ao art. 12, § 10, constante do art. 2º da Lei 14.230/2021, cabe destacar que, em princípio, não se afigura constitucionalmente aceitável a redução do prazo legal de inelegibilidade em razão do período de incapacidade eleitoral decorrente de improbidade administrativa.
(...) a suspensão dos direitos políticos em virtude de improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º, não se confunde com a previsão de inelegibilidade do art. 1º, I, l, da LC 64/1990.
Enquanto a primeira hipótese tem seu fundamento no art. 15 da Constituição Federal (suspensão), a segunda tem seu fundamento no § 9º do art. 14 do texto constitucional (inelegibilidade legal), que somente abrange uma situação de inelegibilidade, posterior ao término da suspensão dos direitos políticos.
Em complementação – não em substituição – à previsão constitucional do art. 15 da Constituição Federal, com base no § 9º do seu art. 14, a LC 64/2010 estabeleceu criteriosos requisitos de incidência em seu art. 1º, I, l (condenação por ato de improbidade administrativa que importe, simultaneamente, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito; presença de dolo; decisão definitiva ou proferida por órgão judicial colegiado; e sanção de suspensão dos direitos políticos – nesse sentido: Ac.-TSE, de 21/02/2017, no Respe 10049), prevendo hipóteses especialmente graves e atentatórias à moralidade administrativa e ao bom funcionamento das instituições públicas.
Em que pese serem previsões complementares, são diversas, com diferentes fundamentos e diferentes consequências, caracterizando institutos de natureza diversas, que, inclusive, admitem a possibilidade de cumulação entre as inelegibilidades e a suspensão de direitos políticos, pois conforme decidido pela CORTE no julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578 (Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 29/06/2012)
A Constituição Federal determina, expressamente, que uma das consequências do ato de improbidade é a suspensão dos direitos políticos, mandamento este que não pode ser apagado pelo legislador ordinário. A referida norma atinge frontalmente a Carta Magna em diversos pontos ao tornar, por via transversa, praticamente ineficaz a suspensão dos direitos políticos.
2.4 DA VINCULAÇÃO A TIPIFICAÇÃO APRESENTADA NA INICIAL
Umas das novidades introduzidas pela reforma da LIA é uma espécie de imutabilidade da tipificação prevista na petição inicial. Após a réplica do ministério público, o juiz deve proferir decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor, assim como será considerada nula a decisão que condenar o réu por tipo diverso do previsto na inicial. (§ 10-C e 10-F do art. 17 da Lei nº 8.429/92).
O inquérito civil é o instrumento que, em regra, irá subsidiar a ação civil pública contra a improbidade a ser apresentada pelo Ministério Público. No entanto, como é notório, ele não esgota a atividade probatória, de modo que é plenamente possível que se verifique, durante a instrução processual, a existência de prática efetiva de uma outra conduta tipificada na LIA.
Ao condicionar a condenação do requerido em ação de probidade ao tipo indicado na petição inicial, ainda que efusivamente demonstrada a ocorrência de outro ato ímprobo, a regra afronta o brocardo latino ensinado nas primeiras lições da faculdade de Direito: iura novit curia (o juiz conhece o direito) e da mihi factum, dabo tibi iu (dá-me os fatos que te darei o direito).
Outrossim, como mencionado no item 2.2, há, novamente, um tratamento jurídico mais rigoroso que no Direito Penal, na qual o réu se defende de fatos, sem estar o juiz vinculado a tese encampada pelo parquet. O mandamento conduz a situação em que o magistrado será obrigado a absolver o réu, em que pese a robustez de prova dos autos, pelo simples fato de entender que a tipificação dada na petição inicial não é a mais adequada. O mesmo caso, na esfera penal, resultaria na reclassificação jurídica da conduta.
Na petição inicial da ADI 7236/DF, o autor corrobora os argumentos trazidos à baila e nos apresenta outras consequências desta opção legislativa:
Subsumir os fatos à norma, está inserida nos poderes-deveres do juiz, eis que não há margem de discricionariedade, ou seja, o exercício do iura novit curia configura sempre um dever que decorre da necessidade das decisões judiciais estarem em sintonia com o direito estatal vigente. Conforme a doutrina destaca, aceitar “que o iura novit curia seja uma faculdade implicaria aceitar que juízes podem deliberadamente proferir decisões antijurídicas porque voluntariamente deixaram de dar o correto enquadramento jurídico à situaçãofática que lhes foi apresentada pelas partes” (LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade processual: a liberdade das partes no processo. Coordenado por Teresa Arruda Alvim e Eduardo Talamini. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 322)
(...)
Por outro lado, anote-se que a vedação ao exercício do poder-dever de requalificação jurídica dos fatos pelo magistrado é previsão que estimulará a repetição de demandas com idêntica causa de pedir remota, uma vez que o Ministério Público se verá obrigado a ajuizar outra e subsequente ação na qual deduza os mesmos fatos, mas com qualificação jurídica diversa (causa de pedir próxima)
Com a devida vênia, a manutenção desse dispositivo no ordenamento jurídico não causará apenas a repetição de demandas e o abarrotamento do poder judiciário, o que seria, por si só, suficientemente grave, mas a prescrição da pretensão punitiva do Estado.
Em que pese ter havido o aumento no prazo prescricional, assim como ocorre com a sanção de suspensão dos direitos políticos, a mudança é apenas aparentemente mais gravosa. Após ser interrompida, ela começará a ser contada pela metade (art. 23, § 5°, da LIA), razão pela qual o novo processo teria que tramitar em tempo recorde a fim de ser alcançado o novo marco interruptivo, qual seja, a sentença condenatória.
Ao ponderar a vinculação estrita entre sentença e petição inicial quanto à tipificação do ato de improbidade com a exigência de demonstração de dolo específico, na qual se impingiu pesado ônus probatório, verifica-se a tendência de impunidade trazida pelo novo diploma legislativo.
Por um lado, impõe o dever de o Ministério público, em qualquer ato de improbidade, pesquisar sobre o especial fim de agir do agente, com todas as dificuldades já demonstradas. Por outro, ainda que consiga revelar o dolo específico, caso a instrução probatória revele que o ato se amolda noutro tipo, o imputado deve ser absolvido.
Ao contrário do que pregam os defensores da reforma da Lei de Improbidade, a sua consequência prática permitirá uma maior fragilidade da proteção do patrimônio público por causa dos obstáculos introduzidos para a responsabilização dos agentes.
2.5 DA TAXATIVIDADE DAS IMPROBIDADES QUE ATENTAM CONTRA OS PRINCÍPIOS DA ADMNISTRAÇÃO PÚBLICA
Um das principais novidades da Lei n° 14.230/21 foi a transformação do rol de improbidades que atentam contra os princípios da administração pública de exemplificativo em taxativo.
Dworkin define princípios como “aquele standard que deve ser observado, não por ter em vista uma finalidade econômica, política, ou social, que se possa considerar favorável, mas porque seja uma exigência de justiça, ou equidade, ou alguma outra dimensão de moralidade” (Guedes Néviton, A importância de Dworkin para a teoria dos princípios, 2012, p. 3).
Os princípios são dotados de alto grau de generalidade e abstração, de modo que há maior espaço de conformação do seu conteúdo no caso concreto. Em tese, a configuração de improbidade por violação a princípios da administração pública com a cláusula aberta prevista no caput da redação original do art. 11, da LIA, poderia respaldar as justificativas da reforma já trazidas no presente artigo. No entanto, não se pode confundir a indeterminação ínsita aos princípios com arbitrariedade.
A natureza exemplificativa do rol tinha uma razão de ser clara: é impossível ao legislador prever, de início, todas as condutas que possam violar os princípios da administração pública. Cabe aos operadores do direito, principalmente aos órgãos de controle e ao Poder Judiciário, preencher o conteúdo dos mandamentos principiológicos de acordo com a Constituição Federal.
O Superior Tribunal de Justiça debruçou-se diversas vezes na construção da categoria específica de improbidade com violação a princípios:
A ilegalidade e a improbidade não são conceitos intercambiáveis, cada uma delas tendo a sua peculiar conformação estrita: a improbidade é uma ilegalidade qualificada pelo intuito malsão do agente, atuando com desonestidade, malícia, dolo ou culpa grave. A confusão conceitual que se estabeleceu entre a ilegalidade e a improbidade deve provir do caput do art. 11 da Lei 8.429/1992, porquanto ali está apontada como ímproba qualquer conduta que ofenda os princípios da Administração Pública, entre os quais se inscreve o da legalidade (art. 37 da CF). Quando não se faz distinção conceitual entre ilegalidade e improbidade, ocorre a aproximação da responsabilidade objetiva por infrações. REsp 1.193.248-MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 24.4.2014.
A própria jurisprudência, não se olvide, cuidou de temperar eventuais interpretações elásticas do caput do art. 11 da redação original da LIA.
Com a nova redação, condutas dotadas de elevada gravidade deixarão de ser consideradas improbidade, inclusive em casos que já havia jurisprudência pacificada, como: tortura de pessoas custodiadas em delegacia (STJ. 1ª Seção. REsp 1177910-SE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 26/8/2015); estupro de paciente por médico vinculado a hospital público; assédio de aluno (a) criança ou adolescente por professor da rede pública (STJ. 2ªTurma. REsp 1.255.120-SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 21.5.2013. Info 523).
Todas essas situações, pelo simples fato de não constarem expressamente na Lei nº 8.429/92, deixaram de configurar improbidade administrativa, o que representa violação aos princípios da proteção deficiente e da vedação ao retrocesso. Sarlet (p.131) defende que:
A partir da consagração (...) da noção de deveres de proteção estatais em matéria de direitos fundamentais, acabou também sendo reconhecida a existência de um dever de proteção suficiente (a garantia de um patamar mínimo de proteção), que, por sua vez, implica uma proibição de proteção insuficiente ou deficiente. Tal proibição de proteção insuficiente tem sido – em geral – considerada como sendo uma outra dimensão da proporcionalidade na condição de proibição de excesso de intervenção, ensejando um teste similar (em três níveis de análise) para a sua verificação em casos de omissão ou atuação insuficiente do Poder Público.
Pairam, destarte, sérias dúvidas sobre a constitucionalidade da novel legislação no tópico em análise.
3.CONCLUSÃO
A intenção do legislador ordinário de proporcionar segurança jurídicas aos agentes públicos com a reforma da LIA, anunciada como seu objetivo principal, não será a consequência prática da aplicação dos seus dispositivos.
Os excessivos obstáculos impostos pela novel legislação à configuração do ato de improbidade não encontram correspondência nem mesmo no Direito Penal, ramo jurídico conhecido por ser a última ratio, cuja condenação pode resultar na privação da liberdade do ser humano.
O princípio da segurança jurídica não pode ser alçado a um patamar superior aos demais princípios consagrados pelo ordenamento jurídico, como a proibição da proteção deficiente e a defesa do patrimônio público. Não se pode admitir que, a pretexto de incentivar a inovação e o ingresso de novos quadros na administração pública, com base na teoria do “apagão das canetas”, criem-se situações teratológicas, como a extinção, por vias transversas, da sanção de suspensão dos direitos políticos e aos princípios gerais do direito como iura novit curia.
Não se trata de tolher o legislador de legítimas escolhas políticas, o que é louvável em um estado democrático de direito, posto que o parlamento condensa a soberania popular. As modificações aqui trazidas, em vez de impedir a responsabilização indevida de agentes públicos, retira do alcance do âmbito da LIA condutas de extrema gravidade e que merecem o repúdio pelo Direito.
4.BIBLIOGRAFIA
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. As mudanças promovidas pela Lei 14.230/2021 no elemento subjetivo e na prescrição da improbidade administrativa retroagem? Buscador dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/38840678620308eadd98d8632df3d6d4>. Acesso em: 01/02/2023
SARLET, Ingo W.; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620490. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553620490/. Acesso em: 02 fev. 2023.
https://www.conjur.com.br/2012-nov-05/constituicao-poder-ronald-dworkin-teoria-principios#_ftn6
SARLET, Ingo W.; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. [Digite o Local da Editora]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620490. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553620490/. Acesso em: 02 fev. 2023
[1] https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/04/26/lira-elogia-mudanca-na-lei-da-improbidade-administrativa-e-pacheco-manda-recado-ao-judiciario-e-mp.ghtml ou as ferramentas oferecidas na página.
Promotor de Justiça do Estado da Paraíba, Assessor Técnico do Procurador-Geral de Justiça, ex-Promotor de Justiça Corregedor, ex-Presidente da Associação Paraibana do Ministério Público – APMP, ex-Vice-Presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp e ex-Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público - Fesmip.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, alexandre cesar fernandes. Adequação necessária ou retrocesso social? Análise das mudanças na lei de improbidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 mar 2023, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61264/adequao-necessria-ou-retrocesso-social-anlise-das-mudanas-na-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
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