RESUMO: O presente artigo tem como objetivo abordar o funcionamento do sistema penal e do descumprimento por parte do Poder Público quanto aos direitos constitucionalmente assegurados aos reclusos sob a ótica da criminologia crítica. Tal abordagem traz a análise da falência da pena de prisão e da responsabilidade estatal através da ADPF 347.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema Penal. Criminologia Crítica. Responsabilidade Estatal.
ABSTRACT: This article aims to address the functioning of the penal system and the non-compliance by the Public Power with regard to the constitutionally guaranteed rights of inmates from the perspective of critical criminology. Such an approach brings the analysis of the failure of the prison sentence and state responsibility through ADPF 347.
KEYWORDS: Penal System. Critical Criminology. State Responsibility.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA PENAL E DA EXECUÇÃO DA PENA À LUZ DO PARADIGMA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA; 1.1 ESTUDO DO SISTEMA PENAL, SUAS AGÊNCIAS, DISCURSOS E CARACTERÍSTICAS CONTRADITÓRIAS; 1.2 DIREITOS E DEVERES DO PRESO SEGUNDO A LEI DE EXECUÇÃO PENAL; 1.3 FALÊNCIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo apresentar a crítica quanto a contradição existente entre os direitos não atingidos pela sentença penal condenatória e a realidade do sistema penal. Para compreender a falha na aplicação das leis que asseguram direitos aos reclusos, é importante assimilar, inicialmente, como se dá o funcionamento do Sistema Penal e os discursos que cada segmento propõe.
A criminologia crítica confirma as fortes características contraditórias do Sistema Penal referentes a seletividade, a estigmatização e a repressão, fatores esses umbilicalmente ligados à falência da pena de prisão.
A violação massiva dos direitos fundamentais sobreveio no chamado “Estado de Coisas Inconstitucional”, atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao sistema prisional brasileiro.
Os principais autores norteadores enquanto pesquisa bibliográfica para sustentar a abordagem foram: Nilo Batista, Eugênio Raúl Zaffaroni, Vera Malaguti, Alessandro Baratta, Cesar Roberto Bittencourt, Rogério Greco, Renato Marcão, Carlos Alexandre de Azevedo Campos e Augusto Thompson.
1 FUNCIONAMENTO DO SISTEMA PENAL E DA EXECUÇÃO DA PENA À LUZ DO PARADIGMA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA
A lei de Execução Penal (7.210/94) tem como objetivo dar cumprimento ao comando da sentença penal condenatória ou absolutória imprópria. Ao adotar a teoria mista ou eclética, a execução penal no Brasil tem como função declarada a de punir e humanizar, no intuito de alcançar a (re)integração social do condenado (MARCÃO, 2012, p. 31-32).
Será abordado nesta seção o funcionamento do Sistema Penal, com enfoque nos eixos teóricos da Criminologia Crítica, compreendendo as formas de execução da pena no Brasil.
1.1 ESTUDO DO SISTEMA PENAL, SUAS AGÊNCIAS, DISCURSOS E CARACTERÍSTICAS CONTRADITÓRIAS
O sistema penal é realizado através de procedimentos necessários para desenvolver o que Zaffaroni (1997, p. 70) chama de "controle social punitivo institucionalizado", que abarca a atividade do legislador, do Ministério Público, dos juízes e funcionários da execução penal. Se inicia com a suspeita da prática de um crime, desenvolve com a aplicação de uma pena e finaliza com a sua execução.
Ao definir como "institucionalizado" o controle punitivo, refere-se tanto a adoção de procedimentos que a lei prevê, como procedimentos que a lei não prevê, melhor dizendo, ilegalidades rotineiras que passaram a ser toleradas. Assim ocorre quando há a realização de tortura para obter uma confissão, espancamentos como forma de disciplina em estabelecimentos penais, dentre outras práticas conhecidas (BATISTA, 2015, p. 25).
Nilo Batista (2015, p. 25) prevê três estágios de intervenção que se incumbe de realizar o direito penal: a instituição policial, a instituição judiciária e a instituição penitenciária.
Zaffaroni (1997, p. 71) distingue em segmentos básicos dos sistemas penais atuais, são eles: o policial, o judicial e o executivo, que atuam de formas distintas em cada etapa cronológica.
Seja a classificação em estágios de intervenção, seja em segmentos básicos, a estrutura é a mesma: a polícia judiciária investiga um crime, devendo se sujeitar às regras que o Código de Processo Penal determina ao inquérito policial e às provas; O inquérito concluído é encaminhado a uma vara criminal; tratando-se de crime persequível por Ação Penal Pública, o Promotor de Justiça oferecerá a denúncia, e um procedimento se seguirá; E enfim, o réu condenado a pena privativa de liberdade que deva ser cumprida em regime fechado, será recolhido a uma penitenciária, sujeito às disposições da Lei de Execução Penal (BATISTA, 2015, p. 24).
Ocorre que se tem analisado que não há uma única ideologia do sistema penal, os discursos dos segmentos citados se divergem e se contradizem. Ao passo que o discurso judicial desenvolve sua própria cultura, de mera análise à letra de lei, com clara tendência à burocratização; o discurso policial é moralizador e o discurso penitenciário é terapêutico ou de tratamento (ZAFFARONI, 1997, p. 72/73).
Cada discurso ignora o outro como se a intenção fosse se apropriar de uma parte do sistema penal, sem que a atuação se dê de forma convergente. Com isso, no lugar de prevenir futuras condutas criminosas, convertem em verdadeiras carreiras criminosas. (ZAFFARONI, 1997, p. 73)
O Sistema Penal é apresentado como igualitário, quando na realidade é seletivo, se dirige quase sempre contra certas pessoas mais que contra certas ações, segundo sua classe e posição social (BATISTA, 2015, p. 25).
Baratta, (BARATTA, 2011, p. 86) ao tratar do chamado Labelling Approach ou Teoria do Etiquetamento Social, dentro da criminologia crítica, definiu que o criminoso é fruto de um etiquetamento e não de uma situação pré-existente, consiste em dizer que o que determina a conduta criminosa são as características do meio em que se encontra inserido. O sistema punitivo não combate a criminalidade, mas atribui rótulos, fruto de um sistema classista e seletivo. Para Baratta:
Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade e não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, não é considerado e tratado pela sociedade como “delinquente” (BARATTA, 2011, p. 86).
A criminologia crítica concluiu que a concepção liberal burguesa da questão criminal priorizou os interesses da classe dominante, imunizou seus comportamentos socialmente danosos e dirigiu o processo de criminalização para as classes subalternas (MALAGUTI, 2011, p. 90).
Para Baratta, a verdadeira relação entre cárcere e sociedade é quem exclui e quem é excluído, ou, melhor dizendo, quem tem o poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização (apud MALAGUTI, 2011, p.91).
Além disso, o Sistema Penal é apresentado como justo, com a finalidade de prevenir o delito, quando na realidade seu desempenho é repressivo, uma vez frustrada sua linha preventiva (BATISTA, 2015, p. 26).
Por fim, o Sistema Penal se apresenta empenhado em cumprir com a dignidade da pessoa e na realidade é estigmatizante, o que reforça a ideia de um "rol desviante", estabelecendo rótulos na figura do criminoso (BATISTA, 2011, P. 26).
Dito isso, torna-se difícil afirmar qual a função que o Sistema Penal cumpre na realidade social. Para a criminologia, como já exposto o pensamento de Baratta, o sistema penal cumpre a função de selecionar pessoas dos setores mais humildes, criminalizá-las, e, dessa forma, indicar os limites do espaço social (ZAFFARONI, 1997, p. 77).
Para outros, como descreve Zaffaroni (1997, p. 77), cumpre a função de sustentar a hegemonia de um setor social sobre o outro, assim afirmam os autores marxistas.
Conclui-se, portanto, que o Sistema Penal seria o controle social e sua parte punitiva. A criminalização dos marginalizados não atende uma função ao seu grupo, mas, unicamente, serve para levar uma sensação de tranquilidade aos setores que detém o controle social.
1.2. DIREITOS E DEVERES DO PRESO SEGUNDO À LEI DE EXECUÇÃO PENAL
Quando se mostra necessária a restrição de liberdade, é preciso assegurar que este seja o único direito humano privado, devendo-se garantir ao recluso a preservação de sua dignidade em todos os aspectos.
Com isso, a execução penal pressupõe direitos e deveres envolvendo o Estado e o condenado.
O art. 39 da Lei de Execução Penal (7.210/94) estabelece deveres do recluso. Sem o comprometimento destes, o condenado cometeria falta disciplinar (MARCÃO, 2011, p. 68):
I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;
II - obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se;
III - urbanidade e respeito no trato com os demais condenados;
IV - conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina;
V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;
VI - submissão à sanção disciplinar imposta;
VII - indenização à vitima ou aos seus sucessores;
VIII - indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho;
IX - higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;
X - conservação dos objetos de uso pessoal. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm>. Acesso em 07 set. 2018.
Quanto aos direitos, estes não se esgotam. Não é pelo motivo de estar privado de sua liberdade que o recluso deixa de ser pessoa humana, sendo, portanto, necessário realizar uma interpretação ampla, no sentido de que o que não constitui restrição, permanece como direito (MARCÃO, 2012, p. 66).
Apesar disso, o artigo 41 da Lei de Execução penal prevê um rol de direitos, que deve ser interpretado como um rol exemplificativo:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
I - alimentação suficiente e vestuário;
II - atribuição de trabalho e sua remuneração;
V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm>. Acesso em 07 set. 2018.
Os direitos previstos nos incisos V, X e XV, podem ser relativizados mediante decisão motivada do diretor do estabelecimento prisional (MARCÃO, 2011, p. 67).
Além dos direitos e deveres estabelecidos ao condenado, a lei prevê como dever do Estado a assistência àqueles privados de liberdade, assim como aos liberados em definitivo, pelo prazo de um ano a contar da saída do estabelecimento e ao liberado condicional, durante o período de prova. O objetivo da assistência é prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. (MARCÃO, 2011, p. 50 e 51).
O art. 11 da LEP prevê como assistências a ser prestada: material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.
A LEP deve sempre observar o princípio da reserva legal e da anterioridade da norma, conforme dispõe o art. 5, XXXIX da Constituição Federal e o art. 1º do Código Penal, de modo que não pode ser definido como sanção o que não há prévia determinação legal (MARCÃO, 2011, p. 68).
1.3. FALÊNCIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
No século XIX, com o Sistema Progressivo, impõe-se definitivamente a pena privativa de liberdade, que continua sendo a “espinha dorsal” no sistema penal atual (BITTENCOURT, 2011, p. 96-97).
Esse regime tem como essência a distribuição do tempo de duração da condenação em períodos, ampliando-se os privilégios com a boa conduta do recluso. Além disso, possibilita a reinserção em sociedade antes do término da condenação. (BITTENCOURT, 2011, p.97-98)
Bittencourt (2011, p.111) chama a atenção para alguns fatores que resultaram na crise deste sistema: a duração das penas encontra-se reduzida, entretanto, sem observar a recuperação do condenado, o que eleva a reincidência e gera um sentimento pouco significativo ao recluso.
Além disso, um outro fator considerável que Bittencourt afirma (2011, p. 112) é a existência de pactos internacionais sobre direitos humanos, que tem levado a um questionamento mais rigoroso do sentido teórico e prático da pena privativa de liberdade, contribuindo ainda mais para o debate sobre a sua crise.
O que de fato deve-se chamar atenção é que o encarceramento do criminoso na atual crise do Sistema Progressivo apenas posterga o problema. Geralmente, a sociedade só se atenta quanto a isso quando existe alguma conflitividade carcerária, também chamado de motim carcerário, fator mais evidente da deficiência da pena privativa de liberdade. Quando o problema é temporariamente resolvido, o sentimento de indiferença da sociedade é retomado.
As rebeliões têm sua razão de ser: presídios superlotados, muitos com três, quatro ou cinco vezes a sua capacidade; a maioria dos presídios sem trabalho ou algum tipo de educação; no quesito alimentação, verificou-se comidas estragadas ou com validade vencida, servidas como refeição; revistas vexatórias às visitas dos reclusos; a normalidade do isolamento; insuficiência do número de profissionais habilitados para fazerem a defesa dos que já se encontram presos, dentre outros fatores. (GRECO, 2011, p. 240-241)
Os motins carcerários mais famosos se deram pelas deploráveis condições materiais, assim ocorreu na França (1972-1974), na Itália (1972) e o “massacre do Carandiru” em São Paulo (1992), o desrespeito à dignidade do preso e a violência excessiva se repetem ainda hoje, em qualquer parte do mundo (BITTENCOURT, 2011, p. 230).
Os reclusos, principalmente nos presídios da América Latina, são jogados pelo Estado de uma forma que impossibilita o cumprimento de pena de maneira digna, sempre afetando direitos que lhe são inerentes. (GRECO, 2011, p. 226)
A maioria dos sistemas penitenciários encontra como deficiência a falta de orçamento, Bittencourt realça (2011, p. 230) que o financiamento do sistema penitenciário não é prioridade para o orçamento público. Além disso, há pessoal técnico despreparado, o que dificulta o bom relacionamento com os reclusos e, por fim, predomina a ociosidade nas prisões, o que prejudica qualquer programa de ressocialização.
A Lei Complementar nº 79/1994 criou o Fundo Penitenciário Nacional - FUNPEN, para o financiamento de medidas e programas voltados à modernização e humanização do sistema prisional brasileiro. No entanto, conforme o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) relata na ADPF 347, estamos diante da ausência de destinação dos valores aos fins próprios.
O PSOL destaca que há saldo de R$ 2,2 bilhões, sendo contingenciado pela União. A referida ADPF determinou, em sede de liminar, que a União libere o saldo acumulado do FUNPEN para a utilização com a finalidade para a qual foi criado.
O desleixo do Poder Público, cumulado com a reação social de vingança, gera uma punição cruel e desumana ao recluso. Neste sentido, Bittencourt afirma (2011, p. 91) que:
A tentativa de humanizar a pena, assim como o propósito de converter o sistema penitenciário em instrumento reabilitador, sempre encontrou duas grandes dificuldades: de um lado, o cidadão comum mantém uma atitude vingativa e punitiva a respeito da pena privativa de liberdade, e, de outro lado, as autoridades públicas, por pragmatismo e oportunismo (geralmente com intenções demagógicas e eleitoreiras), não se atrevem a contradizer esse sentimento vingativo.
Além disso, Rogério Greco (2011, p.227) realça como a corrupção por parte dos agentes carcerários se tornou comum, para ter direito inclusive ao que é devido pelo Estado, os presos são extorquidos:
[...] Desde o simples papel higiênico, à possibilidade de terem televisores em suas celas, da entrega de bens pessoais feita por seus familiares, enfim, tudo passou a ter um preço a ser cobrado dos presos, o que, obviamente, gerou revoltas que culminaram com a morte de inúmeras pessoas.
Os mesmos problemas, na realidade ainda piores, ocorrem nos presídios femininos. Greco (2011, p. 267) conta que:
Há relatos, em presídios femininos, de detentas feridas em virtude de arma de fogo; espancadas com barras de ferro; tuberculosas e aidéticas que não recebem o necessário atendimento médico e disseminam a doença em seu meio; presas grávidas que foram espancadas por guardas penitenciários, que as agrediram desferindo socos em sua barriga; detentas que, agredidas violentamente, tiveram seus dentes quebrados; outras submetidas a choques elétricos nos seios e na região genital. Enfim, as precárias condições carcerárias femininas não se diferenciam das péssimas condições existentes nas penitenciárias masculinas.
A Lei de Execução Penal no Brasil (L. 7210/84), baseada no Sistema Progressivo, não tem alcançado sua finalidade. Os governos de todos os níveis não demonstram interesse em cumprir suas determinações legais e colocam o Brasil como alvo de denúncias reiteradas de violação aos Direito Humanos. Observando o plano de análise da norma, de acordo com a Escada Ponteana, resta evidente se tratar de uma norma que existe, é válida, entretanto, carece de eficácia.
As más conservações dos presídios no Brasil chamam atenção quando se trata da negativa de extradição de acusados de crimes em território nacional, como ocorreu, inicialmente, com o ex- diretor de marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, condenado pelo mensalão (Ação Penal 470), em 2012. A Itália negou a extradição acatando o argumento da defesa de que os presídios brasileiros apresentam condições degradantes que violam o princípio da dignidade da pessoa humana (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Portal de notícias).
Bittencourt ratifica (2011, p. 230) tudo que foi dito anteriormente, é inquestionável que “a superpopulação das prisões, a alimentação deficiente, o mau estado das instalações, pessoal técnico despreparado, falta de orçamento, todos esses fatores convertem a prisão em um castigo desumano”.
Os presídios brasileiros tornaram-se um local insalubre, precário e de superlotação, o que gera um âmbito propício à proliferação de epidemias e contágio de doenças, intensificado pela má alimentação e falta de higiene. Ou seja, o condenado está submetido a uma penalização muito além do determinado pela sentença. São expostos a sofrimentos que a lei não ordenou, configurando uma dupla penalização do condenado.
Os índices alarmantes de reincidência demonstram a falência do Estado com relação à sua meta ressocializadora, a validade do cumprimento de pena está ameaçada e sem credibilidade.
CONCLUSÃO
É possível concluir que o discurso dos segmentos do sistema penal, enquanto função declarada da pena, não segue a mesma lógica enquanto função real, o que dificulta a reintegração social do condenado. Estamos diante de um sistema classista e seletivo, como define a criminologia crítica.
Ter um sistema seletivo, que atribui rótulos e apresenta um desempenho repressivo é característica de um Poder Público que não se comove e corrobora com o sentimento vingativo e punitivo de uma classe dominante. Classe essa que, na realidade, acaba sendo a única destinatária da função social da pena, cuja finalidade é direcionada ao sentimento de tranquilidade para o seu grupo, pouco importando na falaciosa ressocialização de quem foi inserido no sistema penal.
Dito isto, é fácil enxergar a falência da pena privativa de liberdade. A ausência de preocupação com a ressocialização do condenado é corroborada pela falta de prioridade do orçamento público quanto ao financiamento do Sistema Penitenciário.
O reflexo de tal falência é observado através dos motins carcerários, decorrentes da superlotação dos presídios; do ócio encontrado dentro do cárcere; da ausência de higiene, desrespeitando as condições mínimas para a dignidade da pessoa humana; da falta de recursos humanos; da corrupção dos servidores públicos, dentre outros fatores.
Essa penalização que ultrapassa a determinação contida na sentença penal condenatória impõe um sentimento de revolta que prejudica a meta ressocializadora e resulta diretamente nos elevados índices de reincidência. A própria sociedade, que não enxerga o recluso como sujeito de direitos, diante da tamanha indiferença e descaso, é responsável e diretamente atingida.
O índice de reincidência só deixará de ser alarmante quando a própria sociedade e o Poder Público se conscientizarem de que o sistema penal foi feito para atender a real função social da pena, que tem como finalidade primordial a humanização e ressocialização do recluso em consonância com a função declarada, através do tratamento digno.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
BITTENCOURT, Cesar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2011.
______.Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm>. Acesso: 10 mar. 2023.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Juspodivm, 2016.
GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. Rio de Janeiro: Saraiva, 2011.
LAZARI, Rafael; OLIVEIRA, Bruna Pinotti Garcia. Manual de Direitos Humanos. Salvador: Juspodivm, 2018.
MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 2011.
PERRANGELI, José Renato; ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
Advogada, Pós-Graduada em Direitos Humanos pela Faculdade CERS. Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AFONSO, Vivian Maraçat Anet. O sistema penal à luz do paradigma da criminologia crítica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 abr 2023, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61298/o-sistema-penal-luz-do-paradigma-da-criminologia-crtica. Acesso em: 23 dez 2024.
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