RESUMO: O estudo em comento visa a promover o debate de um tema ainda controvertido no âmbito do direito do consumidor, qual seja, a aplicabilidade de suas normas aos profissionais liberais, mais especificamente ao advogado, na relação com seus clientes. A partir de análise jurisprudencial e doutrinária, pretende-se fomentar a defesa da aplicabilidade da Lei Federal nº. 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, não obstante se reconheça alguns obstáculos aparentemente intransponíveis para a sua configuração. Para tanto, utilizou-se como base a doutrina consumerista, constitucional e o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, sem olvidar do exame do acervo jurisprudencial sobre o tema.
Palavras chave: Relação de consumo. Profissional Liberal. Código de Defesa do Consumidor.
1. INTRÓITO
Não há dúvidas de que, desde a edição da Lei Federal nº. 8.078/90 – o popular Código de Defesa do Consumidor (CDC) –, houve uma salutar evolução da percepção social no que tange à exigência da concretização de seus direitos nas relações consumeristas. Para boa parte da população, mormente a que vive nos grandes centros urbanos, tornou-se corriqueiro pleitear a exposição do preço das mercadorias nas prateleiras dos mercados, conferir de que ingredientes é feito um determinado produto e, até mesmo, perder o injustificável temor de se socorrer ao Poder Judiciário quando sentir que seus interesses foram lesados.
Consumidor, por definição legal[1], é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Para o CDC, produto é qualquer bem, sem restrições[2]. Serviço, por sua vez, é “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” [3].
Apesar das definições legais serem aparentemente compreensíveis, muito já se discutiu sobre a natureza consumerista da prestação dos serviços bancários, a consideração de revendedores como consumidores, dentre outras temáticas controversas. Com escopo semelhante, esse trabalho deter-se-á, brevemente, sobre o limiar entre o Código de Defesa do Consumidor e a prestação de serviços advocatícios. Tratar-se-ia esta de uma relação consumerista?
2. DO EMBATE JURISPRUDENCIAL, DOUTRINÁRIO E NORMATIVO ACERCA DA APLICABILIDADE DO CDC ÀS RELAÇÕES ENTRE ADVOGADO E CLIENTE.
A relevância social conferida ao advogado com o advento da Constituição Federal de 1988, que o elevou ao patamar de indispensabilidade à prestação jurisdicional (CF/88, Art. 133[4]), fomentou, como aduz José Afonso da Silva (2005, p. 295), a censura por parte dos profissionais de outras áreas: afinal, por que a Constituição exalta este profissional, elevando-o a uma posição de inviolabilidade de seus atos?
Rememorando os estudos de Ihering (2000, p. 41-43.), compreendemos que lutar pelo direito é um dever social. Confira-se:
Quem defende o seu direito, defende também, na esfera estreita desse direito, todo o direito. O interesse e as conseqüências do seu ato dilatam-se, portanto, muito para lá da sua pessoa. O interesse geral a que, então, se liga não é somente o interesse ideal de defender a autoridade e a majestade da lei, mas é o interesse real e muito prático, que em todos se manifesta e todos também compreende m, mesmo aqueles que daquele primeiro interesse não têm a menor inteligência, em que a ordem estabelecida da vida social, na qual cada um pela sua parte é interessado, seja assegurada e mantida.
(...)
Se é verdade, como tenho explicado, que no seu direito defende ao mesmo tempo a lei, e na lei a ordem indispensável da comunidade, quem contestará que esta defesa lhe compete como um dever para com a sociedade?
Longe de colocar a profissão em pauta acima de qualquer outra, o que se vislumbra é a indispensabilidade do direito à vida social, razão pela qual o advogado, enquanto ator do meio jurídico, teve sua habilitação profissional reputada como pressuposto essencial à formação de um dos Poderes do Estado: o Poder Judiciário (SILVA, 2005, p. 596). Não é outro o entendimento extraído dos brocardos ubi societas ibi jus e ubi jus ibi societas, que positivam a real interdependência entre o direito e a sociedade.
Compreendida a função do advogado no que tange à convivência e ordem e sociais, indispensáveis à formação de um dos Poderes que dão sustentáculo ao Estado, qual seja, o Poder Judiciário, bem como a importância deste para a concretização da justiça social, adentre-se ao estudo proposto no exórdio deste trabalho.
O advogado, enquanto prestador de serviços, tem sua atividade profissional calcada na autonomia, com poder decisório próprio, sem subordinação, através da prestação de serviços que é, quase sempre, pessoal.[5]
Segundo Rizzatto Nunes (2009, p. 361):
Acresça-se que o profissional liberal deve ser caracterizado pela atividade que exerce e, ainda, que a prerrogativa estabelecida no CDC é pessoal, não gerando o mesmo benefício ao prestador de serviço que age como empreendedor que assume risco, com cálculo de custo-benefício e oferta de massa etc., elementos típicos da exploração do mercado de consumo.
O cliente, ao contratar um profissional liberal calcado na fidúcia, firmando um contrato intuitu personae, deve ter a seu favor a regência do Código de Defesa do Consumidor para promover a proteção capaz de colocá-lo em um paradigma isonômico perante o prestador de serviço contratado, contrabalançando sua reconhecida hipossuficiência.
O advogado, enquanto profissional liberal e, concomitantemente, prestador de serviços, cujo labor se configura como atividade, em regra, de meio[6], detentor de um diploma normativo específico para a disciplina de sua categoria (Lei 8.906/94), tem o manto do CDC sobre seus contratos como uma incógnita na jurisprudência.
Os Tribunais, quanto à feição consumerista da prestação de serviços do advogado, prestação essa feita pessoalmente, estando obstada a massificação de seu labor, têm adotado posicionamentos díspares, mas mostra-se possível visualizar a preeminência de uma corrente.
Grande parte da jurisprudência já se pronunciou em sentido negativo à incidência do Código de Defesa do Consumidor nas relações entre advogados e respectivos clientes, in verbis:
RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. LEGITIMIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. RECONHECIMENTO.
1. As normas protetivas dos direitos do consumidor não se prestam a regular as relações derivadas de contrato de prestação de serviços de advocacia, regidas por legislação própria. Precedentes.
2. O contrato foi firmado por pessoa maior e capaz, estando os honorários advocatícios estabelecidos dentro de parâmetros razoáveis, tudo a indicar a validade do negócio jurídico.
3. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 914105 / GO. Min. Relator Fernando Gonçalves., 4ª Turma. Publ. no DJe em 22/09/2008. Grifos acrescidos).[7]
AGRAVO INTERNO - LEI 9.756/98. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE OU REVISÃO DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE DO CDC. Inaplicável, no caso, o Código de Defesa do Consumidor. Precedentes do colendo STJ. Incidente dos autos de ação declaratória de nulidade ou revisão do contrato de prestação de serviços advocatícios, aplicável, na espécie, o art. 100, inc. IV, alínea a do CPC. Recurso interno que combate decisão monocrática pretendendo a manutenção da decisão hostilizada. Pacificação do entendimento da 16ª Câmara Cível sobre a possibilidade da decisão monocrática, com o reexame através do agravo interno. AGRAVO DESPROVIDO. (Agravo Nº 70020865572, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Helena Ruppenthal Cunha, Julgado em 22/08/2007, grifo nosso).
De outro modo, outros Tribunais vêm reconhecida uma relação de consumo nos contratos firmados entre advogado e cliente:
EMENTA: HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. COBRANÇA. INCOMPETÊNCIA. A relação mantida entre advogado e cliente é de prestação de serviços, inserindo-se nas relações de consumo, conforme o disposto no art. 3º do CDC. Não se insere, portanto, na competência desta Justiça Especializada, nos termos do previsto no inciso I do artigo 114 da Constituição Federal. (TRT 4ª Região. Acórdão do processo 0301000-28.2007.5.04.0018 (RO). Des. Rel. Emílio Papaléo Zin, 6º Turma. Julgado em 02.12.2009, grifamos).
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - ADVOGADO - INADIMPLEMENTO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - COMPETÊNCIA TERRITORIAL - RELAÇÃO SE SUBMETENDO AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, NO QUE NÃO ENCONTRAR DISCIPLINA ESPECÍFICA NO DIPLOMA QUE REGE A ATIVIDADE - POSSIBILIDADE DE A DEMANDA SER PROPOSTA NO FORO DO DOMICÍLIO DO CLIENTE, SOBRETUDO EM HAVENDO MANIFESTA DESPROPORÇÃO DE FORÇAS ENTRE ELE E O PROFISSIONAL. É certo, como argumentam alguns, que a atividade realizada pelo advogado se submete a estatuto jurídico próprio, a Lei 8.906/94. Porém, tal circunstância, as prerrogativas concedidas pelo respectivo Estatuto à nobre classe dos advogados, a vedação que se lhes impõe à captação de causas ou à utilização de agenciador etc, nada disso é pretexto jurídico para negar a incidência do Código de Defesa do Consumidor às relações firmadas entre tais profissionais e respectivos clientes, obviamente no que não se subordinarem elas à específica disciplina do Estatuto do Advogado. Preliminar afastada, agravo desprovido. (TJ/SP. Agravo de Instrumento 992090858904. Des. Rel. Ricardo Pessoa de Mello Belli. 25ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 27/10/2009, grifos acrescidos).
O fato de o advogado prestar um serviço público, ainda quando exerce uma atividade privada (Lei 8.906/94, Art. 2º, § 1º), bem como de executar uma função de relevância social constitucional (CF/88, Art. 133) não o obsta de ser um fornecedor de serviços. Se assim o fosse, hospitais e escolas também estariam analogamente excluídos do entendimento aqui abordado, afinal, são agentes particulares no exercício de serviços públicos.
No entanto, a relação consumerista, para que se configure, não pode prescindir da presença de um fornecedor, um serviço prestado por este e um consumidor[8]. O fornecedor, especificamente, segundo o art. 3º do CDC, deve ser concebido como:
Toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Para que o advogado possa ser considerado um prestador de serviços regido pelo Código de Defesa do Consumidor, teria que se considerar a massificação de seu labor, a mercantilização do exercício da advocacia, o que não se vislumbra possível, como se infere da Lei 8.906/94, que disciplina o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos advogados do Brasil.
Essa é a crítica comumente feita que obsta a aplicação do CDC às relações entre advogado e cliente. Os profissionais liberais da área da advocacia não exercem a prestação de serviço em massa, não se coadunando com a organização das atividades consumeristas do mercado como um todo. Estes profissionais possuem impedimentos para tanto, consubstanciados no diploma normativo que rege sua atuação.
Nessa seara, confira-se o que ensina Rizzatto Nunes (2009, p. 356)
Eles (os advogados), que inclusive têm no seu mister uma função constitucional, como se sabe, estão impedidos de fazer publicidade nos moldes do mercado de consumo. Logo, pelo menos no que diz respeito ao exemplo do advogado – e qualquer outra profissão com o mesmo impedimento – não resta dúvida de que não pode exercer atividade de prestação de serviço massificada.
A impossibilidade de promoverem a publicidade de seus serviços com amplitude, ou seja, de comercializarem seus serviços, obstaria a caracterização da prestação de serviços advocatícios nos moldes do art. 3º do CDC, transcrito alhures.
Outrossim, a especificidade do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) em detrimento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) é tida como razão para afastar a incidência deste último diploma legal, conforme ensina o brocardo lex specialis derogat generali.[9]
Nada obstante, o Código de Defesa do Consumidor deve ser tido como meio hábil a reger as relações entre os profissionais liberais em geral e seus clientes, principalmente em relação à natureza intuitu personae da prestação de seus serviços. Quanto à advocacia, diante da divergência de posicionamento dos tribunais observada acima, percebe-se que ainda há que se dirimir os conflitos entre as leis especiais que a regem e o CDC, muito embora não se veja óbice à disciplina da legislação consumerista para imprimir, principalmente, seus princípios da boa-fé, da transparência e o direito à informação, essenciais ao exercício de qualquer atividade liberal.
A natureza eminentemente contratual[10] da relação entre advogado e cliente parece respaldar a aplicação do CDC à mesma. O advogado, embora não exerça atividade de fim, em regra, deve prezar pela adoção de todos os meios legais disponíveis para a proteção de seu cliente. Não o fazendo, este poderá dispor do Código de Defesa do Consumidor em razão do prejuízo percebido.
Nesse âmbito, entende-se que profissionais liberais podem e devem ser caracterizados como prestadores de serviço abarcados pelo CDC. O que os diferenciará frente às pessoas jurídicas é a natureza de suas responsabilidades. Àqueles, resta a responsabilidade subjetiva; a estes, a objetiva (CDC, Art. 14, §4º e Lei 8.906/94, art. 32).
Não é outro o entendimento de Sérgio Cavalieri Filho (2003, p. 491):
Conforme já ressaltado, os profissionais liberais, como prestadores de serviços que são, não estão fora da disciplina do Código do Consumidor. A única exceção que se lhes abriu foi quanto à responsabilidade objetiva. E se foi preciso estabelecer essa exceção é porque estão subordinados aos demais princípios do Código do Consumidor – informação, transparência, boa-fé, inversão do ônus da prova etc. (Grifos acrescidos)
Há, no entanto, de ser atentado que, em alguns casos, a responsabilidade subjetiva preconizada pelo Código de Defesa do Consumidor aos profissionais liberais poderá ser relativizada. Essa exceção à norma do §4º do art. 14 do CDC poderá ser vislumbrada, por exemplo, quando um profissional liberal exercer seu mister para uma prestadora de serviços que explora o mercado de consumo. No caso, como aponta Rizzatto Nunes (2009, 358), a prerrogativa conferida aos profissionais liberais poderia ser invocada por seus empregadores para a esquiva da responsabilidade objetiva que lhes é inerente.
Nessa seara, se mostra possível inferir que o profissional liberal, nas situações em que atue em contratos firmados sem a natureza intuitu personae, de forma massificada, com prestação de serviço em larga escala e fazendo uso de instrumentos como a publicidade, não será beneficiário da norma extraída do §4º do art. 14 do CDC em razão da descaracterização de sua atividade liberal. Essa situação pode ser vislumbrada, em alguns casos, na constituição de pessoas jurídicas, mas não é a regra.
Como bem lembra Rizzatto Nunes, não é apenas a constituição de uma pessoa jurídica, tal qual comumente se vê na advocacia, que, automaticamente, descaracterizará a prestação do serviço do profissional liberal. Mostra-se perfeitamente possível a manutenção da identificação do cliente com o seu procurador e a pessoalidade de um serviço prestado sem massificação.
2.1 – Do posicionamento da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais ( SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho
Corroborando com o entendimento apresentado neste trabalho, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Colendo Tribunal Superior do Trabalho consolidou posicionamento acerca da incompetência da Justiça do Trabalho para a apreciação de pleitos de honorários advocatícios por reconhecer a existência de relação de consumo entre este profissional liberal e seus clientes.
Confira-se a ementa do acórdão proferido no Recurso de Revista nº. 781/2005-005-04-00.5:
RECURSO DE EMBARGOS NA VIGÊNCIA ATUAL DO ARTIGO 894, II, DA CLT. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE MANDATO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. RELAÇÃO DE TRABALHO X RELAÇÃO DE CONSUMO. DESPROVIMENTO. A Justiça do Trabalho é incompetente para julgar a presente ação, em que o advogado, profissional liberal, busca o recebimento dos honorários advocatícios pelos serviços executados. Trata-se de uma relação de consumo, e não de trabalho, sendo, portanto, de competência da Justiça Comum. In casu , o trabalho não é o cerne do contrato, mas sim um bem de consumo que se traduziu nele, que é o resultado esperado diante de um contrato realizado entre as partes, qual seja, prestação de serviços de advocacia como profissional liberal. Assim, a competência da Justiça do Trabalho estará assegurada apenas quando não houver, pela natureza dos serviços realizados, relação contratual de consumo. A apreciação da matéria, que nos parece mais coerente, deve levar em consideração, pelo caráter bifronte da relação, a regra da bilateralidade da competência (Ministro João Oreste Dalazen), pela via da ação de reconvenção, em que o juiz competente para a ação, também o deve ser para a reconvenção. Recurso de embargos conhecido e desprovido. (TST - E-RR - 781/2005-005-04-00.5. Ministro Rel. Aloysio Corrêa da Veiga. Publicado no DEJT em 20/11/2009. Grifos acrescidos)
No mesmo sentido, precedente da 6ª Turma do Colendo Tribunal Superior do Trabalho:
RECURSO DE REVISTA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. EXECUÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CONTRATO DE MANDATO. RELAÇÃO DE TRABALHO X RELAÇÃO DE CONSUMO. A Justiça do Trabalho é incompetente para julgar a presente ação, em que o advogado, profissional liberal, busca o recebimento dos honorários advocatícios pelos serviços executados. Trata-se de uma relação de consumo, e não de trabalho, sendo, portanto, de competência da Justiça Comum. In casu , o trabalho não é o cerne do contrato, mas sim um bem de consumo que se traduziu nele, que é o resultado esperado diante de um contrato realizado entre as partes, qual seja, prestação de serviços de advocacia como profissional liberal. Assim, a competência da Justiça do Trabalho estará assegurada apenas quando não houver, pela natureza dos serviços realizados, relação contratual de consumo. A apreciação da matéria, que nos parece mais coerente, deve levar em consideração, pelo caráter bifronte da relação, a regra da bilateralidade da competência (Ministro João Oreste Dalazen), pela via da ação de reconvenção, em que o juiz competente para a ação, também o deve ser para a reconvenção. (Ministro Aloysio Corrêa da Veiga). Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido" (TST. RR-50400-29.1998.5.05.0291, 6ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Cilene Ferreira Amaro Santos, DEJT 21/11/2014).
Assim como nas relações trabalhistas, nas de índole consumerista circunscreve-se uma tutela protetiva em benefício do consumidor, disciplinada pelo Código de Defesa do Consumidor quando direciona suas normas à proteção de todo aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2º).
À medida em que se reconheça que o advogado, embora não possa asseverar com segurança a consecução do fim almejado por seu cliente (haja vista que realiza, via de regra, atividade de meio), tem o dever de proceder com toda a diligência para tanto com o escopo de alcançá-lo, mostra-se cristalino que a relação configurada entre este profissional liberal e seu cliente apresenta cunho consumerista, já que o trabalho não figura como o cerne do contrato firmado, mas, sim, o resultado que se busca.
Ademais, se este profissional incorre em desídia e negligência no atendimento ao serviço solicitado por seu cliente, não há como afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor para preservá-lo ante a posição de hipossuficiência que exibe perante o prestador de serviços contratado.
3 – DO CONFLITO DE ESPECIALIDADE ENTRE O CDC E O ESTATUTO DA OAB
Colocando-se em embate os diplomas que regem a relação consumerista e a atividade advocatícia, Leis nº 8.078/90 e 8.906/94 respectivamente, alguns apontamentos vêem à tona.
A priori, percebe-se que, na análise da especificidade, a Lei n° 8.906/94 seria a mais apta a disciplinar o exercício da advocacia, seus pormenores e peculiaridades em todos os procedimentos. Por conseguinte, a existência de um diploma próprio e mais recente para a regência de sua atividade excluiria o advogado da incidência de outro designado à tutela de matéria díspar. Não é outra a lição que se colhe da famigerada máxima lex specialis derogat generali.[11]
Não obstante, mostra-se imprescindível que se proceda a uma interpretação mais ampla para compreender que a especificidade do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, e até mesmo do Código de Ética da OAB, não é suficiente para a tutela de uma relação jurídica que não envolve apenas o advogado.
Enquanto este dispõe de diploma normativo específico para designação de seu labor, o cliente, enquanto consumidor, goza das normas extraídas do Código de Defesa do Consumidor para sua proteção por sujeitar-se a relação cuja notória fragilidade e vulnerabilidade repousa em si próprio.
Diante disso, observa-se que as especificidades dos diplomas em comento se coadunam para a regência das relações entre o advogado e seu cliente e para as que envolvem este e o prestador de serviços com quem firma contrato concomitantemente.
Constatando-se esta indissociabilidade, crê-se que apenas a harmonização da aplicabilidade destes dois diplomas normativos seria capaz de, honestamente, garantir a independência do advogado no exercício de sua profissão e a ampla proteção ao cliente contra eventuais descasos durante a prestação de serviços contratada, respeitando-se possíveis incompatibilidades.
Não pairam dúvidas, todavia, de que se deva buscar a aplicabilidade das normas mais benéficas ao consumidor sempre que possível com o fito de promover o dever constitucional (Art. 5º, XXXII, CF/88) consubstanciado na Lei Federal nº. 8.078/90.
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, depreende-se que a existência do Estatuto (Lei 8.906/94) não desfaz o vínculo defendido, uma vez que se trata de sistema normativo regulamentador da atividade advocatícia e de seus pormenores organizacionais, éticos e disciplinares, jamais de instrumento protetivo à parte não-abordada, no caso, o consumidor. A alegação de possível conflito em relação à especialidade das normas é mero subterfúgio prejudicial ao pólo mais fraco: o cliente.
A prestação de serviços do advogado, enquanto profissional liberal, merece ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, com as especificidades e ressalvas que se façam necessárias a fim de que, ao promover a proteção ao cliente, não contrarie, concomitantemente, a Lei 8.906/94 e suas disposições especiais.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, José Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003.
CAVAZZANI, Ricardo Duarte. Responsabilidade civil do advogado. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1953, 5 nov. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11927>. Acesso em: 18 abr. 2023.
FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
MANICA, Giovani Carter. A responsabilidade civil do advogado perante seu cliente por ato praticado no exercício da profissão . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1427, 29 maio 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9942>. Acesso em: 18 abr. 2023.
NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.
[1] Código de Defesa do Consumidor, art. 2º.
[2] Idem, art. 3º, §1.
[3] Código de Defesa do Consumidor, art. 3º, caput.
[4] Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
[5] Nunes, Rizzatto. 2009, p.359.
[6] A prestação de serviços do advogado figura como de meio, em regra, em razão da impossibilidade da previsão do resultado almejado no meio judicial. Afinal, ao advogado, cabe a postulação; ao juiz, cabe o julgamento e, ao promotor, cabe a fiscalização. Dessa forma, a ele apenas compete a realização de seu trabalho com toda a diligência possível, sem, contudo, lhe ser possível assegurar o resultado final. No entanto, quando atua extrajudicialmente, na realização de contratos e emissão de pareceres, por exemplo, sua atividade deve ser, ao contrário, de fim.
[7] O Superior Tribunal de Justiça, conforme aponta julgado de 20.04.2004, manifestava-se a favor da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações entre advogado e cliente. Conferir REsp 364168 / SE, Min. Relator Antônio de Pádua Ribeiro, 3ª Turma. Publ. no DJ em 21/06/2004, p. 215.
[8] “Haverá relação de consumo sempre que se puder identificar num dos pólos da relação o consumidor, no outro, o fornecedor, ambos transacionando produtos e serviços” Nunes, 2009, p. 71.
[9] Nesse sentido, CAVAZZANI (2007): “Ora, se o princípio adotado pelo CDC é o da responsabilidade objetiva, ao estabelecer a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais, afastou-os, como exceção, do seu âmbito de abrangência, reconhecendo que estes profissionais são regidos por estatuto próprio, como ocorre com os advogados, na consideração de que a lei que estabeleça disposições gerais (CDC) não revoga lei especial, ou seja, a lei específica que regulamenta determinadas profissões liberais (LICC, art. 2°, § 2°)” Do mesmo modo, Raimundo Cezar Britto Aragão, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, “Não creio haver divergência quanto a esta distinção, já que o Código de Defesa do Consumidor se apresenta como uma norma de caráter universal, moldado pela generalidade; E o Estatuto da OAB regula, especificamente, a atividade desenvolvida pelo profissional da advocacia.” In “Britto vai a CNMP contra promotor que determina honorários em SC”, disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=11084>. Acesso em 18.04.2023.
[10] Mandato Judicial, art. 692 do Código Civil de 2002, cujo instrumento é a procuração, segundo art. 653, parte final, do mesmo diploma. Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2008, p. 386), “Enquanto os profissionais liberais são, em geral, apenas prestadores de serviços, o advogado é, ao mesmo tempo, mandatário e prestador de serviços”.
[11] Corrente defendida por Raimundo Cezar Britto Aragão, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, conforme se vê em reclamação feita ao Conselho Nacional do Ministério Público que aborda a inaplicabilidade do CDC ao mister advocatício. Conferir “Britto vai a CNMP contra promotor que determina honorários em SC”, disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=11084>. Acesso em 18.04.2023.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura do Trabalho da 21ª Região (ESMAT-21). Analista Judiciária no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEITE, THAISSA LAUAR. Feição consumerista da prestação de serviços advocatícios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 abr 2023, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61341/feio-consumerista-da-prestao-de-servios-advocatcios. Acesso em: 23 dez 2024.
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