RESUMO: Este artigo tem como objetivo delinear o conceito de escravidão contemporânea, em contraposição ao conceito tradicional de escravidão, abordando, na sequência, os diplomas normativos internacionais e nacionais que proscrevem a prática. Por fim, analisar-se-á a atuação do Ministério Público do Trabalho na prevenção, combate e erradicação dessa chaga denominada escravidão.
INTRODUÇÃO
A escravidão contemporânea consiste no estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exerce, total ou parcialmente, algum dos atributos do direito de propriedade, com menoscabo à dignidade do trabalhador e coisificação do ser humano. Para a sua configuração é prescindível o documento formal relacionado à escravidão tradicional (denominada chattel).
Para a correta compreensão da escravidão contemporânea tem-se equiparado o conceito de trabalho degradante - aquele que implica ultraje à dignidade da pessoa humana, pela subtração de direitos fundamentais básicos do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança, alimentação e moradia - ao de trabalho escravo. Tal equiparação é, conforme abalizada doutrina:
rigorosamente justa e apropriada, estando em sintonia com as mais elevadas aspirações da humanidade e da sociedade brasileira, buscando-se prevenir e reprimir a conduta consistente em tratar seres humanos como coisas, como meros insumos e instrumentos de produção, que podem ser descartados sem cerimônia, em nome do lucro[1].
Ao retratar as mazelas da escravidão contemporânea, sublinha brilhantemente Tiago Muniz Cavalcanti:
Hoje, a dor da escravidão está na alma. Está na sujeição pessoal, na submissão absoluta, nas condições precárias de habitação, na inexistência de instalações sanitárias, na falta de água potável, no padrão alimentar negativo, na falta de higiene, nas jornadas de sol a sol, na ausência de descansos, na exposição a riscos de doenças, de eletrocussão, de incêndios. Está em viver com bichos, com eles compartilhando bebida, comida e local de moradia. Está na situação de indigência, de miséria, de penúria. Enfim, está na coisificação do homem: um objeto descartável na geração de riquezas econômicas.[2]
Consoante já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a escravidão contemporânea pode se manifestar por intermédio das seguintes condutas: a) restrição ou controle da autonomia individual; b) perda ou restrição da liberdade de movimento de uma pessoa; c) obtenção de um benefício por parte do perpetrador; d) ausência de consentimento ou de livre arbítrio da vítima, ou sua impossibilidade ou irrelevância devido à ameaça de uso da violência ou outras formas de coerção, o medo de violência, fraude ou falsas promessas; e) uso de violência física ou psicológica; f) posição de vulnerabilidade da vítima; g) detenção ou cativeiro, i) exploração.
1. NORMATIVO INTERNACIONAL
Trata-se de prática proscrita no contexto internacional, constituindo, inclusive, princípio fundamental da Organização Internacional do Trabalho (OIT) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório (art. 2º, “b”, da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho de 1998 – “core obligation”).
Todos os Estados Membros da OIT assumem o compromisso derivado do fato de pertencerem à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, o referido princípio fundamental, independentemente de terem ratificado as Convenções Fundamentais 29 e 105, que versam, respectivamente, sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório e sobre Abolição do Trabalho Forçado.
As modernas práticas escravagistas são veementemente combatidas, também, pelo Protocolo de 2014, que atualiza a Convenção 29 da OIT, bem como pela Recomendação sobre Medidas Suplementares para a Supressão Efetiva do Trabalho Forçado (Recomendação nº 203 de 2014). O Protocolo de 2014 “reconhece a defasagem do conceito da Convenção 29 e alude a novas formas de trabalho forçado, bem como a novas formas de exploração (exploração sexual, tráfico de pessoas)”[3].
A proibição da escravidão, em todas as suas facetas, constitui, também, norma imperativa de direito internacional, conceituada como aquela aceita e reconhecida pela comunidade internacional como um todo e da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional da mesma natureza (arts. 53 e 64 da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados).
A prática da escravidão configura, igualmente, crime contra a humanidade (art. 7º, I, “c”, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional) e está em compasso com diversos diplomas de direito internacional dos direitos humanos, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. IV e V), da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 6º), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (arts. 7º e 8º), da Declaração Sociolaboral do Mercosul (art. 8º), das Convenções de Genebra sobre a Abolição da Escravatura de 1926 e 1956 e da agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (objetivo 8.7).
A escravidão contemporânea está dissonante, também, com os diplomas normativos internos, que homenageia a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, a busca do pleno emprego e a função social da propriedade, que deve atender às disposições que regulam o trabalho e que favoreçam o bem-estar do trabalhador (arts. 1º, III e IV; 5º, XXIII, 170, III e VIII e 183, III e IV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
Ademais, a ordem jurídica nacional veda o tratamento desumano ou degradante, bem como a instituição de penas de trabalho forçado ou obrigatório (art. 5º, III e XLVII, “c”, da CRFB/88), o que, incontraditavelmente, reforça o comprometimento da ordem jurídica interna com o banimento da escravidão em suas múltiplas faces.
Acrescente-se, também, que o Estado brasileiro, após o acordo de solução amistosa celebrado no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão IDH), em outubro de 2003, no caso José Pereira, assumiu o copromisso de adotar medidas de prevenção, combate e erradicação do trabalho escravo.
Consoante se extrai do Relatório da Comissão IDH nº 95/03 do Caso 11.289/ Solução Amistosa José Pereira vs Brasil, José Pereira foi gravemente ferido e outro trabalhador rural foi morto quando ambos tentaram escapar, em 1989, da Fazenda “Espirito Santo”, para onde haviam sido atraídos com falsas promessas sobre condições de trabalho, e terminaram sendo submetidos a trabalhos forçados e condições degradantes de labor, situação que sofreram juntamente com 60 outros trabalhadores dessa fazenda.
No intuito de implementar medidas de prevenção, combate e erradicação do trabalho escravo, o ordenamento pátrio conferiu nova redação ao art. 149 do Código Penal e tipificou como crimes as condutas de submeter alguém a trabalhos forçados; jornadas exaustivas; condições degradantes de trabalho; restrição da liberdade de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador (servidão por dívidas); restrição de transporte; apoderamento de documentos pessoais e manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho (as três últimas condutas têm por fim reter o trabalhador no local de trabalho).
Tais conceitos estão pormenorizados na Portaria 671/2021 do MTP e nas Orientações 03 e 04 da Coordenadoria Nacional de Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONAETE), no âmbito do Ministério Público do Trabalho (MPT).
A jornada de trabalho exaustiva é a que, por circunstâncias de intensidade, frequência, desgaste ou outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua dignidade, e decorra de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua vontade. (Orientação 3 da CONAETE).
Condições degradantes de trabalho são as que configuram desprezo à dignidade da pessoa humana, pelo descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança, moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade, decorrentes de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a vontade do trabalhador. (Orientação 4 da CONAETE).
Consoante já decidiu o Supremo Tribunal Federal, para a caracterização da redução a condição análogo à de escravo, é desnecessária coação direta contra a liberdade de ir e vir, bastando a submissão da vítima a uma das condutas alternativas previstas no tipo penal:
EMENTA. PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. (STF – Pleno – Inq. 3214/AL – Red. p/ acórdão Min. Rosa Weber – DJe 12/11/2012 – grifos nossos)
Na mesma diretiva, inclina-se a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. LABOR EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CARACTERIZAÇÃO. DESNECESSIDADE DE RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. 1. Hipótese em que a Corte de origem, a despeito de constatar “o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável”, afasta a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, ao entendimento de que, “para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico ‘dignidade’, é imprescindível ofensa à ‘liberdade’, consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender”. 2. Todavia, o art. 149 do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 10.803/2003, não exige o concurso da restrição à liberdade de locomoção para a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, mas elenca condutas alternativas que, isoladamente, são suficientes à configuração do tipo penal – dentre as quais “sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho”. 3. A matéria já foi examinada pelo Plenário do STF: “PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima 'a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva' ou 'a condições degradantes de trabalho', condutas alternativas previstas no tipo penal.” (Inq. 3.412/AL, Plenário, Redatora Ministra. Rosa Weber, julgado em 29/3/2012). Há também precedente desta Corte e reiterados julgados do STJ nesse mesmo sentido. 4. No caso, delineado o trabalho em condições degradantes, a descaracterização do trabalho em condições análogas a de escravo viola o art. 149 do Código Penal. Recurso de revista conhecido e provido." (TST – 1a Turma – RR-450-57.2017.5.23.0041 – Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann – Julgado em 27/04/2022 – grifos nossos)
Nessa mesma intelectiva, pontua assertivamente Tiago Muniz Cavalcanti:
Engana-se, ademais, quem vincula a escravidão à restrição da liberdade. Desde os seus primórdios, cerca de 7000 aC, até os dias atuais, a escravidão não diz respeito à limitação de locomoção, referindo-se na verdade à coisificação, à mercantilização, à apropriação, à exploração do homem pelo homem. E não, necessariamente, ao aprisionamento. (...). Na escravidão contemporânea, as correntes são ainda mais ocultas. Os grilhões são invisíveis: a miséria, a falta de oportunidade, a vulnerabilidade econômica e social. Mais do que outrora, a restrição da liberdade deixa de ser o instrumento ardil utilizado pelo explorador, pois a própria situação de indigência da vítima se encarrega de submetê-la a condições subumanas de trabalho[4].
Adite-se, outrossim, que, em junho de 2014, a Emenda Constitucional nº 81 alterou a redação do art. 243 da CRFB para dispor que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular. Tal alteração legislativa, não obstante as discussões em derredor de sua eficácia, representou inegável avanço no combate, prevenção e erradicação do trabalho escravo no Brasil.
Dessume-se, portanto, que legislação brasileira é avançada na conceituação e pormenorização das formas modernas de escravidão. Contudo, “mesmo dispondo de aperfeiçoada normativa, o Brasil ainda sofre com a incidência de formas contemporâneas de trabalho escravo em índices inadmissíveis. Não bastasse isso, ultimamente tornaram-se sistemáticas as tentativas de retrocesso normativo”[5].
3. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
As providências não penais concernentes à prevenção e à repressão da escravidão contemporânea são alvo de atuação prioritária do Ministério Público do Trabalho (MPT), especialmente por intermédio de sua Coordenadoria Temática, a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONAETE).
Nesse intento, o MPT atua judicial e extrajudicialmente. Assim, promove investigação em inquérito civil (IC); celebra termos de ajustamento de conduta (TAC); acompanha, em atuação interinstitucional, atividades do Grupo Especial de Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo; bem como ajuíza ações civis públicas ou adota outra medida judicial cabível.
Nas medidas judiciais intentadas pelo MPT, bem como nos termos de ajustamento de conduta celebrados perante a instituição, têm sido contempladas obrigações de fazer e não fazer que constituem tutela inibitória (arts. 497, p. único; 536 e 537 do CPC), além de cominação de indenização por dano moral individual (art. 223-C da CLT) e coletivo (arts. 5º, V e X, da CRFB/88; 6º, VI e VII, do CDC e 1º, 3º e 13 da Lei 7.347/85), especialmente levando-se em consideração o ultraje à projeção coletiva da dignidade humana, bem como a concorrência desleal provocadora de dumping social (art. 173, § 4º, da CRFB/88).
ORIENTAÇÃO N. 05 da CONAETE: “Trabalho em condições análogas às de escravo. Violação à dignidade da pessoa humana e ao patrimônio ético-moral da sociedade, ensejando danos morais individuais e coletivos. Responsabilização do explorador. A exploração do trabalho em condições análogas às de escravo ofende não somente a direitos individuais do lesado, mas também e, fundamentalmente, aos interesses difusos de toda a sociedade brasileira. Tratando-se de grave violação à dignidade da pessoa humana e ao patrimônio ético-moral da sociedade, o Membro do Ministério Público Trabalho, observadas as peculiaridades do caso concreto, promoverá a responsabilização do explorador mediante a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta e /ou a propositura de Ação Civil Pública, ambos os instrumentos contendo obrigação de ressarcimento dos danos morais individuais e/ou coletivos”.
No que concerne à concorrência desleal provocadora de dumping social nas situações de escravidão contemporânea, colhem-se percucientes lições doutrinárias:
(...) Perfeitamente possível, em abstrato, que a supressão de direitos trabalhistas em larga escala, e a exploração do trabalho escravo em particular, venham a caracterizar infração à ordem econômica e abuso do poder econômico, em sendo obtido com isso prejuízo à concorrência e perturbação ao mercado (...)[6].
Não são apenas razões de ordem humanitária que empolgam o combate ao trabalho escravo; são, também, razões de ordem econômica: trata-se de proteger o empregador cumpridor da legislação da concorrência desleal de quem adrede a inobserva[7].
Considerando-se as condições sobrepostas de vulnerabilidade e opressão (interseccionalidade) a que as vítimas de trabalho escravo contemporâneo estão expostas, o resgate - rescisão indireta do contrato de trabalho sucedida do retorno do trabalhador escravizado ao local de origem às expensas do empregador - é feito por intermédio de equipe multidisciplinar, com assistência social e atendimento psicológico.
Também é devida a inserção do trabalhador resgatado em programa de seguro-desemprego (art. 2º-C da Lei 7.998/90) e encaminhamento para curso de qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho (art. 2º-C, § 1º, da Lei 7.998/90). Na atuação conjunta de resgate de trabalhadores escravizados, incumbe aos Auditores Fiscais do Trabalho a lavratura de autos de infração, bem como a imposição de multas.
É cabível, ainda, a inclusão do empregador no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas às de escravo, conforme autorizam a Portaria Interministerial nº 04/2016 – reconhecida como constitucional pelo STF na ADPF nº 504 – e a Resolução 189/2021 do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho, que institui a Lista Nacional de Condenações Judiciais Relacionadas ao Tráfico de Pessoas e ao Trabalho análogo ao de escravo em medidas judiciais intentadas pelo MPT.
A imprescritibilidade da conduta, reconhecida no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos nos casos José Pereira e Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, subsidia a atuação do MPT no pleito de verbas rescisórias devidas ao trabalhador resgatado, mesmo depois de ultrapassados os prazos prescricionais bienal e quinquenal. Isso porque o art. 7º, XXIX, da CRFB/88, é inaplicável nos casos de violações de direitos fundamentais que ostentam a característica de indisponibilidade.
O caso Fazenda Brasil Verde vs Brasil se refere à prática de trabalho forçado e servidão por dívidas na Fazenda Brasil Verde, localizada no Estado do Pará. Os fatos do caso se enquadravam em um contexto no qual milhares de trabalhadores eram submetidos anualmente a trabalho escravo, a ameaças de morte caso abandonassem a fazenda, ao impedimento de saírem livremente, a falta de salário ou a existência de um salário ínfimo, o endividamento com o fazendeiro, a falta de moradia, alimentação e saúde dignas (relatório da sentença proferida pela Corte IDH).
Quanto à imprescritibilidade do delito de escravidão, a Corte IDH concluiu que a aplicação da figura da prescrição aos delitos que representam graves violações de direitos humanos implica violação ao artigo 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, a Corte constatou o caráter imprescritível do delito de escravidão e de suas formas análogas, como consequência de seu caráter de norma imperativa de direito intrenacional (jus cogens).
Ademais, a imprescritibilidade esta fundamentada no fato de a escravidão estar tipificada como crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível (art. 29 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional). Sustenta-se que, se mesmo na seara penal, em que existe a possibilidade de restrição da liberdade de ir e vir, reconhece-se a imprescritibilidade concernente à escravidão, “com muito maior razão esta deve ser reconhecida na órbita trabalhista, em que são atingidos direitos do empregado de caráter meramente patrimonial”[8].
Em tais situações, não se admite seja imputada à pessoa escravizada a inércia para provocação dos órgãos e instituições que compõem o sistema de Justiça. Isso porque a hipossuficiência e completa sujeição ao explorador inviabilizam que a vítima manifeste, “com plena autonomia, sua vontade e impede ou dificulta sobremaneira o exercício do direito de ação (aplicabilidade do art. 198, I, do CC, e, por analogia, dos entendimentos da Súmula 278 do STJ, OJ 375 da SDI-1 do TST e do art. 440 da CLT)”[9].
Outros argumentos, invocados pelo MPT, para fundamentar a imprescritibilidade das pretensões relacionadas à escravidão contemporânea são: a) a conduta de submeter alguém a condição análoga a de escravo implica negação ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CR/88), insuscetível, portanto, de sujeição a prazo prescricional; b) a escravidão moderna está intrinsecamente conectada à manutenção do racismo, cuja imprescritibilidade está estampada no art. 5º, XLII, da CRFB/88[10].
A atuação do parquet trabalhista tem sido pautada, também, pela identificação do poder econômico relevante em determinadas cadeias produtivas e o seu corolário envolvimento nas intercorrências de trabalho escravo ocorridas na cadeia. Assim, “o deslocamento do enfoque nas pequenas carvoarias para as grandes siderúrgicas, das pequenas oficinas para as grandes grifes, dos pequenos prestadores para as grandes empresas, tem gerado efeitos virtuosos em cascata, possibilitando eficiência muito maior à atuação dos órgãos de fiscalização”[11].
Para respaldar o enfrentamento da escravidão contemporânea em nível de cadeia produtiva, o MPT tem lançado mão de algumas teorias, algumas fundadas na culpa do detentor do poder econômico relevante, outras estadeadas na responsabilidade objetiva. Dentre aquelas fundadas na culpa, pode-se mencionar: a) teoria da cegueira deliberada ou do avestruz, a qual responsabiliza aquele que deliberadamente se coloca em condição de ignorância em face de uma situação em relação à qual detinha dever razoável de conhecer; b) teoria do domínio do fato, a qual embasa a noção de autoria mediata daquele que tem pleno controle sobre as ações implementadas pelo executor da ação ilícita.
Dentre as teorias fulcradas na responsabilidade objetiva, pode-se citar: a) teoria da subordinação integrativa, invocada nas situações em que um fornecedor tem a quase totalidade de sua produção voltada às encomendas de determinada empresa; b) teoria da ajenidad ou do risco proveito, que reclama a imputação de ônus àquele que aufere os bônus de uma relação; c) teoria da internalização das externalidades negativas, em conformidade com a qual os custos sociais externos do processo produtivo precisam ser internalizados como custos da produção (Princípio 16 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente de 1992); d) teoria dos contratos coligados, das redes contratuais ou dos contratos em rede, que extrai fundamentos do Código Civil (art. 421) e do Código de Defesa do Consumidor (arts. 12, 14 e 25, § 1º).[12].
Invocam-se, também, os Princípios de Ruggie (especialmente os Princípios 17 e 22); a Recomendação de 2014 da OIT sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório, cujo art. 4º, “j”, faz referência às cadeias produtivas (“supply chains”); e o Decreto 9.571/2018, que estabelece as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, cujo art. 7º, VI, estatui competir às empresas a adoção de iniciativas para “avaliar e monitorar os contratos firmados com seus fornecedores de bens e serviços, parceiros e clientes que contenham cláusulas de direitos humanos que impeçam o trabalho infantil ou o trabalho análogo à escravidão”.
Ademais, com fulcro na Orientação nº 14 da CONATE, nas demandas coletivas envolvendo situações de trabalho análogo a de escravo propostas na Justiça do Trabalho, os Procuradores e Procuradoras do Trabalho incluem pedido declaratório de submissão dos trabalhadores às situações previstas no art. 149 do Código Penal.
O dano existencial, que consiste no prejuízo ao convívio social e ao projeto de vida do(a) trabalhador(a) é evidente nas múltiplas facetas da escravidão contemporânea. Atento a essa realidade, o MPT tem estabelecido projetos estratégicos nacionais (a exemplo dos denominados “Capacitação da rede de assistência e acolhimento dos trabalhadores resgatados” e “Reação em cadeia”), além de Grupos de Trabalho (a exemplo dos denominados “Vida Pós Resgate” e “Escravidão, gênero e raça”).
CONCLUSÃO
A prevenção, combate e erradicação da escravidão contemporânea é respaldada por diversos diplomas normativos nacionais e internacionais. Não obstante tal arcabouço protetivo, no Brasil, a incidência de formas contemporâneas de trabalho escravo ainda alcança índices alarmantes.
O Ministério Público do Trabalho instituiu como tema prioritário da instituição a erradicação do trabalho escravo contemporâneo, o que é realizado por meio de atuação interinstitucional, consertada e dialogada, judicial ou extrajudicial.
REFERÊNCIAS:
BELTRAMELLI NETO, Sílvio. O emprego da ação civil pública e a atuação do Ministério Público do Trabalho no combate às formas contemporâneas de escravidão In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2017, v.3, p.214.
CAVALCANTI, Tiago Muniz. O trabalho escravo entre a arte e a realidade: a necessária superação da perspectiva hollywoodiana In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2017, v.3, p..237 e 238.
GOMES, Rafael de Araújo. Trabalho Escravo e Abuso do Poder Econômico: Da ofensa Trabalhista à Lesão ao Direito de Concorrência In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.261.
MELO, Luiz Antônio Camargo e outros. O Novo Direito do Trabalho: A Era das Cadeias Produtivas. Uma análise do Protocolo Adicional e da Recomendação Acessória à Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado ou obrigatório In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.291.
NOTA TÉCNICA Nº 02/2022 – MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – COORDENADORIA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.
[1] GOMES, Rafael de Araújo. Trabalho Escravo e Abuso do Poder Econômico: Da ofensa Trabalhista à Lesão ao Direito de Concorrência In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.261.
[2] CAVALCANTI, Tiago Muniz. O trabalho escravo entre a arte e a realidade: a necessária superação da perspectiva hollywoodiana In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2017, v.3, p..237 e 238.
[3] MELO, Luiz Antônio Camargo e outros. O Novo Direito do Trabalho: A Era das Cadeias Produtivas. Uma análise do Protocolo Adicional e da Recomendação Acessória à Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado ou obrigatório In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.291.
[4] CAVALCANTI, Tiago Muniz. O trabalho escravo entre a arte e a realidade: a necessária superação da perspectiva hollywoodiana In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2017, v.3, p..237 e 238.
[5] BELTRAMELLI NETO, Sílvio. O emprego da ação civil pública e a atuação do Ministério Público do Trabalho no combate às formas contemporâneas de escravidão In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2017, v.3, p.214.
[6] GOMES, Rafael de Araújo. Trabalho Escravo e Abuso do Poder Econômico: Da ofensa Trabalhista à Lesão ao Direito de Concorrência In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.275.
[7] MELO, Luiz Antônio Camargo e outros. O Novo Direito do Trabalho: A Era das Cadeias Produtivas. Uma análise do Protocolo Adicional e da Recomendação Acessória à Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado ou obrigatório In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.292.
[8] NOTA TÉCNICA Nº 02/2022 – MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – COORDENADORIA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.
[9] NOTA TÉCNICA Nº 02/2022 – MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – COORDENADORIA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.
[10] NOTA TÉCNICA Nº 02/2022 – MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – COORDENADORIA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.
[11] MELO, Luiz Antônio Camargo e outros. O Novo Direito do Trabalho: A Era das Cadeias Produtivas. Uma análise do Protocolo Adicional e da Recomendação Acessória à Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado ou obrigatório In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.298.
[12] MELO, Luiz Antônio Camargo e outros. O Novo Direito do Trabalho: A Era das Cadeias Produtivas. Uma análise do Protocolo Adicional e da Recomendação Acessória à Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado ou obrigatório In Estudos Aprofundados MPT / coordenadores Henrique Correia e Élisson Miessa – Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p.300/302.
Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Renata Moura Miranda de. A atuação do Ministério Público do Trabalho na prevenção, combate e erradicação da escravidão contemporânea Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61348/a-atuao-do-ministrio-pblico-do-trabalho-na-preveno-combate-e-erradicao-da-escravido-contempornea. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
Por: Beatriz Ferreira Martins
Por: MARCIO ALEXANDRE MULLER GREGORINI
Por: Heitor José Fidelis Almeida de Souza
Por: JUCELANDIA NICOLAU FAUSTINO SILVA
Precisa estar logado para fazer comentários.