VERÔNICA SILVA DO PRADO DISCONZI[1]
(orientadora)
RESUMO: A comunidade jurídica brasileira costuma se referir à posição jurídica ativa que permite ao devedor (ofensor) instar o correspondente credor (vítima) a reduzir seu próprio prejuízo como dever de mitigar os prejuízos. Esta expressão, produto de literal tradução do duty to mitigate the loss, tropeça nos desafios inerentes à sua fundamentação e aplicação no direito brasileiro. Desse modo, no presente trabalho, buscou responder ao seguinte questionamento: existe a possibilidade de aplicação da teoria do dever de mitigar o próprio prejuízo? Para responder essa questão e outras que advém desta, este estudo analisou primeiramente a sua razão de existir na ordem jurídica brasileira. Da miríade de respostas diferentes advindas da literatura especializada – a qual aponta para abuso de direito, boa-fé e exercício disfuncional de posição jurídica –, busca-se extrair diretriz uniforme, que permita melhor delimitar as peculiaridades da figura jurídica analisada. Na metodologia, tratou-se de uma revisão da literatura baseada em livros, artigos científicos e legislação ligada ao tema proposto. Nos resultados, conclui-se que a posição jurídica subjetiva do credor ou da vítima em mitigar evitáveis prejuízos afigura-se, à luz do Direito Civil brasileiro contemporâneo, como incumbência e finca raízes na boa-fé objetiva.
Palavras-chave: Dever de mitigar. Prejuízo. Boa-fé. Direito Brasileiro.
THE DUTY OF MITIGATING THE PROPER DAMAGE AND ITS POSSIBILITY OF APPLICATION IN BRAZILIAN LAW.
ABSTRACT: The Brazilian legal community usually refers to the active legal position that allows the debtor (offender) to urge the corresponding creditor (victim) to reduce his own damage as a duty to mitigate the damage. This expression, the product of a literal translation of the duty to mitigate the loss, encounters the challenges inherent to its foundation and application in Brazilian law. Thus, in the present work, it sought to answer the following question: is there a possibility of applying the theory of the duty to mitigate one's own damage? To answer this question and others that arise from it, this study first analyzed its reason for existing in the Brazilian legal system. From the myriad of different answers from the specialized literature - which points to abuse of rights, good faith and the dysfunctional exercise of legal position -, we seek to extract a uniform guideline, which allows better delimiting the peculiarities of the analyzed legal figure. In terms of methodology, it was a review of the literature based on books, scientific articles and legislation related to the proposed theme. In the results, it is concluded that the subjective legal position of the creditor or the victim in mitigating avoidable damages appears, in the light of contemporary Brazilian Civil Law, as an incumbent and is rooted in objective good faith.
Keywords: Duty to mitigate. Loss. Good faith. Brazilian Law.
O dever de reparar os danos causados a outrem é matéria pautada desde a época da Lei de Talião em que se reparava o mal com o mal, vigorando a regra do “olho por olho” e “dente por dente”, ou seja, predominava a vingança privada (SILVA, 2014).
Conforme a sociedade evoluía, essas regras foram se modificando, a fim de que fosse estabelecido um equilíbrio social, reparando-se os danos e prejuízos das vítimas através das regras e princípios da responsabilidade civil. No decorrer dessa evolução, nascia o seguinte questionamento: até que ponto o credor ou a vítima devem ser ressarcidos pelos prejuízos sofridos? E daí nasciam outros questionamentos: é cabível indenizar o credor ou a vítima pelos prejuízos que eles poderiam ter evitado? A teoria do duty to mitigate the loss, que será brevemente estudada neste trabalho, trata exatamente desse segundo questionamento.
À vista desta ordem de ideias, propõe-se, neste estudo, um breve escrutínio da mitigação de prejuízos, com o objetivo de lançar luzes sobre seu enquadramento conceitual e sua razão de existir, nas esquadrias do modelo brasileiro de reparação civil contemporâneo.
Para cumprir esse objetivo, será realizada uma breve consideração sobre o processo histórico e conceitual da presente teoria, bem como a sua aplicação ou não no direito brasileiro, concluindo-se com uma análise sobre a possibilidade de aplicação da referida teoria na jurisprudência local.
O presente trabalho classifica-se como um artigo de revisão de literatura onde, “esse tipo de artigo caracteriza-se por avaliações críticas de materiais que já foram publicados, considerando o progresso das pesquisas na temática abordada” (KOLLER et al, 2014, p. 40), pois realizou avaliações críticas sobre o dever de mitigar o próprio prejuízo no ordenamento jurídico brasileiro.
Esta pesquisa recebeu enfoque qualitativo, que é aquele estudo que “utiliza a coleta de dados sem medição numérica para descobrir ou aprimorar perguntas de pesquisas no processo de interpretação” (SAMPIERE et al, 2014, p. 33).
Neste estudo utilizou amostras teóricas ou conceituais, que são aquelas voltadas essencialmente para a pesquisa qualitativa.
A busca foi realizada por meio de sites de busca tais como Scielo e Google Acadêmico, além de livros jurídicos e de artigos científicos já publicados, tendo como critérios de inclusão trabalhos publicados entre os anos de 2016 e 2021, nos idiomas inglês e português. Os descritores utilizados foram: Dever de Mitigar o próprio prejuízo, Direito Brasileiro, Relação Contratual. O período de coleta de material foi no mês de agosto de 2022.
1.O “DEVER” DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO: NOÇÕES HISTÓRICAS E CONCEITUAIS
Antes de se adentrar na discussão central desse trabalho é necessário tecer algumas linhas gerais sobre o nascedouro desse instituto, bem como o seu conceito. Assim, será apresentado nesse tópico o processo histórico e conceitual do “dever” de mitigar o próprio prejuízo.
A origem desse instituto reside no Direito Contratual, ou seja, é nas relações onde se firmam um contrato que originou a teoria em estudo. A prática de atos ilícitos, como por exemplo, a violação de um contrato legalmente celebrado, são condicionantes do surgimento da responsabilidade civil contratual e extracontratual, uma vez que não há dúvidas de que se deve reparar a vítima ou credor pelos prejuízos sofridos pelo inadimplemento ou da prática de um ilícito causador de dano (SILVA, 2014).
Com base no descrito acima, fez surgir a teoria do ‘duty to mitigate the loss’ também conhecida como doutrina dos danos evitáveis que pode ser traduzida como o dever de mitigar as próprias perdas. Para essa teoria, “é o credor quem possui o dever de mitigar suas perdas ou seu próprio prejuízo mediante esforço razoável” (SILVA, 2014, p. 85).
Os primeiros movimentos de formalização dessa teoria se deram no direito anglo-saxônico, de onde passou para os ordenamentos jurídicos continentais. Sua nomenclatura é do vocábulo mitigate de raiz francesa, provinda do verbo mitigar. Sua legalização veio a partir do art. 77 da Convenção de Viena em 1980 pelo qual estabeleceu que a parte que invoca a quebra de contrato deve tomar as medidas cabíveis, caso contrário, se ela faltar em tomar essas medidas “a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída” (Art. 77 apud REZENDE, 2013, p. 01).
Têm-se como exemplos, uma instituição financeira de crédito que decide não notificar o devedor inadimplente para conseguir um lucro maior sobre os juros ou ainda um locador que se aproveita de uma cláusula penal que lhe favoreça, retarda o ajuizamento da Ação de Despejo contra o locatário inadimplente auferindo enriquecimento sem causa.
Verifica-se com os exemplos acima citados que a aplicabilidade da teoria em análise se encontra primeiramente na seara contratual. A ideia central do duty to mitigate the loss é “evitar que o credor se utilize de sua própria inércia para aferir vantagens exorbitantes sobre o devedor” (FILHO, 2020).
Desse modo, conceitualmente, o dever de mitigar o próprio prejuízo consiste na “obrigação do credor de buscar evitar o agravamento do devedor. O credor de uma obrigação precisa colaborar com o devedor quando na tomada de medidas cabíveis para buscar que o dano sofrido restrinja as menores proporções possíveis” (JADVISKY, 2016, p. 05).
Na visão de Lima (2021) o devedor não pode ser instado a suportar prejuízos causados pela inércia do credor. Por conta disso, o credor deve ser penalizado.
Corroborando com o supracitado autor, Franco (2017) entende que o objetivo dessa teoria é fazer com que o credor de uma obrigação colabore com o devedor, sendo lhe imposto que tome todas as medidas possíveis e cabíveis para evitar a ocorrência do dano ou para minimizar os seus efeitos.
Muito se entende que a possibilidade que o credor tem de evitar que o dano venha a ocorrer constitui uma limitação à reparação das perdas e danos. Nesse sentido cabe destacar as palavras de Christian Sahb Batista Lopes:
A terceira limitação à reparação das perdas e danos consiste no chamado dever mitigar (duty to mitigate) ou doutrina dos danos evitáveis. De acordo com essa norma, o credor, prejudicado por um inadimplemento, não será indenizado pelas perdas e danos que evitou ou poderia ter evitado com esforços razoáveis e apropriados às circunstâncias (LOPES, 2011, p. 30).
Com o exposto acima, interessante mencionar que, quase toda a doutrina inglesa e norte-americana defende a ideia de que não há uma obrigação de mitigar, mas uma limitação, uma vez que “se houvesse, a mitigação poderia ser exigida pela parte inadimplente e a parte prejudicada estaria sujeita a indenizar se não adotasse as medidas necessárias para a mitigação” (LOPES, 2011, p. 33).
Com as definições expostas até aqui, fica evidente constatar que a teoria apresentada busca afastar o desperdício de recursos econômicos ao indenizar o credor por danos que este poderia ter evitado sem grandes esforços, possuindo, para tanto, dois estímulos: de um lado nega ao credor o direito de ser indenizado por ser quedar inerte; e por outro concede o direito à reparação pelos esforços empregados na tentativa de diminuição das perdas (LOPES, 2011).
A teoria do duty to mitigate the loss, segundo o autor Tepedino (2012, p. 55) “é um importante figura desenvolvida no direito norte-americano, e que, especialmente nos últimos tempos tem despertado a atenção da doutrina jurídica brasileira”. A respeito da entrada da presente teoria em território pátrio, apresenta-se no tópico a seguir.
1.1 O “DEVER” DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO NO DIREITO BRASILEIRO: POSSIBILIDADE?
Um dos principais questionamentos desse estudo é: há forte divergência doutrinária quanto à recepção do instituto em tela ao ordenamento jurídico brasileiro. Desse modo, qual o fundamento da recepção do duty to mitigate the loss no sistema jurídico nacional? A resposta para essa questão será analisada a seguir nesse tópico. Muitos são os fundamentos encontrados em outros países (como Estados Unidos, Alemanha, França, etc.) para a aplicação da teoria do duty to mitigate the loss. Os mais usados são o de imprevisibilidade dos danos, ausência de causalidade, dano indireto, venire contra factum proprium, a culpa concorrente, a violação ao dever de boa-fé, dentre outros (LIMA, 2021).
Destarte a esses fundamentos para a aplicação da teoria em estudo, no Direito Brasileiro nas últimas décadas surgiu uma forte corrente doutrinária que defendia a aplicação dessa teoria nos casos concretos ocorridos no Brasil, especialmente na área contratual e de consumo.
Dias (2012, p. 41) explica que:
O Direito civil brasileiro vive fenômeno de teorização e aplicação judicial do duty to mitigate the loss. Este fenômeno originou-se de proposta doutrinária para solucionar o problema de imputação de danos nas situações em que o credor, em face do inadimplemento do contrato, não adota medidas razoáveis para evitar ou minimizar o próprio prejuízo. Posteriormente ampliou-se para abarcar situações de responsabilidade civil aquiliana e de exercício tardio de direito que implica em ônus excessivo para o devedor.
No Brasil, entretanto, essa teoria de fato fora discutida pela primeira vez no ano de 2004 por meio da doutrinadora Vera Maria Jacob de Fradera que realizou proposta na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Nesse evento a citada doutrinadora solicitou que fosse confeccionado um enunciado prevendo a mitigação dos prejuízos na responsabilidade contratual por esse violar o princípio da boa-fé objetiva. Teve como base o art. 422 do Código Civil atual (FIUZA, 2019).
Sendo a proposta aprovada, fora criado o Enunciado nº 169 do CJ/STJ que inspirado no art. 77 da Convenção de Viena de 1980 dispõe que “o princípio da boa- fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Em relação à aprovação da proposta criada por Vera Maria J. Fradera, Tartuce (2015, p. 515) afirma que tal proposta “representa muito bem a natureza do dever de colaboração, presente em todas as fases contratuais e que decorre do princípio da boa-fé objetiva e daquilo que consta no art. 422 do Código Civil”.
A própria autora sugere que a incumbência de mitigar seria decorrente da boa- fé objetiva:
No sistema do Código Civil de 2002, o duty to mitigate the loss poderia ser considerado um dever acessório, derivado do princípio da boa fé objetiva, pois nosso legislador, com apoio na doutrina anterior ao atual Código, adota uma concepção cooperativa do contrato. (...) Outro aspecto a ser destacado é o da positivação do princípio da boa-fé objetiva, no novo diploma civil, abrindo, então, inúmeras possibilidades ao alargamento das obrigações e/ou incumbências das partes, no caso, as do credor (FRADERA, 2004, p. 119).
Conforme se verifica, a teoria em estudo tem como principal base de fundamentação a boa-fé objetiva, que é parte importante dos contratos encontrados no Código Civil. A boa-fé é condição essencial para a formalização de um contrato, pois pressupõe que as partes estão agindo em conformidade com o estabelecido e que possuem “boas intenções” no seu cumprimento.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já fixou posição de que a boa-fé objetiva “se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta e leal” [2].
Desse modo, nota-se que a boa-fé é o alicerce da utilização da teoria da mitigação do próprio prejuízo no direito Brasileiro. Scheleder e Noschang (2018, p. 10) aduz que “a boa-fé pode ser entendida como efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, pois circunscreve os limites éticos das relações patrimoniais entre os contratantes”.
Nesse mesmo caminho Pezzi (2016, p. 05) entende que a boa-fé, como cláusula geral, “serve de ponte entre o sistema jurídico e a realidade social, e constitui uma ferramenta destinada a permear as relações jurídicas, regulando os excessos e os abusos de direito, a fim de equilibrar os interesses e promover a justiça”.
Discorrendo sobre o que representa a boa-fé, Fiuza (2019) explica que esse instituto deve ser tratado como padrão de comportamento ou como técnica que permite adaptar uma regra de direito ao comportamento médio em uso em uma dada sociedade. Num âmbito mais específico, o renomado autor reafirma que como cláusula gera que integra os pactos, serve como norma de interpretação e elemento limitados dos direitos subjetivos, com o objetivo de estabelecer os deveres de comportamento que as partes devem obedecer nas relações jurídicas.
Dessa forma, apoiado no exposto acima, entende-se que a aplicação da teoria do dever de mitigar o próprio prejuízo recai, sobretudo, no instituto da boa-fé, pois sem ele não haveria o que discutir sobre prejuízos causados pela inércia do credor.
Entretanto, por mais que seja majoritário o entendimento de que a teoria em estudo esteja ligada ao instituto da boa fé, é preciso frisar que não se confunde e nem se esgota nela. Na doutrina jurídica brasileira existem outros fundamentos para a utilização dessa teoria no sistema jurídico.
Dito isto, cita-se o venire contra factum proprium. Nesse caso, com base nessa corrente, entende-se a existência entre a ausência do credor em buscar sanar seu direito e a pretensão posterior a indenização referentes aos prejuízos advindos, que no presente caso, poderiam ser evitados. Com isso, nota-se um excesso ao direito de protelar uma indenização (PFLEGER, 2017).
Ainda sobre essa teoria, Tartuce (2015) menciona que nas cortes francesas o venire contra factum proprium é usado como fundamento para penalizar o credor que se encontra ausente.
Apesar disso, existem posicionamentos doutrinários divergentes sobre a presente teoria. Como exemplo, encontra-se o pensamento de Dias (2012) ao qual entende que a ação ausente da vítima em não mitigar o seu prejuízo não é por si só apta para fazer gerar no ofensor a confiança de que não se terá um pedido de indenizatório integral pelos prejuízos ocorridos.
Nesse sentido, Franco (2017) também argumenta não haver contradição no ato de requerer indenização por danos que poderia o credor ter evitado e na negligência, ao deixar que prejuízos ocorram a partir do inadimplemento, ou seja, a primeira conduta não inspira confiança de que o titular continuará a agir desta forma, não se adequando aos elementos essenciais do venire contra factum proprium.
Outra fundamentação jurídica para a aplicação da mitigação é a do abuso de direito. Porém, a doutrina jurídica majoritária é contrária à aplicação do dever de mitigar em razão do abuso de direito.
Para explicar essa teoria, cabe destacar a seguinte definição:
O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo, e, ao utilizá-lo desconsideradamente causa dano à outrem. Aquele que exorbita no exercício de seu direito, causando prejuízo a outrem, pratica ato ilícito, ficando obrigado a reparar. Ele não viola os limites objetivos da lei, mas embora os obedeça, desvia-se dos fins sociais a que se destina, do espírito que a norteia (LIMA, 2021, p. 04).
Em uma posição mais favorável, Lopes (2011) afirma ser possível a fundamentação da mitigação dos danos apenas na concepção objetiva de abuso de direito, prevista no art. 187 do Código Civil. Em suas palavras o autor expressa que, o “fundamento da mitigação não pode ser encontrado na concepção subjetiva do abuso de direito, salvo em situações excepcionais” (LOPES, 2011, p. 44). E conclui afirmando que “a teoria do abuso de direito deve ser tida como um fundamento apenas como ratificação no fundamento da boa-fé, pois apenas quando a teoria do abuso de direito se assenta nesta noção é que terá contato com a evitabiliadade” (LOPES, 2011, p. 44).
De todo modo, diante das fundamentações expostas, firma-se novamente o entendimento de que a mitigação do próprio prejuízo em solo brasileiro é baseada no princípio da boa-fé objetiva, sendo esse o entendimento da doutrina majoritária.
Outro ponto a se destacar ao se falar sobre esse tema é a respeito do momento em que é admitido falar em mitigação do próprio dano. É importante discorrer sobre essa questão, pois frequentemente há doutrinadores que sustentam que há equívocos dos juristas em compreender esse cenário. Em outras palavras, há uma presunção em não reconhecer a mitigação dos danos.
Pfleger (2017) acentua que apenas pode-se analisar a mitigação do próprio prejuízo quando já existe o nexo de causalidade. Para esse autor, uma vez efetivada a motivação do dano, passa-se a averiguar se era possível a vítima pleitear ações mitigadoras.
Como já demonstrado nesse estudo, para que se possa cogitar a aplicação do instituto, é necessária que haja o descumprimento da obrigação principal de um contrato; que esse descumprimento cause um dano que possa ser imputável à parte inadimplente; e que haja possibilidade de o credor lesado tomar providências razoáveis para conter o aumento do dano, agindo com diligência. A principal dificuldade, como ressalta Franco (2017, p. 32), consiste em “identificar critérios que permitam aferir se o credor se desincumbiu daquilo que dele se podia legitimamente esperar”.
Para melhor entendimento, cita-se o seguinte exemplo:
A ilustrar a aplicação do duty to mitigate the loss, mencione-se o caso de um contrato de locação de imóvel urbano em que houve inadimplemento. Ora, nesse negócio, há um dever por parte do locador de ingressar, tão logo lhe seja possível, com a competente ação de despejo, não permitindo que a dívida assuma valores excessivos. O mesmo argumento vale para os contratos bancários e financeiros em que há descumprimento. Sendo assim, não pode a instituição financeira permanecer inerte, aguardando que, diante da alta taxa de juros prevista no instrumento contratual, a dívida atinja montantes astronômicos. Se assim agir, como consequência da violação da boa-fé, os juros devem ser reduzidos (TARTUCE, 2021, p. 120).
Assim, outra questão a ser analisada, diz respeito na busca por saber a quem incumbe o ônus de provar a mitigação dos danos. Neste caso, observam-se posicionamentos diversos, mas que não se excluem, em princípio.
Um entendimento é no sentido de que, muito embora quem deva adotar as medidas mitigadoras possíveis seja o credor, o ônus de provar o descumprimento do encargo de mitigar deve recair sobre o devedor, refletindo-se que “não seria razoável se exigir que o credor, ao formular sua demanda, tivesse de demonstrar que todas as medidas imagináveis para mitigar seu dano seriam irrazoáveis” (ARAÚJO, 2013, p. 29-30).
Outra visão é de que o credor afetado tomará a iniciativa de propor ação judicial para cobrar a indenização e deverá demonstrar os danos que sofreu e o nexo causal, bem como, “se realizou medidas para minimização dos danos, deverá relacionar, dentre os prejuízos sofridos, aquelas despesas que incorreu com a mitigação, de modo que o ônus dessa prova cabe ao credor” (LOPES, 2011, p. 52-53).
Refletindo sobre o ponto, tem-se que ambos, devedor e credor, possuem o ônus da prova da mitigação em perspectivas diferentes. Por certo que se “o credor providenciou medidas mitigadoras terá o maior interesse em provar as despesas como prejuízos para obter a indenização, demonstrando a razoabilidade das medidas tomadas” (ARAÚJO, 2013, p. 30). Da mesma forma, o devedor terá “interesse em comprovar que determinados prejuízos do credor poderiam ter sido evitados por ele, se pretender reduzir a indenização, ou seja, será do devedor o ônus de provar que o credor não empregou esforços razoáveis para reduzir os danos” (LOPES, 2011, p. 53).
Além do mais, observa-se o entendimento acerca da possibilidade de reconhecimento ex officio pelo julgador da situação em que houve ou não mitigação dos danos, “se presentes elementos objetivos que possam levar o juiz a concluir pela existência de medidas razoáveis de mitigação disponíveis ao credor.” (ARAÚJO, 2013, p. 31)
Passados esses pontos gerais sobre a teoria em estudo, é preciso abrir espaço para a voz da doutrina contrária à sua aplicação no Direito brasileiro. Sem alongar nesse ponto, apresenta-se abaixo o entendimento do doutrinador Daniel Pires Novais Dias (2011) que questiona negativamente vários pontos referentes às ideias propagadas por Vera Fradera.
Assim, tem-se:
[...] Primeiramente, porque não há lacuna no Código Civil para regular as situações em que o credor inadimplido, ou mesmo a vítima de dano extracontratual, não adota medidas para evitar a produção ou o agravamento do próprio prejuízo. Em seguida, em relação ao surgimento do instituto, pois sobre a origem inglesa do “dever” do credor evitar o agravamento do próprio prejuízo, é possível contrapor que o Código Civil alemão, que data de 1896, já previa a redução da indenização da parte lesada por negligência desta em afastar ou minorar o próprio dano (§ 254), ao passo que o duty to mitigate the loss foi formulado pela primeira vez em uma decisão judicial datada de 1912. Em terceiro, o duty to mitigate the loss não corresponde a um dever (do credor de mitigar a própria perda). Aduz que a expressão em inglês é equívoca porque induz à compreensão de que se trata de um dever sem que o seja, e a doutrina chama atenção para isso. No sistema da common law, o duty corresponde a uma norma que, conjuntamente com outras, determinam o valor da indenização da vítima de um dano contratual ou extracontratual. Por fim, desponta nas repercussões práticas um duplo equívoco, uma vez que o julgador, pensando que está aplicando um instituto estrangeiro, decide de maneira distinta ao que prevê a legislação brasileira; e que, por outro lado, a decisão, contrariamente ao que pensa o julgador, é também distinta à forma com que se dá a aplicação do instituto no direito estrangeiro. Ora, não é possível falar em efetiva recepção no direito civil brasileiro do duty to mitigate the loss, figura do sistema jurídico da common Law. Mais adequado é defender da desnecessidade da regulação estrangeira, já que os arts. 402, 403 e 945 do CC/2002 compõem a base legal para regular estas situações. Da análise desenvolvida dos referidos artigos, conclui que as situações em que o credor inadimplido, ou a vítima de dano extracontratual, permanece inerte em face da produção ou agravamento do próprio dano, encontram regulação no Código. Assim, defende-se que o encargo de evitar o próprio dano deve ser reconhecido no direito civil brasileiro, porque ele é a figura dogmática mais adequada para suprir a lacuna apontada acima acerca da ausência de prescrição jurídica titularizada pela vítima em evitar a produção ou agravamento de danos a si. Como consequência, havendo o descumprimento deste encargo, a vítima perderá, total ou parcialmente, o direito à indenização pelos danos que poderia ter evitado ou ao menos minimizado (DIAS, 2011 apud HELENE; HOFFMANN, 2016, p. 11).
De todo modo, como já citado anteriormente, é na boa-fé objetiva que se baseia a aplicação do dever de mitigar o próprio prejuízo, uma vez que se considera o comportamento do titular como algo reprovável ao sentimento jurídico prevalente na coletividade.
Ademais, deve-se também citar o posicionamento jurisprudencial em relação ao tema por ora analisado. Sobre essa questão, encontra-se o tópico seguinte que mostrará a posição da jurisprudência frente à aplicação dessa teoria.
2.O “DEVER” DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO: POSICIONAMENTOS JURISPRUDENCIAIS
Uma vez estabelecida que exista a possibilidade de aplicação da teoria de dever de mitigar o próprio prejuízo no ordenamento jurídico brasileiro, é necessário demonstrar a sua aplicação prática. Nesse sentido, esse tópico irá mostrar o posicionamento jurisprudencial no que tange a aplicação da presente teoria.
A priori, o julgado inicial que tratou desse tema no Brasil se refere ao Recurso Especial n. 758518/PR, decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 1994. No caso concreto, o promitente-comprador não sanou o pagamento das parcelas do contrato de compra e venda. Além disso, abandonou o imóvel em 2001. O credor, por sua vez, somente efetivou sua defesa no ano posterior, ao qual ajuizou Ação de Reintegração de Posse, juntamente com pedido de indenização.
Com base nesse caso, o Relator do processo, o Ministro Vasco Della Giustina entendeu que os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano, haja vista que no caso presente houve um agravamento do prejuízo em decorrência da inércia do credor.
Ainda no que diz respeito a alegada aplicabilidade dessa teoria, cabe dizer que não pode ser confundido com prescrição, pois para sua caracterização não basta somente o decurso do tempo, mas também conduta contrária a boa-fé e circunstâncias que indiquem que o credor não pretende exercer seu direito. Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. PRESTAÇÃO DESERVIÇOS DE ENSINO. DÉBITO EXIGÍVEL. SUPRESSIO. INOCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO AO DEVER DE MITIGAR A PERDA NÃO DEMONSTRADA. AUSÊNCIA DE CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ
OBJETIVA. 1. Inaplicável ao caso o instituto da supressio. Isto porque, não basta simplesmente o decurso de longo prazo de tempo a fim de que este se caracterize. Exige-se, além disso, a ocorrência de conduta contrária à boa-fé e de circunstâncias objetivas aptas a indicarem que a parte não mais pretende exercer seu direito, o que não ocorreu no caso em tela. 2. O simples fato de a autora ter deixado transcorrerem 4 anos para ajuizar a ação permitindo a elevação do débito pela incidência de juros - não demonstra, por si só, que agiu contrariamente à boa-fé objetiva e violou o duty to mitigate the loss (dever de mitigar a perda). 3. Recurso improvido. (TSJP, 35ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 0050877- 58.2011.8.26.0001, Rel. Des. Artur Marques, j. 11/04/2016).
Ainda em território nacional existem outros julgados que se basearam na teoria em estudo para fundamentar as decisões. Tem-se como exemplo, o presente julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. PLANO DE SAÚDE. PRELIMINAR. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. ACOLHIDA. INADIMPLEMENTO. CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA. INCIDÊNCIA. ENVIO DE NOTIFICAÇÃO APÓS O LAPSO DE TRÊS ANOS. ABUSO DE DIREITO. VIOLAÇÃO DO DEVER DE MITIGAR AS PRÓPRIAS PERDAS. 1. Prescreve em cinco anos a pretensão de cobrança de dívidas líquidas, com valor e vencimentos determinados, constantes de instrumento particular (CC 206 § 5º I), relativas às mensalidades inadimplidas do plano de assistência à saúde da ASSEFAZ. Precedentes do TJDFT. 2. O regulamento do plano de saúde da Fundação Assistencial dos Servidores do Ministério da Fazenda é claro ao dispor que o inadimplemento após o transcurso de 60 (sessenta) dias acarretará o cancelamento do contrato, tratando-se de cláusula resolutiva expressa (CC 474). 3. Não se pode condicionar a eficácia da cláusula resolutiva ao envio de prévia notificação pelo plano de saúde que, por força do art. 53, § 5º, do Regulamento, deveria interpelar a devedora até o 50º quinquagésimo dia de inadimplência. 3.1. No caso dos autos, a notificação da parte ré somente ocorreu após o transcurso de três anos a contar da primeira mensalidade em atraso, o que não se mostra razoável. 4. O envio da notificação da ASSEFAZ três anos após a interrupção do pagamento das mensalidades pela parte ré denota violação ao dever do credor de mitigar o próprio prejuízo (duty to mitigate the loss). 5. Acolheu-se a prejudicial de mérito da prescrição. Deu-se provimento ao apelo da ré. Julgou-se prejudicado o apelo da autora. (07063081720208070009 - (0706308-17.2020.8.07.0009 - Res. 65 CNJ). TJDFT. 4ª Turma Cível. Relator: Sérgio Rocha. Data de Julgamento: 23/06/2022. Publicado no DJE: 07/07/2022.
No julgado acima, estabelecido que o dever de mitigar as próprias perdas (duty to mitigate the loss) diz respeito à obrigação do credor de ingressar com a medida cabível tão logo tome ciência da mora do devedor, a fim de satisfazer o seu crédito e não aumentar o valor da dívida, o magistrado entendeu que neste caso concreto, se mostra como causa suficiente, para a aplicação da referida teoria, a conduta do credor que aguarda, por oito anos, para efetuar a cobrança de dívida referente a empréstimo consignado, em cujo montante incidiu juros compostos durante todo o período.
Frente aos julgados acima citados, verifica-se que a teoria do dever de mitigar o próprio prejuízo já se encontra aplicado no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que não haja uma legislação específica sobre a sua aplicabilidade e reconhecimento legal, a doutrina jurídica e a jurisprudência já se posicionaram a favor da sua aplicação.
Com isso, em resposta aos questionamentos feitos na introdução desse trabalho, firma-se o entendimento de que existe sim a possibilidade de aplicabilidade da teoria do dever de mitigar o próprio prejuízo no regimento jurídico brasileiro, sem causar danos a outrem ou a qualquer direito ou princípio constitucional.
O estudo em questão buscou abordar sobre o instituto do Dever de mitigar o próprio prejuízo. A priori, não tem como discorrer sobre tal Teoria sem antes entender o que seja a boa fé jurídica. Conforme aludido no decorrer desse trabalho, ficou claro compreender que os institutos da boa-fé, da segurança jurídica e da confiabilidade na lei e nas relações dizem respeito a uma espécie de Código Moral, sustentado pelo Direito, que deve reinar entre os polos de uma relação jurídica propriamente dita.
Dizem respeito à confiança que se estabelece entre as partes, para que os negócios jurídicos possam se sustentar fielmente; falam de um pacto de boa-fé, no qual os participantes possam esperar reciprocidade de lealdade, honradez e justeza; traduzem a confiabilidade num sistema jurídico que garanta direitos e obrigações; enfim, versam sobre premissas éticas ligadas às normas jurídicas.
Soma-se a esse entendimento, que a boa-fé objetiva é informada pelos deveres de lealdade, transparência e colaboração, sendo princípio basilar do direito consumerista, cabendo ao prestador de serviço agir com base em valores éticos e morais da sociedade.
Aliado à boa fé encontra-se a teoria por ora analisada. Assim o dever de mitigar os próprios prejuízos, tem como preceito fundamental a atuação rápida e tempestiva daquele que está na iminência de sofrer prejuízos, a fim de que possa impedir ou mitigar o dano potencial.
No caso, é possível verificar a aplicação do dever de mitigar a própria perda, ou, duty to mitigate the loss, uma vez que ele é concebido no ordenamento jurídico pátrio como uma figura parcelar da boa-fé objetiva que atribui ao credor, na relação obrigacional, o ônus de adotar medidas razoáveis para minimizar os danos que o inadimplemento do devedor vier a impor.
Ademais, pela aplicação da teoria, o responsável pelo dano não responde por outros danos que o outro contratante poderia ter evitado, caso este tivesse adotado medidas razoáveis para evita-lo, ou seja, o comprador tinha o dever de minorar seus prejuízos, tomando medidas concretas para o conserto dos defeitos pleiteados.
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[1] Mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Tocantins- UFT, e- mail: verô[email protected]
[2] REsp 981750/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/04/2010, Dje 23/04/2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=961599&sReg=200702038714&sData=20100423&formato=PDF>. Acesso em: 25 ago. 2022.
graduando em Direito pela Universidade de Gurupi- UNIRG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUZ, WEVERTON MENEZES DA. O dever de mitigar o próprio prejuízo e sua possibilidade de aplicação no direto brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61377/o-dever-de-mitigar-o-prprio-prejuzo-e-sua-possibilidade-de-aplicao-no-direto-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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