KÁRITA LUSTOSA BARROS[1].
(orientador)
RESUMO: O presente estudo teve como escopo discorrer sobre a eficácia da prova testemunhal frente aos crimes sexuais. Desse modo, fica claro observar inicialmente, que nos crimes de natureza sexual, em muitos casos, o único meio de prova é a testemunha da vítima. Em decorrência destes casos, ela se torna fundamental. Apesar de já ser reconhecido a relevância da oitiva da testemunha, é preciso que o seu depoimento seja aliado a outros elementos no processo. Com isso, pretendeu-se nessa pesquisa evidenciar o impacto que a palavra da vítima possui para a elucidação do crime de estupro. Como procedimento metodológico, foi utilizada a metodologia dedutiva, visto que foi embasada nas ideias apresentadas com o procedimento de pesquisa bibliográfica documental. Nos resultados, se estabeleceu que considerando todas as particularidades destes tipos de crime e a dificuldade probatória, a prova testemunhal interfere na condenação de um acusado. Nesse sentido, é preciso que a palavra da vítima seja corroborada com outras provas do processo.
Palavras-chave: Testemunho. Credibilidade. Vítima. Estupro.
THE CREDIBILITY OF THE VICTIM'S WORD IN RAPE CRIMES
ABSTRACT: The present study was scope to discuss the effectiveness of the testimonial evidence against sexual crimes. Thus, it is clear initially to observe that in crimes of a sexual nature, in many cases the only means of proof is the victim's witness. As a result of these cases, it becomes fundamental. Although the relevance of the witness's hearing is already recognized, its testimony must be combined with other elements in the process. With this, it was intended in this research to highlight the impact that the victim's word has for the elucidation of the crime of rape. As a methodological procedure, the deductive methodology was used, as it was based on the ideas presented with the documentary bibliographic research procedure. In the results, it was established that considering all the particularities of these types of crime and the probative difficulty, the testimonial evidence interferes with the condemnation of an accused. In this sense, the victim's word must be corroborated with other proof of the process.
Keywords: A testimony. Credibility. Victim. Rape.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os crimes sexuais no Brasil: aspectos gerais. 3. A prova testemunhal no Direito brasileiro. 4. A prova testemunhal no crime de estupro. 5. Considerações Finais. 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Em um mundo cada vez mais globalizado, as relações humanas vão se ampliando e se moldando de acordo com as mudanças advindas. E isso se reflete na área penal. Diariamente se verifica um número cada vez mais frequente de ocorrência de crimes de cunho sexual, a ponto de serem considerados os mais temidos.
Ocorre que os crimes dessa natureza são muitas vezes cometidos de maneira clandestina, deixando poucos rastros e provas além de uma vítima completamente frágil e abalada. No caso do crime de estupro, considerado um dos mais graves nesse grupo, os efeitos são ainda mais nefastos. É nesse ponto que se discute esse estudo.
A prova testemunhal é de suma importância para o processo penal, pois em muitas situações é a única maneira de se provar algum ato/fato jurídico. Nos crimes sexuais isso ainda é mais evidente, haja vista que a ocorrência dos crimes dessa natureza se dá em locais distantes, isolados e de forma clandestina, ou no caso dos vulneráveis no próprio domicílio, mas sem qualquer indício de execução, o que acaba por dificultar a colheita de provas técnicas para a sua elucidação (RIBEIRO, 2019).
Frente a isso, o presente estudo teve como escopo discutir o valor probatório da testemunha na ocorrência de crimes sexuais. Para melhor limitar a discussão desse tema, focou-se no crime de estupro. Para isso, se analisou o peso que uma testemunha possui na comprovação do delito e a sua autoria.
Cabe lembrar que no crime de estupro (assim como os outros de natureza sexual), a testemunha da vítima possui enorme importância, principalmente quando não há outras provas. Em outras palavras, a palavra do ofendido caso seja feita de forma coerente, coesa e alinhada aos fatos ocorridos, pode perfeitamente ser considerada prova suficiente para a possível condenação (PACELLI, 2017).
Portanto, no decorrer de sua análise procurou-se responder: qual o impacto da prova testemunhal na comprovação no crime de estupro?
Na busca por respostas a essa problemática, tratou-se essa pesquisa em analisar os aspectos jurídicos, sociais e jurisprudenciais a respeito da prova testemunhal no delito do estupro, apresentando os efeitos e consequências jurídicas desse ato.
Para a realização da pesquisa foi feita uma revisão de literatura, constituído de estudo bibliográfico e documental. A pesquisa bibliográfica foi realizada por meio de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos vinculados à análise da palavra da vítima no crime de estupro e de outras doutrinas disponíveis relacionadas ao tema. A coleta de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google Acadêmico, dentre outros, entre os meses de março e abril de 2023. Os descritores foram: Crimes Sexuais. Estupro. Palavra da vítima. Legislação Brasileira.
2. OS CRIMES SEXUAIS NO BRASIL: ASPECTOS GERAIS
Os crimes sexuais é uma temática muito discutida na sociedade moderna. Mesmo sendo praticada desde os primórdios da civilização, é no cenário atual que esses crimes têm ganhado destaque. Muito dessa relevância se deve ao crescente número de casos onde mulheres, que são o grupo majoritário, e os dito vulneráveis (crianças e enfermos) são vítimas de crimes de cunho sexual.
Com o crescimento social verificado mais incisivamente no decorrer do século XX, onde se verificou uma mudança de comportamento humano e a presença de fortes movimentos sociais, como por exemplo, o feminismo, o contexto da sexualidade também foi se ampliando.
Desse modo, a discussão passou a ser mais sobre os crimes que tinha destinação sexual do que somente questões relacionadas à procriação. Com o aumento de casos onde era possível notar a motivação social, o Direito penal começou a normatizar condutas lesivas às vítimas.
Nesse sentido, encontram-se dentro da área penalista os denominados crimes sexuais. Historicamente, esse termo era referente aos crimes contra os costumes. Por não mais representar a realidade social, se alterou em 2009 por meio da Lei nº 12.015, o Título VI do Código Penal este termo para os chamados crimes contra a dignidade sexual (GRECO, 2014).
Com o novo termo, ficou mais nítido destacar que o que importa não é o comportamento sexual dos indivíduos, e sim a sua dignidade sexual. Sobre essa mudança, Sarlet (2013) acentua que isso é importante porque trouxe maior observação à dignidade da pessoa, no sentido de que cada indivíduo possui a sua própria particularidade e por conta disso merece respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade.
O que se verifica é uma mudança de pensamento. Se antes o sexo era visto apenas como um costume social, hoje ele é visto como um instituto pertencente à qualidade de cada indivíduo, de modo particular e específico. Se antes se buscava proteger a virgindade das mulheres, hoje se busca penalizar, por exemplo, a exploração sexual de crianças e adolescentes (GRECO, 2014).
Dentro da norma jurídica penalista, no que se refere aos crimes sexuais, pode-se encontrar penalizado atualmente os crimes de estupro e do atentado violento ao pudor (art. 213). Além destes, visando proteger os menores de 14 anos e enfermos ou deficientes mentais, encontra-se o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A).
Importante mencionar que a norma penalista inovou ao determinar que os crimes em desfavor da dignidade sexual fossem processualmente tramitados em segredo de justiça (art. 234-B). Essa previsão se deve para evitar uma exposição das vítimas (e também do autor do crime) de forma indevida e excessiva.
Desde 2009 quando houve tais avanços a sociedade presenciou o aumento do número de casos envolvendo os crimes digitais. São crimes onde o autor utiliza meios informáticos e digitais (como celulares, por exemplo) como meio de cometimento de vários delitos, como os financeiros, morais e também os sexuais.
Souza; Herrera; Teotônio (2019, p. 02) acentuam que devido a esses avanços tecnológicos, se verificou uma maior expansão na prática de crimes de natureza sexual, onde o uso de webcams, de câmeras fotográficas além das redes sociais e smartphones, foram utilizados pelos indivíduos não apenas para trabalhar ou ampliar a rede de contatos, mas também para expor a vida íntima, o que acaba facilitando o surgimento de crimes sexuais na rede.
Sem adentrar na explanação de cada um dos crimes sexuais previstos na legislação brasileira, o fato é que na maioria dos casos de crimes sexuais, uma das principais formas de elucidação do crime é por meio de prova testemunhal. Sobre esse instituto, tem-se o tópico seguinte.
3. A PROVA TESTEMUNHAL NO DIREITO BRASILEIRO
No Direito, é costumeiro notar que para que haja uma condenação é imprescindível que se tenha a prova, uma vez que sem ela não há como especificar o criminoso. Desta feita, a prova pode ser entendida como “os meios e atos usados pelas partes e reconhecidos pelo juiz como sendo a verdade dos fatos alegados” (RIBEIRO, 2019, p. 02).
Assim, no processo penal, a prova representa o agrupamento de atos que buscam fazer com que o magistrado seja convencido de que a reconstituição dos acontecimentos alegados seja verídica (GONÇALVES; LENZA, 2013). No entanto, no direito moderno há uma mudança sobre o valor probatório.
Sobre isso, Ribeiro (2019) argumenta que a doutrina mais atual entende que não se consagra somente o princípio da verdade material, ou seja, é preciso ressaltar a busca da verdade, o que possibilita os magistrados – a determinação ex officio – da produção de provas no decorrer do processo.
Nesse campo, dentro do instituto da prova, existe a prova testemunhal, objeto central desse estudo. Vários são os conceitos que se apresentam sobre a prova testemunhal. A título de exemplo, inicialmente Sá (2016) afirma que a prova testemunhal pode ser entendida como um caminho de se provar por meio da oratória de um terceiro ou estranho à causa. Com isso, esse indivíduo irá depor em juízo sobre fatos que presenciou e sejam pertinentes ao deslinde do processo.
No mesmo caminho, Gonçalves (2016) aduz que a testemunha é uma pessoa física que vai à juízo com o objetivo de prestar informações inerentes aos fatos importantes para o julgamento. O mesmo autor pondera que apesar de que a prova testemunhal ser frequentemente apontada como um ponto em aberto, uma vez que a memória humana é falha, ainda assim é considerada como um dos meios de prova mais utilizado pelo Judiciário.
A prova testemunhal, como observado é feito por uma pessoa física. Discorrendo sobre essa questão, Moreira (2016, p. 02) explica que testemunha, em sentido próprio, é “pessoa diversa dos sujeitos principais do processo que é chamado em juízo para declarar, sob juramento, a respeito de circunstâncias referentes aos fatos delituosos objeto da ação penal”.
Os fundamentos da existência da prova testemunhal recaem na presunção de que “os homens percebam e narrem a verdade, presunção fundada, por sua vez, na experiência geral da humanidade, a qual mostra como na realidade, e no maior número de casos, o homem é verídico” (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 12).
No ordenamento jurídico brasileiro, ela se encontra normatizada no Código de Processo Civil, ao qual o art. 442 afirma que a mesma é sempre admissível, exceto nas restrições que a própria lei impõe.
No Brasil, a testemunha pode ser identificada como:
QUADRO 1 – Identificação da Prova Testemunhal
TESTEMUNHA |
DESCRIÇÃO |
Referida |
Aquela que, não tendo sido arrolada pelas partes, poderá ser ouvida pelo Juiz por ter sido citada por uma outra testemunha, dita referente. A inquirição da testemunha referida pode ser determinada de ofício ou a partir de requerimento das partes. |
Judicial |
Aquela ouvida por ordem do Juiz, independentemente de indicação ou requerimento das partes. |
Própria |
Depõe sobre fatos que dizem respeito diretamente ao objeto do processo, ao thema probandum, seja porque os presenciou, seja porque deles ouviu dizer. |
Imprópria ou Instrumental |
Declara ou certifica fatos que não se referem diretamente ao mérito da ação penal. Na verdade, a testemunha imprópria não presenciou nem ouviu dizer dos fatos objeto da ação, mas assistiu a um ato da persecutio criminis, seja na primeira ou na sua segunda fase, funcionando como um meio de garantia da veracidade e da legalidade de determinado ato. |
Informante ou declarante |
É a testemunha que está dispensada por lei a prestar o compromisso. São elas os doentes e deficientes mentais e os menores de 14 anos, além de todas aquelas elencadas no art. 208, CPP. |
Direta |
É a testemunha de visu, que sabe dos fatos porque os viu diretamente, os presenciou sensorialmente. |
Indireta |
Esta testemunha declara sobre o que ouviu dizer e não a respeito do que viu, testemunha de auditu. |
Fonte: MOREIRA (2016)
De todo modo, a prova testemunhal é de suma importância para o Direito brasileiro. Objetivando nortear o juiz na formação de seu convencimento, a prova testemunhal é uma importante ferramenta para que com base nos fatos narrados pela testemunha, o magistrado possa julgar a demanda de forma justa e correta.
Nesse tipo de prova, é coerente entender que se deve ater aos mínimos detalhes, pois apenas o depoimento da testemunha não é suficiente, é preciso verificar se há possíveis motivos de contradita, se as outras provas no processo estão em acordo com o relatado pela testemunha, dentre outros pontos.
No que se refere aos direitos e deveres das testemunhas, entre os quais está a importância de dizer a verdade, o de serem reembolsadas dos valores gastos com sua locomoção, e o direito de ser tratada com respeito (NEVES, 2017).
4. A PROVA TESTEMUNHAL NO CRIME DE ESTUPRO
Praticado desde os primórdios da civilização, o crime de estupro, atualmente, está normatizado no código penal com texto trazido pela Lei nº 12.015/09 (BRASIL, 2009). Em seu texto diz:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
(BRASIL, 2009)
Conceitualmente, o estupro é o delito que fere a liberdade sexual do indivíduo. É a quebra da liberdade de escolha de uma pessoa, que contra a sua vontade pratica um ato sexual com terceiro (CUNHA, 2017). Gonçalves (2020) exemplifica que a liberdade sexual, nesses casos é efetivada por meio do consentimento. Quando há uma violação dessa liberdade, a ponto de impedir que a vítima possa exercer esse poder de consentimento, adentra-se a natureza originária do crime de estupro.
Insta salientar que dentro do crime de estupro existem determinadas vítimas que pelas suas características acaba por receber tratamento diferenciado pelo Código Penal brasileiro. Nesse grupo encontra-se crianças, adolescentes ou algum deficiente físico por exemplo. O que eles têm em comum são a sua vulnerabilidade, que nos crimes de natureza sexual recebe atenção especial., que neste caso se denomina de estupro de vulnerável.
O crime de estupro de vulnerável se encontra presente no art. 217-A do códex penalista brasileiro e tem o seguinte texto:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
§ 2º Vetado
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
(BRASIL, 2009)
Passados essas considerações preliminares sobre tais crimes, no que concerne a discussão central desse estudo, nota-se que a palavra da vítima é de fundamental importância para o meio de prova nestes delitos.
Como bem cita Cunha (2017) um dos maiores desafios durante o processo investigatório dos crimes sexuais é o colhimento probatório da palavra da vítima. Muitas vítimas sofrem severos abalos emocionais, além dos físicos, fazendo com que esse quadro psicológico possa interferir no seu depoimento testemunhal.
Por conta disso, em crimes dessa natureza, os depoimentos prestados pelas vítimas se tornam essenciais, haja vista que em muitos casos não se encontra outros meios de prova. Nesses casos, o que a vítima disser sobre o ocorrido e se esse depoimento se alinhar sobre as informações que forem coletadas durante a persecução processual, o seu testemunho pode ser suficiente para a sentença condenatória (PACELLI, 2017).
No texto do art. 167 do Código de Processo Penal deixa claro que na ausência do exame de corpo de delito, a prova testemunhal poderá substituí-la. Insta salientar que esse fato não é regra geral e sim a única hipótese (taxativo). (PIERI; VASCONCELOS, 2017).
No entanto, pelo fato de a vítima possuir o objetivo de conseguir a condenação do acusado, ela pode prestar testemunho tendencioso. Para fugir dessas “armadilhas”, deve o magistrado dar relevância tanto da palavra da vítima quanto da defesa do acusado. Para isso, o juiz tem de buscar informações no que se refere aos antecedentes criminais, dados pessoais, dentre outros, da vítima. Do acusado deve observar os relacionamentos anteriores, algum sinal de violência, entre outras informações (PACELLI, 2017).
Assim, é evidente considerar que a palavra da vítima na testemunha da ocorrência de um crime de estupro assume papel decisivo no processo, independente do seu estado psicológico e emocional. A sua palavra juntamente com outros indícios probatórios, ajuda o juiz a tomar a decisão justa (BARBOSA, 2019).
Tão importante que em 2018 o Superior Tribunal de Justiça divulgou a edição 111 de Jurisprudência em Teses cujo tema era Provas no Processo Penal (II) onde destacou, dentre outras teses, que em “delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que seja em consonância com as demais provas acostadas aos autos”.[2]
Com base nessa tese, encontra-se:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CONDENAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA N. 7 DO STJ. PENA-BASE. CONSEQUÊNCIAS. MOTIVAÇÃO VÁLIDA. CONTINUIDADE DELITIVA. FRAÇÃO ADEQUADA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Para entender-se pela absolvição do recorrente, seria necessário o revolvimento de todo o conjunto fático-probatório produzido nos autos, providência que, conforme cediço é incabível na via do recurso especial, consoante o enunciado na Súmula n. 7 do STJ. 2. É válida a motivação lançada para elevar a pena-base pelas consequências, uma vez que as instâncias ordinárias explicitaram o trauma sofrido pela ofendida, consistente na apresentação de quadro depressivo, acompanhado de automutilação e tendência suicida, bem como alteração em seu desenvolvimento sexual, demonstrada pela repulsa por sexo heterossexual. 3. O julgador está autorizado a impor fração acima do mínimo pela continuidade delitiva nas hipóteses em que ficar inconteste que os abusos de natureza sexual faziam parte da rotina familiar, como no caso. 4. A jurisprudência desta Corte Superior entende que: 'Em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos’. 5. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 1275114/DF AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2018/0081491-5 Relator(a): Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ. Órgão Julgador: T6 - SEXTA TURMA. Data do Julgamento: 21/08/2018. Data da Publicação/Fonte: DJe 03/09/2018). (grifo do autor)
Estefam (2019) acrescenta que no crime de estupro, a palavra da vítima se torna fundamental. Quando ela é relatada de forma firme, clara e segura, bem como se harmonizam com os demais elementos de prova existentes nos autos, certamente o Magistrado irá considerar tais feitos como medida probatória para a condenação nesses casos.
Como já mencionado, é de costume que o delito em comento se reveste de clandestinidade e por tal motivo, a jurisprudência pátria é reiterativa no sentido de que o depoimento da vítima adquire relevância.
Nesse mesmo caminho, cabe citar outra jurisprudência:
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PLEITO ABSOLUTÓRIO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Concluindo o Tribunal de origem, soberano na análise dos elementos fáticos e probatórios carreados aos autos, acerca da suficiência de elementos capazes de imputar a autoria delitiva ao ora agravante, não havendo meio de se desconstituir tal compreensão sem novo e aprofundado exame do conjunto de evidências coletados ao longo da instrução criminal, inviável a alteração do acórdão recorrido, ante o óbice contido no enunciado n. 7 da Súmula desta Corte. 2. A fundamentação adotada pela Corte Estadual acompanha o entendimento jurisprudencial consagrado neste Sodalício no sentido de que, em razão das dificuldades que envolvem a obtenção de provas de crimes que atentam contra a liberdade sexual, praticados, no mais das vezes, longe dos olhos de testemunhas e, normalmente, sem vestígios físicos que permitam a comprovação dos eventos - a palavrada vítima adquire relevo diferenciado, como no caso destes autos. [...] 4. Devidamente caracterizada a conduta descrita no art. 217-A do Código Penal, pelo fato do agravante ter passado a mão na vagina e nas nádegas da menor por debaixo de suas vestes enquanto dormia, impõe-se a condenação pela prática do delito na modalidade consumada, entendimento que guarda harmonia com a jurisprudência deste Sodalício, incidindo, portanto, a Súmula n. 83/STJ. 5. Agravo improvido. (AgRg no AREsp 1245796/SC. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
2018/0030194-7. Relator(a): Ministro JORGE MUSSI. Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA. Data do Julgamento: 07/08/2018. Data da Publicação/Fonte: DJe 17/08/2018). (grifo do autor)
Como mostra o julgado acima, muitas são as situações onde o crime sexual ocorre sem outras testemunhas, ou seja, longe dos olhos de familiares ou terceiros. Isso acaba por dificultar a elucidação dos crimes sexuais. Nesse sentido, a palavra da vítima se torna fundamental, porque é ela quem irá condicionar a investigação e posteriormente a identificação da autoria do crime.
Ainda nesse cenário, importante salientar que a materialidade dos crimes contra a liberdade sexual prescinde de demonstrativo técnico pericial, considerando que tais ações não necessariamente deixam vestígios detectáveis.
Sobre a questão, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, inclusive, que no crime de estupro a não realização de prova pericial não compromete o acervo probatório, quando presentes outros elementos de convicção a ensejar a condenação:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMPUGNAÇÃO AO FUNDAMENTO DA DECISÃO ATACADA. AGRAVO QUE DEVE SER CONHECIDO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO. SÚMULA 7/STJ. PROVA PERICIAL NÃO PRODUZIDA. PRESCINDIBILIDADE. HIGIDEZ DO CONJUNTO PROBATÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO PARA CONHECER DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL MAS LHE NEGAR PROVIMENTO. (...) 3. A não realização de laudo pericial não compromete a higidez do conjunto probatório que indica a existência de elementos concretos, coesos e idôneos a ensejar a condenação pelo crime de estupro de vulnerável. 4. É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em crimes contra a liberdade sexual, praticados, em regra, de modo clandestino, a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios. (...) (AgRg no AREsp 1586879/MS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 03/03/2020, DJe 09/03/2020)
No mesmo sentido, Nucci (2017, p. 693) também defende que o exame de corpo de delito é mesmo prescindível para comprovação da materialidade do referido crime, vez que “pode-se provar a existência do estupro por outras provas, inclusive pela palavra da vítima, quando convincente e segura”.
Neste caso, o estupro pode ocorrer através de vias de fato, que não deixam marcas visíveis e passíveis de constatação por exame de corpo de delito. Além disso, pode ocorrer por meio da grave ameaça, que também não deixa vestígios. Desta forma, Masson (2019) entende que não se pode rechaçar a existência do crime de estupro à luz, tão somente, do resultado da prova técnica, vez que o delito nem sempre deixa marcas visíveis e passíveis de constatação por exame de corpo de delito, podendo a ocorrência do fato criminoso ser demonstrada por outras provas.
Apesar de estar claro a relevância da palavra da vítima, a sua credibilidade pode ser corrompida quando verificada que dúvidas ou contradições. Além disso, muitas “vítimas” agem de má fé quando denunciam um crime de estupro. Nesses casos, esses agentes imputam a culpa a uma pessoa específica de forma injusta.
Tem-se como exemplo, os casos onde há denúncia de crime de estupro de vulnerável. Por se tratar de vítimas vulneráveis, portanto, dependentes de terceiros, muitos são influenciados por estes a testemunharem em desfavor de uma pessoa. Por essa razão, é plenamente possível que haja uma denúncia influenciada por terceiros (geralmente os próprios pais ou outros interessados) que visem prejudicar o suposto agressor (PACELLI, 2017).
Cabe ressaltar também, as falsas memórias, comuns em numerosos casos. Conceitualmente, as falsas memórias são entendidas como aquelas “lembranças de casos ou situações que não existiram, de ocorrências que não estivera presente, de locais que nunca foi, ou de lembranças distorcidas” (STEIN; PERGHER, 2001 apud RIBEIRO, 2019, p. 04).
Nesse sentido, Barbosa (2019, p. 08) salienta que “o processo penal acaba por depender, excessivamente, da ‘memória’ das testemunhas, desconsiderando o imenso perigo que isso encerra”. E isso é perigoso, uma vez que a memória humana é bastante frágil, manipulável e traiçoeira.
Nesse sentido, quando o relato da vítima não está condizente com as outras provas adquiridas, necessário impor a absolvição do réu. Sobre essa questão, cabe citar o seguinte julgado que discorre a respeito desse assunto:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CONDENAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA N. 7 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O Tribunal de origem não reconheceu provas suficientes a atribuir o ato delituoso de estupro de vulnerável ao ora recorrido. Vale dizer, a Corte de origem teve dúvida - devidamente fundamentada sobre o dolo de satisfação da lascívia por meio de ato libidinoso diverso da conjunção carnal. 2. Para desconstituir essa conclusão - afirmar que houve, sim, a prática do ato libidinoso descrito na denúncia -, necessário seria o reexame das provas acostadas aos autos, o que é vedado pela Súmula n. 7 desta Corte. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.643.855/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 4/12/2017).
Assim, ter como base apenas a palavra da vítima para a condenação do acusado se mostra um enorme desafio ao direito penal brasileiro. Muitas vezes, postas em juízo não querem desagradar o psicólogo o juiz, o promotor ou qualquer outro responsável que lhe acompanha, assim como temem sofrer represálias por não saber as consequências de tais atitudes (GARBIN, 2016).
Ademais, para fins desse estudo, entende-se que se basear unicamente na palavra da vítima como prova única nos crimes sexuais, ainda que seja de extrema relevância, apresenta um enorme risco, justamente por apresentar indícios de influência de terceiros ou de falsa memória. Nesse ponto, o ideal seria aliar o testemunho apresentado com outras provas cabíveis. Em caso de dúvida, aplica-se o princípio do in dúbio pro reo, uma vez que pode vir trazer a inocência do réu (GARBIN, 2016).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os crimes sexuais em sua grande maioria são considerados crimes clandestinos, pois ocorrem em lugares íntimos ou obscuros, sem testemunhas. Nessas situações a única forma de se provar a autoria e a materialidade do crime são por meio da palavra da vítima.
Diante desse fato, muito se questiona no meio jurídico e social a real importância que a palavra da vítima possui para definir a ocorrência do crime e o seu autor. Isso se torna ainda mais importante quando se analisa os crimes sexuais e a sua complexidade.
Desse modo, a análise desse tema se torna importante, porque a prova testemunhal, em que pese a sua importância, pode não ser totalmente eficaz na comprovação de um crime sexual, como por exemplo, no caso de estupro. No decorrer desse estudo, evidenciou casos jurídicos onde a vítima teve a sua credibilidade afetada por apresentar fatos do crime de forma desconexa ou por falsas memórias.
Com isso, na ocorrência de uma prova testemunhal frágil ou incoerente, podem ocorrer diversas consequências, como por exemplo, em erro judiciário. Assim, fica evidente vislumbrar o quão necessário se torna a discussão sobre esse tema.
Em razão do fato de não se pode deixar um delituoso sem a devida condenação nos crimes de natureza sexual, e nos casos de não haver provas da materialidade do delito, atribui-se enorme valoração à palavra da vítima nesses tipos de delitos, sejam eles praticados na clandestinidade ou não. No primeiro caso, se faz necessário que a palavra da vítima seja inalterada no curso da ação penal, também de maneira segura, coerente, estável e harmônica juntamente com a ocorrência dos fatos, para que assim não tenham uma inequívoca punição à um inocente.
Todavia, o testemunho da vítima no crime de estupro é também muito arriscado, sendo encontrada uma enorme quantidade de denúncias caluniosas e mentirosas, tendo como consequências o prejuízo na imagem social do acusado e a possível prisão de um inocente. Nesse sentido, quando o relato da vítima não está condizente com as outras provas adquiridas, necessário impor a absolvição do réu.
Ademais, evidencia-se o entendimento de que a palavra da vítima assume relevante importância em casos de estupro, desde que em harmonia com os demais elementos de prova, devendo sempre ser cotejada com a totalidade do conjunto probatório, não sendo hábil, por si só, a fundamentar um decreto condenatório, o qual exige absoluta certeza e segurança acerca da materialidade e autoria delitivas.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Wanderley Sand da Cruz. Estupro de vulnerável e o risco de atribuir o valor probante à palavra da vítima. 2019. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53612/estupro-de-vulnervel-o-risco-de-atribuir-o-valor-probante-palavra-da-vtima. Acesso em: 18 mar. 2023.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://planalto.gov.br. Acesso em: 18 mar. 2023.
__________ Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009. Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual. Disponível em: http://planalto.gov.br. Acesso em: 18 mar. 2023.
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NOTAS:
[1] Docente do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: [email protected].
[2] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp. Acesso em: 28 abr. 2023.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Gêovanna Carneiro. A credibilidade da palavra da vítima nos crimes de estupro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 maio 2023, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61402/a-credibilidade-da-palavra-da-vtima-nos-crimes-de-estupro. Acesso em: 23 dez 2024.
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