RESUMO: Este artigo tem como objeto de estudo os critérios da LOAS para o recebimento do BPC (Benefício de Prestação Continuada), buscando trazer reflexões acerca das mudanças ocorridas na lei no decorrer do tempo e os impactos delas para os usuários em situação de vulnerabilidade que necessitam do benefício. Além disso, busca uma reflexão a respeito das melhoras já obtidas e as que poderão vir, para que assim sejam alcançados os que ainda não usufruem do direito que lhe é devido, através do recebimento do BPC, sem a necessidade de judicialização da demanda.
Palavras-chave: LOAS. Benefício de Prestação Continuada. Critérios. Judicialização.
CONSIDERATIONS ON THE CRITERIA FOR GRANTING THE BPC (CONTINUOUS PROVISION BENEFIT) IN THE LOAS AND ITS REAL IMPACTS ON THE VULNERABLE PEOPLE
ABSTRACT: This article has as object of study the LOAS criteria for receiving the BPC (Benefit of Continued Provision), seeking to bring reflections on the changes that have occurred in the law over time and their impacts on users in vulnerable situations who need the benefit. In addition, it seeks a reflection on the improvements already obtained and those that may come, so that those who still do not enjoy the right that is due to them, through receipt of the BPC, without the need for judicialization of the demand.
Key words: LOAS. Benefit of Continued Provision. Criteria. Judicialization.
1.Introdução
A autora Marisa Ferreira dos Santos trouxe em seu Manual de Direito Previdenciário que "a evolução socioeconômica faz com que as desigualdades se acentuem entre os membros da mesma comunidade e da comunidade internacional. A pobreza não é um problema apenas individual, mas, sim, social." (SANTOS, 2022, p.46)[1]. De fato, as situações de riqueza e pobreza que vemos hoje são um produto de anos de evolução socioeconômica, que concentrou grandes fortunas em poucas mãos e isolou às margens da sociedade grandes parcelas da população.
Conforme a Síntese de Indicadores Social, estudo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a tabela que apresentou a total e respectiva distribuição percentual das pessoas, por classes de rendimento domiciliar per capita, segundo as Grandes Regiões e as Unidades da Federação – Brasil, em 2021, mostrou que, no país, 12,6% das pessoas viviam com uma renda de mais de zero até ¼ de salário mínimo per capita e 19,8% viviam com uma renda de mais de ¼ até ½ de salário mínimo per capita, sendo o número de 212.577 pessoas analisadas. A partir da análise da tabela e considerando que um dos critérios para a concessão do BPC é o de renda, é possível auferir o impacto que a distribuição de renda no Brasil tem no aumento de pedidos do BPC ao longo dos anos.
Com a promulgação da CRFB em 1988, os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana ficaram em evidência, trazendo consigo as políticas assistenciais, que vieram para tentar reduzir os abismos sociais, que se formaram no decorrer da construção social. Em seu art. 203, V, a CF/88 traz que: “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...] V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”[2].
Para se operacionalizar o que a Constituição trouxe no artigo supracitado, foi criado o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, em 27 de junho de 1990, por meio do Decreto n° 99.350, a partir da fusão do Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social – IAPAS com o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, como autarquia vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS, sendo atualmente vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência.
O INSS caracteriza-se como uma organização pública prestadora de serviços previdenciários para a sociedade brasileira. É nesse contexto, o Instituto deve buscar alternativas de melhoria contínua para prestar um serviço íntegro ao público, ressaltando a otimização de resultados e de ferramentas que fundamentem o processo de atendimento ideal aos anseios dos cidadãos.
Seguindo a cronologia, em 7 de dezembro de 1993 foi promulgada a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), trazendo consigo em seu capítulo IV (Dos Benefícios, dos Serviços, dos Programas e dos Projetos de Assistência Social), na seção I o “Benefício de Prestação Continuada”, objeto de análise do presente artigo.
Desde então, ocorreram várias mudanças nos critérios para a concessão desse benefício, assim como mudanças no contexto social e econômico da população brasileira. Diante do exposto, torna-se necessária a análise da evolução dos critérios trazidos na LOAS para esse Benefício, juntamente com o decreto que o regulamenta (decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007), para que seja feita uma análise dos critérios de concessão, em conformidade com os ideais constitucionais e o impacto que gera na vida das pessoas que dele são potenciais beneficiários.
2.Os critérios para a concessão do BPC trazidos no artigo 20 da LOAS
O BPC-LOAS é um benefício que pode ser obtido através de solicitação para o INSS pelas pessoas com deficiência ou idosos, acima dos 65 (sessenta e cinco) anos de idade. A LOAS traz em seu art. 20 os critérios para a concessão desse benefício. Os benefícios assistenciais possuem um papel fundamental na busca pela equidade entre os cidadãos, bem como, a garantia do mínimo social para cada indivíduo viver dignamente em igualdade de condições para com os seus. Nesse liame, a assistência social, pertencente aos direitos sociais, constituem ramos da dignidade humana, princípio garantidor das condições básicas a toda pessoa necessitada e que devem ser cumpridos em sua integralidade, perfazendo o objetivo constante na Constituição de suprir as necessidades do povo. Ocorre que, na prática, o cenário visto entra em dissonância com a lei: os critérios elencados por ela encontram-se em desconformidade com a realidade das pessoas que necessitam desse benefício para garantir o seu mínimo existencial.
Insta salientar que, conforme disposto na Constituição em seu artigo 194, a assistência social constitui uma das políticas inseridas no âmbito da seguridade social, estando disciplinada pelos artigos 203 e 204 da Carta Magna Brasileira. Dessa forma, possuem objetivo de reduzir as desigualdades na sociedade e alcançar o maior número de pessoas. Nota-se, portanto, que a Lei Orgânica da Assistência Social possui foco no amparo às famílias em todos os estágios da vida (infância, adolescência e velhice); assim, o papel da assistência social é garantir o bem-estar coletivo dos cidadãos, sem distinções.
O art. 20, caput, da LOAS (Lei nº 8.742 de 1993) expõe:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.[3]
Cumpre destacar que a redação da lei é bem clara ao designar o benefício aos idosos e deficientes que não possuírem meios de prover a própria manutenção, nem de tê-la provida por sua família, o que perpassa pela ideia de vulnerabilidade dos potenciais usuários desse benefício. O decreto regulamentador do BPC (decreto nº 6.214 de 2007), informa em seu art. 12, caput, que:
Art. 12. São requisitos para a concessão, a manutenção e a revisão do benefício as inscrições no Cadastro de Pessoas Físicas - CPF e no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal - CadÚnico.[4]
É de extrema importância que o BPC esteja vinculado ao Cadastro da Assistência Social, não somente para o controle, mas também para acompanhamento pela rede de serviços socioassistenciais dos beneficiários e dos que requerem e não têm o acesso garantido.
Já em seu §1º, o art. 20 define o conceito de família no BPC. Para o BPC, família é o conjunto de pessoas compostos pelo requerente, cônjuge ou companheiro (a), os pais ou padrastos ou madrastas, irmãos solteiros, filhos e enteados solteiros e menores tutelados, sob um mesmo teto. Este critério de família é diferente do critério adotado por políticas assistenciais, já que considera consanguinidade e vínculos civis, excluindo pessoas que vivam na mesma residência sem parentesco direto. O critério do BPC está mais próximo do utilizado por políticas previdenciárias do que o empregado em política assistencial. No âmbito do Cadastro Único, família é qualquer agrupamento de pessoas vivendo em um mesmo domicílio, contribuindo para os rendimentos ou para as despesas do domicílio.
Em seu §3º, o vigésimo artigo da LOAS traz o critério da renda e diz que “observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei, terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo”.
O critério de renda é alvo de controvérsias desde a promulgação da LOAS. O STF, julgando o Recurso Extraordinário nº 567.9859, declarou a parte do artigo concernente a este critério inconstitucional em 2013, embora não tenha revogado o trecho, sendo utilizado pelo INSS nas concessões administrativas na, até então, inexistência de legislação que suprisse esse critério. Conforme o Acórdão 1.435/2020 do TCU, as concessões administrativas acabam usando o critério de renda do texto da lei, sem considerar outros critérios de miserabilidade. Em 2021, através da Lei n. 14.176, foi introduzido o §11-A no art. 20 da LOAS, que traz consigo a possibilidade de flexibilização da renda per capita até ½ do salário-mínimo para fins de concessão do benefício; contudo, essa possibilidade de flexibilização é acompanhada de outros critérios, que também serão analisados ao decorrer dos próximos tópicos.
2.1. Os critérios do BPC em relação às pessoas idosas
Na redação original da LOAS, pessoa idosa era aquela com 70 anos ou mais (art. 20). Posteriormente, com a vigência do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1º.10.2003), a idade foi alterada para 65 anos. A Lei n. 12.435/2011 alterou o art. 20, que passou a considerar pessoa idosa, para fins de BPC, aquela com 65 anos ou mais.
O Estatuto do Idoso seu art. 1º define idoso como “aquele que tem idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos”. Assim, é dissonante o que se encontra determinado no art. 1º do Estatuto com a previsão constante do seu art. 34, isso porque a Lei 10.741/03 surge no intuito de regular os direitos das pessoas com idade a partir dos 60 (sessenta) anos, não devendo haver distinção entre elas. Pelo exposto, essa incongruência legislativa presente no Estatuto do Idoso demonstra que a política pública da assistência social materializada através do BPC não é efetiva em garantir amparo aos idosos necessitados, a partir da própria definição de pessoa idosa constante do Estatuto, tendo em vista que a população idosa com idade entre 60 (sessenta) e 64 (sessenta e quatro) anos que não possui meios de prover a própria manutenção, nem de tê-la mantida pela sua família, não é alcançada pelo benefício assistencial, ficando à margem da proteção estatal nesse quesito.
É certo que a Lei Orgânica da Assistência Social, por meio da previsão de critérios considerados rigorosos para a concessão do BPC, acabou delimitando de forma arbitrária quem seriam os seus beneficiários, o que restringiu de forma substancial o acesso ao benefício. O critério etário adotado pela LOAS, influenciado pelo Estatuto do Idoso, desequipara situações idênticas, uma vez que idosos com idade a partir de 60 (sessenta) anos que se encontram em situação de miserabilidade necessitam da proteção estatal no intuito de ampará-los, igualmente aos idosos com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais. Nesse sentido, pode-se dizer que houve uma violação ao princípio constitucional da igualdade.
O art. 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741, de 2003, o Estatuto do Idoso, estabelece que o BPC pago a idosos não é computado para fins de cálculo da renda familiar per capita. Assim, caso uma família tenha duas pessoas idosas e uma já receba o BPC, essa renda não deve ser considerada caso a outra pessoa também requeira o benefício. Até 2020, o mesmo não ocorria para pessoas com deficiência, de modo que a renda recebida pelo BPC por uma pessoa com deficiência entraria no cômputo da renda familiar per capita, sendo este um fator de intensa judicialização. Após a introdução do §14 no art. 20, através da lei n. 13.982 de 2020, o mesmo critério de não extensão da renda passou a ser aplicado às pessoas com deficiência.
Por exemplo, se um membro de uma casa já possui uma aposentadoria, uma criança com deficiência que more nessa mesma casa não poderá receber o BPC, por conta da limitação imposta pela lei (art. 20, §4º, da LOAS). Ocorre que na maioria dos casos, o benefício já recebido (no exemplo, a aposentadoria) não é suficiente para manter os que moram nesse lar.
2.2. Os critérios do BPC em relação às pessoas com deficiência
Conforme as autoras Karen Almeida e Aliceane Vieira “o BPC como política de transferência de renda para as pessoas com deficiência torna-se algo indiscutível para a diminuição da vulnerabilidade que elas transpassam no decorrer da sua vida”[5]. A deficiência deixa de ser responsabilidade exclusiva da família e das instituições de caráter filantrópico, para ser preocupação, também, do Estado, assumindo a responsabilidade não apenas como uma política pública, mas apoiando beneficentes sem fins lucrativos, adotando um modelo assistencialista e, principalmente, adotando políticas de integração social da pessoa com deficiência, facilitando o seu acesso aos logradouros públicos e privados e aos meios de consumo coletivo.
No entanto, o BPC não representa apenas a melhoria do ponto de vista material das pessoas com deficiência, o benefício traz autonomia e independência social dos usuários com relação ao seu meio familiar e social, embora esse benefício seja voltado para a família como um todo. Pois, em muitos casos, consiste na principal renda da família, tornando uma fonte que ameniza a situação de extrema pobreza familiar. Ou seja, o repasse do BPC torna-se para a família um meio para atender às suas necessidades mínimas.
No que diz respeito ao critério de miserabilidade da família dos beneficiários, além da avaliação da renda per capita inferior a um quarto do salário-mínimo, será verificado o patrimônio familiar, algo posto nos últimos tempos pela agenda dos governos neoliberais em relação ao desmonte dos direitos sociais, ocasionando um retrocesso nesta área. Ou seja, a mudança ocorrida no contexto social e político da sociedade brasileira, impactou as regras do BPC; logo, impactou também os que dele necessitam.
Importante destacar que pessoa com deficiência não é o mesmo que “pessoa incapaz”, sendo que muitas vezes, por confusão desses conceitos, os pais ou parentes acabam impedindo seus filhos com deficiência de estudar e de se qualificar, apenas para não perderem o direito a esse salário-mínimo. Nas palavras da autora Marisa Santos:
"A CF de 1988 quis dar proteção às pessoas com deficiências físicas e psíquicas em razão das dificuldades de colocação no mercado de trabalho e de integração na vida da comunidade. Não tratou de incapacidade para o trabalho, mas, sim, de ausência de meios de prover à própria manutenção ou tê-la provida pela família, situações que não são sinônimas." (SANTOS, 2022, p.335)
Nesse sentido, a Súmula 29 da TNU dos Juizados Especiais Federais expõe que: “Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento”.
O art. 20, §3º, da LOAS diz: “Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. ” Essa definição se deu a partir da Lei nº 13.146 de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que traz em seu art. 2º esta definição. Conforme observa a autora Marisa Santos:
"A alteração, aparentemente, foi apenas de redação. Porém, é de grande importância porque o conceito de pessoa com deficiência trazido pelo Estatuto, incorporado à LOAS, restou uniformizado na legislação brasileira, afastando o subjetivismo na apreciação do caso concreto. E mais: a nova redação não utiliza a palavra “impedimentos”, mas, sim, “impedimento”, o que pode sinalizar que, a partir da vigência do Estatuto, basta apenas um impedimento, e que a redação anterior exigia a comprovação de mais de um impedimento para que se aperfeiçoasse a contingência." (SANTOS, 2022, p.338)
Além do critério de renda, as pessoas com deficiência ficam sujeitas à avaliação da deficiência e do grau de impedimento, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social – INSS. Esse critério é importante para se ter um filtro e controle dos benefícios, apesar de muitas vezes acontecerem arbitrariedades, pois mesmo com um questionário padrão, e a existência de pessoas com as mesmas respostas, umas recebem a concessão administrativa do benefício e outras não.
Ainda, os impedimentos de longo prazo devem ter duração mínima de 2 anos (§ 10 do art. 20 da LOAS). Isso quer dizer que, se o prognóstico médico for de impedimento por período inferior, não estará configurada a condição de pessoa com deficiência para fins de benefício de prestação continuada.
3.A mudança trazida pela lei nº 14.176 de 2021
Em 2021, em um contexto de um ano pós início da pandemia do COVID-19, foi editada a lei n. 14.176 de 2021 que alterou a redação do §3º do art. 20, incluiu o § 11-A, e inseriu o art. 20-B na LOAS. O § 3º do art. 20 da LOAS ficou com a seguinte redação: “observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei, terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo”. Sobre esse parágrafo, se tem uma das maiores controvérsias da LOAS: o critério da renda.
Inicialmente, importante é refletir que o BPC é uma parcela de proteção assistencial que se consubstancia em benefício e a CF/88 almeja que esse benefício seja a garantia da manutenção da pessoa com deficiência ou idosa que não tenha ninguém por si, o fixando em um salário-mínimo. O bem-estar social está qualificado e quantificado na CF: qualificado porque se efetiva com a implementação dos direitos sociais; quantificado porque a CF fixou em um salário-mínimo a remuneração mínima e o valor dos benefícios previdenciários, demonstrando que ninguém pode ter seu sustento provido com valor inferior.
Por conseguinte, partindo da premissa supracitada, o requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Atualmente, em 2023, por exemplo, o salário-mínimo é de R$ 1.302,00, ou seja, para estar apto ao requisito da renda, cada pessoa do grupo familiar deveria viver com R$ 325,50 ou menos.
O Supremo Tribunal Federal (STF), através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232- 1/DF, declarou como constitucional o §3º do artigo 20 da LOAS; contudo, diante da inalteração do dispositivo, o julgamento não encerrou os debates acerca do critério econômico. Com a inclusão do §11-A no art. 20 da LOAS, a partir da Lei n. 14.176 de 2021, foi estabelecido que poderá ser ampliado o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º do mesmo artigo, para até 1/2 (meio) salário-mínimo, analisados outros critérios trazidos no art. 20-B quais sejam: o grau da deficiência, a dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária e o comprometimento do orçamento do núcleo familiar de que trata o § 3º do art. 20 da referida lei exclusivamente com gastos médicos, com tratamentos de saúde, com 6 fraldas, com alimentos especiais e com medicamentos do idoso ou da pessoa com deficiência não disponibilizados gratuitamente pelo SUS, ou com serviços não prestados pelo Suas (Sistema Único de Assistência Social), desde que comprovadamente necessários à preservação da saúde e da vida. Assim, estipula-se que os magistrados podem reconhecer a miserabilidade do requerente com base em outros requisitos, para assim ampliar o critério da renda em até ½ do salário-mínimo per capita.
Dessa forma, observa-se que, mesmo diante da declaração de constitucionalidade do §3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, o qual estabelece como critério econômico ¼ do salário-mínimo, a análise pelo magistrado pode se dar de forma extensiva, no sentido de verificar outros requisitos norteadores da situação econômica do beneficiário, o que se consolidou com a lei nº 14.176 de 2021.
4.A questão da intensa judicialização e os impactos aos vulneráveis
Sabe-se que em tese o Brasil funciona com uma organização de poderes. Atribuir poder à pessoa física ou jurídica significa imputar-lhe uma autoridade para que mantenha a ordem, a segurança e o progresso. No âmbito da organização do Estado Moderno aparece a divisão dos poderes, cabendo ao legislativo “elaborar as leis (...), mas cabe-lhe, outrossim, fiscalizar e impor a boa execução delas”. Além disso, o “Legislativo, através de uma lei orçamentária anual, é que dará ao Executivo o dinheiro para as despesas legais”. Quanto ao poder judiciário a competência diz respeito à aplicação da lei, assim ele não participa da “feitura das leis”.
A real função social do processo deve corresponder à concretização de seus escopos sociais e políticos de efetivação do direito material, de acordo com uma precisa equalização dos valores celeridade e segurança. O princípio constitucional da duração razoável do processo está previsto no art. 5º, inciso LXXVIII, da CRFB/88, com redação dada pela EC 45/2004, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Nesses termos, não há o que se discutir a respeito da aplicabilidade do princípio da razoável duração do processo no âmbito administrativo, visto que esse está previsto em par de igualdade no texto constitucional no que se refere aos processos judiciais.
Ainda, por se tratar de direito fundamental, já que inserido no art. 5º da CRFB/88, o direito à razoável duração do processo deve ser direcionado a todos os poderes do Estado. De acordo com esse princípio, é direito do administrado/jurisdicionado a obtenção de uma resposta a sua pretensão em um prazo razoável em relação à demanda, ou seja, de acordo com a complexidade de cada caso concreto, espera-se uma resolução célere e eficaz, guardadas as devidas proporções, buscando-se, assim, a garantia do devido processo. Assim, o Instituto Nacional do Seguro Social, enquanto autarquia ligada ao Poder Executivo federal, deve obediência ao referido princípio quando da análise dos processos administrativos de requerimento de benefício, seja na área do direito previdenciário ou assistencial.
Contudo, por conta da burocracia dos requerimentos administrativos, há uma intensa judicialização da demanda de requerimentos de BPC, antes mesmo de o Instituto emitir uma resposta ao requerimento apresentado, uma vez que a demora excessiva no atendimento se equipara ao próprio indeferimento do benefício, devido aos prejuízos que o requerente pode vir a sofrer, por se tratar de parcelas de caráter alimentar. Desta forma, o judiciário encontra-se lotado, o que causa uma mora maior e as pessoas que precisam daquele benefício assistencial, muitas vezes se encontram sem amparo durante um longo período, tenso suas perícias desmarcadas.
Conforme o art. 3º da Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, “Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.”[6] A maioria dos processos de BPC encontram-se nesses juizados, que muitas vezes permanecem em mora por conta da grande demanda, causando angústia aos que esperam um resultado favorável ao litigar em um processo judicial. Este processo de judicialização do BPC mostra a dificuldade enfrentada pelos beneficiários da assistência social, que além de se encontrarem numa situação de extrema necessidade, enfrentam óbices à concretização de direitos relativos à seguridade social e, portanto, de direitos fundamentais, tendo em vista o acesso ainda restrito à justiça por parte dessa parcela da sociedade.
Mesmo em um mundo tão modernizado, com acesso a diversas tecnologias, deve-se entender que o BPC é voltado para pessoas em estado de miserabilidade, sendo que um dos potenciais beneficiários são idosos, ou seja, pessoas que geralmente possuem mais dificuldade em manusear aparelhos telefônicos e mais dificuldade em dar continuidade a trâmites como escanear e enviar documentos, responder ou mandar e-mails e etc. Portanto, um impacto positivo aos potenciais usuários do BPC seria a prestação de serviços presenciais adequados, seja pelos servidores do INSS ou pessoas que prestam serviço no judiciário, os quais devem ser solícitos e colaborar no que for preciso a essas pessoas, semelhante ao trabalho realizado nas Defensorias Públicas da União, que também se encontram com bastante assistidos que requerem o BPC judicialmente.
5.Considerações finais
Os direitos sociais possuem papel fundamental na concretização da dignidade humana pois garantem o básico para uma vida digna e justa, através da implementação de políticas públicas e prestação jurisdicional. Nesse liame, das políticas públicas, nascem os direitos assistenciais, que auxiliam os mais necessitados a se manterem e sobrevierem. Nesse sentido, o benefício de prestação continuada surge para proporcionar uma melhoria na qualidade de vida das pessoas com deficiência e de idosos incapazes de prover a própria manutenção, na busca da concretização dos fundamentos da República, a exemplo da dignidade da pessoa humana, ao garantir a essas pessoas condições mínimas para a manutenção de uma vida digna.
No entanto, conforme previsão do próprio texto constitucional, esse direito necessitava de criação de uma lei que o regulamentasse, ou seja, por ser tal norma considerada de eficácia limitada de princípio programático, estava condicionada à lei infraconstitucional, que lhe garantisse aplicabilidade. A regulamentação do BPC se deu, então, a partir da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que estabeleceu os requisitos necessários para concessão do benefício, dentre eles o critério etário, o de impedimento de longo prazo e o da renda, sendo esse último o requisito mais questionado no âmbito do Poder Judiciário, tendo em vista a sua definição num patamar tão baixo, sendo necessária a constatação de que a renda familiar per capita do requerente seja inferior a ¼ do salário mínimo vigente para fins de concessão do benefício.
Apesar da promulgação da Lei n. 14.176 de 2021 consolidar que esse critério da renda pode ser ampliado até ½ do salário-mínimo, analisados outros requisitos, o Instituto Nacional do Seguro Social, responsável pela análise dos requerimentos do benefício, continua a utilizar o critério de ¼ do salário mínimo para analisar os requerimentos, acarretando o indeferimento do benefício ainda que em situações de patente vulnerabilidade. Com isso, os potenciais usuários do BPC, que se encontram em situação de vulnerabilidade, continuam recorrendo ao Poder Judiciário para que possam ter acesso a um direito fundamental básico: o direito à assistência social, o que faz crescer cada vez mais o processo de judicialização do BPC.
Essa crescente judicialização impacta na dignidade humana dessas pessoas, pois o trâmite dispendioso acarreta inúmeros prejuízos, tais quais a falta de recursos financeiros para custeio de alimentos e medicamentos. Percebe-se que a dignidade dos demandantes é prejudicada pela demora na obtenção do direito e que através de reformulação do sistema, poderia ser evitado.
Assim, a dignidade da pessoa humana como princípio norteador dos Direitos Humanos deve ser cumprida em sua integralidade, para a manutenção da vida digna para os cidadãos, bem como firmar conceitos como igualdade e liberdade, assegurados para cada indivíduo. Apesar dos avanços e modernização da LOAS, no dia-a-dia, ainda se carece de formulação de políticas públicas efetivas que estimulem o Estado e a autarquia em modernizar o processo de inquisição e solicitação de demandas, para assim, evitar o ajuizamento de demandas judiciais que ampliam a morosidade do judiciário, e que impactem positivamente a vida dos idosos e deficientes que necessitam do BPC para viver de forma ao menos minimamente digna.
6. Referências bibliográficas
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SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário / Marisa Ferreira dos Santos ; coord. Pedro Lenza. – 12. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado®)
VIEIRA, Sabrina Nunes. VILLAÇA, Carolina Godoy Leite. Considerações sobre a presunção absoluta de miserabilidade na LOAS: uma análise à luz da tese definida no IRDR 5013036-79.2017.4.04.0000/RS julgado pelo TRF da 4ª região. R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n.12 p. 1-480 jan/dez. 2019
IBGE. ÍNDICADORES SOCIAIS 2021. DISPONÍVEL EM: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?=&t=resultados Acesso em: 16/02/2023. Tabela 2.3
[1] SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário / Marisa Ferreira dos Santos; coord. Pedro Lenza. – 12. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. (Coleção Esquematizado®)
[2] Constituição Federal, 1988.
[3] Lei nº 8.742 de 1993 (LOAS).
[4] Decreto nº 6.214 de 2007.
[5] ALMEIDA, Rayra Karen Nunes. VIEIRA, Aliceane de Almeida. POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA: o BPC como garantia de direitos. Santa Catarina, 2022.
Acadêmica de graduação do 9º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GAIO, JULIA LARANJEIRA. Considerações sobre os critérios para a concessão do BPC (benefício de prestação continuada) trazidos na LOAS e seus reais impactos para os vulneráveis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2023, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61413/consideraes-sobre-os-critrios-para-a-concesso-do-bpc-benefcio-de-prestao-continuada-trazidos-na-loas-e-seus-reais-impactos-para-os-vulnerveis. Acesso em: 23 dez 2024.
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