RESUMO: O presente artigo possui como objeto a análise acerca da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), em cotejo com a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com o objetivo de compreender a sistemática de proteção dos direitos deste grupo de pessoas, especialmente a acessibilidade, a serem garantidos pelo Estado, na condição de executor de políticas públicas e sociais voltadas aos direitos difusos e coletivos. A pesquisa almeja, por fim, entender a função desempenhada pelo Ministério Público enquanto fiscal do ordenamento jurídico, em relação às políticas executadas pelo Poder Público, inerentes a pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida.
PALAVRAS-CHAVE: Acessibilidade; Direitos das Pessoas com Deficiência; Ministério Público.
ABSTRACT: The object of this article is the analysis of Law nº 10.257/2001 (Statute of the City), in comparison with the Federal Constitution of 1988, Statute of Persons with Disabilities and the International Convention on the Rights of Persons with Disabilities, with the objective of understanding the systematic protection of the rights of this people, especially accessibility, to be guaranteed by the State, as executor of public and social policies aimed at diffuse and collective rights. The research aims, finally, to understand the function performed by the Prosecutor's Office as an inspector of the legal system, in relation to the policies implemented by the State, inherent to people with disabilities and with reduced mobility.
KEYWORDS: Accessibility; Rights of Persons with Disabilities; Prosecutor's Office.
INTRODUÇÃO
O presente artigo científico trata a respeito das regras de acessibilidade constantes na Lei nº 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, em cotejo com os direitos humanos e fundamentais, especialmente os previstos na Constituição Federal de 1988, Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência
O presente tema foi escolhido devido à relevância de discutir os direitos dos vulneráveis, que, frequentemente, sofrem violação, sobretudo em relação à acessibilidade e mecanismos que permitam gozar e exercer plenamente a sua capacidade civil, de modo a impedir a consolidação do princípio da igualdade material, da não discriminação, da dignidade da pessoa humana e da inclusão e integração sociais.
A metodologia utilizada para este estudo foi a pesquisa bibliográfica,
buscando os conceitos constantes na doutrina pátria e na jurisprudência pátria e internacional.
O artigo foi elaborado em dois capítulos. O primeiro apresenta o conceito do princípio da igualdade material, da não discriminação, dignidade da pessoa humana e da acessibilidade, de acordo com definições literária e da doutrina jurídica pátria, o segundo capítulo se destina a demonstrar de que forma é aplicado o direito da acessibilidade através das normas do Estatuto da Cidade, as previsões existentes na Constituição Federal, Estatuto da Pessoa com Deficiência e Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Por fim, abordar-se-á os mecanismos utilizados pelo Ministério Público para promover a execução das demandas quando tal direito é violado.
1 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
1.1 IGUALDADE MATERIAL E NÃO DISCRIMINAÇÃO
A inovação mais relevante previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência, introduzida no art. 3º do Código Civil, trata a respeito da sua plena capacidade civil, para todos os efeitos dela decorrentes.
A previsão legislativa esclarece, no art. 6º do diploma legal, que a deficiência não limita a plenitude da capacidade civil da pessoa, em seu amplo espectro, que envolve: casamento e união estável; direitos sexuais e reprodutivos; direito de decisão a respeito do número de filho e informações sobre reprodução e planejamento familiar; conservação da fertilidade, de forma a proibir a esterilização compulsória; direito à família e convivência familiar e comunitária; e exercício do direito à guarda, tutela, curatela e adoção, como adotante ou adotado, igualmente às demais pessoas.
Adiante, no art. 84 do estatuto, preconiza-se que a pessoa com deficiência tem direito a exercer sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, de forma a aperfeiçoar os comandos constitucionais.
Importa dizer que, ainda que amparada por institutos protetivos, como a tomada de decisão apoiada e a curatela, a pessoa com deficiência mantém o seu direito ao exercício plena da capacidade civil, de modo que os mecanismos de proteção são excepcionais e devem atender a uma demanda inafastável.
O Preâmbulo da Constituição Federal tem o escopo de anunciar os
principais objetivos da Carta Magna, bem como os princípios que a regerão e,
em suma, reúne o verdadeiro espírito constitucional. Como se observa do texto, a igualdade é um princípio basilar da nossa Constituição, como vemos adiante:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. [grifo nosso]
Com base na mesma premissa, o art. 5º da Constituição Federal reúne os direitos e garantias fundamentais, inerentes a todos os brasileiros. O caput deste dispositivo aborda o princípio da igualdade, determinando que não haja distinção de qualquer natureza que venha a ferir os direitos ali enumerados.
Pedro Lenza (2013, p. 1.044, pdf) afirma que o direito à igualdade deve ser buscado de forma material, e não meramente formal:
Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente a igualdade material.
Isso porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizadora perante a lei. [grifo do autor] Assim, a igualdade material é a concretização do conhecido brocardo: “Devemos tratar os iguais com igualdade e os desiguais na medida de sua desigualdade”.
Para que a equidade seja, de fato, alcançada, deve-se fornecer meios capazes de minimizar as desigualdades que existem. O direito à não discriminação é um desdobramento do vetor de igualdade material. O conceito de tal forma de violação de direitos é esclarecido no art. 4º, § 1º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência:
Art. 4, §1º. Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
§ 2º A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa.
A discriminação envolve, dentre outros instrumentos excludentes, a recusa injustificada em oferecer adaptação razoável às pessoas com deficiência. A adaptação razoável consiste em modificações necessárias que não impõem um dispêndio desproporcional e permite que pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida exerçam, em igualdade de condições com as demais, direitos e liberdades garantidas constitucionalmente e através de outros diplomas legais pátrios e internacionais.
O Superior Tribunal de Justiça, no REsp. 1.315.822-RJ, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/03/2015, aplicou o tema em um julgado que envolveu a utilização do método Braille para atendimento a pessoas com deficiência visual em instituições financeiras, como será visto adiante:
"A relutância da instituição financeira em utilizar o método Braille nos contratos bancários de adesão firmados com pessoas portadoras de deficiência visual representa tratamento manifestamente discriminatório e tem o condão de afrontar a dignidade deste grupo de pessoas gerando danos morais coletivos. STJ. 3ª Turma. REsp 1.315.822-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/3/2015 (Info 559)."
Na mesma senda, a Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York) determinou aos Estados signatários que assegurem às pessoas com deficiência o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sem qualquer tipo de discriminação por causa da deficiência.
Ademais, devem os Estados Partes conferir tratamento igualitário do ponto de vista material, conforme as necessidades, acessibilidade em todos os aspectos, físico e de comunicação, além de promoção da inclusão e integração social, devendo consultar as pessoas com deficiência para implementar políticas, elaborar legislações e tomar decisões relacionadas a este grupo. Assim, vê-se que, para que a equidade seja, de fato, alcançada, deve-se fornecer meios capazes de minimizar as desigualdades que existem.
1.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O art. 8, parte 1, alínea "a" da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, determina que os Estados Partes deverão adotar medidas para conscientização da sociedade a respeito das condições das pessoas com deficiência, além de fomentar o respeito pelos direitos e dignidade deste público.
A dignidade da pessoa humana é o vetor interpretativo principal da Constituição Federal e preceito de direitos humanos que orienta todo arcabouço legislativo internacional. Trata-se de uma garantia presente no primeiro dispositivo constitucional como um dos princípios fundamentais a reger o Brasil, sendo extraído de todo o texto constitucional cujo objeto é o ser humano em seu aspecto mais abrangente.
O Superior Tribunal de Justiça, em acórdão proferido recentemente, entabulou que a dignidade da pessoa humana deve ser garantida a pessoas com deficiência que não tiveram o direito à acessibilidade garantido. Confira-se a ementa do julgado:
" [...]
3. Entre os valores supremos do ordenamento brasileiro está a proteção das pessoas com deficiência e dos idosos, incumbência de todos "com absoluta prioridade". No rol de direitos conferidos em numerus apertus, acautelam-se o "transporte" e a "acessibilidade", pois sem possibilidade de locomoção adequada perecem a "dignidade", o "respeito", a "liberdade" e a "convivência comunitária" de que são titulares (art. 8º, caput, da Lei 13.146/2015 e art. 3º, caput, da Lei 10.741/2003). Tal encargo individual, familiar e coletivo levou o legislador a estipular o dever de reserva de vaga em áreas de estacionamento (e, como corolário, o direito correspondente). Ao invés de simples hábito cultural maléfico de desrespeito ao direito alheio - mormente os mais frágeis e indefesos -, relegado aos confins da tolerabilidade jurídica, quem usurpa vaga de estacionamento destinada a pessoa com deficiência ou a idoso não pratica apenas infração corriqueira de trânsito ou pecadilho venial de esperteza, mas perverte virtudes fundamentais e ofende pilares indiscutíveis em que se apoia o sentimento mais profundo de solidariedade, hoje constitucionalizado, que rege nossa comunidade.
À vista disso, a lesão aos usuários individuais que poderiam ocupar uma das vagas e são impedidos de fazê-lo, ipso facto e sincronicamente, atinge bem de índole coletiva e, por isso, causa dano moral igualmente coletivo.
[...] 5. Agravo Interno não conhecido."
(AgInt no AREsp n. 2.062.069/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 4/4/2023.) Destacou-se
Extrai-se do entendimento firmado pelo STJ que a acessibilidade tem relação estreita com a dignidade, pois sem aquela se torna inviável permitir que pessoas com deficiência tenham acesso ao aparelhamento do estado e aos demais direitos previstos em diplomas nacionais e internacionais adotados pelo Brasil.
Ao tratar sobre este essencial princípio, o art. 8º do Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece que é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação do direito à dignidade.
Sabe-se que, de acordo com o princípio da primazia da norma mais favorável, a interpretação deve ser conferida de modo a perfectibilizar os comandos existentes na norma, de modo que a dignidade da pessoa humana é uma diretriz que engloba outros direitos, dentre os quais o direito à vida, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à inclusão e à integração sociais, sem os quais o primeiro se torna esvaziado.
Por esta razão, deve o Poder Público, juntamente à família e à sociedade, criar mecanismos eficientes para que as pessoas com deficiência possam exercer suas capacidades e terem seus direitos garantidos, a fim de que tenham uma existência plena e digna em sua completude.
1.3 INCLUSÃO SOCIAL
A inclusão se encontra entre os princípios que regem a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, conforme art. 3 do referido diploma, e é complementado pela plena e efetiva participação das pessoas com deficiência na sociedade.
A inclusão está prevista em diversos dispositivos da Lei nº 13.146/2015 e representa o direito inarredável de que a pessoa com deficiência não somente tenha o direito de viver em sociedade, mas que possua a mesma liberdade que os demais possuem, em igualdade de direitos e oportunidades.
Neste aspecto, é dever do Poder Público implementar medidas que aprimorem os sistemas de educação e que garantam o acesso, a permanência e o aprendizado que permita a eliminação de barreiras e promovam a inclusão plena, nos termos do inc. II, do art. 28, do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
O direito à inclusão também está diretamente relacionado à habilitação profissional, para que haja reserva de vagas e à colocação competitiva no mercado de trabalho, por meio de recursos de tecnologia assistiva, acessibilidade e adaptação razoável no ambiente de trabalho, conforme previsto expressamente no art. 36, § 6º e no art. 37, respectivamente, ambos do Estatuto da PCD.
De igual modo, há de ser observado o direito à inclusão na implantação de projetos voltados à acessibilidade, com a inserção de conteúdos relacionados ao desenho universal, que representa o conjunto de produtos, ambientes, programas e serviços que pode ser acessado, indistintamente, por todas as pessoas, sem que seja necessária adaptação (art. 3º, II, da Lei nº 13.146/2015).
Ao tratar sobre a prestação de serviço de transporte público municipal, o STJ consolidou o entendimento de que a inclusão da pessoa com deficiência é dever do Estado, e que ao falhar na oferta deste serviço, o ente segue na contramão do modelo social previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, incorporado no Brasil com estatura de emenda constitucional.
A Convenção, nos termos do julgado de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, previu que a acessibilidade é princípio a ser observado pelos Estados Signatários, e que a deficiência não é um problema a ser curado, mas um problema da sociedade, que impõe barreiras que limitam ou impedem o desenvolvimento dos papeis sociais, conhecido como modelo social da deficiência (REsp n. 1.733.468/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 25/6/2018.)
2 ACESSIBILIDADE E MOBILIDADE
A Carta Magna de 1988 dispõe, no art. 182, que a política de
desenvolvimento urbano que o Poder Público Municipal executa deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
de seus habitantes.
O plano diretor é a ferramenta que executa a política de desenvolvimento e
expansão urbana de uma cidade, é o instrumento apto a organizar a polis.
O § 2º do art. 227 da Constituição Federal dispõe:
Art. 227[...]
§ 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos
edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
A acessibilidade, que garante o direito à locomoção também prevista constitucionalmente (art. 5º, XV), concede à cidade uma função social, sem a qual é impossível usufruir dos benefícios que a cidade oferece. Basta imaginarmos uma cidade limpa, arborizada, com saneamento básico, asfalto e lazer, sem que os cidadãos pudessem sair de casa e caminhar nas calçadas, se locomover de um ambiente a outro, não há função social nesta cidade, se cada um de seus habitantes não tiver o direito a “acessar” seus benefícios e ambientes.
O Estatuto da Cidade, no art. 2º, inc. XX, com redação dada pela Lei nº 14.489/2022, estabelece que a política urbana deve ordenar as funções sociais da cidade, de acordo com diversas diretrizes, dentre as quais a acessibilidade para fruir de espaços livres de uso público, seu mobiliários e suas interfaces com espaços de uso privado e que também impeçam a implementação de espaços e técnicas de construção hostil, impeçam ou afastem o acesso de pessoas de diversos segmentos da população, incluindo pessoas em situação de rua, pessoas idosas e jovens.
O art. 3º, inciso IV, determina que é competência da União instituir diretrizes que incluam regras de acessibilidade aos locais de uso público, desta forma, quis o legislador que tais normas fossem universais, evitando, assim, que as disposições de Estados e Municípios destoassem entre os entes da Federação, sendo de difícil controle e execução, o que poderia prejudicar as pessoas com deficiência.
O art. 41 estabelece que o plano diretor é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes. Conforme vimos anteriormente, o plano diretor é o recurso utilizado para executar a política de desenvolvimento e expansão urbana da cidade. Entendemos que houve equívoco por parte do legislador, uma vez que cidades pequenas, com menos de vinte mil habitantes também necessitam de planejamento que consolide as regras do espaço urbano, dentre as quais a acessibilidade.
3 OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO E INTERNACIONAL
A Lei nº 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, foi diretamente influenciada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York), assinada em 2007 e internalizada no Brasil através do Decreto Legislativo nº 186/2008, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009.
A Convenção internacional tem status de emenda constitucional, tendo em vista sua aprovação sob o rito das emendas constitucionais, previsto no art. 5º, § 3º, da Carta da República.
A Convenção sobre de Nova York, na alínea “e” do preâmbulo, orienta que o conceito de deficiência deve ser analisado e atualizado de acordo com a evolução histórica e social, e indica que deve ser verificado à luz da dimensão social, ou seja, para além da pessoa com deficiência, em conformidade ao modelo social. Confira-se a disposição do diploma internacional:
e) reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
De acordo com o paradigma da convenção internacional, o art. 2º da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), estabelece que a pessoa com deficiência é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Já o art. 2º, §1º, da mesma lei, preconiza que a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, devendo ser promovida por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades; e a restrição de participação.
Sob esse viés, o modelo social, adotado nos atuais dispositivos da legislação pátria e internacional, aponta que a deficiência passa a ser vista como o resultado da interação entre as características individuais somadas às barreiras impostas pela sociedade e que, de algum modo, impossibilitam o exercício pleno de seus direitos e deveres.
Assim, ainda que a pessoa tenha alguma limitação corporal, de ordem mental ou sensorial, se a sociedade tiver condições para incorporar a diversidade, não há falar em deficiência. A partir do modelo social, a deficiência transborda a medicina e perpassa pelas ciências sociais, pois resultante dos aspectos corporais da pessoa e da forma como a sociedade atuará para incluí-la no contexto social.
Os artigos 3º e 53, ambos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, conceituam a acessibilidade, para melhor compreensão:
Art. 3o Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:
I - Acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Art. 53. A acessibilidade é direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social.
O art. 3º do Estatuto da Pessoa com Deficiência trouxe à baila um importante requisito para materialização da igualdade que tratamos nesse tópico: a autonomia. Sem autonomia, torna-se impossível garantir que o princípio da igualdade material seja aplicado, fazendo com que tal norteador fique inócuo diante dessa violação. O mesmo dispositivo da lei trata de conceituar o que são as barreiras que possam inviabilizar o direito das pessoas com deficiência:
IV - barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo; b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
Extrai-se que o legislador buscou, através de tais disposições, estabelecer o objeto da norma que é permitir, através da acessibilidade, que as pessoas com deficiência possuam autonomia e possam exercer a sua cidadania, em igualdade material com os demais brasileiros, tal como estabelecido pela Constituição da República. Adiante, o art. 54 relaciona uma série de disposições com a finalidade de efetivar o direito à acessibilidade, senão vejamos:
Art. 54. São sujeitas ao cumprimento das disposições desta Lei e de outras normas relativas à acessibilidade, sempre que houver interação com a matéria nela regulada:
I - a aprovação de projeto arquitetônico e urbanístico ou de comunicação e informação, a fabricação de veículos de transporte coletivo, a prestação do respectivo serviço e a execução de qualquer tipo de obra, quando tenham destinação pública ou coletiva; II - a outorga ou a renovação de concessão, permissão, autorização ou habilitação de qualquer natureza;
III - a aprovação de financiamento de projeto com utilização de recursos públicos, por meio de renúncia ou de incentivo fiscal, contrato, convênio ou instrumento congênere; e
IV - a concessão de aval da União para obtenção de empréstimo e de financiamento internacionais por entes públicos ou privados.
Le Corbusier, em sua obra "A Carta de Atenas" (Ed. USP, São Paulo, 1993), ensina que "as chaves do urbanismo estão nas quatro funções: habitar, trabalhar e recrear-se (nas horas livres), circular". Nos dias atuais, a acessibilidade urbana consiste em uma das funções sociais da pólis, e está incluída dentre as políticas sociais de desenvolvimento urbano a cargo do Estado, como papel de garantidor deste direito, que deve incluir e promover o acesso de pessoas com deficiência.
A partir da compreensão dos autores, denota-se que a acessibilidade, embora seja comumente mencionada referindo-se a pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, é um direito de todas as pessoas. Basta imaginarmos que, em uma calçada sem rampa de acesso, uma pessoa com carrinho de bebê enfrentará dificuldades, ainda que menores, semelhantes ao cadeirante ou de quem utiliza do apoio da bengala ou muletas para se locomover. A pessoa idosa, naturalmente, terá mais dificuldades para deambular e enfrentará obstáculos para subir em uma calçada sem rampa de acesso, ou muito alta.
A Convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência define a acessibilidade como “assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidade com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação.”
Evidencia-se que o legislador deu ênfase para a igualdade almejada e, desta forma, a acessibilidade constitui-se em uma ferramenta para que as desigualdades existentes sejam minimizadas, ao ponto em que as pessoas com deficiência não deixem de usufruir e gozar de tudo que a cidade oferece devido a uma limitação física ou mental.
Quando a barreira física impede que a pessoa com deficiência se locomova de maneira satisfatória ou tenha o acesso em pé de igualdade a quem não possui a deficiência, não há consolidação da norma inserida na Constituição Federal – igualdade e no Estatuto da Pessoa com Deficiência – acessibilidade.
Importante, portanto, conhecer a letra das legislações, sobretudo concernentes ao Estatuto da Cidade, para compreensão dos direitos desse público e identificar quando, eventualmente, tais direitos sofrerem algum tipo de violação.
4 O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA GARANTIA DA ACESSIBILIDADE PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
A Constituição Federal dispõe, em seu art. 127, que o Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional, cuja função é a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
O Ministério Público (MP) atua como fiscal da ordem jurídica, ou, em latim, custos legis, motivo pelo qual demandas que envolvam violação ao direito à acessibilidade devem ser encaminhadas para o MP, que registrará a denúncia e oficiará o órgão ou estabelecimento que violou as normas para oferecimento de resposta e adequação às regras vigentes
O Ministério Público atua na defesa dos direitos das pessoas com deficiência .
Através da ouvidoria ou canal direto de notícias de fato, é possível ao interessado encaminhar relator de supostas violações de direitos de pessoas com deficiência, sejam realizados por particulares ou pelo próprio poder público ao deixar de promover determinada política social, dentre os quais aqueles relacionados à acessibilidade.
As notícias de fato têm um prazo determinado de solução até se tornarem um procedimento administrativo (interno). Caso a demanda não seja solucionada, o MP transforma o procedimento administrativo em inquérito civil. O artigo 6° da Lei n. 7.347/85 dispõe que "Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção".
Um instrumento também hábil para solucionar as demandas de acessibilidade é o TAC, o Termo de Ajustamento de Conduta. Assim estabelece o § 6º do art. 5º da Lei nº 7.347/85:
§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
Uma vez não cumprido o TAC, o Ministério Público propõe a Ação Civil Pública, com caráter judicial, que terá por objeto a condenação em dinheiro ou a obrigação de fazer ou não fazer, o que acarreta maior ônus ao réu da ação. A Cartilha para Pessoas com Deficiência disponível no site oficial do MP do Estado de Rondônia elenca conceitos de fácil compreensão pelo público em geral, como, por exemplo, quais os mecanismos utilizados para promover a acessibilidade:
[...]
Como exemplo, é necessário que:
» Se reserve nos estacionamentos, devidamente sinalizadas, vagas para veículos que transportem pessoa com deficiência; Os banheiros públicos em parques, praças e jardins sejam acessíveis e disponham de sanitário que atenda as pessoas com deficiência; » Os edifícios disponham, pelo menos, de um banheiro acessível e que tenha seus equipamentos e acessórios distribuídos de modo a facilitar seu uso pelos deficientes;
» Teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esportes, casas de espetáculos, salas de conferências e similares reservem, pelo menos, 2% da lotação do estabelecimento para pessoas em cadeira de rodas. Esses lugares deverão ser distribuídos pelo recinto em locais diversos, de boa visibilidade, próximos aos corredores, devidamente sinalizados, evitando-se áreas segregadas de público e a obstrução das saídas.
Cabe, portanto, a todos os cidadãos, com ou sem deficiência, notificar o Ministério Público em casos de violação do direito à acessibilidade, contribuindo para que a cidade seja mais acolhedora para toda a população.
CONCLUSÃO
Depreende-se dos estudos realizados que a Constituição Federal traz importantes previsões acerca dos direitos da pessoa com deficiência, dentre eles o direito a uma cidade acessível, ou seja, que não imponha obstáculos físicos, permitindo, portanto, que este público se integre ao ambiente social.
Verificou-se que a acessibilidade, embora tenha maior relação com pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, é um recurso que beneficia a toda população e perfectibiliza os direitos à dignidade da pessoa humana, à não discriminação e à inclusão social, princípios que devem ser observados como norteadores para a implementação de políticas públicas.
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que inspirou as inovações existentes no Estatuto da Pessoa com Deficiência, apresentou como paradigma o modelo social da deficiência, que passa a enxergar o indivíduo a partir das barreiras impostas pela sociedade e pelo Estado, bem como as lacunas em favor de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, a fim de que o espaço urbano cumpra as disposições legais e constitucionais de forma eficaz, que realmente promova autonomia e independência a este público.
A promoção da acessibilidade, ou seja, a diminuição ou supressão de barreiras físicas que inviabilizem o acesso, é o meio mais eficiente de fazer com que pessoas com deficiência recebam um tratamento que lhes garanta equidade e maior equilíbrio nas relações sociais. Diversos diplomas legais contribuem para consolidação dessas normas, a saber, a Carta Magna, o Estatuto da Cidade, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
O Ministério Público do Estado de Rondônia disponibiliza, em seu site oficial, uma cartilha de fácil compreensão, para que todos possam entender com clareza o conceito de acessibilidade e como podemos agir para contribuir com a sua execução. Em caso de violação, qualquer pessoa do povo pode comparecer ao Ministério Público Estadual e apresentar a notícia de fato.
REFERÊNCIAS
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Sítio Oficial do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em 12 mai. 2023
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em Direito Processual Penal. Servidora da Justiça Federal no Estado de Rondônia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOBO, Camila Fernandes Ferreira da Silva. Acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida na legislação pátria e internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 maio 2023, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61477/acessibilidade-para-pessoas-com-deficincia-ou-mobilidade-reduzida-na-legislao-ptria-e-internacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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