RESUMO: Este artigo investigou a hermenêutica constitucional da regra geral de competência em razão do lugar no Processo do Trabalho, instituída pelo caput do artigo 651 da Consolidação das Leis do Trabalho no local da prestação dos serviços. Realizada a discussão, concluiu-se que a interpretação literal da regra de competência relativa não observa a evolução da sociedade, de modo a manter a ordem jurídica em sintonia com a ordem social. Ademais, verificou-se que a jurisprudência brasileira enfrenta três barreiras para fixação da competência territorial no foro do domicílio do trabalhador: ausência de previsão legal expressa, limitações à aplicação analógica da regra inserida nos demais parágrafos do artigo 651 da CLT e os princípios do devido processo legal, juiz natural e segurança das relações jurídicas, que estão também densificados na regra geral. Entendeu-se que a regra geral pode ser afastada por meio do sopesamento de princípios constitucionais, através da análise da adequação da medida, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, de modo a permitir o acesso do trabalhador ao Poder Judiciário.
Palavras-chave: Competência territorial no processo do trabalho. Princípio da proteção do trabalhador. Princípio do acesso à Justiça. Ponderação de interesses.
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem o objetivo de investigar a possibilidade de afastamento episódico da regra geral de competência territorial traçada pelo caput do art. 651 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para que a ação seja proposta no foro do domicílio do obreiro ou naquele em que o acesso do trabalhador ao Poder Judiciário seja facilitado. Partiu-se do pressuposto de que, diante das mudanças ocorridas nas últimas décadas no plano das relações sociais, a aplicação da literalidade da regra pode significar, em muitos casos, verdadeiro atentado aos direitos fundamentais trabalhistas.
Inicialmente, analisou-se cada princípio constitucional densificado na norma do caput do art. 651 da CLT e que condiciona a sua aplicabilidade. Neste diapasão, o princípio da proteção do hipossuficiente ou tuitivo, exemplo maior do dirigismo contratual, manifesta-se nas máximas in dubio pro operario, aplicação da norma mais favorável e prevalência da condição mais benéfica. De igual maneira, o princípio do acesso à justiça deve assegurar a efetiva possibilidade de provocar a atuação do Poder Judiciário e receber dele uma prestação célere, adequada e eficaz, o que somente é viável se houver reunião das condições fáticas indispensáveis e, dentre estas, insere-se a acessibilidade geográfica do foro competente para julgar a demanda proposta.
Em seguida, estudou-se o princípio do juiz natural, que está embasado na dúplice exigência constitucional de pré-constituição do órgão judiciário para conhecimento da causa e delimitação prévia das regras de competência pela legislação em vigor, de modo que a parte litigante não possa escolher o magistrado que julgará a demanda. De igual maneira, o caput do art. 651 da CLT densifica também o devido processo legal, sob o viés do contraditório e da ampla defesa, com todos os recursos inerentes, como condição de procedibilidade para restrição dos direitos de outrem.
O último capítulo investiga, especificamente, a possibilidade de afastamento episódico da regra geral de competência territorial para prorrogação no foro do domicílio do obreiro ou em localidade que facilite o acesso à justiça e produção dos meios de prova, quando o foro da prestação dos serviços não coincidir com o atual domicílio.
Inicialmente, construiu-se um panorama do entendimento jurisprudencial das principais cortes trabalhistas brasileiras sobre a matéria, no qual se constatou que, diante do problema apresentado, as decisões adotadas são variadas em fundamento, seja para aplicar a literalidade da regra ou para afastar sua incidência em nome de um princípio específico.
Ainda, sob o viés histórico, constatou-se que a criação de uma modalidade híbrida de competência, no foro da prestação dos serviços, almejou atender aos anseios políticos da década de 1940, principalmente numa época em que os meios de transporte e comunicação eram rudimentares, de modo que o deslocamento das pessoas no território nacional era limitado.
Em seguida, diante da quase inexistência de doutrina sobre a matéria objeto deste trabalho, rebateram-se as principais objeções jurisprudenciais ao reconhecimento da possibilidade de fixação da competência territorial no foro do domicílio do trabalhador, a saber: a ausência de previsão legal expressa, as limitações à aplicação analógica da regra inserida nos demais parágrafos do artigo 651 da CLT e os princípios do devido processo legal, juiz natural e segurança das relações jurídicas, que estão densificados na regra geral.
Por derradeiro, impende destacar que a metodologia utilizada foram as pesquisas bibliográfica e jurisprudencial, envolvendo, pois, a busca de livros, monografias, artigos publicados em revistas especializadas, jornais e revistas, bem como decisões e acórdãos proferidos pelas principais cortes trabalhistas do país, na tentativa de investigar os fundamentos da decisão interlocutória que acolhe ou não a exceção de incompetência oposta pelo demandado, quando a reclamação trabalhista é ajuizada em local distinto daquele em que ocorreu a prestação dos serviços pelo empregado.
2. DESENVOLVIMENTO
A competência territorial instituída pela Consolidação das Leis do Trabalho, também intitulada competência em razão do lugar (ratione loci), é fixada com base na circunscrição geográfica sobre a qual atua o órgão jurisdicional. Nos termos do art. 651, caput, da CLT, a ação trabalhista deve ser ajuizada na localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. Reza o aludido dispositivo:
Art. 651. A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro[1].
Surge, então, o questionamento sobre a norma do art. 651, caput, da CLT, se deve ser interpretada como uma regra ou como um princípio jurídico. Segundo Bezerra Leite[2], o objetivo do legislador foi ampliar ao máximo a acessibilidade do obreiro ao Poder Judiciário, facilitando a produção dos meios de prova, geralmente testemunhal, sendo que o parâmetro escolhido foi a localidade em que o contrato estiver sendo efetivamente executado, pouco importando o local da celebração. Ademais, tendo havido labor em vários estabelecimentos em locais distintos, a competência será fixada em razão do derradeiro lugar de execução do contrato.
Não obstante o argumento de facilitação do acesso à justiça pelo empregado, o referido doutrinador entende que deve prevalecer a competência territorial da Vara do Trabalho do local da prestação de serviços, mesmo que não seja a localidade da residência atual do empregado[3].
Discordando deste entendimento, Maria Cecília Máximo Teodoro e Marcelo Pedrosa[4] asseveram que o art. 651 da CLT deve ser interpretado de maneira progressista, histórica, à luz dos princípios da proteção do hipossuficiente, igualdade substancial, acesso à ordem jurídica justa e efetividade da prestação jurisdicional, de modo que o foro da prestação do serviço nem sempre deverá ser a regra no Processo do Trabalho.
Quanto à natureza jurídica do art. 651, caput, da CLT, a primeira interpretação possível é de que seria um modelo puro de regra, definido por Robert Alexy[5] como aquele que considera as normas de direitos fundamentais, por mais que possam ser carentes de integração axiológica, aplicáveis sem qualquer recurso a sopesamentos. Concessa venia, esta não é a ótica mais adequada, considerando que, quando duas formas puras e antagônicas não são aceitáveis, deve-se utilizar um modelo intermediário, que combine regras e princípios, sob pena de inviabilizar todo o procedimento interpretativo, como assevera o jurista germânico[6].
Poder-se-ia, de igual maneira, dizer que a norma celetista em exame é um princípio jurídico puro, mas não haveria perfeito enquadramento na lógica dos princípios estudada alhures, à luz do pensamento de Robert Alexy[7]e Ronald Dworkin[8]. Isto porque, dentre muitos pontos de distinção, a norma de competência territorial celetista não é um mero mandamento de otimização, nem institui apenas diretrizes abstratas que se irradiam por todo o sistema.
Há, no art. 651, caput, CLT, uma regra que materializa inúmeros princípios de matriz constitucional. No entanto, Robert Alexy assevera que uma regra não é superada simplesmente porque se atribui, no caso concreto, um peso maior ao princípio que deslegitima a sua aplicação, devendo ser superados, também, os princípios que sustentam sua aplicabilidade[9].
Em verdade, a distinção teórica entre princípios e regras não é absoluta, de modo que existem princípios que foram acoplados em uma regra jurídica e regras, gerais e abstratas, que instituem diretrizes principiológicas. O autor, inclusive, leciona que, quando os princípios passam a se relacionar com os limites do mundo fático e normativo, surge um sistema diferenciado de regras, no qual se verifica um preceito com alto grau de generalidade, embora não seja tecnicamente um princípio[10]. Aduz ainda que, quando, por meio de uma norma de direito fundamental, é fixada uma determinação relativa às exigências de princípios colidentes, então haverá estabelecimento não somente de um princípio, mas também de uma regra[11].
É verdade que toda regra deve contemplar um princípio, bem como um princípio deve ser dotado de certo grau de regramento e força normativa. Entrementes, os conceitos não são estanques, considerando que as espécies normativas integram um gênero comum.
Assim, é forçoso convir que a norma definidora da competência em razão do local, insculpida no art. 651, caput, da CLT, é uma regra densificadora de princípios, porque materializa, no plano da legislação ordinária, uma série de mandamentos de índole principiológica constitucional. A priori, a norma trabalhista fixa a competência em razão do local da prestação do serviço, definindo os meandros do devido processo legal e o juiz natural, que terá competência para apreciar causas decorrentes da prestação de serviços. Por outra parte, a eleição deste foro específico tem o escopo de facilitar o acesso do trabalhador ao Poder Judiciário, em virtude de sua vulnerabilidade ser ontologicamente presumida.
Essa situação não poderá ser resolvida com a declaração de invalidade de um dos princípios, nem tampouco com a introdução de uma cláusula de exceção. A colisão entre direitos fundamentais é solvida por meio da técnica de ponderação de interesses, com fulcro nas circunstâncias do caso concreto.
3. DOS PRINCÍPIOS E REGRAS EM CONFLITO NO PROCESSO DO TRABALHO
Como foi dito alhures, o art. 651, caput, da CLT, estabelece a regramento geral da competência em razão do lugar (ratione loci) na Justiça do Trabalho, aduzindo que a competência das Varas do Trabalho é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado em outro local ou no estrangeiro.
Por se tratar de dispositivo instituidor de regra densificadora de princípios constitucionais, quando o obreiro desempregado não mais reside na localidade da prestação dos serviços e almeja demandar a empresa na qual trabalhou, pode-se constatar a existência de vários princípios aparentemente em colisão, a saber: o devido processo legal, o juiz natural, a proteção do hipossuficiente e o acesso à ordem jurídica.
Nos próximos tópicos, então, far-se-á investigação acerca dos princípios colidentes no processo de interpretação do caput do artigo retromencionado, na tentativa de apontar as diretrizes a serem consideradas na ponderação de interesses realizada pelo magistrado, quando arguida exceção de incompetência territorial, visando à remessa dos autos ao juízo da localidade de prestação dos serviços.
3.1 Da competência estabelecida pelo art. 651, caput, da CLT e seu processamento
Ab initio, é importante destacar que o presente trabalho acadêmico tem por recorte metodológico a norma do caput do artigo 651 da CLT[12], que estabelece o regramento geral da competência em razão do lugar na Justiça do Trabalho.
À guisa de informação complementar, assinale-se que o parágrafo primeiro do mesmo artigo pontifica que quando for parte agente ou viajante comercial, a competência será da Vara da localidade em que a empresa tenha agência ou filial e a esta o empregado esteja subordinado e, na falta, será competente a Vara da localização em que o empregado tenha domicílio ou a localidade mais próxima.
De igual maneira, o parágrafo terceiro aduz que, em havendo realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, é assegurado ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços.
Em verdade, entender a natureza da competência instituída pelo art. 651, caput, CLT, é imprescindível para certificação das consequências jurídicas decorrentes. Para tanto, faz-se necessário um breve estudo acerca da diferenciação entre as modalidades de competência.
De acordo com Fredie Didier Júnior[13], a jurisdição é una porque corresponde a uma manifestação do Estado, mas, para que seja administrada, há especialização de diferentes órgãos. Assim, a competência pode ser entendida como a quantidade de jurisdição atribuída a órgão ou grupo de órgãos do Poder Judiciário, para fins de exercício da função estatal de prevenir e compor conflitos, aplicando o direito objetivo ao caso concreto.
A competência é distribuída de acordo com vários critérios: material, funcional, territorial ou em razão do valor da causa. A competência em virtude da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica controvertida, contida na causa de pedir, ao passo que a funcional é ditada em razão da função a ser exercida por um determinado órgão jurisdicional. A competência em razão do valor da causa é determinada pelo valor atribuído à demanda. Por outra parte, a competência territorial (ratione loci), objeto deste trabalho, é a regra que determina a competência em razão de um lugar, elegendo um território em cujo foro a causa será processada[14].
Insta salientar que, via de regra, as competências material e funcional são absolutas, ao passo que as competências fixadas em razão do local ou em virtude do valor da causa são classificadas como relativas. Dentre muitas diferenças que poderão ser suscitadas, a competência absoluta foi projetada para atender ao interesse público, devendo ser arguida como preliminar de contestação ou conhecida de ofício pelo magistrado, além de não poder ser alterada em virtude de conexão ou continência.
Por outro lado, a competência relativa é instituída para atender precipuamente ao interesse particular, deve ser arguida via exceção, não é conhecível de ofício pelo juiz, mas pode ser modificada por conexão ou continência, ou prorrogada, se não for oposta exceção[15].
Reza o art. 651, caput, CLT, que a competência das Varas do Trabalho é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. Trata-se de competência relativa, portanto.
É estabelecida, assim, a regra geral da competência em razão do lugar no Processo do Trabalho, com o desiderato de facilitar o acesso do empregado à Justiça Especializada, na condição de demandante ou demandado, e permitir ampla produção dos meios de prova.
Nesse ínterim, Sérgio Pinto Martins[16] leciona que o objetivo da lei foi instituir a competência em uma localidade onde o trabalhador dispusesse de melhores condições para produzir sua prova, que é presumidamente o lugar onde por último trabalhou, bem como não tivesse dispêndios financeiros elevados para ajuizar a demanda. Assevera, ainda, que mesmo se a matéria for unicamente de direito, a reclamação deve ser proposta sempre no último local de prestação de serviços pelo empregado.
Mauro Schiavi[17], por seu turno, adverte que a finalidade da norma foi facilitar o acesso do trabalhador à Justiça, de modo que a interpretação do artigo 651, caput, da CLT, não deve ser literal, mas sim teleológica. Por conseguinte, em determinadas circunstâncias, o domicílio do obreiro poderá ser o foro competente para apreciar a demanda, de modo que eventual exceção de incompetência territorial oposta pela reclamada poderá vir a ser julgada improcedente.
Defende-se que a regra do art. 651, caput, da CLT, é densificadora de princípios, de modo que não pode ser interpretada sempre literalmente. A norma jurídica, como gênero, deve ser analisada a partir do sopesamentos das regras e princípios integrantes. Assim, mostra-se razoável que, em determinadas circunstâncias do caso concreto, uma regra possa vir a ser afastada quando sua aplicação possa ocasionar violência direta e literal a um princípio.
A exceção de incompetência relativa é uma espécie de defesa processual que objetiva o reconhecimento da incompetência territorial do juízo para julgar a reclamatória, quando proposta fora da localidade de prestação do serviço. A incompetência em razão do lugar é relativa. Desse modo, quando não for arguida no primeiro momento em que a parte contrária puder falar nos autos, ocorrerá preclusão da matéria, prorrogando-se a competência da Vara em que a demanda foi proposta.
Pontifica o art. 799 da CLT[18] que, apresentada a exceção de incompetência, o magistrado suspenderá o feito e abrirá vista dos autos ao excepto por 24 (vinte e quatro) horas improrrogáveis. Em seguida, proferirá a decisão na primeira audiência ou sessão que se seguir, acolhendo a exceção, momento em que determinará a remessa dos autos à Vara do Trabalho competente, ou rejeitando-a, quando a instrução do processo retomará seu curso normal.
Não obstante o prazo legal, Mauro Schiavi[19] rememora que, no cotidiano da Justiça do Trabalho, os magistrados costumam decidir a exceção de incompetência territorial na própria audiência em que é arguida, se restar evidente, por meio de prova documental ou testemunhal produzida pelo excipiente, que o excepto laborou em localidade diversa daquela em que se situa a circunscrição do foro trabalhista.
Ricardo Trajano Valente[20] ressalta que, em virtude de o Processo do Trabalho não admitir a utilização de recurso em face de decisão interlocutória, criou-se no meio jurídico a opção pelo mandado de segurança como verdadeiro sucedâneo recursal, em caso de acolhimento da exceção de incompetência relativa. Diante do manuseio indiscriminado do writ, o Tribunal Superior do Trabalho alterou a redação da Súmula 214[21], de modo a admitir, na alínea “c”, o manejo de Recurso Ordinário em face de decisão interlocutória que acolhe exceção de incompetência territorial, com remessa dos autos para Tribunal Regional do Trabalho distinto daquele a que se vincula o juízo excepcionado.
Mauro Schiavi[22] lembra ainda que, no processo comum, a exceção é processada em apenso aos autos principais, em razão das maiores formalidades exigidas pelo Código de Processo Civil. Todavia, no Processo do Trabalho, em virtude dos princípios da informalidade e concentração dos atos processuais, a jurisprudência tem tolerado que a exceção de incompetência relativa seja apresentada no bojo da contestação.
Em face do exposto, resta patente que o art. 651, caput, da CLT, institui uma competência relativa, prorrogável caso não arguida oportunamente pela parte contrária, e instituída para atender precipuamente ao interesse de uma das partes, ou seja, o empregado, em virtude do princípio tuitivo que norteia o sistema jurídico laboral.
Desse modo, a discussão a ser travada nos tópicos posteriores será justamente acerca das limitações principiológicas ao acolhimento da exceção de incompetência relativa, quando houver evidente prejuízo ao princípio da proteção do hipossuficiente e acesso à ordem jurídica, porque o demandante desempregado não mais reside na localidade da prestação dos serviços e intenta reclamar no foro do seu atual domicílio.
3.2 Do princípio da proteção do hipossuficiente
Existem relações jurídicas nas quais os sujeitos pactuantes estão em plena situação de igualdade formal e substancial e, por conseguinte, em uma postura de equivalência contratual. É o que sucede no âmbito do Direito Civil, via de regra. Diante de tais relações, a atuação do Estado deve se pautar unicamente no sentido de não permitir o privilégio espúrio de um contratante em relação ao outro, impedindo-se o enriquecimento sem causa.
Entrementes, quando há notória dessemelhança de oportunidades entre os sujeitos da relação jurídico-contratual, de modo que a isonomia é meramente formal, o Estado deve elaborar mecanismos jurídicos para proteger a parte vulnerável, sob pena de estar compactuando com a opressão econômica do mais forte sobre o mais debilitado.
No Direito do Trabalho, surgiu o princípio da proteção do hipossuficiente, também conhecido como princípio tuitivo ou tutelar, que visa igualar juridicamente empregado e empregador, tendo em vista a hipossuficiência presumida do primeiro e a superioridade econômica ostentada pelo segundo contratante.
Como assevera Luciano Martinez[23], as limitações impostas ao exercício da autonomia da vontade, no século XIX, constituíram medidas pioneiras na busca pela harmonização das relações jurídicas materialmente desequilibradas porque, na relação de trabalho, essencial ao desenvolvimento do sistema capitalista de produção, não se verifica, no polo operário, o menor vestígio de liberdade para discutir as cláusulas contratuais.
O princípio da proteção do hipossuficiente, pilar fundamental do sistema trabalhista contemporâneo, foi explicado pelo jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez, para quem constitui a própria razão de ser do Direito do Trabalho. Afirma que esse ramo do Direito surgiu como consequência do uso inadequado da liberdade de contratar entre pessoas com poderes e capacidades econômicas desiguais, o que conduziu, inexoravelmente, a diferentes formas de exploração. Por conseguinte, o legislador dos países ocidentais, aos poucos, foi repensando a clássica noção de igualdade formal entre as partes, de modo a conceber uma espécie de igualação ficta, substancial, compensando-se a desigualdade econômica com a outorga de proteção jurídica mais favorável ao trabalhador[24].
Esclarece o autor que o princípio tuitivo não constitui uma técnica especial de interpretação jurídica, mas um princípio geral de aplicabilidade obrigatória, que inspira todas as normas do Direito do Trabalho. Não se trata, igualmente, de um mero permissivo outorgado ao juiz ou ao patrono para que o interprete livremente, mas de uma norma que deve ser considerada no instante da aplicação da lei ao caso concreto[25].
Segundo Plá Rodriguez[26], é amplíssima a diversidade de opiniões doutrinárias sobre as maneiras pelas quais o princípio da proteção do hipossuficiente se manifesta. No entanto, adverte que a multiplicidade de fórmulas expostas na doutrina ocorre pelo fato de haver clara distinção epistemológica entre o princípio genérico e uma de suas formas de aplicabilidade. Assim, considerando o princípio da proteção como um princípio geral, aduz que este se manifesta por meio de três mandamentos distintos: in dubio pro operario, aplicação da norma mais favorável e aplicação da condição mais benéfica.
Assim, por amor à tradição doutrinária nacional, que adotou o viés classificatório de Américo Plá Rodriguez, passar-se-á à análise de cada manifestação do princípio da proteção do hipossuficiente, bem como sua consagração no ordenamento jurídico brasileiro.
3.2.1 Regra in dubio pro operario
Também denominado in dubio pro misero, é o critério segundo o qual, quando uma mesma norma trabalhista puder ser interpretada de diversas maneiras, deve-se preferir a significação mais benéfica ao obreiro.
A regra in dubio pro operario se aplica, predominantemente, na interpretação dos negócios jurídicos, tendo em vista que o empregado não foi o responsável pela construção do instrumento contratual, de modo que não poderia ser apenado diante de eventuais ambiguidades ou contradições que deles possam advir. No entanto, nada impede que a regra em tela seja utilizada, também, na interpretação dos textos legais polissêmicos.
Em sendo o contrato de trabalho espécie de contrato por adesão, visto que as cláusulas são estabelecidas previamente pelo empregador, sem que o obreiro tenha a oportunidade de discuti-las, entende-se correta a aplicação subsidiária da regra do art. 423 do Código Civil[27], no sentido de que, quando houver no instrumento contratual por adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, optar-se-á pela hermenêutica que mais favoreça ao aderente.
Luciano Martinez[28], por seu turno, ratifica que a regra in dubio pro operario foi projetada para solucionar embates interpretativos dentro de uma mesma norma, seja ela jurídica ou contratual. Pondera ainda que a referida regra não se presta à interpretação da prova produzida em juízo, porque a prova é avaliada pelo magistrado segundo o modelo da persuasão racional e distribuição do ônus probatório.
Cita como emblemática a reclamatória que tramitou perante a 3ª Vara do Trabalho de Camaçari/BA, sob o nº 00209.2006.133.05.00.9. Narra que o empregador confeccionou um termo de rescisão de contrato de trabalho (TRCT), com duas datas indicativas de recebimento das parcelas decorrentes da terminação do contrato de emprego. Diante do impasse quanto à data real do término do vínculo contratual, o magistrado de primeiro grau aplicou o princípio in dubio pro operario, entendendo que, se o obreiro não foi responsável pela confecção do termo de rescisão, não poderia ser prejudicado por um erro material ao qual não deu causa, de modo que a interpretação dúbia ou contraditória deve beneficiar o aderente[29].
Impende registrar, por fim, que a aplicação do mecanismo in dubio pro operario pressupõe não só a existência de dúvida sobre o alcance hermenêutico da regra legal, mas também que a interpretação adotada esteja em conformidade com a vontade do legislador, sob pena de restar desvirtuada toda a sistemática normativa do ordenamento jurídico.
3.2.2 Regra da norma mais favorável
A regra protetiva de aplicação da norma mais favorável está embasada no mandamento nuclear segundo o qual, em havendo mais de uma fonte normativa com vigência simultânea, será adotada aquela que mais beneficiar o obreiro.
Nesse sentido, não será aplicada a norma mais elevada dentro de uma hierarquia predeterminada, mas se aplicará, no caso concreto, aquela que for a mais favorável ao trabalhador. Existe, assim, verdadeira quebra aparente da lógica constitucional da hierarquia das fontes, que encontra na pirâmide kelseniana seu paradigma máximo, de modo que o vértice da pirâmide será ocupado não necessariamente pela Constituição da República, mas pela norma jurídica mais favorável ao trabalhador, dentre as diferentes normas em vigor.
Plá Rodriguez[30] apresenta uma série de critérios a serem observados no ato de verificação da norma mais benigna ao obreiro. Para o jurista uruguaio, a comparação deve observar a norma mais favorável em seu conjunto, conglobadamente, levando em consideração não um trabalhador isoladamente, mas a coletividade trabalhadora interessada. Além disso, a apreciação da norma mais favorável deve ser pautada em critérios objetivos, no caso concreto, fundada na possibilidade de melhoria das condições de trabalho.
Em verdade, o Direito brasileiro conhece inúmeras disposições normativas nas quais o princípio da aplicação da norma mais favorável foi institucionalizado.
A Constituição Federal de 1988, por exemplo, inseriu em seu texto um rol mínimo de direitos fundamentais trabalhistas, tornando-os irredutíveis por ação do legislador ordinário, do poder constituinte derivado ou da negociação coletiva, salvo as hipóteses da irredutibilidade do salário e da duração de jornada, que poderão ser mitigadas em desfavor do obreiro, sob determinadas condições, através de acordo ou convenção coletiva de trabalho. Nas demais situações, o bojo de direitos fundamentais trabalhistas não pode ser modificado, exceto quando se destinar à melhoria das condições dos trabalhadores[31].
Resta, pois, ratificado o entendimento constitucional de que a norma mais favorável será aplicada ao caso concreto, independentemente da sua localização na pirâmide do ordenamento jurídico.
A CLT também possui inúmeros dispositivos nos quais há adoção expressa do princípio da norma mais benéfica ao trabalhador. Cite-se, por exemplo, o artigo 620[32], que reza no sentido de que as condições de trabalho estabelecidas em convenção coletiva, quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em acordo. Assim, por não haver hierarquia entre as normas negociadas, opta-se pela aplicação daquela que, em seu conjunto, for mais benigna ao obreiro.
Em suma, o princípio da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador impõe ao hermeneuta que, em havendo pluralidade de normas jurídicas de direito do trabalho vigentes e aplicáveis à mesma situação fática, deva preferir a norma mais vantajosa ao trabalhador, não importando sua natureza ou hierarquia.
3.2.3 Regra da condição mais benéfica
O princípio da manutenção da condição mais benéfica, também intitulado inalterabilidade contratual lesiva, baseia-se no pressuposto de que, em havendo mais de uma norma com vigência sucessiva, a condição anterior já incorporada ao patrimônio jurídico deve ser mantida, se for mais benéfica ao trabalhador.
Plá Rodriguez[33] assevera que a regra da aplicação da norma mais favorável não se confunde com a da condição mais benéfica, pois a primeira pressupõe a vigência simultânea de duas ou mais normas regulamentando idêntica situação jurídica, ao passo que a última requer sucessão normativa, de modo que haverá, necessariamente, uma norma anterior e uma posterior. Também alerta que a norma mais favorável se diferencia da regra in dubio pro operario, por ser mais geral e ter formulação jurídica expressa.
O autor ainda traça os elementos necessários à aplicação da regra da condição mais benéfica. Desta sorte, as condições de trabalho devem ser entendidas em sentido amplo, de modo a englobar não somente as condições de trabalho propriamente ditas, mas também as condições que se concedem no trabalho realizado por conta alheia. Além disso, é imprescindível que a relação de trabalho tenha se originado sob o império da norma antiga, de modo que os trabalhadores admitidos na empresa depois da sucessão normativa não poderão alegar violação de uma condição trabalhista que não conheceram. Por fim, para que haja prevalência da condição mais benigna, entende necessário que tenha se incorporado ao patrimônio jurídico do trabalhador[34].
Em verdade, o art. 468 da CLT[35] consubstancia o princípio da prevalência da condição mais benéfica, dispondo que, nos contratos individuais de emprego, a alteração das condições de trabalho é, via de regra, ilícita, a menos que pactuada por mútuo consentimento e não resulte, direta ou indiretamente, em prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade. Há, portanto, proteção ao direito adquirido em relações individuais de emprego.
O Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Súmula nº 51[36], adotou o entendimento segundo o qual a condição mais vantajosa incorporada ao patrimônio jurídico do obreiro deve se manter incólume em face de alterações normativas, aduzindo que as cláusulas regulamentares que alterem ou revoguem vantagens já deferidas só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou modificação. Assim, a regra da prevalência da condição mais benéfica ao trabalhador se caracteriza como garantia de vedação à alteração contratual lesiva no curso do contrato de trabalho.
3.2.4 Da aplicabilidade do princípio de proteção do hipossuficiente no processo do trabalho
Toda a explanação realizada anteriormente seria inócua, não só com relação ao tema deste trabalho, mas também no que se refere à concretização da igualdade substancial, se o princípio da proteção do hipossuficiente tivesse aplicabilidade restrita ao âmbito do direito material do trabalho.
Portanto, defende-se que o referido princípio deve ser considerado na interpretação da regra geral da competência territorial no processo do trabalho, insculpida no art. 651, caput, CLT, pelas razões a seguir expendidas.
Em um passado não muito remoto, muitas vozes se levantaram para afirmar que o princípio da proteção do hipossuficiente não se aplicava ao processo do trabalho, restringindo-se apenas ao âmbito do direito substantivo, tendo em vista que, na relação jurídico-processual, a isonomia das partes era presumida. Então, se o direito material previsse a vulnerabilidade de algum dos litigantes, esta seria tratada, no direito formal, como mera presunção sobre a relação jurídica discutida, em favor do empregado, o que em nada afetaria a relação processual em si. Nesse sentido, leciona Wilson de Souza Campos Batalha:
No processo vigora o princípio da igualdade das partes. Os princípios in dubio pro misero e in dubio pro reo, como o símile in dubio pro fisco, não prevalecem como princípios de ordem processual. Prevalecem quando se trata de dúvida acerca da relação jurídica que em juízo se discute, mas não constituem exceções ao princípio da igualdade das partes no processo. As inversões de onus probandi devem ser consagradas através de presunções, iuris tantum ou hominis, sem que se altere o equilíbrio das partes do contraditório[37].
No entanto, sabe-se atualmente que o processo do trabalho não é um fim em si mesmo, mas verdadeiro instrumento de efetivação do direito material. Para entender que o princípio da proteção do hipossuficiente não é instituto privativo do direito material, mas que permeia também o direito formal trabalhista, faz-se imprescindível proceder à análise da evolução do pensamento processualístico na doutrina, desde a fase do imanentismo até o instrumentalismo.
Ricardo de Barros Leonel[38] assevera que, até o século XIX, predominava a concepção imanentista ou sincretista, segundo a qual o processo funcionaria como mero apêndice do direito material, deste indissociável. O processo não figurava como uma ciência autônoma. Em verdade, a todo direito correspondia uma ação, de modo que havia evidente sincretismo entre os planos substancial e processual do ordenamento jurídico.
Em seguida, surgiu a fase autonomista, que inaugurou a teoria abstrata do direito de ação, passando o processo a figurar como ciência independente. Houve distinção entre as relações jurídico-processual e jurídico-substancial, de acordo com os sujeitos, pressupostos e objeto envolvidos. Foram formulados grandes estudos teóricos acerca dos institutos da ação, jurisdição, defesa e processo, com o escopo de assegurar a cientificidade do processo[39].
Percebeu-se posteriormente que a técnica processual não pode existir como um fim em si mesmo, mas sim como meio de realização do direito material objeto da prestação jurisdicional. Surge então a fase instrumentalista do processo, preocupada com o acesso à ordem jurídica justa, partindo do pressuposto de que o processo apenas é válido se direcionado ao alcance de resultados que venham a beneficiar o detentor de um interesse juridicamente protegido pelo ordenamento jurídico[40].
Em não havendo distinção absoluta entre direito material e processual, óbvio que o princípio protetor se aplica ao processo do trabalho, de modo a criar benefícios para o hipossuficiente, tendo em vista que a sistemática processual celetista parte do pressuposto de que as partes são desiguais sob o viés fático, necessitando o empregado da proteção legal.
Há alguns exemplos emblemáticos da manifestação do princípio protetivo no direito processual do trabalho: apenas o empregador efetua depósito recursal; há recurso por simples petição; a competência territorial é fixada para facilitar o acesso do empregado à justiça; há gratuidade do processo, com dispensa do pagamento de custas; as custas são pagas pelo vencido; a ausência à audiência inaugural pode resultar em arquivamento ou decretação de revelia, se a parte faltosa for o reclamante ou reclamado, respectivamente, dentre outros.
De igual maneira, a Justiça do Trabalho foi idealizada como instrumento de proteção do trabalhador. Em verdade, o legislador celetista criou as regras protecionistas materiais e processuais de direito do trabalho, atribuindo a uma Justiça Especializada a competência para apreciar lides de tal natureza.
Edilton Meireles e Leonardo Dias Borges[41] asseveram, a título de complementação, que o princípio da proteção do hipossuficiente não é exclusivo do direito processual do trabalho. Alegam que, em menor ou maior medida, protege-se o hipossuficiente em diversas relações processuais, como nas demandas consumeristas (quando se assegura ao consumidor a inversão do ônus da prova como mecanismo de proteção do direito material), penais (através da máxima in dubio pro reo) ou ainda naquelas que seja parte a Fazenda Pública (prazos em dobro para recorrer, prazo em quádruplo para contestar, execução por precatório, etc.).
Sérgio Pinto Martins[42] assevera que o princípio protetivo é o verdadeiro mandamento nuclear do processo do trabalho, de modo que, assim como no direito do trabalho as regras são interpretadas mais favoravelmente ao empregado, em caso de polissemia, o mesmo argumento vale para o direito processual do trabalho, que deve ser visualizado como um direito instrumental. Não é o litígio que deve se amoldar às regras processuais, mas sim a estrutura do processo que precisa se adaptar à natureza peculiar da lide trabalhista.
Por sua vez, Luiz Guilherme Marinoni[43] acrescenta que um único tipo de procedimento seria inviável para tutelar todas as situações de direito material. Adverte que o mito da uniformidade procedimental deriva da tentativa de eliminar a influência do direito material sobre o direito processual. No entanto, a ação se desenvolve para chegar ao julgamento do mérito, de modo que a efetividade da prestação jurisdicional depende da capacidade do procedimento para atender ao direito material.
Por fim, Bezerra Leite[44] leciona que o princípio tutelar é peculiar tanto no direito do trabalho quanto no direito processual do trabalho, como forma de equilibrar a desigualdade existente no plano socioeconômico. Aduz que o princípio da proteção do hipossuficiente constitui a própria razão de ser do processo do trabalho, o qual foi concebido para instrumentalizar a realização do direito material trabalhista. Assim, entende justo tratar, no processo do trabalho, igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualem, como mecanismo de concretização da isonomia substancial.
Na hipótese sub examine, a competência territorial instituída pelo art. 651, caput, da CLT, determinada pela circunscrição geográfica sobre a qual atua o órgão jurisdicional, foi projetada para possibilitar o acesso do obreiro à Justiça do Trabalho, sem que, para tanto, fossem necessários dispêndios financeiros exorbitantes.
Com a dinâmica das migrações internas, a regra concebida como protetora pode inviabilizar o acesso à justiça. Exigir do trabalhador despedido o deslocamento para a localidade em que prestou serviços para fins de propositura da reclamatória, em muitos casos, poderá constituir verdadeira afronta, também, ao princípio da proteção do hipossuficiente.
Desse modo, a regra geral do artigo 651, caput, da CLT, deve ser interpretada teleologicamente, considerando que uma das partes é hipossuficiente presumida, de modo que o local de prestação de serviços seja a regra de competência no momento em que facilite a produção dos meios de prova.
Defende-se, por conseguinte, com fulcro no exposto e como será melhor discutido e aprofundado nos capítulos posteriores, que quando o foro for inacessível economicamente para o obreiro despedido, a competência poderá ser determinada no juízo do seu atual domicílio.
3.3 Do princípio de acesso à ordem jurídica
O direito de acesso à justiça constitui-se numa das maiores conquistas do Estado Democrático de Direito. Manifesta-se na inafastável prerrogativa de provocar a atuação do Poder Judiciário e dele receber uma prestação célere, adequada e eficaz.
Na moderna processualística, o acesso à ordem jurídica deixou de ser interpretado apenas no seu aspecto meramente formal, como desdobramento do direito de ação, para adquirir também contornos substanciais, de modo a amparar aquelas pessoas que, em razão da sua condição de vulnerabilidade socioeconômica, não podem arcar com encargos da demanda judiciária, a exemplo de custas processuais, honorários advocatícios e dispêndio com o deslocamento para o foro onde tramita o processo.
Assim, resta evidente que, com o princípio de acesso à ordem jurídica, o Poder Judiciário passa a ocupar um papel de destaque na efetivação dos direitos fundamentais. Em verdade, a Constituição da República, em seu art. 5º, XXXV[45], delineia o direito de acesso à justiça, por meio da garantia de inafastabilidade da jurisdição, inserindo-o no rol das cláusulas pétreas. Proíbe-se, dessa maneira, que o constituinte reformador ou o legislador infraconstitucional exclua determinadas matérias da apreciação do Poder Judiciário, bem como haja condicionamento à exaustão da esfera administrativa como condição de procedibilidade processual.
Impende ressaltar, no entanto, que a exigência constitucional de esgotamento da esfera administrativa refere-se unicamente a ações relativas à disciplina e às