RESUMO: O presente estudo tem como objetivo discorrer sobre as dificuldades sociais para a ressocialização de dependentes químicos frente a responsabilidade estatal. E especificamente, compreender a incidência da função da pena com base nos princípios da execução da pena, bem como entender a relação entre a criminalidade e a ressocialização de presos, identificar a eficácia de normas que regulam a ressocialização de apenados dependentes químicos; e compreender as dificuldades de aplicação de medidas públicas destinadas à ressocialização de presos dependentes químicos. Esta pesquisa tem caráter qualitativo e foi realizada através de levantamento bibliográfico e documental, cuja características são descritiva-analítica. A ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro é uma questão que envolve fatores como a superlotação das prisões, a falta de investimentos em políticas efetivamente públicas, a recuperação da lei penal, entre outros. Contudo, não se trata apenas de uma questão de justiça social, mas também de segurança pública, já que a reincidência criminal pode ser reduzida por meio de medidas efetivas de ressocialização. Além disso, é necessário que a lei penal seja mais adequada à realidade dos adictos, para que as penas sejam proporcionais à gravidade do delito e considerem a situação de vulnerabilidade dos presos. Ainda, tendo em vista tratar-se de uma questão de saúde, que afeta a integridade física e psicológica do usuário e daqueles que estão ao seu redor. Então, para garantir a continuidade da ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro, é preciso que o Estado assuma sua responsabilidade e implemente políticas públicas eficazes.
Palavras-chave: Dependentes Químicos. Presos. Ressocialização.
ABSTRACT: This study aims to discuss the social difficulties for the resocialization of drug addicts in the face of state responsibility. And specifically, to understand the incidence of the function of the sentence based on the principles of the execution of the sentence, as well as to understand the relationship between criminality and the resocialization of prisoners, to identify the effectiveness of norms that regulate the resocialization of drug addicts; and understand the difficulties of applying public measures aimed at the resocialization of drug-dependent prisoners. This research has a qualitative character and was carried out through a bibliographical and documental survey, whose characteristics are descriptive-analytical. The resocialization of drug addicts in the Brazilian prison system is an issue that involves factors such as prison overcrowding, lack of investment in effectively public policies, the recovery of criminal law, among others. However, it is not only a question of social justice, but also of public safety, as criminal recidivism can be reduced through effective resocialization measures. In addition, it is necessary that the criminal law is more adequate to the reality of addicts, so that the penalties are proportional to the seriousness of the crime and consider the vulnerable situation of the prisoners. Still, considering that it is a health issue, which affects the physical and psychological integrity of the user and those around him. So, to guarantee the continuity of the resocialization of chemical dependents in the Brazilian prison system, it is necessary that the State assumes its responsibility and implements effective public policies.
Keywords: Chemical Dependent. Stuck. Resocialization.
1.INTRODUÇÃO
A ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro é uma temática de grande repercussão, uma vez que, o país enfrenta um grave problema de superlotação nas prisões e de aumento do número de pessoas presas por envolvimento com drogas. Além do mais, envolve diversas questões complexas e discutidas, principalmente no que diz respeito à omissão estatal e à insuficiência da lei penal.
De acordo com Oliveira (2015), essa problemática ocorre devido à falta de políticas públicas e a superlotação das prisões que dificultam a implementação de medidas eficazes de prevenção e tratamento da dependência química. Logo, é fundamental discutir a evolução das políticas públicas de prevenção e tratamento da dependência química no ambiente prisional, bem como a necessidade de programas de ressocialização que contemplem a assistência social, psicológica e médica aos presos.
Nesse sentido, Valois (2020) faz uma breve recapitulação a um momento de sua vida profissional como Juiz de execução, onde um jovem chamado Keneth sofreu uma execução peculiar em Manaus. Em resumo, o jovem de 22 anos declarou ser dependente químico, sendo este o motivo do descumprimento das condições impostas a ele de dormir na Casa do Albergado, local de recolhimento diário de todos os presos, como determina a Lei de Execução Penal (VALOIS, 2020).
Prontamente, a solução encontrada pelo juiz para amenizar a pena evitando sua regressão, seria enviar Keneth para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, para elaboração de um laudo onde comprovasse a dependência química do apenado, para depois converter a pena em medida de segurança na forma de tratamento ambulatorial. Porém, antes do laudo sair, um mês depois da sentença, o local incendiou, levando a vida de quatro internos, estando entre eles Keneth (VALOIS, 2020).
Ocorre que, essa é a realidade de muitos jovens que hoje estão ligados a prática do consumo de drogas lícitas e ilícitas, muitas vezes se envolvendo até mesmo com a prática criminosa do tráfico de drogas. Para tanto, usaremos o termo adictos para essas pessoas que tem a vida associada a substâncias que mais causam dependência como o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas.
Conforme a Lei de Execução Penal (Lei nº 7210/1984) define em seu art. 1º que a norma de execução penal busca proporcionar a harmônica integração social do condenado e internado (BRASIL, 1984), a pena deve ter, além do caráter punitivo da pena, meios para que o condenado seja reintegrado à sociedade, para evitar que este cause mais danos aos bens jurídicos tutelados.
Contudo, a realidade que se encontra no sistema carcerário brasileiro é divergente, em que os presos sobrevivem em condições precárias e dificilmente têm acesso às medidas de ressocialização, tais como o trabalho e a educação (AZEVEDO, 2016). Conforme Gomes (2016), o estigma de ex-apenado ainda se encontra enormemente atrelado ao viés punitivista da sociedade brasileiro, o que dificuldade a reinserção do ex-recluso.
Assim, quando se trata de dependentes químicos, há ainda maior complexidade, tendo em vista a carência de programas de tratamento no sistema carcerário, além da ausência de legislação que observe as necessidades especiais dos adictos durante e após o cumprimento da pena.
O presente trabalho justifica-se na necessidade de se efetivar os direitos fundamentais dos apenados dependentes de substâncias entorpecentes, bem como refletir o papel do Direito Penal na busca pela diminuição da criminalidade através da ressocialização, abandonando o viés meramente punitivista da pena, buscando políticas públicas eficazes para amenizar a realidade atual dos dependentes de substancias entorpecentes, e assim, influenciando direta e indiretamente no sistema carcerário brasileiro.
Do ponto de vista social, a pesquisa se justifica por se tratar de um tema de grande culto para a sociedade brasileira, uma vez que o país enfrenta um cenário preocupante de superlotação nas prisões e de aumento do número de pessoas presas por envolvimento com drogas. Nesse contexto, é fundamental compreender as dificuldades enfrentadas pelos dependentes químicos para se reintegrarem à sociedade após cumprir sua pena e as políticas públicas necessárias para garantir a passagem da ressocialização. Além disso, a pesquisa pode contribuir para a melhoria das políticas públicas e para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Já do ponto de vista acadêmico, a pesquisa se justifica por se tratar de um tema complexo e multidisciplinar, que envolve diversas áreas do conhecimento, como direito, psicologia, assistência social, saúde, entre outras. Além disso, a pesquisa pode contribuir para o desenvolvimento de teorias e metodologias relacionadas à ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro, bem como para a produção de conhecimento científico sobre as políticas públicas e a responsabilidade estatal em relação a esse tema.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre as dificuldades sociais para a ressocialização de dependentes químicos frente a responsabilidade estatal. E especificamente, compreender a incidência da função da pena com base nos princípios da execução da pena, bem como entender a relação entre a criminalidade e a ressocialização de presos, identificar a eficácia de normas que regulam a ressocialização de apenados dependentes químicos; e compreender as dificuldades de aplicação de medidas públicas destinadas à ressocialização de presos dependentes químicos.
Esta pesquisa tem caráter qualitativo e foi realizada através de levantamento de referencial teórico e documental acerca do tema, assim como coleta de dados contextualizando a problemática, cumprindo, dessa forma, os parâmetros da pesquisa bibliográfica, com o objetivo de elucidar os aspectos referentes à ressocialização de dependentes químicos. A pesquisa teórica se deu de maneira descritiva dos dados, mas também analítica, proporcionando aprofundamento nas reflexões conceituais inerentes ao tema.
2.PRISÃO EM FLAGRANTE, FUNÇÃO DA PENA E O SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO
2.1 Os verdadeiros destinatários do sistema carcerário brasileiro
A Lei 11.343/2006, em seu art. 28, § 2º, o juiz determinará se o entorpecente é para consumo pessoa, observando a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como as condições em que se desenvolveu a ação e a conduta e antecedentes do agente (BRASIL, 2006).
Em análise, Moraes (2021, p. 32) compreende que o parlamento não teve eficácia ao elencar esses critérios, posto que, na prática, há um enorme subjetivismo do juiz ao analisar o caso concreto, o que abre margem para inúmeras discriminações sociais.
Nessa perspectiva, Valois (2020) nos traz o cerne da análise subjetiva do magistrado quanto a diferenciação de quem é usuário e quem é traficante, estando pautada exclusivamente na visão dos policiais que realizam a prisão em flagrante. Em suas palavras:
O inquérito policial está exclusivamente na mão da polícia e, quando se trata dessas substâncias, as testemunhas são também quase sempre policiais, deixando aquela pessoa presa, indicada, indiciada pela polícia como traficante, praticamente sem defesa (VALOIS, 2020 p. 326).
Sendo assim, o Estado Brasileiro contribui para a a cultura do encarceramento como a resultante de um modelo de política criminal do três poderes de Estado, centrando o combate à criminalidade na perspectiva da prisão em flagrante delito, atuando no contexto de um sistema penal voltado para a repressão dos crimes com menor capacidade organizacional, ao final voltando-se para indivíduos socialmente fragilizados. Diante disso, grupos com mais chance de serem capturados com maior facilidade, os quais já sofrem enorme estigma pelo sistema, acabam sofrendo por consequência de um padrão de atuação policial fortemente segregacionista (MELO, 2018, p. 37).
Valois (2020), por exemplo, expõe essa hipocrisia do estado brasileiro, in verbs:
Seria um poder arbitrário se o policial pudesse escolher entre entrar em uma mansão dos Jardins, em São Paulo, ou em um apartamento na Vieira Souto, no Rio de Janeiro, ao invés de em uma casa pobre, mas ele não pode. Ou ao menos não pode da forma como entra nos barracos da periferia. A arbitrariedade está na capacidade de escolha arbitrária, o que o policial não tem. Há, portanto, uma discricionariedade, mas uma discricionariedade que se exerce entre a camada pobre da população. As drogas continuam sendo vendidas e sempre continuarão, os presos são os que tiveram o azar de cair na malha fina e esfarrapada no poder punitivo, os bodes expiatórios necessários (VALOIS, 2020, p. 326).
Conclui-se, portanto, que o público destinatário deste artigo é, não somente, mas predominantemente, a camada carente da sociedade, visto que, o sistema penitenciário brasileiro está “lotado de pobres e miseráveis” (VALOIS, p. 326), sendo estes os receptores das penas previstas no ordenamento jurídico que servem, em uma visão utópica, para correção do que está errado.
2.2 A função da pena conectada ao fracasso da ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro
O direito penal é a última ratio, assim, busca, em última instância, restringir e impor, por meio do preceito primário que o ilícito não se repita, ao passo que a pena é a sanção proveniente da confirmação da existência do crime e de seu autor, com rigor punitivo e finalidade ressocializadora (NUCCI, 2019).
No decorrer da sua disposição, o Código Penal Brasileiro estipula três espécies de pena: a pena privativa de liberdade, a pena restritiva de direitos e a pena de multa (BRASIL, 1940).
Ademais, o art. 59 do referido Código atribui como função do juiz o dever de observar a medida necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime quando fixar as penas aplicáveis, sua duração, regime e possível substituição (BRASIL, 1940). Assim, extrai-se que a pena possui um viés duplo: a reprovabilidade e caráter preventivo, ou seja, ao mesmo passo em que se pune o autor pelo crime cometido, busca-se evitar que novas violações aconteçam.
Entretanto, as funções reais da pena nos mostram como o sistema utiliza um discurso de salvação, mas na prática, inserem os apenados em uma escola onde formam criminosos e contribuir para a esteira de ciclo da violência que sofre o estado brasileiro. Nessa interim, em vez de reduzir a criminalidade ressocializando o condenado, produz efeitos contrários a reintegração do apenado a sociedade, ao final consolidando verdadeiras carreiras criminosas cunhadas pelo conceito de "desvio secundário" (DE ANDRADE, 2021, p. 15).
Segundo Ezeokeke (2011, p. 132) o modelo de administração prisional brasileiro é tecno burocrático-coercitivo, fundado em uma combinação de tecnoburocracia violencial. Tal modelo não possui o intuito de erradicar a criminalidade, justamente porque se retroalimenta da existência do crime, estruturando-se num viés claramente punitivista, buscando atribuir uma sensação de segurança à população através do afastamento social daqueles que afetaram o convívio público.
De forma mais objetiva, podemos extrair dos números obtidos pelo Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional – SISDEPEN, que a população carcerária do Brasil, em junho de 2022, é de 837.443, sendo 331.680 presos no regime fechado (39,3%), e 172.551 no regime semiaberto (20,6%) (DEPEN, 2022). Ademais, em junho de 2012, a população carcerária era de 549,577, sendo 216,075 presos em regime fechado, e 75,549 no regime semiaberto (DEPEN, 2012).
Ao mesmo passo em que houve mais prisões, o sistema carcerário não sofreu grandes melhorias e reformas, tampouco o sentimento de segurança cresceu na sociedade. Assim, o Estado foca na punição pelos atos já cometidos, atribuindo pena com função retributiva, e poupa esforços na produção de medidas preventivas, incluindo a ressocialização dos condenados com o fim de evitar novos delitos.
Não só houve aumento no número de condenados, como também houve uma elevação no número de brasileiros usuários de substâncias entorpecentes, certamente sendo um ponto diretamente proporcional ao superlotamento das celas brasileiras, pois, como sabidamente Masson pontuou:
Como se sabe, o simples fato de o agente afirmar ser usuário de drogas não descaracteriza a traficância, pois é possível a coexistência desta qualidade com a de traficante, a exemplo do que se verifica quando alguém vende maconha inclusive para, com o dinheiro recebido, continuar usando a droga (MASSON, MARÇAL, 2019).
Nesse interim, vários são os caminhos que levam o jovem a se envolver com as drogas, seja ela lícita ou ilícita, podendo ser para custear sua sede de entorpecentes, entrando no mercado onde tem maior facilidade de obter lucro rápido, ou, ainda que fora do sistema prisional, sendo o fornecedor, estando meramente na companhia deste e, até que se prove sua inocência, já adentra no ambiente onde a criminalidade é ainda maior. Acaba que no final, até o indivíduo que nunca se envolveu com o uso dos entorpecentes acaba se envolvendo com organizações criminosas por adentrar no ambiente do cárcere, mesmo que por pouco tempo.
Infelizmente, não há relatórios disponíveis demonstrando quantos apenados são usuários de substâncias entorpecentes, noutro bordo, conforme levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, em parceria com outras instituições, o número absoluto estimado nas capitais brasileiras, em 2015, de usuários regulares de maconha chegou a mais de um milhão e noventa mil, cerca de 670 mil usuários regulares de substâncias ilícitas (exceto maconha) e aproximadamente 380 mil usuários regulares de crack e/ou similares (BASTOS, 2017, p. 208).
Adentrando nos números de presos envolvidos por tráfico internacional de drogas e associação para o tráfico, em junho de 2022, temos um total de 215.466, equivalente a 25,7% dos apenados (DEPEN, 2022). Cabe ressaltar, que nesse rol não necessariamente todos são usuários, como também não estão incluídos os usuários apenados por outros tipos penais.
D´Urso (2020) afirma que, as drogas estão presentes no sistema prisional como forma de os custodiados lidarem com as mazelas do encarceramento, como a superpopulação, condições de insalubridade, exposição à violência, falta de assistência à saúde e o rompimento dos laços familiares.
O artigo 84 da Lei de Execução Penal, dispõe que o preso provisório deveria ficar separado do condenado por sentença transitada em julgado. Ainda, em seu §1º, do mesmo dispositivo, determina que o preso primário cumpra pena em seção distinta daquela reservada para os presos reincidentes (BRASIL, 1984). Isto está ligado ao princípio da individualização da pena, porém os dados são evidentes, o sistema carcerário brasileiro sofre de superlotação, visto que a capacidade de vagas disponíveis sofre um déficit de 248.998 vagas (DEPEN, 2022).
Devido a esta lotação de presos no sistema prisional brasileiro, há uma enorme dificuldade na separação dos presos considerados de alta periculosidade dos que cometeram crimes mais leves, o que contribui para um contato maior e possíveis cooptações para a integração de organizações criminosas ou até mesmo em coações dentro do cárcere.
Nesse sentido, percebe-se que são inúmeras as definições na literatura jurídica para subsidiar a condição de um indivíduo como sujeito de direitos, por exemplo, para o direito processual penal um estado que respeita às liberdades individuais e de alegar seus direitos perante os Tribunais de Justiça, efetivando a defesa em seu sentido mais amplo, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito (CARNEIRO, 2022).
Assim, percebe-se uma enorme contradição entre os textos e princípios legais com a realidade construída por meio das instituições, que em vez de tentar minimizar as desigualdades, contribuem para o aprofundamento desigualdades sociais com a mera aplicação fria do texto legal.
3.A QUESTÃO DA RESSOCIALIZAÇÃO COMO CERNE PRIMORDIAL PARA A SUPERAÇÃO DO CAOS DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO
A ressocialização dos apenados é essencial, sobretudo para os que cumprem pena privativa de liberdade em regime fechado e semiaberto.
Na perspectiva jurídica, a Lei de Drogas, em seu art. 1º, parágrafo único adota o conceito de droga como substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União (BRASIL, 2006).
Na atualidade, não se ignora que a prisão, em vez de regenerar e ressocializar o delinquente, degenera-o e dessocializa-o, além de pervertê-Io, corrompê-lo e embrutecê-Io. A prisão é, por si mesma, criminógena, além de fábrica de reincidência. Já foi cognominada, por isso mesmo, de escola primária, secundária e universitária do crime. Enfim, a prisão é uma verdadeira sementeira da criminalização (TRINDADE, 2003, p.5).
A ressocialização busca compreender as circunstâncias envolvidas que fizeram o autor praticar determinado delito e possibilitar o suporte necessário para reintegrá-lo à sociedade, para que seus atos criminosos fiquem apenas no seu passado (GONZALEZ et al, 2016, p. 248). A pena cumprida no ambiente penitenciário é repleta de situações degradantes, como a violência, falta de higiene básica, alimentação e superlotação nas celas. Depois de solto, o indivíduo sofre o estigma de ex-presidiário e, sozinho, encontra diversas dificuldades para se afastar dos motivos que o levaram anteriormente a cometer crime.
A principal dificuldade enfrentada por esses indivíduos é ingressar no mercado de trabalho, pois além da marca de ex-presidiário, a maioria deles não possuem ensino fundamental completo e nem experiência profissional, sendo praticamente impossível serem admitidos em algum emprego. Esse conjunto de fatores dificulta a necessária e humanitária reinserção do detento ao convívio social, auxiliando de forma direta o aumento da reincidência no país que já sofre com os altos índices de criminalidade (GONZALEZ et al, 2016, p. 249-250).
Tratando-se de usuários de drogas dependentes químicos a ressocialização torna-se ainda mais complexa. “Usuários de drogas possuem alguns aspectos psicológicos comuns. Quanto à personalidade, verifica-se fragilidade, falta de amor-próprio, busca da autodestruição, depressão, ansiedade e suas co-morbidades.” (ALVAREZ, GOMES, XAVIER, 2014, p. 642)
O dependente químico tem dificuldade em conseguir desenvolver suas atividades cotidianas sem a utilização da droga, pois esta passa a servir como alívio para lidar com as mazelas da existência e dos conflitos que a constituem. Diante disso, o usuário faz da obtenção da droga seu objetivo de vida. Além disso, a quantidade de drogas existentes e a facilidade para a sua aquisição são elementos que contribuem para essa diferenciação (ALVAREZ, GOMES, XAVIER, 2014, p. 642)
Assim, a ressocialização de dependentes químicos vai além da necessidade de se quebrar o estigma de “ex-presidiário” ou fornecer profissionalização e ensino. A ressocialização desse grupo também não pode ficar restrita apenas ao cumprimento da pena, afinal, ficar um período com sua liberdade restringida não vai fazer o dependente se livrar do seu vício (MODOLON, 2015, p. 38).
Na verdade, precisa-se ter em mente que muitos presos praticam crimes sob o efeito das drogas ou cometem crimes exclusivamente para obter recursos capazes de manter o seu vício e, por isso, eles precisam de tratamento para dependência química (D’URSO, 2020).
Em todas essas definições ou metas propostas para a redução de danos tem o mesmo ponto de partida danos associados ao uso. A questão não é mais prevenir o uso de drogas, simplesmente, mas reduzir os danos associados a esse uso. A redução de danos também abrange mudanças de ordem legislativa e de ordem cultural, que vão acontecer no entendimento médico para o tratamento, na esfera da educação da mídia, enfim estimulando a mudança de percepção das pessoas quanto as drogas e seus usuários, além da própria prevenção em relação a certas doenças. (REGHLEIN,2002, p.76)
Como medidas para a ressocialização de dependentes químicos, a Lei de drogas estabelece, no at. 4º, como princípios do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD): a integração das estratégias nacionais e internacionais com adoção de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a natureza complementar das atividades e prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, observando o equilíbrio entre elas.
Contudo, resta claro que a legislação atual não é suficiente para a promoção da integração social harmônica dos dependentes químicos, sendo necessário repensar não apenas a promoção de novas leis e medidas públicas, como também as dificuldades que o Estado sofre e sofrerá na sua execução, tendo em vista a questão individual de cada usuário
A prisão é uma parte de um continuum que inclui família, escola, assistência social, a organização cultural do tempo livre, preparação profissional, universidade e educação adulta. O tratamento na penitenciária e a assistência pós-penitenciária previstos pelas novas leis, são um setor altamente especializado deste continuum, tendente a recuperar os atrasos em socialização que indivíduos marginais têm sofrido, do mesmo modo como as escolas especiais ajudam a recuperar terreno aquelas crianças que provam ser inaptas para as escolas normais (TRINDADE, 2003, p. 31).
Tais políticas omissas pelos três poderes de estados contribuem paulatinamente para um verdadeiro ciclo de violência, onde o indivíduo que é dependente de entorpecentes, para saciar o seu vício, quando não possui recursos financeiros, se volta para o cometimento de delitos, o que aumenta ainda mais a insegurança da população no dia a dia.
4. DA OMISSÃO LEGISLATIVA NA REALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA DEPENDENTES QUÍMICOS
4.1 Das disposições legais para tratamento de toxicodependentes
O Art. 23 da Lei de drogas dispõe que os entes federados desenvolverão programas de atenção ao usuário e ao dependente de entorpecentes. Nesse sentido, o parágrafo único do art. 45 da mesma legislação dispõe que o magistrado poderá encaminhar para tratamento médico o agente inimputável em razão de dependência ocasionada pelo uso de entorpecentes (BRASIL, 2006).
Diante disso, em que pese às informações percebidas na legislação específica que trata sobre tráfico de drogas, é notório o fracasso do estado brasileiro em propor soluções eficazes para a ressocialização de dependentes químicos. Isso é percebido pela própria redação do art. 33 da Lei de drogas que não perfaz medida de caráter ressocializado distinta à prisão, determinando meramente o enclausuramento do apenado, o que gera diretamente na superlotação carcerária, bem como perspectivas de desintoxicação.
Gomes (2007) exara que os objetivos esculpidos no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD buscam prevenir e reprimir os entorpecentes, in verbis:
Art. 5º O Sisnad tem os seguintes objetivos:
I - contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito e outros comportamentos correlacionados;
II - promover a construção e a socialização do conhecimento sobre drogas no país;
III - promover a integração entre as políticas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao tráfico ilícito e as políticas públicas setoriais dos órgãos do Poder Executivo da União, Distrito Federal, Estados e Municípios;
IV - assegurar as condições para a coordenação, a integração e a articulação das atividades de que trata o art. 3º desta Lei.
Por exemplo, o art. 5°, inciso I, ao analisar a questão da vulnerabilidade preconiza que os indivíduos que usam entorpecentes são vulneráveis, o que significa que representam características sociais ou fatores que o tornam sujeitos mais pendentes a assumir comportamentos arriscados (GOMES, 2007). Esses fatores podem abarcar desde a curiosidade ou até mesmo insatisfação com o contexto social em que vivem.
Desse modo, a norma acerta ao buscar as habilidades sociais, a cooperação, as habilidades para resolver problemas, os vínculos positivos com as pessoas e desenvolver a autoestima do indivíduo que possuem essas questões,
No entanto, ainda é notória a ausência de políticas públicas eficazes para a ressocialização prática e redução da reiteração delitiva de dependentes químicos.
4.2 Das Políticas públicas para os dependentes químicos
Bucci (1997, p. 90). compreende que a fundamentação das políticas públicas se estrutura na existência dos direitos sociais, os quais demandam prestações positivas do Estado. Na qual, outros agentes sociais podem participar da elaboração de políticas públicas, no momento de sua implementação ou da avaliação de seus resultados, além de admitir a admitem a atuação de organizações não governamentais ou órgãos privados na elaboração de políticas, participando em suas fases iniciais, na tomada de decisões para a formulação das políticas (SECCHI, 2013).
O cerne crucial da questão em tela reside no fato de que políticas públicas não podem ser isoladas e formuladas sob uma camada superficial que dissimula a realidade dos fatos. Aqueles que serão afetados diretamente ou potencialmente pelas políticas devem ter alguma forma de participação nessas etapas, sendo ideal que isso ocorra durante a fase de elaboração.
Contudo, como destacado por Bento (2022), a personalidade autoritária é fundamentada na convicção de que a visão de mundo de seu grupo é o epicentro de tudo, compreendendo outras perspectivas somente a partir de uma ótica etnocêntrica. Assim, aqueles que possuem o poder de fazer políticas públicas frequentemente acabam por promover projetos ineficazes que se afastam do ideal necessário.
Desse modo, em artigo publicado na Revista USP, Eduardo Bittar, em 2018, trouxe uma reflexão importante ao analisar a situação atual de políticas públicas no Brasil, ao compreender que na elaboração dessas políticas públicas o cerne principal deve ser a verificação da realidade brasileira e os desafios históricos presentes.
Ainda, imprescindível ressaltar a análise feita por Marques e Berwig (2017), ao identificarem a ideia de segurança pública proporciona à consideração de duas possibilidades – que aparentam ser contraditórias – para alcançar a concretização dos direitos humanos: a primeira delas é a manutenção da ordem pública e o outro é um modelo de segurança pública voltada à proteção dos direitos do cidadão. O primeiro modelo é considerado defasado e o responsável pela crise da segurança pública e pela ineficiência de suas políticas. Isso porque na tentativa de manter a ordem pública e combater o crime sob o pretexto de concretização do direito à segurança acaba excluindo alguns indivíduos (rotulados como perigosos ou criminosos), que por seu turno, acabam gerando mais insegurança. Torna-se, pois, um ciclo vicioso.
Já o segundo modelo, é um sistema que é capaz de prover a segurança dentro do Estado Democrático de Direito devido a sua atuação se dar pela inclusão e preservação dos direitos de todos os cidadãos, atuando de forma positiva através de uma gestão pública pautada na democracia e voltada ao interesse público, por consequência à concretização dos direitos humanos, o que seria possível através políticas públicas que possam ter um cunho social (e não repressivo). E isso é encontrado mediante o uso dos direitos humanos como ferramenta para elaboração, análise, verificação e repressão de violações e mazelas sofridas por dependentes químicos.
Nesse modelo, podemos visualizar uma possível solução para o estado brasileiro resolver o caos que abarca a ressocialização de dependentes químicos, pois é de conhecimento do legislador a omissão no tratamento dos toxicomaníacos, conforme redação do Projeto de Lei 2.546/2021, de autoria da parlamentar Rose Modesto, ao propor programa de recuperação dependentes químicos no sistema prisional, mediante a alteração e inserção do Plano Nacional de Atenção Integral às Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PANISP, criado para possibilitar o acesso dos reclusos as ações e serviços de saúde. Entretanto, é possível identificar que não há menções e ações para a recuperação de dependentes químicos, o que denota o flagrante descaso do poder público com esse tema.
Curioso ainda mencionar que uma das possíveis dificuldades da aplicação de políticas públicas nessa seara pode se dar ao fato de que terminologicamente indivíduos que possuem dependência química são vistos como grupos vulneráveis, mas tratados como minorias.
Esses termos embora sejam comumente considerados sinônimos, por remeterem a uma ideia de grupos de pessoas que se encontram em posição de desvantagem. Contudo, há diferenças, sendo “grupos vulneráveis” àqueles indivíduos que contam com alto grau de chance de ser ofendidos ou atacados, entretanto, não possuem um traço comum entre si. Cita-se como exemplo o caso dos consumidores, dos sindicatos, do réu e das pessoas com deficiência (SIQUEIRA e CASTRO, 2017, p. 109-111).
Já as minorias são, segundo Siqueira e Castro (2017), indivíduos conectados, com um traço cultural comum, sendo, justamente, esse traço cultural que o difere dos demais integrantes da sociedade e, busca-se não eliminar esse traço, mas sim respeitá-lo, com fundamento na pluralidade, citando-se como exemplo, povos indígenas, homossexuais, os negros, os idosos e as crianças.
Naturalmente, embora sejam indivíduos plurais compostos por minorias, é notório que, independente da classe social, o indivíduo que possui maior poder aquisitivo terá mais aparato e apoio financeiro para desenvolver um tratamento adequado. Já que, a implementação de uma política pública voltada para um grupo vulnerável, trata-se de uma estratégia e mecanismos utilizados que devem ser traçados de forma distinta, pois a pretensão não envolve essa preservação de determinado traço cultural (LIMA, LEAL, 2022, p. 154).
Assim, é possível perceber que há inúmeras minorias presentes dentro de grupos vulneráveis, mormente aquelas que não dependem do aparelho estatal para sobressaírem do vício, contudo o estado brasileiro fracassa recorrentemente na aplicação e ressocialização desses indivíduos. Isso é notório especialmente quando se verifica as inúmeras minorias presentes entre os dependentes químicos.
5.CONCLUSÃO
Frente ao viés punitivista da sociedade brasileira, o sistema carcerário vem apresentando situações cada vez mais precárias, como a superlotação, falta de produtos básicos de higiene, alimentos de baixa qualidade e violência entre os presos. Não obstante, a pena cumprida pelo indivíduo com sua liberdade restringida não se limita àquela dentro dos presídios, é cumprida também dentro do convívio da sociedade, após a sua soltura, em razão dos estigmas que o condenado enfrenta e a dificuldade de se reintegrar.
Logo, a ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro é uma questão complexa e desafiadora, que envolve diversos fatores, como a superlotação das prisões, a falta de investimentos em políticas efetivamente públicas, a recuperação da lei penal, entre outros. Nesse contexto, é fundamental que o Estado assuma sua responsabilidade na garantia da ressocialização dos presos, por meio da implementação de políticas públicas que contemplem a assistência social, psicológica e médica aos dependentes químicos.
É preciso compreender que a ressocialização não se trata apenas de uma questão de justiça social, mas também de segurança pública, uma vez que a reincidência criminal pode ser reduzida por meio de medidas efetivas de ressocialização. Além disso, é necessário que a lei penal seja mais adequada à realidade dos dependentes químicos, para que as penas sejam proporcionais à gravidade do delito e considerem a situação de vulnerabilidade dos presos.
Ainda, tendo em vista tratar-se de uma questão de saúde, que afeta a integridade física e psicológica do usuário e daqueles que estão ao seu redor. Então, para garantir a continuidade da ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro, é preciso que o Estado assuma sua responsabilidade e implemente políticas públicas eficazes, com base em evidências científicas e em diálogo com a sociedade civil. O remanescente da lei penal deve ser revista e corrigida, a fim de garantir a proteção dos direitos humanos e a justiça social. Somente assim será possível construir um sistema prisional mais justo, humano e eficiente.
Pode-se falar que a legislação brasileira, com a Lei de Drogas, encontra-se apta para promover a ressocialização desse grupo social? O Estado possui meios suficientes para influenciar na dependência química desses sujeitos? Tais respostas, parcialmente respondidas pelo presente trabalho, identificam um caráter eminentemente omisso do poder legislativo e do poder executivo, seja na ausência de mecanismos eficazes de ressocialização, seja na ausência de políticas públicas enfáticas, que, de fato, solucionem a questão.
É válido afirmar que, essas políticas públicas não podem ser construídas de forma isolada por indivíduos que não tem qualquer noção do dia a dia desses agentes, mas sim pela participação conjunta do Estado, organização não governamentais que tratem sobre o tema, bem como estudiosos sobre a área. Uma vez que, é possível perceber que talvez esse problema não se resolva pela multiplicidade de minorias que se encontram contidas dentro de grupo vulnerável, que são os dependentes químicos, o que torna o caso ainda mais complexo e urgente dada as inúmeras violações de direitos humanos que podem ocorrer eventualmente.
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graduanda em Direito pela Universidade Federal do Amazonas
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BERNARDO, Karolayne Limoeiro. Ressocialização de dependentes químicos no sistema carcerário brasileiro: entre a omissão estatal e a insuficiência da lei penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2023, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61520/ressocializao-de-dependentes-qumicos-no-sistema-carcerrio-brasileiro-entre-a-omisso-estatal-e-a-insuficincia-da-lei-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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