Resumo: O trabalho do condenado é controverso no Brasil, pois a ressocialização do preso é comprometida devido à negação de direitos trabalhistas. A legislação aplicada aos presos é diferente da dos trabalhadores comuns, gerando problemas. Os principais são a falta de benefícios, remuneração abaixo do mínimo e jornada de trabalho não limitada. A obrigação do trabalho do preso entra em conflito com a proibição de trabalhos forçados na Constituição Federal. Essa questão suscita debates sobre a legalidade e a exploração da mão de obra barata. Mudanças legislativas são necessárias para regular o trabalho do preso pela legislação trabalhista comum, garantindo benefícios e direitos. Empresas que contratam presos devem ser fiscalizadas para evitar exploração e é preciso um sistema eficiente para resolver conflitos trabalhistas. Essas medidas visam tornar o trabalho do preso uma ferramenta efetiva para sua ressocialização.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho do condenado. Ressocialização. Lei de Execução Penal. exploração de mão de obra. mudanças na legislação.
ABSTRACT: The work of convicts is controversial in Brazil as it compromises prisoner rehabilitation due to the denial of labor rights. The legislation applied to prisoners differs from that of regular workers, leading to various issues. The main problems include the lack of benefits, below-minimum wage remuneration, and unrestricted working hours. The mandatory nature of convict labor conflicts with the constitutional prohibition of forced labor. This matter sparks debates on the legality and exploitation of cheap labor. Legislative changes are necessary to regulate convict labor under standard labor laws, ensuring benefits and rights. Companies that hire prisoners should be monitored to prevent exploitation, and an efficient system is needed to resolve labor disputes. These measures aim to make convict labor an effective tool for prisoner rehabilitation
KEY WORDS / PALABRAS CLAVE: Convicted labor. social reintegration. Penal Execution Law. labor exploitation. changes in legislation.
1. Introdução
De acordo com o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), em junho de 2022, a população carcerária do Brasil era de 830.714 mil presos, dos quais 86%, ou seja, 714.414 mil presos, estavam até aquele momento envolvidos em atividades laborais internas aos estabelecimentos prisionais em que se encontravam. [1]
O trabalho do preso é regulamentado tanto pela Lei de Execuções Penais (LEP)[2] quanto pelo Código Penal, em que são determinados a finalidade e o modo de execução dessa atividade, bem como os direitos e deveres dos detentos, entre outras questões.
Apesar de a nossa Constituição Federal datar do ano de 1988[3], o trabalho do preso permanece um tema marginalizado até os dias atuais, quando ainda carece de ser tratado com a devida importância.
Ainda que de forma tímida, o presente trabalho tem por objetivo tratar do trabalho do preso dentro e fora dos presídios. Em um primeiro momento, será abordada a finalidade do trabalho do preso, tendo-se em vista a natureza jurídica da pena. Já num segundo momento serão analisados os direitos fundamentais que, apesar de serem garantidos por lei aos trabalhadores livres, são sonegados aos presos no que diz respeito à atividade laboral, quais sejam, a vedação da possibilidade de recebimento de salário abaixo do mínimo legal e a vedação da possibilidade de cumprimento de jornada de trabalho com duração de tempo superior à estabelecida na Constituição Federal.
O trabalho pretende, portanto, refletir sobre os direitos trabalhistas dos presos a partir da identificação de violações contra os direitos fundamentais desses indivíduos, levando em consideração os direitos humanos e a natureza jurídica da pena.
2. Finalidade do trabalho do condenado
O artigo 28 da Lei Nº 7.210/1984, a Lei de Execuções Penais (LEP)[4], estabelece o trabalho do condenado como “dever social e condição de dignidade humana”, apontando para duas finalidades: educativa e produtiva.
A finalidade educativa diz respeito ao provimento de maior qualificação profissional ao apenado perante o mercado de trabalho que ele enfrentará quando for libertado. Já a produtividade, descrita no artigo 29 da LEP[5], está voltada a atender à indenização dos danos causados pelo crime cometido, bem como à assistência à família do apenado, englobando também a cobertura de pequenas despesas pessoais dele e sobretudo ao ressarcimento do Estado pela sua manutenção sob custódia, podendo ainda gerar uma poupança capaz de ampará-lo quando posto em liberdade.
A norma supracitada tem por objetivo oferecer algum tipo de dignidade e utilidade para a vida do preso, com o intuito de prepará-lo para uma reintegração à sociedade. Conforme aduzido por Michel Foucault em seu célebre livro Vigiar e punir[6], se o detento não vislumbrar em seu labor essa utilidade e essa relevância, consequentemente nutrirá um sentimento de injustiça que prejudicará sua ressocialização.
Rusche e Kirchheimer ensinam que:
“a pena aplicada ao criminoso não pode ser entendida apenas como consequência do crime praticado pelo individuo, devendo ser considerada também como resultado da agência de forças econômicas e fiscais nela interessadas. Essa situação explica a adoção (ou o retorno) da punição por meio de penas corporais e de morte no feudalismo, já que em tal sistema produtivo não se utilizava a mão de obra do apenado. Também elucida a posterior modificação das formas punitivas para as casas de correção, durante o mercantilismo, quando a mão de obra dos detentos passou a ser utilizada para a produção de bens, de maneira que era mais conveniente mantê-los vivos e sem mutilações. De acordo com os mesmos autores, o tipo de pena sempre variou conforme a necessidade dos meios de produção, uma vez que é evidente que a prisão com o trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria, assim como o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente a ele fique inaplicável. Em razão disso, inclusive, são modificados ao longo do tempo os métodos punitivos, a ponto de se perceber que o papel do condenado foi reduzido ao mínimo na atual sociedade industrial, visto que, nesta fase de desenvolvimento do capitalismo, o trabalho livre se afirmou como condição necessária para o emprego da força de trabalho”[7]
Fica claro, portanto, que o propósito do trabalho do preso possui caráter socioeconômico e mercantil, não apenas tendo finalidade educativa e produtiva, nos termos definidos na LEP, mas também fomentando a disponibilidade de mão de obra de baixíssimo valor.
Não obstante a percepção de que, atualmente, a mão de obra penitenciária tem sido muito pouco utilizada em face do número de desempregados livres, é nítido que o trabalho do detento passa ser de enorme interesse de grandes empresas no momento em que a economia se aquece e, consequentemente, a abertura de novos postos de trabalho (isto é, o aumento da demanda por força de trabalho) leva ao aumento dos salários.
3. Remuneração do preso abaixo do salário mínimo
No artigo 29 da LEP, o legislador estabeleceu remuneração do preso mediante prévia tabela, com a condição de que ela não fosse inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo.
Tal artigo, no nosso entender, contraria frontalmente o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal (CF) de 1988, que estabelece, dentre outros direitos de todos os trabalhadores urbanos e rurais, o recebimento de pelo menos um salário mínimo.
Conforme exposto na seção anterior, o artigo 28 da LEP, ao qualificar o trabalho do condenado como “condição de dignidade humana”, deixa clara a necessidade de haver condições mínimas de dignidade para a sua realização.
Embora a Constituição de 1988 não tenha incluído a dignidade da pessoa humana entre os direitos fundamentais inseridos no extenso rol do artigo 5º, é expressa e notória a presença desse item como um dos fundamentos consignados no inciso III do artigo 1º da Carta Magna da República Federativa do Brasil.
O direito ao salário-mínimo é um direito fundamental e, por esse motivo, deve ser aplicado de modo o mais amplo possível, não existindo qualquer motivo pelo qual o trabalhador preso não tenha assegurada essa remuneração mínima. [8]
Justamente por figurar no rol dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente, o salário-mínimo desfruta de uma condição que impõe inegável supremacia sobre todas as demais justificativas contrárias a ele, de forma que violar tal direito seria violar a dignidade da pessoa humana como princípio.
Embora tenha um caráter específico de ressocialização, quanto ao mais o trabalho do presidiário possui a mesma natureza e a mesma importância que qualquer outro trabalho exercido por qualquer outro trabalhador, uma vez que se realiza potencialmente sob as mesmas condições, envolve as mesmas obrigações e é capaz de gerar valor e mais-valia; portanto, deve ser remunerado de modo equiparado ao do trabalhador comum.
Ignorar tal fato seria desprezar o princípio geral da igualdade, haja vista que só seria cabível proceder com tratamentos desiguais na hipótese de haver alguma necessidade justificável de diferenciação, o que claramente não se aplica ao caso.
No célebre artigo 5º da CF, “todos são iguais perante a lei”, sendo o trabalhador livre ou preso, “sem distinção de qualquer natureza”. Conforme nos ensina Canotilho:
“A afirmação – ‘todos os cidadãos são iguais perante a lei’ – significa, tradicionalmente, a exigência de igualdade na aplicação do direito. Numa fórmula sintética, sistematicamente repetida, escrevia Anschutz: “as leis devem ser executadas sem olhar as pessoas”. A igualdade na aplicação do direito continua a ser uma das dimensões básicas do princípio da igualdade constitucionalmente garantido e, como se irá verificar, ela assume particular relevância no âmbito da aplicação igual da lei (do direito) pelos órgãos da administração e pelos tribunais” [9](CANOTILHO, 2003, p. 426).
Além do mais, o artigo 38 do Código Penal (CP) brasileiro estabelece que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito a sua integridade física e moral”.
Na realidade, contudo, nota-se um tratamento efetivamente diferenciado ao presidiário, que é encarado como merecedor de toda espécie de castigo, incluindo não apenas a reclusão, mas também o trabalho forçado e a ausência de direitos, situação que é validada por uma relativamente ampla tolerância social.
Verifica-se, assim, que o artigo 29 da LEP acaba por criar uma situação discriminatória entre o trabalhador preso e o trabalhador livre ao possibilitar o pagamento ao apenado, em remuneração pelo mesmo trabalho realizado por ambos, de uma importância em valores monetários inferior ao mínimo legal.
Dessa forma, entendemos que tal dispositivo da LEP, lei sancionada em 11 de julho de 1984, não foi devidamente recepcionado pela Constituição.
4. Da decisão proferida na ADPF 336
Em 2015, o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, propôs uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que recebeu o número 336[10], na qual postulou a declaração de inconstitucionalidade do artigo 29 da LEP, fundamentando que o referido artigo não havia sido recepcionado pela CF de 1988.
Na referida ação, o procurador-geral argumentou que o piso salarial dos detentos que trabalham, correspondente a 3/4 do salário-mínimo, viola a dignidade da pessoa humana (art. 1º da CF/88), contrariando ainda o princípio geral da igualdade (art. 5º da CF/88), bem como o próprio direito ao salário mínimo (art. 7º, IV, CF/88). [11]
É importante esclarecer que a Presidência da República, como parte interessada, se manifestou pela improcedência dessa arguição, argumentando que as atividades laborais realizadas pelos presidiários são não apenas um direito mas também um dever. Acrescentou ainda que o artigo 7º da CF/88 tem aplicabilidade somente nos casos de trabalhadores urbanos e rurais com vínculo empregatício, o que exige o cumprimento de diversos requisitos para existir, os quais não se verificam no regime de trabalho do preso. [12]
Quanto ao pagamento de salário abaixo do mínimo, houve a alegação de que tal lacuna funcionaria como uma espécie de estímulo ao mercado para a contratação de encarcerados, não havendo que se falar de violação a preceito fundamental. [13]
O Congresso Nacional, outra parte interessada, se manifestou defendendo a liberdade da administração penitenciaria para regulamentar o trabalho do preso, garantindo o salário-mínimo àqueles que realizam atividades laborativas, mas destacando que o trabalho do preso não está coberto pela legislação trabalhista, dentre outros argumentos.[14]
A ADPF 336 teve como relator o ministro Luiz Fux, sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2021, em sessão virtual de 19 de fevereiro de 2021 a 26 de fevereiro de 2021, composta pelos ministros Luiz Fux (Presidente), Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia Antunes Rocha, José Antonio Dias Toffoli, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Kassio Nunes Marques. Salienta-se que, por motivo de licença médica, não participou dessa sessão de julgamento o ministro Celso de Mello.[15]
Analisando os termos da decisão, em breve resumo, o ministro relator afirmou que as condições do sujeito preso, em si, tornam possível o pagamento de uma remuneração inferior ao estabelecido constitucionalmente em prol da dignidade humana.
O plenário da corte decidiu, por maioria, pela improcedência da ADPF, julgando que o artigo 29 da LEP foi recepcionado pela CF/88, sendo vencidos os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
Ainda assim, não podemos concordar com a improcedência dessa ação, em especial sob o argumento de que o salário abaixo do mínimo funcionaria como uma espécie de estímulo à contratação de encarcerados, haja vista que não cabe ao Estado tolerar ou até mesmo promover a violação de direitos fundamentais com o fito de garantir vantagens em termos da colocação empregatícia de reclusos.
O salário-mínimo é um direito constitucionalmente assegurado e, desse modo, possui supremacia sobre qualquer justificativa de estímulo à contratação de encarcerados.
Vale esclarecer que o fato de o trabalhador estar encarcerado não legitima o pagamento de salário em desconformidade com o artigo 7º da CF, razão pela qual torna-se necessária a reiteração de que o piso salarial do preso, ao ser definido sob quaisquer alegações em patamar inferior àquele estabelecido nacionalmente, representa inequivocamente um flagrante violação da dignidade da pessoa humana, bem como do princípio da igualdade.
O fato de o trabalhador encarcerado não estar enquadrado no regime celetista não justifica, em aspecto algum, a violação de direitos fundamentais, devendo, pois, haver respeito incondicional ao pagamento mínimo legal de salário a qualquer trabalhador.
Portanto, concluímos que tal decisão da Suprema Corte em desfavor da ADPF 336 afronta preceitos fundamentais do direito dos trabalhadores, bem como princípios constitucionais.
5. Do limite do tempo de trabalho acima dos limites legais
O artigo 33 da LEP disciplina que a jornada normal de trabalho do preso não será inferior a 6 (seis) horas diárias nem superior a 8 (oito) horas diárias, com descanso nos domingos e feriados.
Nesse sentido, é facilmente entendido que, na hipótese de um apenado estar submetido a jornadas diárias de 8 (oito) horas, transcorridas semanalmente ao longo de 6 (seis) dias (de segunda-feira a sábado, haja vista que a lei estabelece descanso aos domingos), pode-se deduzir que é permitido ao preso laborar em jornada de 48 horas semanais.
A Lei de Execuções Penais foi sancionada em 1984, ou seja, ainda durante a vigência da Constituição Federal de 1969, que estabelecia jornada de trabalho de 8 (oito) horas diárias e 48 (quarenta e oito) horas semanais. Assim, no momento em que a LEP foi sancionada, a jornada estava dentro do regime estabelecido.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se um novo limite para a jornada de trabalho semanal, que passou a ser de 44 (quarenta e quatro) horas, embora tenha sido mantida em 8 (oito) horas a jornada diária. Com isso, o artigo 33 da LEP passou a contrariar esse novo dispositivo legal, por seguir permitindo, conforme demonstrado, que se ultrapassasse a jornada semanal delimitada na Carta Magna.
Tal contradição foi levada para a apreciação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estipulou duas linhas ao assunto, admitindo uma variação conforme o tipo de prestação de serviço. A primeira diz respeito ao trabalho externo, ou seja, aquele que se realiza fora do ambiente carcerário, para o qual a corte definiu a necessidade de ser respeitado o limite de 44 (quarenta e quatro) horas semanais.
No entanto, para o trabalho interno, fixou-se por meio do Recurso Especial Nº 1.632.746/MG o entendimento de que não precisaria haver a mesma limitação, sendo mantida a possibilidade de se cumprirem até 48 (quarenta e oito) horas de trabalho por semana, classificando-se o excedente como “carga horária especial”.
No nosso entendimento, não existe razão para que a jornada interna do preso deva ultrapassar o limite estabelecido na Constituição Federal. A natureza jurídica do trabalho interno é a mesma do externo, qual seja, educativa e produtiva, portanto, não há que se falar em justa diferenciação.
Nesse mesmo sentido, em âmbito internacional, consta nas chamadas “Regras de Mandela”[16] (aprovadas por meio da Resolução 663 C I do Conselho Econômico e Social da ONU), ratificadas pelo Brasil, que a jornada do recluso deve ser comparada à dos trabalhadores em liberdade, conforme estabelece a Regra 102.1.
Portanto, se o trabalhador em liberdade tem como carga máxima semanal a jornada de 44 (quarenta e quatro) horas, não existe motivo para que o trabalhador recluso tenha jornada superior a essa.
Assim, contrariamente ao que demonstrou entender o STJ, não se justifica adequadamente o enquadramento da jornada interna do preso como “carga horária especial”, tendo em vista a necessidade de ser respeitado o inciso XII do artigo 7º da CF/88.
6. O trabalho do preso na legislação trabalhista
O parágrafo 2º do artigo 28 da LEP dita expressamente que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), competindo ao juiz de execução a tarefa de dirimir eventuais controvérsias nessa matéria.
O fato de essa lei estabelecer que o trabalho do preso não se sujeita ao regime celetista não implica que tal dispositivo tenha o condão de retirar da Justiça do Trabalho a competência para a apreciação de disputas decorrentes de relações trabalhistas.
Vale esclarecer que seria totalmente plausível a realização, no âmbito da Justiça do Trabalho, do julgamento de uma ação de assédio sexual ajuizada a partir de eventos ocorridos no cotidiano de trabalho de um recluso que atua fora do ambiente carcerário.
No entanto, mesmo após a vigência da Emenda Constitucional Nº 45/2004, que deu nova redação ao artigo 114 da CF, estabelecendo a Justiça do Trabalho como instância de amplo acolhimento de demandas judiciais decorrentes de relações de trabalho, esse entendimento não foi consolidado.
Nas poucas situações em que tais demandas foram levadas à justiça especializada, o trabalho do preso foi entendido como parte da execução da pena, o que implicou o reconhecimento da incompetência absoluta da Justiça do Trabalho em relação ao caso, de forma a remeter o processo ao juízo da execução penal.
Em prol desse posicionamento, argumenta-se que está vinculada à Lei de Execução Penal a relação institucional firmada entre os presidiários e o estabelecimento prisional a que estão vinculados (ou ainda entre esses trabalhadores e a empresa privada autorizada pelo estabelecimento prisional a contratá-los).
Vale esclarecer que mesmo quando o preso tem assegurada sua liberdade, como nos casos dos presos provisórios – que, pelo artigo 31 da LEP, não estão obrigados ao trabalho –, ainda assim lhe são negados tanto a relação de emprego quanto o enquadramento na CLT.
Conforme menciona o desembargador Jorge Luiz Souto Maior:
“[...] há de se ponderar que quando esse trabalho é aproveitado no contexto de uma exploração econômica ou mesmo para satisfação de algum interesse do próprio Estado (econômico, ou não), tem-se a inevitável formação da relação de emprego, da qual decorrem todos os direitos que lhe possam, pelas características próprias, ser aplicáveis, pois o fato de estar cumprindo pena não diminui o alcance da cidadania do preso”[17]
E ainda continua:
“A confusão legislativa permitiu que se vislumbrasse no trabalho do preso uma simples alternativa de mão de obra barata, para atender a interesses tanto do próprio Estado (que, nesse aspecto, age como se estivesse defendendo um interesse da sociedade) e da iniciativa privada, para um desenvolvimento das relações capitalistas com menor custo” (SOUTO MAIOR, 2008, p. 65).[18]
Encontram-se alguns poucos bons precedentes na Justiça do Trabalho quando se trata de reconhecimento de vínculo em caso de regime semiaberto. Senão vejamos:
RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE. CONDENADO. REGIME SEMIABERTO. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. POSSIBILIDADE. A Lei de Execuções Penais (Lei Nº 7.210/84) regula unicamente o trabalho do condenado que cumpre pena em regime fechado. Encontrando-se o reclamante em regime semiaberto no período contratual e não se amoldando as condições de trabalho àquelas previstas na referida lei, não se configura o trabalho prisional, situação que afasta as disposições da LEP e da qual emerge a presunção de tratar-se de relação de emprego, regida pela CLT. Vínculo empregatício reconhecido. Recurso parcialmente provido.[19]
Entendemos que com a nova redação do artigo 114 da CF abrangendo a competência da Justiça do Trabalho, de forma a conferir um ambiente laboral digno a quem quer que seja, não se deve distinguir entre o trabalhador livre e o recluso, haja vista que ambos constituem os mesmos bens a serem protegidos.
Assim, formamos a convicção de que a Justiça do Trabalho deveria ser competente para apreciar e julgar questões envolvendo controvérsias das relações de trabalho.
Conclusão
Na qualidade de “dever social e condição de dignidade humana”, o trabalho do condenado tem função educativa e produtiva bem claras, ou seja, o objetivo desse trabalho não pode ter como finalidade produzir lucro para a iniciativa privada ou representar o barateamento da mão de obra através da ação promotora do Estado.
O direito ao trabalho tem por objetivo contribuir para a ressocialização do preso, colocando-o em um ambiente digno e saudável e possibilitando, assim, a remição da execução da pena.
O que acontece na prática, porém, é uma negação da incidência da legislação trabalhista e dos direitos mínimos estabelecidos em legislação específica e até mesmo na Constituição Federal. Assim, não são assegurados aos presos benefícios como férias e 13º salário, sem falar na redução do piso do salário a um patamar inferior ao mínimo e ainda na possibilidade de realização de jornada superior ao máximo estabelecido.
A previsão da LEP segundo a qual o trabalho do preso é obrigatório vai de encontro ao artigo 5º, XLVII, “c”, que proíbe a pena de trabalhos forçados, não sendo, portanto, tal norma recepcionada pela Constituição Federal.
Nesse mesmo sentido, a possibilidade de remuneração do preso em valor inferior ao salário-mínimo também contraria frontalmente o estabelecido no artigo 7º, inciso IV da CF.
O fato de o apenado ter seus direitos mais básicos sonegados acaba atraindo empresas públicas e privadas interessadas sobretudo na exploração desse tipo de mão de obra e, consequentemente, no aumento exponencial de seus próprios lucros.
Vale esclarecer ainda que qualquer desavença nessa relação trabalhista dificilmente será julgada na Justiça do Trabalho, o que dificulta ainda mais a busca pelos direitos do preso, bem como por um contrato de trabalho e por uma relação empregatícia mais dignos e saudáveis.
O tema tratado no presente artigo há de ser cada vez mais discutindo, e com profundidade cada vez maior, não apenas pela academia jurídica, mas por toda a sociedade, não havendo como negar que os direitos sociais devem ser protegidos em benefício de todos.
O trabalho do preso deve existir, por fim, para que cumpra suas funções sociais e não para atender aos anseios lucrativos e aos interesses econômicos dos setores produtivos.
Referências bibliográficas
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 336. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 10 de março de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 01 de março de 2021
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
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FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Resolução 663 C I: "Regras de Mandela". Nova Iorque: Nações Unidas, 2015.
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SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de direito do trabalho: a relação de emprego. Vol. II. São Paulo: LTr, 2008.
RUSCHE, George, KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
[1] Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Serviços - SISDEPEN. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso em: 19 de maio de 2023.
[2] BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984.
[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
[4] BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984.
[5] Idem
[6] FOUCAULT, 1987
[7] RUSCHEN KIRCHHEIMER, 2004, p. 20-21
[8] FELICIANO 2019, p. 133.
[9] CANOTILHO, 2003, p. 426.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 336. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, 10 de março de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 01 de março de 2021
[13] Idem
[14] Idem
[15] Idem
[16] Nações Unidas. Conselho Econômico e Social. Resolução 663 C I: "Regras de Mandela". Nova Iorque: Nações Unidas, 2015.
[17] SOUTO MAIOR, 2008, p. 64
[18] SOUTO MAIOR, 2008, p. 65
[19] TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO. Recurso Ordinário do Reclamante. Condenado. Regime Semiaberto. Vínculo Empregatício. Possibilidade. Acórdão nº 0000853-68.2012.5.04.0772. Processo nº 0000853-68.2012.5.04.0772 RO. Julgamento realizado em 29 de agosto de 2013. Relator: Desembargador Alexandre Corrêa da Cruz. Participaram do julgamento: Desembargadora Tânia Rosa Maciel de Oliveira, Desembargador Raul Zoratto Sanvicente. Porto Alegre: TRT 4ª Região, 2013.
Mestrando em Direito pela FADISP. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Escola Paulista de Direito. Advogado. Professor da Faculdade Zumbi dos Palmares.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MILEO, Giovanni Cesar Marquez. A marginalização do trabalho do preso dentro das penitenciarias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2023, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61550/a-marginalizao-do-trabalho-do-preso-dentro-das-penitenciarias. Acesso em: 23 dez 2024.
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