RESUMO: O presente artigo trará uma análise de questões referentes à coerção do Direito, que nos levam a pensar se pode existir um direito independente de sanção, bem como se é possível que as pessoas obedeçam ao Direito por ser ele mesmo, sem qualquer caráter punitivo. O Direito pode estabelecer condutas de maneira propositiva, ou seja, estabelecer, no lugar de penalidades, estímulos para a prática de determinado ato, como mecanismo de estímulo de observância à lei. Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade de existirem normas jurídicas que não tenham mero caráter punitivo, mas que estimulem a prática de determinadas condutas mediante contrapartidas que lhes tragam benefícios. Partindo de um entendimento em que os estímulos premiais são de melhor aceitação pela sociedade, iremos analisar alguns pontos que podem orientar uma reflexão sobre a existência de um Direito com caráter menos punitivo e mais agregador. A metodologia utilizada será pesquisa bibliográfica e documental para uma abordagem conceitual dos comandos legais que estabelecem contrapartidas benéficas quando observada a orientação contida na lei.
PALAVRAS-CHAVE: direito, força e coerção; obediência à norma jurídica; regra sem sanção; estímulo a condutas determinadas; eficácia e aceitação pela sociedade.
ABSTRACT: This article will bring an analysis of issues related to the coercion of the Law, which lead us to think whether there can be a law independent of sanction, as well as whether it is possible for people to obey the Law for being itself, without any punitive character. The Law can establish conducts in a propositional way, that is, to establish, instead of penalties, incentives for the practice of a certain act, as a mechanism to stimulate compliance with the law. In this context, the objective of this article is to analyze the possibility of existing legal norms that are not merely punitive, but that encourage the practice of certain behaviors through counterparts that bring them benefits. Starting from an understanding in which premium incentives are better accepted by society, we will analyze some points that can guide a reflection on the existence of a Law with a less punitive and more aggregating character. The methodology used will be bibliographical and documentary research for a conceptual approach of the legal commands that establish beneficial counterparts when observing the guidance contained in the law.
KEYWORDS: Law, Force and Coercion. Compliance with Legal Standards. Rule without sanction. Stimulation of Determined Conduct. Effectiveness and Acceptance by Society.
INTRODUÇÃO
Desde os primeiros passos nos estudos jurídicos, a ideia de lei é relacionada ao caráter de obrigatoriedade de seu cumprimento, sob pena de ser o infrator sofrer uma sanção, de caráter coercitivo.
Sem sombra de dúvidas, o elemento coerção sempre se fez presente para que o Direito pudesse ter sua eficácia plena, pois a mera declaração legal de uma determinada conduta ser vedada, sem que conte com uma contrapartida punitiva, tornaria as regras postas letra morta.
Entretanto, em nossos tempos seria possível imaginar um Direito completamente desprovido de coerção? Ou talvez possamos pensar em uma nova maneira de pensar a formulação de leis, de modo a induzir condutas que são desejadas pela sociedade, mas que previstas taxativamente podem induzir à sua observância.
Nesse contexto, é importante tentarmos orientar nosso entendimento sobre uma definição sobre o que se busca através do Direito, e nos dizeres de Eros Roberto Grau (2008, p. 23):
Podemos dizer que o direito é um instrumento de organização social, sistema de normas (princípios) que ordena – para o fim de assegurá-la, - a preservação das condições de existência do homem em sociedade (forma que visa a assegurar as condições de vida da sociedade, instrumentada pelo poder coativo do Estado. Assim, o direito pretende proteger e assegurar a liberdade de agir do indivíduo, subordinando-a ao interesse coletivo; ele demarca as áreas da liberdade e do interesse coletivo, tendendo à determinação de um ponto de equilíbrio entre esses dois valores.
Atualmente, é possível compreender que as aspirações sociais caminham para mecanismos de racionalização dos institutos, para uma busca por uma vida coletiva sustentável e com observância de princípios básicos gerais que entendem como aptos a permitir uma vida equilibrada.
Questões como transparência, redução de desigualdades, além de outros meios de equilibrar a vida em sociedade estão cada vez mais presentes nas preocupações do legislador, inclusive de maneira global, como se verifica – por exemplo, com a Agenda 2030 da ONU, que estabelece os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, regras gerais estabelecidas pelos países, de forma a serem inseridas em seu direito doméstico.
Tais regras nada mais traduzem que sentimentos gerais da humanidade, como erradicação da pobreza, fome zero, igualdade de gênero e uma série de disposições que orientam essas necessidades tidas pelos povos como necessárias para uma vida digna.
Dessa maneira, com essas reflexões iniciais, podemos trazer esses elementos para o debate, essencialmente sobre a relação entre direito e coerção, e se a coerção se mostra ainda elemento essencial para que as pessoas obedeçam ao Direito.
Portanto, se a partir dessa percepção de uma sensação geral de necessidade de assunção de todos aos regramentos que lhe orientam, é importante a reflexão sobre as regras que trazem penalidades e as regras que comportam, de certa forma, prêmios por observância a uma determinada conduta.
Assim, podemos mencionar Frederick Schauer (2022, p. 170), que assim pondera:
Contudo, mesmo na medida em que o comportamento seja determinado em grande parte ou inteiramente pelo interesse próprio, os indivíduos parecem frequentemente motivados não apenas pelo medo de sanções desagradáveis, mas também pela esperança de recompensas. Embora muitas pessoas prefiram evitar o serviço militar, por exemplo, a mudança, em muitos países, do recrutamento militar para um exército de voluntários foi facilitada pela promessa de educação, de treinamento especializado e relevante para civis, de aposentadoria precoce e generosa e, em muitos casos, de um salário mais alto e melhor comida e residência do que estava disponível para aqueles que se voluntariavam.
(...) Bentham, a quem creditamos a criação inicial de uma descrição da natureza do direito dependente-de-sanções e que estava mais interessado em seres humanos que em ratos, também reconheceu que a motivação humana pode ser positiva ou negativa. E assim ele entendeu bem a maneira pela qual recompensas e punições podem influenciar o comportamento.
Ou seja, naturalmente, de forma individual as pessoas internalizam as regras, mas de certa forma existem questões que são passíveis de direcionamento da conduta humana sem que haja essa imposição psicológica do receio de ser penalizado.
O autor acima mencionado indica que podemos pensar em formas legislativas que não prevejam sanções, mas sim em motivação humana através de recompensas, o que traria ainda maior aderências das leis às condutas de seus destinatários.
Partindo de tais premissas, iremos abordar, de forma breve, a questão sobre a possibilidade de existir um direito menos coercitivo, com caráter mais premial e que estabeleça contrapartidas positivas em caso de adoção e aceitação do que determinada lei preveja como conduta a ser observada pela coletividade, e a partir de exemplo específico que será delimitado adiante, como é possível tornar o Direito menos sancionador.
1. Um Exemplo a ser Considerado: As Práticas Indutivas na Nova Lei de Licitações – Os Nudges como Elementos Não Coercitivos
Temos, como delimitado anteriormente, diversos mecanismos atuais que visam contemplar menos penalidades e abordar mais recompensas pela prática de uma determinada conduta que se sabe desejada por essa coletividade.
O ponto que foi compreendido como relevante foi a análise de alguns aspectos relacionados à nova Lei de Licitações Brasileira, em leitura conjugada com o ponto específico dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com a reflexão sobre a experiência estrangeira sobre a adoção de métodos premiais em seus ordenamentos.
Em virtude da sempre crescente atuação da Administração Pública, essencialmente no que diz respeito às contratações, e com a modificação legislativa recentemente introduzida no nosso ordenamento jurídico, é possível identificar elementos que visam não só trazer maior transparência aos atos administrativos, mas de igual maneira mecanismos de estímulo às boas práticas.
Sobre os contornos da licitação no Direito Administrativo brasileiro, Maria Sylvia Zanella di Pietro (2023, p. 120) assim esclarece:
Além disso, o princípio deve ser observado não apenas pelo administrador, mas também pelo particular que se relaciona com a Administração Pública. São frequentes, em matéria de licitação, os conluios entre licitantes, a caracterizar ofensa a referido princípio. Em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa. É evidente que, a partir do momento em que o desvio de poder foi considerado como ato ilegal e não apenas imoral, a moralidade administrativa teve seu campo reduzido; o que não impede, diante do direito positivo brasileiro, o reconhecimento de sua existência como princípio autônomo. Embora não se identifique com a legalidade (porque a lei pode ser imoral e a moral pode ultrapassar o âmbito da lei), a imoralidade administrativa produz efeitos jurídicos, porque acarreta a invalidade do ato, que pode ser decretada pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário. A apreciação judicial da imoralidade ficou consagrada pelo dispositivo concernente à ação popular (art. 5º, LXXIII, da Constituição) e implicitamente pelos já referidos artigos 15, V, 37, § 4º, e 85, V, este último considerando a improbidade administrativa como crime de responsabilidade.
Ou seja, não se trata apenas da proteção à coisa pública, mas também de se buscar mecanismos que tenham por finalidade consolidar a mentalidade de concorrência leal e não utilização de meios escusos na busca por vencer o certame; além de contribuir com o estímulo às boas práticas em relação ao sistema como um todo, para que haja cada vez mais credibilidade do Poder Público e mesmo entre aqueles que visam contratar com a Administração Pública.
Ao mencionarmos a Agenda 2030 da ONU, estabelecemos como exemplo uma intenção global de buscar um ambiente de convívio sustentável em todos os sentidos, não só no tocante ao meio ambiente propriamente dito, mas de igual maneira um modo de viver melhor, como por exemplo, as que visam o combate a corrupção.
Salienta-se que o Brasil aderiu à tal agenda, e como os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos são recepcionados no mesmo patamar das emendas constitucionais, conforme expressa disposição contida no artigo 5º, §3º da Constituição Federal[1], no âmbito do direito brasileiro é assim que deve ser encarada a adesão à tal regra.
Nos dizeres do Professor Ingo Wolfgang Sarlet[2]:
Além disso, nada obsta que a noção de direitos humanos (e mesmo o catálogo de direitos agregado a uma determinada concepção) coincida – como de fato assim o sucede – em boa parte com o elenco de direitos (humanos e/ou fundamentais) consagrado nos documentos de direito internacional e direito interno dos Estados. Mas também do ponto de vista da fundamentação e justificação de um conceito não estritamente jurídico de direitos humanos existe uma diversidade significativa de teorizações, mais ou menos abrangentes, seja na esteira de uma concepção de matriz jusnaturalista, seja – onde preferimos nos situar- no sentido (também peculiar a diversas teorias da justiça e dos direitos humanos) de direitos morais, ou seja, exigências morais (moral claims) universalizáveis.
Portanto, é de se identificar tal natureza da regra que será abordada, considerando que o paralelo que será traçado está relacionado aos programas de integridade nas licitações, que se encontra na nova Lei de Licitações brasileira.
Para que façamos a análise em conjunto com os elementos trazidos na introdução, pois ao se estabelecer reflexões sobre a promoção de vantagens em vez de penalidades, é necessário avaliar inclusive no que, em nosso ordenamento jurídico atual, já é utilizado tal tipo de premiação.
A conexão que se traz conjuntamente com a nova Lei de Licitações brasileira pretende fazer esse liame entre o entendimento que sobre como o Poder Público atua para estimular condutas que não teriam um caráter sancionador.
Com a seguinte abordagem, Frederick Schauer (2022, p. 176), esclarece o seguinte:
Há, no entanto, outros benefícios governamentais que são fornecidos sob a condição de o destinatário se envolver em certa forma de comportamento desejado. E, como os benefícios são condicionais exatamente dessa maneira, eles se encaixam mais na categoria que Bentham e Austin descreveram como recompensas. Esses benefícios são recompensas pela prática do comportamento desejado – em alguns casos, envolver-se em determinadas atividades e, em outros, abster-se de algumas delas. Se o Estado, com a intenção de limitar o fumo, oferecer benefícios em dinheiro aos não fumantes, em vez de ou além de penalidades o ato de fumar, poderíamos considerar isso uma recompensa. De fato, embora os Estados modernos não ofereçam esses benefícios aos não fumantes, as companhias de seguros fazem exatamente isso, oferecendo valores mais baixos para quem se abstém de fumar. Mesmo sendo mais comumente praticada por empresas de seguros do que pelo governo, portanto, a ideia de induzir um comportamento desejado para a obtenção de benefícios financeiros dificilmente é estranho à cultura moderna. E entre as recompensas mais comuns à modificação de comportamento está, em muitos países, a dedução fiscal.
Pois bem, se é fato que buscamos de forma incessante meios de aprimorar nossas condutas para um bem-estar social, nossa legislação também se compromete com as mesmas finalidades, e ao trazer em seu bojo a necessidade de programas de integridade para os licitantes[3], o recado que o legislador transmite através de tal previsão é o de que age em conformidade com um anseio social; que é o de evitar que haja malversação de verbas públicas por parte da Administração.
Assim, ao analisarem a obra de Cass R. Sustein e Richard H. Thaller, Cíntia Muniz Rebouças de Alencar Araripe e Raquel Cavalcanti Ramos Machado nos esclarecem que, através dos estudos dos professores norte-americanos, foi identificada a possibilidade de modificação de condutas sem que fosse alterada uma determinada questão pré-existente.
Explica-se: no estudo realizado por Sustein e Thaller, a análise foi feita tendo como ponto de partida a atuação de uma diretora de escola e um consultor de gestão com experiência em cadeias de supermercados, que pretendiam avaliar como e se era possível induzir as escolhas dos alimentos a serem consumidos pelos alunos.
Foi possível identificar uma mudança de postura, pelo aumento ou redução de consumo de alimentos tão-somente conforme sua disposição nas cafeterias das escolas, o que foi então denominado como nudge, ou seja, uma interferência no comportamento sem qualquer conduta restritiva ou proibitiva.
No estudo realizado, por exemplo, não houve sequer alteração nos preços para que houvesse aumento de consumo de determinado item, o que somente reforçou a eficácia do realinhamento dos mesmos nas prateleiras das cafeterias das escolas.
No Brasil, como bem se sabe, a corrupção sempre foi um grande problema a ser enfrentado em todos os setores, o que não é diferente quanto ao Poder Público, razão pela qual algumas disposições legais visam proteger o erário público e trazer transparência nas relações com a Administração Pública.
Com todas as reflexões acima abordadas, Cíntia Muniz Rebouças de Alencar Araripe e Raquel Cavalcanti Ramos Machado (2018, p. 385-404) assim pontuam:
Há longos anos, o Brasil passa por problemas relacionados à corrupção e isto tem repercutido nos contratos, concessões e parcerias firmados pelo setor público. A implantação de programas de integridade nas empresas — e na própria Administração Pública direta e indireta, diga-se de passagem — em muito colaboraria para o enfrentamento desse problema. Os programas de integridade abrangem uma série de mecanismos de conformidade e de integridade, a serem continuamente disseminados na empresa/entidade pública e auditados, objetivando prevenir irregularidades, fraudes e atos de corrupção praticados contra a Administração Pública, sem que se olvide a detecção e a punição daqueles que, ainda assim, insistem na prática de tais atos. Não obstante isso, a implantação de programas de integridade é custosa e, na maioria das vezes, envolve alteração de toda uma cultura, não somente da empresa, mas do próprio ramo em que atua. Daí a extrema valia de uma política pública baseada em nudges para encorajar as empresas que projetam contratos com a Administração Pública a instituírem tais programas. Sucede que alguns Estados têm transposto o nudge com a publicação de legislações que obrigam, a depender do tipo e do valor do objeto/ serviço, a implementação de programas de integridade por empresas que com ele pretendem contratar. Afinal, uma política pública que oriente o relacionamento entre os setores público e privado, incitando a instituição de programas de integridade pelas empresas, deve se basear em nudges ou fazer uso de exigências legais? Eis o dilema.
Ou seja, a partir desse entendimento, creio ser possível traçarmos uma linha que faça essa conexão com aquilo que Schauer traz em seu pensamento e objeto do presente ensaio e sua aplicação prática de forma mais tangível.
No mesmo artigo das professoras acima citadas, também nos Estados Unidos da América foi aprovada, em 1986, regra que estabelecia a divulgação obrigatória da quantidade de produtos químicos armazenados ou despejados no meio ambiente, de modo que a conduta, além de informar a agência reguladora responsável por tal proteção, caracterizou-se como uma chamada nudge social.
Sendo certo que o objeto de nosso estudo com a leitura e reflexões sobre a coerção e sua relação com o Direito, e se ainda se encontra como elemento essencial para a sua existência, tendo a crer que não se encontrar mais como tal para questões específicas.
Salienta-se que até mesmo o Direito Penal tem acenado para a adoção de medidas relacionadas à chamada justiça restaurativa, de modo a evitar – sempre que possível, a aplicação de penalidades, mas sim implicar em oportunidade de aprendizado e modificação de comportamento, tanto do infrator como da vítima.
Norberto Bobbio, por seu turno, faz reflexões sobre as teorias favoráveis e contrárias à coação e assim destaca sobre as teorias sobre a coação:
Por mais que as objeções levantadas à teoria tradicional sejam numerosas e frequentes, elas podem ser reduzidas fundamentalmente a três argumentos repetidos à exaustão: a)a observância geral espontânea das normas; b)a existência em todo o ordenamento jurídico de normas sem sanção; c)o processo ao infinito (se uma norma é jurídica porque é sancionada, também a norma que regula a sanção, para ser jurídica, deve ser sancionada, e assim por diante). Segundo o primeiro argumento, a sanção não é necessária; para o segundo, é tão pouco necessária que de fato com frequência não existe; para o terceiro, não existe, ao menos no vértice do ordenamento, porque é impossível. Resumindo, os três argumentos contestam respectivamente a necessidade, a existência, a possibilidade da coação. O primeiro desses três argumentos foi adotado sobretudo por escritores de tendência sociológica, como Erlich; sobre o segundo insistiu, bem recentemente, com novas observações, Hart; o terceiro, já fora formulado por Thon, imperativista, sim, mas não defensor da coação.
O uso desses três argumentos separadamente ou, com maior frequência, de modo cumulativo, muitas vezes serviu para eliminar a coação das conhecidas características do conceito de direito, para dar uma definição de direito sem recorrer à ideia de coação. Ainda assim, também as teorias que definem o direito prescindindo da coação recaem em graves dificuldades, que certamente não são menores que aquelas produzidas pela teoria combatida. A dificuldade maior dessas teorias consiste, uma vez eliminada a coação, em encontrar o critério para distinguir as normas jurídicas das normas morais e das normas do costume. Esse critério foi buscado, na maioria das vezes, no modo com que as normas são acolhidas pelos consociados (teorias psicológicas) ou no fim último ao qual servem (teorias teleológicas). Contudo, com umas e outras tem-se a impressão de que a coação expulsa pela porta retorna pela janela.
Em seguida, o autor reflete sobre a necessária relação da coação com a norma jurídica, pois ainda que as pessoas voluntariamente procurem obedecer a seus comandos, o fazem em virtude da convicção de sua obrigatoriedade, sob pena de uma sanção que lhe seja correlata.
Ainda nos dizeres de Norberto Bobbio (2015, p.121), ao propor as possíveis soluções para a relação entre direito e força, assim pondera:
Depois de ter exposto os dois aspectos da teoria do direito como regra de força, que denominamos marginais: a)o particular destaque dado às normas secundárias; b)a individuação de um conteúdo específico do direito; estamos agora em condições de compreender o lugar que essa teoria ocupa na secular discussão em torno do problema das relações entre direito e coação. Diante das dificuldades enfrentadas por todas as teorias que tentaram excluir a ideia de coação da definição do direito, a nova teoria reincorporou a ideia da coação, mas lhe modificou o papel: a coação não é mais o instrumento para a realização do direito (compreendido como conjunto de normas secundárias).
De tal modo, as possíveis soluções das relações entre direito e coação não são duas, mas três: a) a coação como elemento essencial instrumental; b) a coação como elemento não essencial; c) a coação como elemento essencial material. E dispõe-se (logicamente, se não cronologicamente) em uma linha de desenvolvimento que pode ser brevemente resumida do seguinte modo: as dificuldades da teoria do direito como regra reforçada dão lugar às teorias, de tendência predominantemente sociológica, que prescindem da consideração da força: as dificuldades, talvez ainda mais graves, enfrentadas pelas teorias sociológicas, conduzem à teoria do direito como regra da força, a qual deveria evitar as dificuldades da teoria tradicional sem incorrer naquelas teorias contrárias.
É de se compreender que, de fato, não podemos desvincular de forma completa a coerção da ideia de mecanismo apto a fazer prevalecer o direito, quando os meios persuasivos não são suficientes para que o indivíduo assim o faça.
Entretanto, para uma seara de situações atuais, devemos compreender que os métodos indutivos, como apresentados nos estudos de Sustein e Thaller podem contribuir muito para que haja um direito com uma natureza talvez mais didática que repressiva, de modo a – em determinados e específicos momentos, prescindir da coação.
Poder-se-ia dizer que mesmo o fato de estabelecer uma recompensa em virtude da prática de determinado ato pode ser, indiretamente, uma coerção, mas me parece que essa dinâmica foge do campo coercitivo, restando bem delimitada no aspecto indutivo, ou seja, o indivíduo não é penalizado pela não observância da conduta, mas poderá ser beneficiado pela coincidência de sua ação com o que prevê o regramento posto.
Os anseios socias nesse novo milênio se apresentam mais alinhados, ao que nos parece, à um direito que promova mecanismos mais céleres de solução de litígios – quando estes ocorrem, bem como formas de estimular a redução de desigualdades, e nesse particular, certamente não será a coerção que conduzirá a tal resultado.
Portanto, compreender que é possível adotar regras que tenham conteúdo mais indutivo ou persuasivo também faz parte da realidade que se apresenta hodiernamente, sendo certo que a maior incidência de regras com esse caráter em determinados ramos do Direito – como o exemplo que foi trazido para aplicação no Direito Administrativo, em que o estabelecimento de regras que estimulam condutas pode ser muito eficaz.
Por fim, de acordo com o que se busca atualmente como meio sustentável de vida, o prestígio às regras de tal natureza, ou seja, sem que haja o caráter coercitivo, para situações específicas, tendem a causar impacto mais positivo que as convencionais sanções estabelecidas para a desobediência de regras jurídicas positivadas no ordenamento.
3 - Conclusões
Certamente, estamos diante de novas realidades, considerando que a sociedade se encontra em constante evolução, de modo a trazer sempre novas necessidades e anseios.
Se por um lado, historicamente as regras jurídicas previam em grande parte sanções pelo seu descumprimento, fato é que a sociedade global caminha para uma busca por uma sociedade de entendimento e, quando possível, solução rápida e pacífica dos conflitos.
Também se verifica uma maior propagação dos anseios por mecanismos de transparência como forma de promover uma vida mais digna e de alcance global, considerado o exemplo trazido no presente ensaio, contemplado na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.
Com a análise de tais disposições, vimos que muitos dos objetivos de desenvolvimento sustentável são gradativamente incorporados pelos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo.
De tal modo, trouxemos o exemplo dos programas de integridade na nova Lei de Licitações, muito inspirada nessa realidade de anseio geral por transparência e boa utilização dos recursos públicos como forma de prover vida digna para toda a coletividade.
Com o estudo realizado sobre a aplicação dos nudges no direito dos Estados Unidos, fato é que também foi possível verificar que é essencial que haja uma mentalidade de indução à prática de condutas, não somente seu caráter coercitivo, na medida em que não raras vezes os indivíduos se encontram estimulados também pela recompensa.
Norberto Bobbio esclarece o contraponto, quanto à inviabilidade de total dissociação da ideia de coerção para efetivação daquilo que o Direito preconiza, pois não podemos contar que a sociedade, em sua totalidade, tenha os mesmos objetivos, sendo certo que em algum momento será necessário o poder coercitivo para que haja observância ao regramento legal.
Conclusivamente, é certo que devemos prestigiar cada vez mais as formas céleres de solução de controvérsias e de aplicação da lei, sendo certo que para tal finalidade não se mostrar como desarrazoada a adoção de legislação que contemple essa contrapartida de recompensa pela prática de determinada conduta, mas se dissociar completamente de uma força coercitiva do Direito é ideia impossível de se adotar, pois sempre haverá um momento que se será necessária a atuação contundente do Estado para manter a ordem e a higidez do sistema jurídico.
4- Referências Bibliográficas
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BOBBIO, Norberto. Estudos por uma Teoria Geral do Direito, traduzido por Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Editora Manole, 2015.
DINIZ, Maria H. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica, à lógica jurídica, à norma jurídica e aplicação do direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. E-book. ISBN 9786555598629. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555598629/. Acesso em: 09 dez. 2022.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Conceito de direitos e garantias fundamentais. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/67/edicao-2/conceito-de-direitos-e-garantias-fundamentais.
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[1] Art. 5º - ...
§3º - § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
[2] ARLET, Ingo Wolfgang. Conceito de direitos e garantias fundamentais. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 2. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/67/edicao-2/conceito-de-direitos-e-garantias-fundamentais, acesso em 10 dez 2022.
[3] Art. 25. O edital deverá conter o objeto da licitação e as regras relativas à convocação, ao julgamento, à habilitação, aos recursos e às penalidades da licitação, à fiscalização e à gestão do contrato, à entrega do objeto e às condições de pagamento.
§ 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
IV - desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle.
Mestrando no Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Rafael Elias da Silva. Direito e sua atual relação com a coerção: aplicação de regras de recompensa como método indutivo de observância da lei Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 ago 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/62553/direito-e-sua-atual-relao-com-a-coero-aplicao-de-regras-de-recompensa-como-mtodo-indutivo-de-observncia-da-lei. Acesso em: 23 dez 2024.
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