RESUMO- O presente trabalho vem discorrer sobre a possibilidade da delegação do poder de polícia à pessoa jurídica de direito privado. Para isso, foram abordados os aspectos mais importantes tratados no julgamento do Recurso Extraordinário 633.782 Minas Gerais pelo Supremo Tribunal Federal sob a relatoria do Ministro Luiz Fux e submetido ao rito de repercussão geral de tema 532, o denominado caso BHTRANS. Para uma exposição completa, após pesquisa bibliográfica e descritiva minuciosa, em um primeiro momento tratou-se dos aspectos gerais do poder de polícia, como seu conceito e a evolução. Na segunda etapa, se adentrou na estrutura e considerações acerca do regime jurídico das pessoas jurídicas de direito privado. Em seguida, se discorreu acerca da possibilidade ou não da delegação do exercício do poder de polícia às pessoas jurídicas que compõem a Administração Pública indireta, com a devida análise do recente entendimento do Supremo Tribunal Federal. Por fim, concluiu-se pelo acerto da decisão do STF em conformidade com o entendimento da doutrina contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Poder de Polícia. Administração Pública. Delegação. Pessoa Jurídica de Direito Privado.
1.INTRODUÇÃO
Em 23 de outubro de 2020 foi finalizado o julgamento do Recurso Extraordinário 633.782 Minas Gerais pelo STF, submetido ao rito de repercussão geral de tema 532, e que teve como Relator o Ministro Luiz Fux.
O referido julgado representou uma mudança na jurisprudência do STF no que diz respeito à possibilidade de delegação do exercício do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado, acolhendo a perspectiva da doutrina administrativa contemporânea acerca da evolução do conceito de poder de polícia sob a ótica do giro democrático constitucional.
Nesse sentido, a tese jurídica fixada foi em prol da constitucionalidade da delegação do poder de polícia, desde que seja concretizada por meio de lei, apenas a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.
Ocorre que o julgamento não foi unânime, e o tema está longe de estar pacificado na doutrina, sendo, portanto, de extrema valia analisar e discutir os entornos jurídicos específicos acerca da possibilidade de delegação do exercício do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado, o que será debatido ao longo deste trabalho.
Cabe esclarecer que existem quatro entendimentos predominantes em relação à essa temática. Um primeiro entendimento que preza pela indelegabilidade do poder de polícia. Um segundo entendimento, no sentido de que apenas seria possível a delegação do exercício do poder de polícia a particular integrante da estrutura da Administração Pública. Um terceiro entendimento que viabiliza a delegação parcial do poder de polícia. E um último entendimento que possibilita a delegação total do poder de polícia a particulares.
Desse modo, esse trabalho irá expor as principais controvérsias sobre a temática envolvida, analisando a evolução doutrinária e jurisprudencial ao longo das últimas décadas, expondo o que foi consagrado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 633.782 Minas Gerais, que tratou especificamente do caso da Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte – BHTRANS, sociedade de economia mista do Município capital do Estado mineiro.
A relevância desse trabalho é verificada por se fundar na análise de tema muito controverso na doutrina e na jurisprudência, que vem evoluindo e ganhando mais importância ao longo dos anos, e que foi apreciado recentemente pela mais alta Corte de Justiça do país, sendo indiscutível sua relação com a ordem constitucional-democrática.
A pesquisa será bibliográfica, com a exploração do tema em livros, artigos publicados na internet, decisões relevantes proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, ou outros meios escritos de professores e estudiosos do direito.
2.ASPECTOS GERAIS DO PODER DE POLÍCIA
O poder de polícia é uma espécie de poder administrativo, ou seja, constitui uma prerrogativa atribuída a Administração Pública pelo ordenamento jurídico a fim de viabilizar o exercício eficiente da função administrativa, sempre visando a atingir o interesse público.
Nesse sentido, o poder de polícia tem como finalidade condicionar e restringir o exercício de direitos, atividades ou de bens de modo a viabilizar a convivência harmônica e pacífica em sociedade, sempre em prol da realização do interesse público, cabendo frisar que essa competência atribuída ao Estado deve ter fundamento na lei, podendo-se verificar seu conceito legal através do preceituado no artigo 78 do CTN, nos seguintes termos:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
Assim, se constata que o termo poder de polícia é multifacetado e que se manifesta em diversos campos relacionados à complexidade inerente às funções administrativas da atividade do Estado.
Ademais, cabe ressaltar que seu conceito vem sofrendo significativa transformação, considerando que, apesar de sua origem no Estado absolutista, hoje a doutrina contemporânea defende uma releitura na compreensão desse instituto clássico do direito administrativo, com a criação de novos critérios e parâmetros de controle, respaldados nos valores constitucionais de democracia e de respeito aos direitos fundamentais dos administrados, se afastando aos poucos do entendimento tradicional baseado na supremacia do interesse público, poder de império estatal e seu domínio eminente, para se aproximar de um estado de ponderação, pautado na garantia de direitos fundamentais como limitadores ao exercício do poder de polícia.
Nessa linha, cabe explicitar os dizeres de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
“o que se tinha como um “poder de polícia” deve hoje ser entendido apenas como o exercício de função reservada ao legislador, pois apenas por lei é constitucionalmente possível limitar e condicionar liberdades e direitos em tese, enquanto, distintamente, a função de polícia, como aplicação da lei, no exercício de função reservada ao administrador, pois a este cabe concretizar a incidência das limitações e condicionamentos legais nas hipóteses previstas” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 438).
Após a devida explanação acerca da evolução e abrangência do termo poder de polícia, impende esclarecer que o objeto do presente estudo se atém à atuação da polícia administrativa, que não se confunde com a polícia judiciária, sendo esta última relacionada ao exercício da jurisdição penal com o apoio dos órgãos de segurança pública, previstos no artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil.[1]
Seguindo o avanço dos estudos pela doutrina em relação ao poder de polícia, se criou a teoria do ciclo de polícia, relevante marco teórico que comporta quatro fases, quais sejam, ordem de polícia, consentimento de polícia, fiscalização de polícia e sanção de polícia, defendida por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, da seguinte maneira:
A ordem de polícia é o preceito legal básico, que possibilita e inicia o ciclo de atuação, servindo de referência específica de validade e satisfazendo a reserva constitucional (art. 5º, II), para que se não faça aquilo que possa prejudicar o interesse geral ou para que se não deixe fazer alguma coisa que poderá evitar ulterior prejuízo público, apresentando-se, portanto, sob duas modalidades (...), em que ambos os casos, a limitação é o instrumento básico da atuação administrativa de polícia. Essas modalidades, referem-se, portanto, respectivamente, a restrições e a condicionamentos. (...)
O consentimento de polícia, em decorrência, é o ato administrativo de anuência que possibilita a utilização da propriedade particular ou o exercício da atividade privada, em todas as hipóteses legais em que a ordem de polícia se apresenta sob a segunda modalidade: com a previsão de reserva de consentimento, a provisão pela qual o legislador exige um controle administrativo prévio da efetiva compatibilização do uso de certo bem ou do exercício de certa atividade com o interesse público. (...)
Segue-se, no ciclo, a fiscalização de polícia, a função que se desenvolverá tanto para a verificação do cumprimento das ordens de polícia, e não apenas quanto à observância daquelas absolutamente vedatórias, que não admitem exceções, como para constatar se, naquelas que foram consentidas, não ocorrem abusos do consentimento nas utilizações de bens e nas atividades privadas, tanto nos casos de outorga de licenças como de autorizações.
A utilidade da fiscalização de polícia é, portanto, dupla: porque, primeiramente, realiza a prevenção das infrações pela observação do adequado cumprimento, por parte dos administrados, das ordens e dos consentimentos de polícia; e, em segundo lugar, porque prepara a repressão das infrações pela constatação formal da existência de atos infratores. (…)
Finalmente, falhando a fiscalização preventiva, e verificada a ocorrência de infrações às ordens de polícia e às condições de consentimento, desdobra-se a fase final do ciclo jurídico em estudo, com a sanção de polícia - que vem a ser a função pela qual se submete coercitivamente o infrator a medidas inibidoras (compulsivas) ou dissuasoras (suasivas) impostas pela Administração. (Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 440/444)
Nesse diapasão, fixado o entendimento introdutório acerca do conceito e abrangência do poder de polícia, mais especificamente a atuação da polícia administrativa, se passa a analisar os contornos jurídicos em relação às pessoas jurídicas de direito privado.
3.AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO E SEU REGIME JURÍDICO
As pessoas jurídicas de direito privado estão elencadas no artigo 44 do Código Civil[2].
Nesse rol estão incluídas as empresas públicas e sociedade de economia mista, que pertencem à Administração Pública indireta, devendo observar os seus princípios basilares, além de sua criação se dar por meio de lei, se sujeitando também ao regime jurídico próprio das empresas privadas, conforme estabelecido no artigo 37, inciso XIX, e artigo 173, §1º, inciso II da Constituição da República.[3]
Nesse contexto, cabe destacar que esse regime privado a ser aplicável às empresas estatais variará conforme se trate de empresa pública e sociedade de economia mista prestadoras de serviço público ou daquelas que exploram atividade econômica.
Assim, em relação às empresas públicas e sociedade de economia mista prestadoras de serviço público, apesar de serem pessoas jurídicas de direito privado, sua atuação obedecerá a uma sistemática jurídica híbrida, em que ora prevalecerá o regime de direito público, ora prevalecerá o regime de direito privado, conforme explicado por Gustavo Binenbojm:
“A despeito de sua natureza jurídica de direito privado, isso não é obstáculo per se a que elas exerçam certos atos e funções que um dia foram tidos como exclusivos do Estado. Tanto assim que se reconhece com certa tranquilidade, que as empresas estatais praticam atos de império no âmbito de licitações e concursos públicos, por imperativo do art. 37, II e XXI, da Constituição de 1988. Se as estatais se sujeitam ao regime jurídico de seleção de pessoal e de fornecedores, faz sentido que elas exerçam algum nível de autoridade. O processo licitatório e os atos relativos ao concurso público são tipicamente de Estado e aproximam-se da sua lógica de império. Daí se reconhecer, inclusive, o cabimento de mandado de segurança contra atos de autoridade praticados por empresas estatais.” (Poder de Polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 273)
Para corroborar esse entendimento, vale explicitar diversos julgados do STF reconhecendo o exercício de funções públicas por estatais de direito privado, o que é chamado por Gustavo Binenbojm de processo de “autarquização das empresas estatais prestadoras de serviço público” (Poder de Polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 273).
No julgamento do RE 852.302 em 2015, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, prevaleceu que o sistema constitucional de precatório do artigo 100 da Constituição Federal[4] seria aplicado às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado e de natureza não concorrencial, em regime de exclusividade.
Por outro lado, o referido regime de precatório não poderia beneficiar sociedade de economia mista que explorasse atividade econômica em regime concorrencial com outras empresas privadas, conforme decidiu o STF por meio de julgamento do RE 599628 em 2011.
Diversos outros julgados também foram responsáveis por consagrar a diferença do regime aplicável às estatais prestadoras de serviço público em relação às estatais que exploram atividade econômica, ficando reconhecida a possibilidade de coexistência de regimes.
Ademais, em relação à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, o STF equiparou seu status à Fazenda Pública para afastar a penhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, além de reconhecer a imunidade recíproca em relação aos impostos, considerando se tratar de empresa pública que presta serviço público e atua em regime de monopólio, atraindo a observância do regime jurídico de direito público.
Outro julgamento extremamente relevante foi o do RE 658.570 ocorrido em 2015, na ocasião o STF considerou constitucional o exercício de poder de polícia pelas guardas municipais, tanto a etapa de fiscalização quanto a de imposição de sanções administrativas com respaldo legal, cabendo ressaltar que elas podem ser constituídas sob a forma de empresa pública prestadora de serviço público de atuação própria do Estado, submetida ao regime jurídico de direito privado, fazendo prevalecer o sentido objetivo no que diz respeito à administração pública.
Destarte, claramente se verifica que a jurisprudência do STF vem se firmando no sentido de viabilizar a extensão de prerrogativas da Fazenda Pública às empresas estatais que prestam serviços públicos em regime não concorrencial, cabendo, agora, analisar os contornos jurídicos em relação à viabilidade da delegação do poder de polícia a entidades integrantes da administração pública indireta de regime jurídico de direito privado.
4.A DELEGAÇÃO DO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA ÀS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO QUE COMPÕEM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA.
Em relação a delegação do exercício do poder de polícia à pessoa jurídica de direito privado, cabe esclarecer que o entendimento clássico da maioria da doutrina e da jurisprudência sempre foi no sentido da sua indelegabilidade, com fundamento na ideia de que seu exercício pressupõe personalidade jurídica de direito público, único desenho institucional capaz de conferir a estabilidade necessária ao poder decisório de autoridade, o que exigiria que os servidores fossem submetidos ao regime estatutário. Essa era a linha de entendimento do Professor Celso Antônio Bandeira de Melo que foi consagrada no julgamento da ADI 1717 pelo STF em 2002.
Contudo, assim como em outras áreas da ciência, o direito também está sujeito à evolução, o que fez surgir outros três entendimentos acerca do tema por meio do desenvolvimento do direito administrativo contemporâneo.
Um entendimento intermediário que acabou consagrado no julgamento do Recurso Especial 817.534/MG do STJ em 2009, e envolve a BHTRANS, defende que apenas seria possível a delegação do exercício do poder de polícia no que diz respeito às fases de fiscalização e consentimento do ciclo de polícia, ficando inviabilizada a delegação das etapas de ordem e sanção, considerando que estas são forma de exercício direto do poder de império do Estado.
O terceiro entendimento capitaneado por José dos Santos Carvalho Filho é no sentido de que não há vedação em realizar a delegação do poder de polícia a entidades privadas que integrem a estrutura da Administração Pública, tendo sido acolhido pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 633.782/MG em 2020, que ainda fixou outros parâmetros a fim de viabilizar o permissivo.
Por último, existe a tese consagrada pelos administrativistas mais modernos, que reconhecem a possibilidade de delegação do poder de polícia, ainda que a pessoa jurídica não seja integrante da estrutura da Administração Pública indireta, tendo em vista que não houve proibição pela Constituição Federal, apesar da necessidade do estabelecimento de parâmetros e critérios técnicos e objetivos para o seu exercício, conforme doutrina de Rafael Oliveira e Gustavo Binenbojm.
Com efeito, tendo sido expostos os entendimentos doutrinários que se contrapõem, cabe agora adentrar nos fundamentos específicos utilizados pela doutrina clássica para proibir a delegação do exercício do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado.
Nesse contexto, a doutrina clássica que preza pela indelegabilidade do poder de polícia se baseia em quatro ideias principais, quais sejam: a Constituição Federal não teria permitido a delegação; haveria a necessidade de estabilidade no serviço público para a prestação do poder de polícia, que apenas poderia ficar a cargo dos servidores estatuários; a prerrogativa da coercibilidade estaria restrita ao exercício poder de império do Estado em razão de sua função típica estatal; e por fim, o exercício do poder de polícia não seria compatível com a intenção lucrativa.
Não obstante, na ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 633.782/MG, o ministro relator Luiz Fux proferiu voto no sentido de afastar a aplicação do entendimento da doutrina clássica no que concerne a delegação do exercício do poder de polícia a sociedade de economia mista e empresas públicas que apesar de serem criadas sob o regime jurídico de direito privado, possuem natureza híbrida por integrarem a Administração Pública indireta e prestarem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado de capital social majoritariamente público, sem objeto de lucro, em regime não concorrencial.
Assim, quanto ao argumento da doutrina clássica dominante de que não haveria autorização constitucional para viabilizar a delegação do exercício do poder de polícia, este cairia por terra uma vez que se admite a delegação a pessoas jurídicas de direito público, apesar de também não haver permissivo constitucional explícito para estas, restando viável a delegação as empresas estatais que se aproximam do regime de direito público, através do entendimento do regime híbrido explanado anteriormente.
Em relação ao segundo fundamento da doutrina clássica que valoriza a necessidade de estabilidade no serviço público para prestação do poder de polícia, não é possível sua sustentação em termos absolutos, uma vez que os empregados celetistas, apesar de não serem abrangidos pela estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição da República[5], são dotados de uma outra estabilidade por ingressarem na Administração Pública por meio de concurso público, não podendo ser dispensados sem motivação. Além de que nem todos os servidores estatutários são cercados pela estabilidade, que não atinge os comissionados, que podem ser exonerados a qualquer tempo, e muito menos os servidores que ainda estão em estágio probatório.
Ademais, seguindo na desconstrução dos argumentos da doutrina clássica, cabe analisar se a prerrogativa da coercibilidade estaria realmente restrita ao âmbito do poder de império do Estado em razão de sua função tipicamente estatal.
Desse modo, em primeiro lugar, cabe frisar que apesar de a pessoa jurídico de direito público ser mais apta para exercer o poder de polícia, não pode se concluir pela impossibilidade absoluta do seu exercício por pessoa jurídica de direito privado.
Nesse contexto, no julgamento do RE 633.782/MG ficou consagrado que o afastamento do atributo da coercibilidade implicaria no esvaziamento da finalidade pela qual foram instituídas as estatais prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado em regime de monopólio, e que não se poderia confundir o exercício do poder de polícia administrativa de trânsito com a atividade de segurança pública, esta sim prerrogativa exclusiva da entidades policiais elencadas no rol do artigo 144 da Constituição da República.[6]
Por fim, no que concerne ao argumento de que não seria possível a delegação do exercício do poder de polícia à pessoa jurídica de direito privado em razão de sua incompatibilidade com a aferição de lucro, vale destacar que esse requisito apenas poderia incidir em face das estatais exploradoras de atividade econômica, uma vez que as estatais que prestam serviço público de atuação própria do Estado não têm a intenção de obter lucros, mas de atingir o interesse público a ser resguardado.
Dessa maneira, igualmente não caberia o argumento de que haveria exercício abusivo na aplicação de sanções para impossibilitar a delegação, considerando que o abuso também poderia vir a ocorrer através da pessoa jurídica de direito público.
Na verdade, o importante é que a atividade seja desempenhada nos limites do ordenamento jurídico, que permite a criação de desenhos institucionais específicos para evitar que a atividade sancionatória fosse de alguma forma lucrativa a ponto de beneficiar financeiramente os acionistas da pessoa jurídica delegatária do poder de polícia.
Destarte, diante das considerações aqui expostas, cabe ressaltar o que ficou decidido no âmbito do julgamento do RE 633.782/MG realizado em 2020, tendo sido fixada a seguinte tese: “É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.”
Cabendo o adendo de que a única fase do ciclo de polícia que não poderia ser delegada seria a ordem de polícia, tendo em vista se tratar de função tipicamente legislativa, restrita aos entes públicos, conforme estabelecido no Texto Maior.
5.CONCLUSÃO
Diante de tais considerações é possível afirmar que o tema aqui abordado é de extrema importância e que, definitivamente, o julgamento do RE 633.782/MG da relatoria do ministro Luiz Fux, submetido ao rito da repercussão geral de tema 532 foi um dos mais aguardados pelos administrativas de vanguarda, de modo que se viu uma superação dos entendimentos clássicos acerca da delegação do poder de polícia pelo STF, que seguiu na linha da orientação da doutrina mais moderna.
Nesse sentido, ficou consagrado que a Constituição da República Federativa do Brasil, por si só, não impede a delegação do poder de polícia de trânsito à sociedade de economia mista integrante da Administração Pública indireta, prestadora de serviço público de atuação própria do Estado, de capital majoritariamente público, em regime não concorrencial, desde que por meio de lei formal específica.
Além disso, se demonstrou que a jurisprudência vem apresentando uma ótica de extensão das prerrogativas inerentes a Fazenda Pública às estatais que possuem roupagem de pessoa jurídica de direito privado, mas que prestam serviço público em regime de exclusividade, sem concorrência, e sem que haja distribuição de lucros.
Destarte, após vasta análise do histórico e da evolução do poder de polícia na doutrina e na jurisprudência, e levando em consideração o regime jurídico híbrido das pessoas jurídicas de direito privado que atuam muitas vezes em favor da Administração Pública, se concluiu pela possibilidade da delegação do poder de polícia às pessoas jurídicas de direito privado que integrem a administração indireta.
BINENBOJM, Gustavo. Poder de Polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
REZENDE OLIVEIRA, Rafael Carvalho. Curso de Direito Administrativo. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2017.
[1] Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
[2] Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III - as fundações; IV - as organizações religiosas; V - os partidos políticos; VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada.
[3] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;
[4] Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
[5] Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. § 1º O servidor público estável só perderá o cargo: I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado; II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. § 2º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço; § 3º Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo; § 4º Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade
[6] Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI - polícias penais federal, estaduais e distrital § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. § 5º-A. Às polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, cabe a segurança dos estabelecimentos penais. § 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. § 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. § 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39. § 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e II - compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.
Advogado na área de contencioso cível desde 2015. Graduado em Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2014. Pós-graduado em Direito Tributário e Direito Público pela Faculdade da Região Serrana – FARESE em 2022. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIVA, MATHEUS BERALDO MAGALHAES. Poder de polícia e delegação a pessoa jurídica de direito privado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 set 2023, 17:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/62975/poder-de-polcia-e-delegao-a-pessoa-jurdica-de-direito-privado. Acesso em: 23 dez 2024.
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