RESUMO: O presente artigo abordará o Tema 854 do Supremo Tribunal Federal - Possibilidade de implementação da prestação de serviço público de transporte coletivo, considerado o art. 175 da Constituição Federal, mediante simples credenciamento, sem licitação, bem como o overruling da tese fixada na referida Repercussão Geral à luz dos supervenientes precedentes do Supremo Tribunal Federal nas ADI 6.270/DF e ADI 5.549/DF.
Palavras-chave: serviço público; transporte coletivo de passageiros; (des)necessidade de licitação.
ABSTRACT: This article will discuss Theme 854 of the Federal Supreme Court - Possibility of implementing the provision of public transport services, considering art. 175 of the Federal Constitution, through simple accreditation, without bidding, as well as the overruling of the thesis set out in the aforementioned General Repercussion in light of the supervening precedents of the Federal Supreme Court in ADI 6.270/DF and ADI 5.549/DF.
Keywords: public service; public passenger transport; need (or not) for bidding.
A definição de determinada prestação estatal como serviço público decorre da própria Constituição Federal ou da Lei, que suprimem a atividade da iniciativa privada para que sejam prestadas pelo Poder Público, quer diretamente ou indiretamente, mediante a colaboração de particulares.
A despeito da dificuldade doutrinária na conceituação do serviço público, o art. 2º, II, da Lei nº 13.460/2017, o define como a atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública.
O serviço de transporte coletivo municipal extrai a sua natureza pública da própria Constituição Federal, que dispõe em seu art. 30, V, que compete aos municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial.
Desse modo, o transporte coletivo de passageiros é um serviço público que pode ser prestado diretamente pelo Poder Público ou com a colaboração da iniciativa privada.
A prestação direta ocorre quando o Poder Público oferece o serviço público pelos seus órgãos ou pelas entidades da Administração Pública indireta. Por sua vez, a prestação indireta se dá quando o Poder Público celebra um contrato ou outorga uma autorização para que o serviço público seja prestado por um parceiro privado.
O presente artigo tem por finalidade defender a racionalidade econômica e a constitucionalidade da dispensa de licitação para a outorga de serviços de transporte municipal coletivo de passageiros, quando desvinculados da exploração de infraestrutura.
2. Tema 854 DE REPERCUSSÃO GERAL - Possibilidade de implementação da prestação de serviço público de transporte coletivo, considerado o art. 175 da Constituição Federal, mediante simples credenciamento, sem licitação.
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o tema 854 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, assentando a não recepção, na parte em que permitida a criação de linhas metropolitanas de transporte coletivo destinadas à execução de serviços especiais, do Decreto nº 24.675/1986 do Estado de São Paulo e, por arrastamento, da Resolução nº 80, de 8 de dezembro de 2006, da Secretaria dos Transportes Metropolitanos - STM, por meio da qual consolidadas resoluções que regulamentaram o Sistema ORCA e conferiu à expressão "autorizações" contida na alínea "c" do inciso II do artigo 2º da Lei estadual nº 7.450/1991 interpretação conforme à Constituição.
Naquela oportunidade, o Pretório Excelso fixou a seguinte tese: Salvo em situações excepcionais devidamente comprovadas, serviço público de transporte coletivo pressupõe prévia licitação.
A controvérsia chegou até a Suprema Corte em razão de inúmeras leis municipais e estaduais que previam a possibilidade de que o transporte público coletivo poderia ser prestado pela iniciativa privada, mediante mero procedimento de credenciamento, sem licitação.
Para a fixação da tese do Tema 854, o Supremo Tribunal considerou a existência de inúmeros precedentes da Corte no sentido da obrigatoriedade de licitação para o serviço de transporte público municipal:
[...] AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. TRANSPORTE PÚBLICO MUNICIPAL. LICITAÇÃO. OBRIGATORIEDADE. OCORRÊNCIA DE GRAVE LESÃO À ORDEM PÚBLICA. 1. Ocorrência de grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem jurídico-constitucional. 2. Existência de precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade de prestação de serviços de transporte de passageiros a título precário, sem a observância do devido procedimento licitatório. 3. Cabimento do presente pedido de suspensão, que se subsume à hipótese elencada no art. 4º, § 3º e § 4º, da Lei 8.437/92. 4. Agravo regimental improvido. (Agravo regimental na suspensão de tutela antecipada nº 89, relatora ministra Ellen Gracie, acórdão publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de fevereiro de 2008.);
CONCESSÃO – TRANSPORTE INTERMUNICIPAL – PRORROGAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – LICITAÇÃO. O artigo 175 da Carta de República, ao preconizar o procedimento licitatório como requisito à concessão de serviços públicos, possui normatividade suficiente para invalidar a prorrogação de contratos dessa natureza, formalizados antes de 5 de outubro de 1988. (Recurso extraordinário nº 603.530, de minha relatoria, Primeira Turma, veiculado no Diário da Justiça eletrônico do dia 11 de outubro de 2013.)
EMENTA: Exploração de transporte urbano, por meio de linha de ônibus. Necessidade de prévia licitação para autorizála, quer sob a forma de permissão quer sob a de concessão. Recurso extraordinário provido por contrariedade do art. 175 da Constituição Federal. [...] Podem os serviços públicos, ser prestados, segundo a Constituição, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, na forma da lei, mas “sempre através de licitação”. Este advérbio (“sempre”), enfaticamente utilizado no art. 175 da Lei Fundamental, não dá margem alguma de dúvida sobre a eficácia plena, imediata e automática do preceito, que está a obrigar, tanto o legislador e o poder regulamentar, quanto a vincular o ato concreto de concessão (como o ora impugnado pela impetrante, ora Recorrente), à prévia licitação, toda vez que não se trate de exploração direta do serviço público pelo Poder Público. Configurou, pois, requintada desobediência, à Constituição, a conduta da Municipalidade de Itaboraí, que, dispondo de regulamento de transportes coletivos, onde se prescrevia a realização de concorrência, antes da Carta de 1988, veio a editar, já depois desta, novo decreto, onde se prescindiu dessa exigência constitucional. (Recurso extraordinário nº 140.989, relator ministro Octavio Gallotti, Primeira Turma, acórdão publicado em 27 de agosto de 1993.)
Como se vê, a ratio decidendi é extraída do art. 175 da Constituição Federal, segundo o qual incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Todavia, após o julgamento das ADI nº 6.270/DF e ADI nº 5.549/DF, tudo indica que a Suprema Corte caminha para uma alteração de entendimento acerca da matéria (overruling), como será demonstrado no tópico seguinte.
3. DAs AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 6.270/DF e Nº ADI 5.549/DF.
Antes de adentrar no mérito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.270/DF e nº ADI 5.549/DF, faz-se necessária a apresentação de duas questões preliminares que serviram como fundamento para aqueles julgamentos, a saber: (i) os pressupostos para a realização de licitação e (ii) o conceito de monopólio natural.
A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello nos ensina que há três pressupostos para a viabilidade de uma licitação (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 505):
a) Pressuposto lógico: existência de pluralidade de objetos e ofertantes;
b) Pressuposto fático: existência de interessados no certame; e
c) Pressuposto jurídico: aptidão da licitação de satisfazer a necessidade da Administração Pública.
Segundo a melhor doutrina, em se tratando de serviços públicos, somente estarão presentes os pressupostos para a realização de licitação quando houver um monopólio natural da referida atividade.
O fenômeno do monopólio natural ocorre quando o produto for único e existir economia de escala (Baumol & Willig, 1981), ocasião em que um único produtor/fornecedor apresentará maior eficiência econômica.
Do mesmo modo, Marçal Justen Filho define o monopólio natural como a “situação econômica em que a duplicação de operadores é incapaz de gerar a redução do custo da utilidade” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010).
No contexto dos serviços públicos, o saneamento básico - assim como outros serviços públicos que demandam a existência de infraestrutura robusta - representa típico monopólio natural, tendo em vista os elevados custos fixos para a sua instalação e operação, tais como a construção e manutenção de reservatórios, estações de tratamento de água e esgoto, redes de distribuição e coleta de água e esgoto.
Por sua vez, o serviço público de transporte coletivo de passageiros, de fato, é historicamente concebido pela jurisprudência da Suprema Corte como monopólio natural, razão pela qual estaria sujeito, em linha de princípio, ao procedimento licitatório.
Todavia, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.270/DF e nº ADI 5.549/DF, o Pretório Excelso realizou um distinguishing em relação ao transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, considerando como constitucional o regime de outorga da prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros, quando desvinculados da exploração de obras de infraestrutura, permitindo sua realização mediante mera autorização estatal, sem a necessidade de licitação prévia, desde que cumpridos requisitos específicos.
Eis a ementa do julgado:
[...] 1. A assimetria regulatória estabelecida no artigo 21, XII, e, da Constituição Federal assegurou a possibilidade de se outorgar a prestação de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (TRIIP) por autorização de serviço público, máxime em razão da inexistência de restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada de concorrentes no setor; da descentralização à agência reguladora de poderes para assegurar a observância de aspectos qualitativos inerentes à adequada prestação do serviço; e de a abertura do mercado para novos entrantes contribuir para a universalização do serviço e demais benefícios à população usuária.
2. A escolha estratégica pela descentralização operacional do setor, que se insere na esfera democraticamente reservada à deliberação política, porquanto concomitante à centralização normativa, confere maior normatividade ao comando constitucional contido no caput do artigo 174 da Constituição Federal, bem como aos princípios constitucionais que orientam à atuação da Administração Pública e a Ordem Econômica (BINENBOJM, Gustavo. Assimetria regulatória no setor de transporte coletivo de passageiros. In O Direito Administrativo na Atualidade. Org . WALD, Arnold et al São Paulo: Malheiros, 2017. p. 510).
3. As finalidades precípuas de concretização dos princípios da isonomia, da moralidade e de obtenção da proposta mais vantajosa são perseguidas pela ampla concorrência na execução do serviço público, via competição no mercado, porquanto inexistentes restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada, hipótese em que a competição para o mercado (competition for the market), via licitação, criaria uma exclusividade ineficiente e ilegítima, ao restringir o acesso dos possíveis interessados.
4. A previsão constitucional de prestação do TRIIP por meio de autorização (Art. 21, XI, e) afasta a incidência do artigo 175 da Constituição Federal, que impõe prévio procedimento licitatório especificamente às modalidades de outorga que pressupõem a excludência em razão da contratação pela Administração com determinado particular .
5. A descentralização normativa à Agência Nacional de Transportes Terrestres de poderes para assegurar a observância de aspectos qualitativos promove a eficiência, adequação e atualidade da prestação do serviço autorizado, ao se estabelecer requisitos técnicos e de regularidade para a habilitação dos interessados, assim como a uniformidade das condições de contratação ditadas pelo Poder Público, necessariamente homogêneas e previamente divulgadas.
6. O compromisso regulatório celebrado entre setor público e as empresas prestadores do serviço, que corresponde às amarras a que se cingem as partes, não se esgota nos termos de edital do poder concedente, a que se somam a expertise e a acuidade da regulação setorial e concorrencial, em atuação coordenada em prol da segurança jurídica, economicidade dos investimentos e defesa dos usuários (COUTINHO, Diogo R. Direito e Economia Política na Regulação de Serviços Públicos . Saraiva: São Paulo, 2014. p. 91).
7. A abertura do setor de transporte rodoviário interestadual e internacional a novos entrantes amplia a concorrência em um serviço inegavelmente essencial, cuja relevância para os usuários e para o desenvolvimento nacional torna ainda mais expressivas as externalidades advindas da livre concorrência, como o incremento tecnológico, o aumento da qualidade e a redução dos custos.
8. Ex positis, o artigo 3º da Lei n. 12.996/2014, ao outorgar o serviço público de transporte rodoviário coletivo internacional e interestadual de passageiros por meio de autorização, insere-se no espaço de deliberação política delineado no artigo 21, XII, e , da Constituição, de modo que, observados os valores constitucionalmente tutelados, em especial os princípios que orientam a Administração Pública e a ordem econômica, não se reveste de inconstitucionalidade .
9. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e julgado improcedente o pedido, devendo o Poder Executivo e a ANTT ajustarem-se às exigências do Tribunal de Contas da União e às novas disposições trazidas pela Lei 14.298/2022. (grifo nosso)
O voto condutor no referido julgamento foi didática e brilhantemente lavrado pelo Min. Luiz Fux. Merece destaque o seguinte trecho do voto, com os fundamentos pelos quais se chegou àquela conclusão:
[...] A obrigatoriedade de algum procedimento licitatório para a autorização de serviços públicos condiciona-se à melhor observância dos valores constitucionais que o procedimento visa a tutelar. Em síntese, volta-se ao atingimento das finalidades precípuas de concretização do princípio da isonomia e de obtenção da proposta mais vantajosa.
Ao reduzir a autonomia quanto à escolha dos meios, o procedimento seletivo formal reduz também os riscos de decisões irracionais. O procedimento licitatório visa a impedir decisões impulsivas, mal planejadas ou enviesadas, limitando a amplitude dos riscos de desvios. Dessa forma, o agente estatal não pode legitimar suas escolhas com base na finalidade pretendida, quando normativamente foram fixados os meios para melhor obtenção do interesse público.
O instrumento convocatório estabelece os critérios de seleção que são considerados legítimos em cada caso, revelando residualmente como arbitrárias as discriminações que adotem outros critérios e como desproporcionais as que exorbitem os limites do estritamente adequado e necessário. Ao assim tutelar a impessoalidade, a licitação evita favorecimentos, compadrios e demais situações em que a seleção se pauta por interesses privados.
A impessoalidade na escolha dos delegatários atua concomitantemente em dois flancos. De um lado, contribui para o interesse privado ao proteger o direito de o particular interessado competir em igualdade de condições. De outro, preserva o interesse coletivo decorrente dessa competição, que, via de regra, traduz-se na seleção do candidato mais apto e da solução economicamente mais eficiente.
Também a moralidade administrativa inspira o dever de licitar, nos casos em que exigível. É que, embora desvios de finalidade possam se enquadrar como imoralidades, o caput do artigo 37 impõe ao administrador público não apenas o bem, mas a boa administração. Na síntese de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para que o administrador vulnere esse princípio, basta que pratique ato com deficiente finalidade pública, reveladores de uma ineficiência grosseira no trato dos interesses que lhe foram afetos (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 101).
Assim, a utilização de meios ilegítimos como a desnecessária oposição de barreiras à entrada em determinado setor econômico, que limitem a competição no mercado pode tipificar uma forma de má administração da coisa pública, o que caracterizará violação ao tal princípio.
Importante reparar a sutileza do argumento. Nos casos em que a licitação é necessária, a estipulação de critérios objetivos de seleção e de um procedimento previamente estabelecido evita desvios de finalidade e contribui para a moralidade administrativa. Em sentido contrário, nos casos em que não é necessária, a licitação apenas restringe o acesso dos possíveis interessados, criando uma exclusividade ineficiente e ilegítima. Nessa hipótese, o princípio da moralidade impede que se realize o procedimento licitatório.
É que, sem perder de vista o espírito normativo de concretização dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência, deve-se afastar qualquer perspectiva burocrática que torne a licitação um fim em si mesma. Se não preciso limitar a quantidade de prestadores, licitar apenas restringe a competitividade, sem a contrapartida de assegurar impessoalidade. Isso viola a moralidade e a livre concorrência.
Quando eventualmente houver um monopólio natural, a competição para o mercado (competition for the market), via licitação, pode representar maior eficiência de custos. Isso porque a empresa capaz de dar o maior lance pelo mercado presumidamente atenderia o mercado sob o menor custo, além de a remuneração pelo monopólio poder ser repassada aos usuários por meio do preço.
No entanto, sem que se trate de monopólio natural, o regime de ampla concorrência na execução do serviço público, via competição no mercado, mostra-se mais vantajosa do que a realização de licitação, que, por excluir todas as demais empresas não selecionadas, cria uma indesejável barreira de entrada no mercado, danosa aos usuários desses serviços.
Isso não significa que se possa reservar um espaço soberano para a livre iniciativa. Por se tratar de serviço público e de regulação econômica, haverá invariavelmente uma perda de eficiência econômica na competitividade do setor, o que se justifica, em larga medida, pela equidade perseguida.
A questão, no entanto, não é binária. As restrições que se colocam à livre concorrência e, por conseguinte, à livre iniciativa não correspondem a uma característica estanque e intrínseca à natureza de serviço público. Oscilam ao sabor da possibilidade de a atividade ser desenvolvida em um ambiente de pluralidade de agentes sem comprometimento dos atributos esperados do serviço público, como continuidade, atualidade e adequação. Nesse sentido, Vitor Rhein Schirato sintetiza que deve-se verificar qual o grau de restrição à livre iniciativa que deve ser imposto, a fim de garantir a prestação do serviço público e, assim, a satisfação de outro direito fundamental (SCHIRATO, Vitor Rhein. Os desafios da regulação dos serviços públicos de transporte coletivo diante de novas tecnologias. Regulação e Infraestrutura. Coord. ARAGÃO. Alexandre Santos de et al . Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 674-675).
Assim, somente se impõe a licitação nos casos em que haja competição entre os particulares, o que decorre de a contratação não admitir a satisfação concomitante de todos os possíveis interessados. O dever de licitar pressupõe a excludência, situação em que a contratação pela Administração com determinado particular exclua a possibilidade de contratação de outrem .
É precisamente o que ocorreu no presente caso. Como também esclarece a ANTT, em sua manifestação nos autos, no caso de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros não é necessária a escolha de apenas uma ou algumas empresas, pois todas aquelas que cumprem os requisitos impostos pelo ente regulador podem competir livremente no mercado.
[...] Quando não verificada a excludência de interessados, a prestação do serviço público, via de regra, mostra-se tanto melhor quanto mais pessoas forem contratadas, desde que mediante condições homogêneas previamente divulgadas. O interesse público se satisfaz com o estabelecimento dos devidos requisitos técnicos e de regularidade para a habilitação dos interessados, a exemplo do que ocorre no credenciamento.
Assim, outros instrumentos jurídicos podem ser legítimos para atividades em que a competição é inviabilizada, uma vez que (i) a contratação de um agente não exclui a possibilidade e a vantajosidade de assumir outros vínculos e (ii) não se fazem necessárias propostas, pois as condições de contratação são uniformes e ditadas pelo Poder Público. Ausente a competição, também restará inexigível sua decorrência jurídica, a licitação tal qual disciplinada nas normas gerais.
Como visto, o artigo 47-B ressalva o caso de inviabilidade operacional, hipótese em que estabelece que deverá haver um processo seletivo público, observados os princípios que lista. Embora não haja referência expressa a licitação, tem-se por suficiente a previsão, no que a lei se coaduna com o dever de realizar processo seletivo prévio, objetivo, público e igualitário, que decorre dos princípios constitucionais e se impõe quando, ainda que excepcionalmente, haja uma limitação no possível número de autorizatários (SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros. p. 15).
[...]
Somando-se a isso, seria possível considerar igualmente válido o seguinte diagnóstico: no âmbito das formas de outorga, é constitucionalmente albergada a possibilidade de que haja múltiplas empresas operando, além de um processo mais flexível de admissão de entrantes, com uma habilitação que não depende de licitação.
Trata-se de uma margem constitucionalmente admitida para avaliar qual seria o meio mais adequado de a Administração escolher em que termos ocorrerão seus vínculos com os agentes econômicos. (grifo nosso)
Nesse contexto, indaga-se: sob o ponto de vista eminentemente do Direito Econômico e dos princípios constitucionais da Administração Pública, por qual motivo as mesmas razões e conclusões acima transcritas não se aplicariam ao serviço público de transporte coletivo municipal?
Do voto do Min. Gilmar Mendes no referido julgamento, poder-se-ia alegar que “Os serviços de transporte urbano e semiurbano (municipal e intermunicipal) são operados dentro de cada unidade federativa municipal, estadual ou distrital, em regime de exclusividade naquela linha e submetido ao regramento da tarifação de preços, ausente qualquer competição após a concessão do serviço e sob o risco do poder concedente”. Sendo assim, “induvidoso que a exploração desse nicho de mercado, de forma exclusiva e com ampla tarifação de preços e forte intervenção estatal, sem sombra de dúvidas, deva ocorrer em processo licitatório submetido à ampla concorrência, na linha dos precedentes desta Corte”.
Com o devido respeito, entendemos que a “exclusividade”, a “ampla tarifação de preços” e a “forte intervenção estatal” a que está sujeito o referido setor é justamente a consequência da imposição de obrigatoriedade de licitação e não a sua causa.
A experiência prática do mundo moderno tem nos mostrado que a iniciativa privada é muito mais eficiente em atender as demandas de mercado do que o Poder Público. O transporte individual de passageiro por meio de aplicativos é um exemplo concreto dessa realidade.
No caso de transporte coletivo municipal, a iniciativa privada teria condições muito mais eficientes e flexíveis para avaliar a demanda e oferta do transporte coletivo urbano, racionalizando as linhas de transporte nos centros urbanos, dimensionando adequadamente os equipamentos, o porte dos veículos e, assim, propiciando a prestação de um serviço mais adequado ao usuário final.
Em tal cenário, a prestação de transporte coletivo urbano por vários concorrentes maximizaria as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas, tornando o serviço mais adequado ao usuário (art. 6º, §1º, da Lei nº 8.987/1995).
É que, nas palavras do Min. Luiz Fux, “[A]s finalidades precípuas de concretização dos princípios da isonomia, da moralidade e de obtenção da proposta mais vantajosa são perseguidas pela ampla concorrência na execução do serviço público, via competição no mercado, porquanto inexistentes restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada, hipótese em que a competição para o mercado (competition for the market), via licitação, criaria uma exclusividade ineficiente e ilegítima, ao restringir o acesso dos possíveis interessados”.
Portanto, na perspectiva do Direito Econômico e dos princípios basilares da Administração Pública, não há dúvida de que o serviço público de transporte coletivo urbano deve ser realizado mediante simples autorização pública via credenciamento, já que, consoante nos ensina Marçal Justen Filho, “o credenciamento se constitui na incorporação à contratação pública de mecanismos de mercado, que resultam na supressão da prática da licitação e na prevalência dos mecanismos da lei de oferta e da procura próprios do mercado” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2ª. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023).
Por outro lado, sob o ponto de vista meramente formal do Direito Constitucional, poder-se-ia alegar que, especificamente para o transporte coletivo urbano, a Carta Magna (art. 30, V) impõe que a delegação tem de se dar via concessão ou permissão, e não por meio de autorização.
Entretanto, como se vê, a Constituição da República não proíbe, de forma absoluta, a dispensa de licitação para o transporte coletivo urbano. A limitação é meramente formal e textual, já que, como exaustivamente exposto acima, a dispensa de licitação para os serviços de transporte municipal coletivo de passageiros, quando desvinculados da exploração de infraestrutura, longe de ofender os artigos 37, caput e inciso XXI, e 175, caput, da Constituição Federal, vai ao encontro dos princípios constitucionais que orientam a Administração Pública, especialmente o da isonomia, da moralidade e de obtenção da proposta mais vantajosa, melhorando sobremaneira as condições de prestação do referido serviço público aos seus usuários finais.
Nesse cenário, a fim de resguardar a autonomia e independência do Poder Legislativo na formulação de políticas públicas, evitando-se o ativismo judicial, mostra-se como razoável que a dispensa de licitação para o referido serviço público, quando desvinculados da exploração de infraestrutura, se dê mediante a reforma do art. 30, V, da Constituição Federal.
4.CONCLUSÃO
Portanto, sob a ótica do Direito Econômico e dos princípios constitucionais da Administração Pública, urge que o serviço de transporte municipal coletivo de passageiros, quando desvinculados da exploração de infraestrutura, seja prestado mediante mera autorização estatal, dispensada licitação. Por outro lado, a fim de resguardar a autonomia e independência do Poder Legislativo na formulação de políticas públicas, mostra-se como razoável que a dispensa de licitação para o referido serviço público, quando desvinculados da exploração de infraestrutura, se dê mediante a reforma do art. 30, V, da Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002.
BAUMOL, W.J.; PANZAR, R.D.; WILLIG, R.D. Contestable markets and the theory of industry structure. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1982. 538p.RANDALL, A. Resource economics: an econominc approach to natural resource and environmental policy. 2.ed. New York: John Wiley & Sons, 1987.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2ª. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Em regra, é imprescindível prévia licitação para a concessão ou permissão da exploração de serviços de transporte coletivo de passageiros. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/032a01d83345f23883c98c540ff32fe7>. Acesso em: 12 set. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (plenário). ADI 5.549/DF. Ação direta de inconstitucionalidade. Artigos 13, incisos iv e v, alínea "e"; e 14, inciso iii, alínea "j", da lei 10.233, de 5 de junho de 2001, na redação conferida pelo artigo 3º da lei 12.996, de 18 de junho de 2014. Transporte coletivo interestadual e internacional de passageiros. Disposições questionadas que alteram, de permissão para autorização, o regime de outorga da prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros desvinculados da exploração de infraestrutura. Alegação de ofensa aos artigos 37, caput e inciso XXI, e 175, caput, da Constituição Federal. Inexistência. O uso da autorização para a outorga de serviços públicos possui previsão constitucional, inclusive no que diz respeito a serviços de transporte interestadual e internacional de passageiros (artigo 21, inciso xii, alínea "c", da constituição). Exigência constitucional de licitação que não se exige da autorização de serviços públicos. Princípios constitucionais da administração pública. Cabe ao legislador infraconstitucional estabelecer a forma de delegação de determinados serviços públicos, admitindo-se que a sua exploração, quando não realizada diretamente, seja feita mediante concessão, permissão ou autorização. Ação conhecida e julgado improcedente o pedido, devendo o poder executivo e a ANTT procederem à edição de novos diplomas, em atenção às exigências do acórdão do Tribunal de Contas da União e da Lei 14.298/2022. Requerente: Procurador Geral da República. Relator: Min. Luiz Fux, 29 de março de 2023. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15358470101&ext=.pdf>. Acesso em: 12 set. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (plenário). Recurso Extraordinário 1.001.104/SP. Repercussão geral. Tema 854. TRANSPORTE PÚBLICO COLETIVO – LICITAÇÃO – FORMA ESSENCIAL. Salvo situações excepcionais, devidamente comprovadas, o implemento de transporte público coletivo pressupõe prévia licitação. Recorrente: Consórcio Intermunicipal da Bacia do Juquery. Recorridos: Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo - EMTU/SP e Rafael Dos Santos Oliveira e Outro(a/s). Relator: Min. Marco Aurélio, 15 de maio de 2020. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343497201&ext=.pdf >. Acesso em: 12 set. 2023.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, ANDRÉ AFONSO DE MOURA SOUZA. Da desnecessidade de licitação para a outorga de serviços de transporte municipal coletivo de passageiros desvinculados da exploração de infraestrutura Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2023, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63090/da-desnecessidade-de-licitao-para-a-outorga-de-servios-de-transporte-municipal-coletivo-de-passageiros-desvinculados-da-explorao-de-infraestrutura. Acesso em: 22 nov 2024.
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