RESUMO:Este estudo busca identificar a persistência de um paradigma androcêntrico presente nos programas de estudo de Direito nas instituições acadêmicas brasileiras. Através da lente da Ética da Libertação de Enrique Dussel, o objetivo é ressaltar a importância de desenvolver uma abordagem jurídica renovada dentro do ambiente acadêmico. Essa abordagem se torna crucial para a formação de profissionais do Direito com capacidades aprimoradas, capazes de enfrentar de maneira eficaz as questões relacionadas aos direitos das minorias, com especial ênfase nos indivíduos homossexuais. A análise se concentra na necessidade de desafiar o paradigma androcêntrico, que tem sido historicamente prevalente nos cursos de Direito, favorecendo perspectivas e narrativas masculinas em detrimento de outras vozes e experiências. Utilizando os princípios da Ética da Libertação de Dussel, busca-se catalisar uma mudança no cenário jurídico acadêmico, destacando a urgência de uma prática jurídica mais inclusiva e sensível à diversidade. Nesse contexto, emerge a necessidade de uma práxis jurídica transformadora que possa contribuir para a criação de um ambiente mais igualitário e respeitoso para todos os grupos sociais, especialmente os homossexuais, que frequentemente enfrentam discriminação e marginalização. A Ética da Libertação de Dussel proporciona uma estrutura conceitual valiosa para a redefinição das abordagens pedagógicas e práticas no ensino jurídico, a fim de capacitar futuros profissionais a lidar de maneira eficaz com as complexidades das questões de justiça social e direitos humanos. Consequentemente, este trabalho visa incentivar uma nova direção na educação jurídica, promovendo a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e consciente das diversas necessidades da comunidade LGBTQ+ e de outras minorias.
Palavras-chave: Androcentrismo. Homossexualidade. Direitos. Ética. Dussel.
ABSTRACT: This study aims to identify the persistence of an androcentric paradigm within the curriculum of Law programs in Brazilian academic institutions. Through the lens of Enrique Dussel's Liberation Ethics, the objective is to emphasize the importance of developing a renewed legal approach within the academic environment. This approach becomes crucial for the education of legal professionals with enhanced capacities, capable of effectively addressing issues related to minority rights, with a particular emphasis on homosexual individuals. The analysis focuses on the need to challenge the androcentric paradigm, which has historically been prevalent in Law courses, favoring male perspectives and narratives at the expense of other voices and experiences. Utilizing the principles of Dussel's Liberation Ethics, the aim is to catalyze a change in the academic legal landscape, highlighting the urgency of a more inclusive and diversity-sensitive legal practice. In this context, there emerges the necessity for a transformative legal praxis that can contribute to creating a more egalitarian and respectful environment for all social groups, especially homosexuals, who frequently encounter discrimination and marginalization. Dussel's Liberation Ethics provides a valuable conceptual framework for redefining pedagogical and practical approaches in legal education, in order to empower future professionals to effectively address the complexities of social justice and human rights issues. Consequently, this work seeks to encourage a new direction in legal education, promoting the construction of a fairer, more inclusive society that is conscious of the diverse needs of the LGBTQ+ community and other minorities.
Keywords: Androcentrism. Homosexuality. Rights. Ethics. Dussel.
1.INTRODUÇÃO
Para muitos pesquisadores, advogados, doutrinadores e protagonistas do Direito, falar de homossexualidade ainda é tabu como se o assunto fosse revestido por uma doença qualquer. Esquecem-se estes mesmos profissionais, de que o tema avança em problemática, mas pouco se constrói em soluções. Cada estudante, advogado ou profissional do Direito que coloca nos olhos o cabresto do preconceito está renegando e escarnecendo sobre o próprio diploma e o juramento que fez no dia de sua formatura, quando prometeu trabalhar em prol da justiça de quem quer que fosse.
Pretende-se analisar, aqui, de forma rápida e sem a pretensão de se esgotar o tema, a temática relativa à homofobia e o paradigma do heterossexismo vigente (androcentrismo) e que povoam os cursos de Direito e o Judiciário brasileiro, a saber, nesta pesquisa, a cultura androcêntrica em contraponto à homossexualidade. Estes últimos têm muitos de seus direitos usurpados, como no caso das uniões homoafetivas e os efeitos jurídicos resultantes destas relações de afeto, bem como os graves crimes de ódio cometidos em virtude da homofobia, ofendendo os princípios da cidadania e do acesso à Justiça, da Democracia, Justiça Distributiva, dos Direitos Humanos e da dimensão social do Direito.
O ordenamento jurídico brasileiro pouco ou quase nada prevê, especificamente, com relação a direitos das minorias homossexuais. Seja com relação aos crimes de ódio ou no tocante a indivíduos de mesmo sexo que se unem para uma vida em comum, baseada em afeto, respeito e consideração mútuos, assistência moral e material recíproca, os operadores do Direito se vêem, quase sempre, em meio à árdua tarefa de buscarem possíveis soluções em escassa doutrina ou jurisprudência, que caminha a passos lentos em nosso Judiciário. Entretanto, não bastasse esta dificuldade imposta pela omissão do poder legiferante, esbarra- se, ainda, na questão do despreparo e falta de conhecimento dos operadores do Direito, principalmente daqueles que são chamados para oferecer a Justiça, no que trate a homossexualidade e seus aspectos sociológicos.
Neste sentido, a minoria homossexual excluída deve buscar na analética um discurso para encontrar sua práxis libertatória, apresentando-se como a alteridade e irrompendo como o estranho, o diferente, o distinto, o oprimido, aquele que está a beira do caminho, fora do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça. A analética tem origem não na ordem estabelecida da totalidade, mas no outro, sendo que a comunidade homossexual deve buscar nesta prática a sua libertação diante do androcentrismo vigente.
As atitudes de hostilidade e violência contra as pessoas homossexuais são manifestações desta forma de sexismo, que como as demais, legitima, justifica e torna inquestionável a sua prática.
A homofobia, ou a chamada aversão aos homossexuais, se encontra presente no denominado senso comum, na própria cultura brasileira, oriunda, nascida do androcentrismo, e esta realidade somente poderá ser transformada por meio de uma ética da libertação que se utilize da analética proposta por Enrique Dussel, e que apresente novos meios de inclusão homossexual diante do paradigma androcêntrico vigente.
O androcentrismo é a cultura masculina dominante que se impõe como paradigma vigente, como validade.
Elizabeth Gössmann (1996), conceituando o androcentrismo, dirá:
Por androcentrismo devemos entender a estrutura preconceituosa que caracteriza as sociedades de organização patriarcal, pela qual – de maneira ingênua ou propositada
– a condição humana é identificada com a condição de vida do homem adulto. Às afirmações sobre „o homem‟, (= ser humano), derivadas dos contextos da vida e da experiência masculinas os pensadores androcêntricos atribuem uma validade universal: o homem (= ser humano) é a medida de todo o humano. Esta reconstrução filosófica e lingüística reducionista da realidade tem, entre outras conseqüências, a de o conceito de trabalho ser definido unilateralmente a partir das condições do trabalho assalariado. Só numa sociedade em que o pensamento androcêntrico é onipresente é que pôde ocorrer que só aos poucos, e enfrentando a resistência dos homens, as mulheres tivessem que conquistar o acesso aos direitos humanos universais. O preconceito androcêntrico torna a vida feminina invisível do ponto de vista lingüístico, e coloca a mulher do ponto de vista conceitual, à margem da antropologia geral. A crítica lingüística, ideológica e científica feminina tem, pois, como meta desvendar, no discurso dominante, estruturas preconceituosas androcêntricas, e desta forma desmascarar a objetividade aparente como uma retórica do partidarismo masculino. (GÖSSMANN, 1996, p. 58)
No androcentrismo se encontram os fatores que levam, conduzem à homofobia, ou a denominada aversão aos homossexuais. Existe um androcentrismo dominante, herança cultural européia, transformado em paradigma, que domina o meio jurídico brasileiro, primeiramente nas faculdades de Direito, construindo operadores do Direito despreparados para julgar causas relativas ao princípio fundamental da dignidade humana no que diz respeito à homossexualidade.
Para o homofóbico, o que hoje se denomina homoerotismo, ou seja, a conduta erótica voltada para indivíduos de mesmo sexo, é um comportamento desvirtuado e que não deve ser tolerado. Esta intolerância leva ao sexismo machista exagerado, ou a um exacerbamento da cultura androcêntrica que tenta fazer valer o paradigma dominante. Por consequência, homossexuais passam a ser excluídos da sociedade, tornam-se o outro, na voz de Enrique Dussel, o estranho e diferente que não é reconhecido pela totalidade dominante.
Esta falta ou ausência de aceitação do outro e sua intolerância é que o priva de direitos, uma vez que não são reconhecidos, não existem, são o nada, o não-ser, a chamada negatividade demonstrada pela filosofia de Enrique Dussel.
Assim, demonstrando a existência do androcentrismo como paradigma dominante, a chamada totalidade, torna-se possível demonstrar, de maneira analética, a existência da alteridade, do diferente excluído, no caso, os indivíduos homossexuais negados e cujos direitos não são reconhecidos.
A ética da libertação dusseliana, a partir de um discurso que promova o face-a-face entre o paradigma androcêntrico dominante e a alteridade é o instrumento para a própria libertação do homossexual oprimido. Somente formando profissionais que saibam identificar a figura do paradigma androcêntrico vigente e contrapô-la à alteridade por meio de um discurso de libertação, onde o outro é reconhecido pelo mesmo é que se vislumbrará este reconhecimento.
Localizada a presença do paradigma androcêntrico dominante na cultura brasileira, dirigir-se-á a pesquisa para os bancos acadêmicos dos cursos de Direito. Este androcentrismo também se encontra presente no ambiente das academias de Direito, tanto entre membros do corpo docente, quanto entre os estudantes. Os novos operadores do Direito devem ser formados com base num novo ethos libertador, o qual não somente libertará os homossexuais da opressão sofrida, mas também os próprios futuros profissionais, que se libertarão da influência do paradigma androcêntrico dominante. A libertação será promovida reconhecendo o outro, a alteridade, e admitindo a existência do paradigma androcêntrico dominante.
3. A HERANÇA HETEROSSEXISTA (ANDROCENTRISMO) COLONIAL E A HOMOFOBIA
O pensamento cristão trazido pelos portugueses e espanhóis para a América Latina não se configurou como um efeito positivo para os habitantes nativos destas terras que, muito antes da chegada dos europeus, já praticavam uma variedade de ritos e costumes próprios com respeito à sexualidade.
Durante o período colonial, os ensinamentos introduzidos pela Igreja Católica contribuíram para condenar as práticas eróticas aborígenes entre pessoas do mesmo sexo, e acabaram por demonizar o que hoje se denomina homoerotismo (GRIMMES, 2005), ou seja, a conduta erótica voltada para indivíduos de mesmo sexo. Estes mesmos ensinamentos vieram aliados à cultura ibérica repleta de machismo sobre as questões de gênero e sexualidade.
O heterossexismo2 é um termo relativamente recente e que designa um pensamento segundo o qual todas as pessoas são heterossexuais até prova em contrário.
Um indivíduo ou grupo classificado por heterossexista não reconhece a possibilidade de existência da homossexualidade ou mesmo da bissexualidade. Tais comportamentos são ignorados ou por se acreditar que são um desvio de algum padrão, ou pelo receio de gerar polêmicas ao abordar determinados assuntos em relação à sexualidade.
A expressão heterossexismo não é muito familiar, pois somente há pouco tempo é que vem sendo utilizada, juntamente com sexismo e racismo, para destacar uma forma de opressão e exclusão que suplanta os direitos de indivíduos homossexuais. Heterossexismo é o termo que descreve uma atitude mental que primeiro cria uma categoria para, em seguida, injustamente, rotular como inferior todo um conjunto de cidadãos (MORAES, 2020).
Quando seres humanos dizem que algo é natural, em oposição a um comportamento adquirido através de um processo de aprendizagem, geralmente querem dizer que não é possível desafiá-lo nem mudá-lo e que seria até mesmo perigoso tentar fazê-lo. No passado, dominava a idéia de que os homens eram naturalmente melhores nas ciências e no desporto e líderes natos, mas as mulheres tiveram a oportunidade de desafiar estas idéias e de mostrar o homem e a mulher numa perspectiva completamente diferente. Este desafio foi facilmente perpetuado assim que se começou a evidenciar que os homens são empurrados para posições de vantagem por uma sociedade que está estruturada para beneficiá-los, um processo (a opressão das mulheres) mais tarde denominado de sexismo.
O heterossexismo está institucionalizado nas nossas leis, órgãos de comunicação social, religiões e línguas. Tentativas de impor a heterossexualidade como superior ou como única forma de sexualidade são uma violação dos direitos humanos, tal como o racismo e o sexismo, e devem ser desafiadas com igual determinação.
Por consequência, testemunha-se na sociedade heterossexista o perigo da homofobia, caracterizada pelo medo e o resultante desprezo pelos homossexuais que alguns indivíduos sentem. O termo é utilizado para descrever uma repulsa face às relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo, um ódio generalizado aos homossexuais e todos os aspectos do preconceito heterossexista e da discriminação anti-homossexual.
4. HETEROSSEXISMO, HOMOFOBIA E O PARADIGMA ANDROCÊNTRICO VIGENTE NO UNIVERSO JURÍDICO BRASILEIRO
Sempre foi papel da Justiça preencher lacunas no ordenamento jurídico positivo com a finalidade de resolver questões novas ainda não tuteladas pela lei. Eis a grande função criadora da jurisprudência. O juiz não pode deixar de apresentar uma resposta às controvérsias submetidas a julgamento, alegando falta de previsão legislativa. Tendo como uma das funções a de colmatar as lacunas do sistema legal, o juiz também acaba forçando o Legislativo a normatizar o fato através da edição de leis. Entretanto, os novos paradigmas devem ser vistos dentro de um contexto atual, atendendo ao momento que a sociedade está vivenciando, ou seja, sob uma perspectiva social e realista.
Além disso, desde os bancos acadêmicos dos cursos de Direito até as últimas instâncias da Justiça, testemunhamos a presença da homofobia, velada ou explícita entre alguns operadores do Direito.
Entretanto, muitos estudantes e operadores do Direito se encontram vitimados pela presença nociva do heterossexismo e da homofobia, transmitidos através do paradigma androcêntrico vigente herdado da cultura de massa brasileira, construída sobre bases ibéricas. O machismo de nossos ancestrais se difundiu de maneira avassaladora sobre a cultura brasileira, subjugando mulheres e homossexuais que sofrem sob a crueldade do paradigma macho man.
Neste sentido, embasamos esta afirmativa com o pensamento de Jurandir Freire Costa, psicanalista e pesquisador, em ensaio intitulado O referente da identidade homossexual:
A invenção dos homossexuais e heterossexuais foi uma conseqüência inevitável das exigências feitas à mulher e ao homem pela sociedade burguesa européia. (...) Mas quando pensamos em sexo, quase nunca imaginamos que o "sexo" da divisão sexual originária só veio a existir no século XIX. No modelo médico do one-sex model19, o sexo referia-se exclusivamente aos órgãos do aparelho reprodutor. Não era algo invasivo, que perpassava e determinava o caráter, amores, sentimentos e sofrimentos morais dos indivíduos. Este sexo absoluto, onipotente e onipresente só tornou-se teórico-culturalmente obrigatório a partir do momento em que se criou a noção da bi-sexualidade originária. Com ela, surgiu a necessidade imperativa de definir 'um novo sexo' com uma natureza, norma, desvios, finalidades, características, etc. (...) Desde o séc. XIX, então, o sexo ocupará o lugar da perfeição metafísica do corpo neoplatônico. Mas com outro referente. No lugar das formas essenciais, será posto o 'instinto sexual', mais uma das formidáveis criações ideológicas do século XIX.(...) A imperfeição, o desvio, a anormalidade, a doença, a patologia ou a perversão do instinto sexual serão buscadas na noção de degeneração. Finalmente, o que definirá a "norma do instinto" e o "desvio degenerado" será a "lei da evolução". Com o evolucionismo, o instinto sexual e a degeneração, a ciência médica estava teoricamente armada para justificar a moderna moral sexual burguesa. A homossexualidade será, inicialmente, definida como uma perversão do instinto sexual causada pela degenerescência de seus portadores e, depois, como um atraso evolutivo ou retardamento psíquico, manifestos no funcionamento mental feminino do homem. Historicamente, junto com as histéricas, o invertido vai ser o filho bastardo da mulher-mãe e do homem-pai e o irmão patológico dos trânsfugas e viciosos da nova ordem médica familiar: velhos senis e indecentes; solteiros dissipados; crianças masturbadoras; criminosos natos; sifilíticos irresponsáveis; prostitutas masculinizadas; alcoólicos; homicidas; loucos etc. A grande família dos degenerados instintivos estava fabricada e dela herdamos boa parte de nossas crenças sexuais civilizadas". (COSTA, 1996, pp. 86 e 87)
O heterossexismo machista, também chamado de androcentrismo, é uma herança dos descobridores, a qual suplantou a alma feminina dos aborígenes e primeiros habitantes das novas terras.
Lagarde (1996) afirma, quanto a esta questão:
A homofobia encontra sua expressão claríssima quando nos horroriza a homossexualidade e cremos que esta é uma enfermidade ou perversão, e por isso a desqualificamos, submetemos as pessoas ao ridículo e a vergonha, as discriminamos e as agredimos. Somos pessoas homofóbicas até quando fazemos piadas inocentes e nos afastamos de maneira estereotipada das pessoas e de sua condição. Somos sexistas homofóbicos ou lesbofóbicos sobretudo, quando nos erigimos em inquisidores sexuais e castigamos, hostilizamos e prejudicamos as pessoas por sua homossexualidade. (LAGARDE, 1996, pp.106 e ss.)
Eis que o heterossexismo machista (ou androcentrismo) e a homofobia povoam o universo dos juristas. Esparsas obras que tratam dos direitos dos homossexuais são produzidas, quiçá analisadas por editoras jurídicas. Os termos homossexual e homossexualidade parecem provocar certa aversão em muitos juristas brasileiros, como se fossem uma doença contagiosa e um mal cujo nome não deve ser pronunciado. São poucos os textos e pesquisas produzidos, muitos deles de caráter mais condenatório da prática homossexual, principalmente no que tange à união afetiva entre pessoas de mesmo sexo, por exemplo.
Herança cultural e, por si só, herança do paradigma androcêntrico vigente, o androcentrismo e a homofobia não deveriam prevalecer tão fortemente nos espaços ocupados pelos nossos juristas em pleno século XXI, quando se acreditava que uma ética da libertação estaria sendo implantada e caminhando a passos largos com o advento da pós-modernidade.
A falta de lei não mais pode servir de justificativa para negar direitos, mas deve ser fundamento para assegurar direitos, atendendo-se à natureza do ser humano, cuja dignidade e integridade precisam ser cada vez mais preservadas dentro dos princípios constitucionais asseguradores da liberdade e da igualdade.
Não é mais possível conviver com a intolerância, com a exclusão social, devendo o juiz atentar na sua missão maior, que é de respeitar a dignidade do ser humano. Não mais pode se escudar em sua toga no ato de julgar. É preciso tirar a venda da Justiça, esquecer o aforismo de que o juiz é um homem só. Não, o juiz é um ser social, que deve julgar dentro da realidade em que vive.
Necessário que o Poder Judiciário, cuja função é fazer cumprir a Constituição Federal, não olvide o que está assegurado já em seu preâmbulo: o exercício dos direitos sociais individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
5. A ÉTICA DA LIBERTAÇÃO DUSSELIANA E O PARADIGMA ANDROCÊNTRICO VIGENTE
Muitos dos comportamentos sociais são guiados pela influência do meio vivido e/ou por instintos inatos do corpo humano, tais como o consumismo, os padrões de beleza, os horários das refeições etc. Entretanto, tal situação leva a uma automação da vida humana ou uma espécie de robotização. Isso conduz o ser humano à escolha de opções dentro dos padrões ou modelos propostos pela sociedade.
Desde que a sociologia existe, tem-se focalizado a pressão do grupo sobre a opinião individual e os múltiplos conformismos que surgem nas sociedades. A maioria dos homens tende antes de tudo a harmonizar-se com os seus semelhantes; raramente ousarão perturbar a concordância reinante em torno deles, ao emitir idéia contrária à idéia geral. Decorre desse fato que inúmeras opiniões não passam, na realidade, de uma soma de conformismo, e se mantêm apenas por ter o indivíduo a impressão de que a sua opinião é a esposada unanimemente por todos no seu meio.
Existe um paradigma androcêntrico dominante no meio jurídico que impede muitos estudantes e operadores do Direito de vislumbrarem a homossexualidade sem preconceitos. Mergulhado neste modelo heterossexista machista e homofóbico, o universo jurídico brasileiro caminha a passos lentos na direção dos ideais de Justiça distributiva que se espera de um Estado Democrático de Direito, em nosso caso, a saber, com relação aos direitos dos homossexuais.
Seja nas faculdades, nos escritórios, promotorias, fóruns e tribunais, é possível testemunhar a presença da influência paradigmática do androcentrismo dominante na forte tendência cultural machista em ridicularizar e hostilizar indivíduos homossexuais. Uma atitude pouco louvável se recordarmos que aqueles que zombam são os que se comprometeram (ou irão se comprometer, no caso dos estudantes) com a materialização da justiça.
Verificando-se a presença e a influência deste modelo androcêntrico no meio jurídico, principalmente nas faculdades de Direito, observa-se a preocupação de se oferecer uma resposta condizente à problemática apresentada. Evidencia-se a necessidade de uma antítese ao paradigma vigente, a qual se apresenta na forma de um novo paradigma, no caso, a alteridade por meio da analética proposta por Dussel. Uma ação contra o paradigma vigente (tese) na busca de um novo paradigma, uma nova síntese.
A partir de uma ética da libertação é que se libertarão os operadores do Direito dos grilhões do paradigma e, por consequência, os próprios excluídos, no caso, os homossexuais. A libertação não será meramente ideal, mas real. Através de uma ética do discurso, do face-a- face entre o excluído e o grupo dominado pelo paradigma androcêntrico é que se observará a libertação da homossexualidade da sombra deste modelo androcêntrico vigente.
Não é por acaso que vai se buscar em Dussel o novo paradigma como instrumento libertador do paradigma vigente. Dussel é um crítico da filosofia clássica europeia, sendo que deste continente se originou o heterossexismo que hoje povoa a América Latina. O fato é que, ao pensar seu continente sob o prisma da filosofia clássica, percebeu a presença de elementos opressores nos fundamentos desta filosofia, elementos estes que impossibilitavam uma identidade entre ela e o continente latino-americano. A necessidade de uma nova filosofia, com características latino-americanas, provém da falta de identidade entre a América Latina e a filosofia clássica.
Partindo da condição de opressão dos povos latinos, Dussel aponta como contraditória a estes povos uma filosofia centrada num sujeito, em um só ser que é o único possibilitado a possibilitar os outros (entes) (DUSSEL, 1976, p. 30). É contra a totalidade necessária à unidade do ser ontológico que o filósofo argentino argumenta, em busca de um pensamento não-opressor.
Dentro da perspectiva do sentido do ser-no-mundo, do ser heideggeriano – que é expressão do ser segundo a filosofia europeia – não há lugar para outro ser, para um sujeito a mais (DUSSEL, 1976, p. 50). O outro, ao relacionar-se com o ser ontológico é objetivado, isto é, torna-se objeto do sentido do ser, potencial objeto do conhecimento do ser, mas sempre objeto de um ser.
Em seu pensamento, Dussel já afirma, categoricamente, que “como totalidade espacial, o mundo sempre situa o eu, o homem ou o sujeito como centro; a partir de tal centro se organizam espacialmente os entes desde os mais próximos e com maior sentido até os mais distantes e com menor sentido” (DUSSEL, 1976, p. 30). Utilizando esta mesma terminologia, vale ressaltar que há um ser: os demais são entes.
Dussel propõe a analética como forma de libertação do oprimido. A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre dia-lética. A verdadeira dialética parte do diálogo do outro e não do pensador solitário consigo mesmo. A verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético); enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um movimento conquistador: dia-lético.
O filósofo fala na crise do sistema ontológico por conta de sua negatividade quanto a presença de mais-que-um ser dentro de sua totalidade: através da dialética, tudo deveria se reduzir a ôntica, a entes, cuja dedução é possível a partir do ser, mas o rosto ôntico do outro não é passível de dedução. Esta impossibilidade, segundo Dussel, constitui um quarto momento do movimento que agora é ana-dia-lético, ao ponto que exige a substituição da ontologia diante de sua incapacidade de atender a continuidade natural deste movimento.
Eis aí uma possibilidade de se caminhar para além da totalidade vigente, onde é possível ver o rosto do outro, mas não se pode reduzi-lo a um ser ontológico. Dussel afirma que, empunhando (e superando) as críticas europeias a Hegel e Heidegger e, escutando a palavra pro-vocante do outro, que é o latino-americano oprimido na totalidade, pode nascer a filosofia latino-americana que será, analogicamente, africana e asiática.
Dussel nos fala com maior profundidade a cerca deste rosto que emerge diante da totalidade:
O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça:
– Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes.
[...] Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito – enquanto ruído, rugido, clamor, protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu sentido apenas por quem “tem ouvidos para ouvir” – indica simplesmente que alguém está sofrendo e que do íntimo de sua dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica. É a “interpelação primitiva” (DUSSEL, 1995, p. 19.)
O outro é um ser vivo próximo de nós, que pode ser um sujeito de direitos fundamentais, como a criança faminta, o índio explorado, o idoso esquecido, o negro marginalizado, o homossexual discriminado. O outro é um ser vivo que está ao nosso lado. Dussel refere-se “à mulher camponesa e proletária que suporta o uxoricídio. À juventude do mundo inteiro que se rebela contra o filicídio. Aos anciãos sepultados vivos nos asilos pela sociedade de consumo”. (DUSSEL, 1976, p. 05)
O outro grita porque se encontra à margem da sociedade (totalidade) e por ser agredido quando tratado como não-ser.
Eis que o outro irrompe diante da totalidade e encontra aí a possibilidade de liberdade. Este outro não é uma coisa (ente), pois possui um rosto e possui a palavra, o poder de gritar, que acaba por incomodar provocando. Aceitando essa pro-vocação é que a totalidade chega até o outro.
A ética dominante impõe padrões para o comportamento pessoal e social que negam, à maioria das pessoas, a realização de sua liberdade, seja dificultando o desabrochar de sua condição feminina, negra, indígena, infantil e, no presente estudo, homossexual.
A totalidade dominante, aquela que impõe a sua hegemonia, é o paradigma androcêntrico a ser contraposto. Eis que a comunidade das vítimas, irrompendo diante da totalidade, não como coisa, mas como um rosto lança seu grito de liberdade. Do pensamento racionalista de Descartes (Eu penso) se evolui para uma filosofia do discurso (Eu falo e existo).
O discurso que Dussel pretende é a proximidade. Esta é uma categoria do face-a- face: entre filho(a) e mãe na amamentação; homem e mulher no relacionamento amoroso; ombro-a-ombro dos irmãos. Nestas categorias exemplifica-se a proximidade, a essência do homem, sua plenitude. Neste relacionamento, o outro sempre precisa ser respeitado como outro, distinto, diferente.
6.A ÉTICA DA LIBERTAÇÃO DUSSELIANA E O FACE-A-FACE
Este face-a-face é uma das categorias mais importantes do pensamento de Dussel. Isto significa a proximidade, sem mediação, o aceitar o outro como outro, expor-se frente a frente com o outro numa relação de autenticidade. O face-a-face é o encontro de uma totalidade aberta e da alteridade que se revela. Sãos dois pólos abertos em comunicação um com o outro. Este outro permanece sendo distinto, diferente, não passível de compreensão pela totalidade dominante por meio dos juízos prévios desta, mas sim uma compreensão que se realiza por meio da observação atenta ao mundo do outro, sem pré-julgamentos. Não se pode negar a realidade empírica da existência da “comunidade das vítimas” (os excluídos) e sua negação, uma realidade do efeito perverso da ordem mundial vigente (FONSECA, 2004, p. 312).
Para Rodrigo da Cunha Pereira, “um dos principais critérios de expropriação da cidadania sempre foi o de desconsiderar o „diferente‟. Em outras palavras, aquilo que não conheço, não domino ou não faz parte do meu universo é mais cômodo ignorar ou repelir, pois assim não estarei ameaçado” (PEREIRA, 2001, p. 108).
Uma vez que foram excluídas, as vítimas se reconhecem como sujeitos éticos, como o outro enquanto outro que foi negado pelo sistema dominante.
Trata-se de um processo comunitário praticado pela própria vítima enquanto comunidade excluída por um sistema opressor, do sujeito histórico-social, do próprio povo oprimido excluído.
O oprimido toma consciência da exclusão da qual é vítima e, imediatamente, percebe a extensão de sua injustiça. É o início do processo de conscientização onde a vítima deixa de acreditar na boa vontade ou na beatitude do sistema vigente, o qual deixa de ser uma esperança para se transformar numa realidade nua e crua . O excluído se torna um cético do sistema que acreditava ser sua esperança para uma vida melhor, observando-o a partir de então como um sistema sem qualquer legitimidade. O sistema perde seu valor e surge a possibilidade de um novo consenso: vislumbrar a necessidade positiva de uma nova validade, onde Dussel diz que “a comunidade, a intersubjetividade crítica das vítimas começa a imaginar a utopia. É uma imaginação transcendental ao sistema: se o “atual” não permite que se viva, é preciso imaginar um mundo onde seja possível viver.” (DUSSEL, 2000, p. 476)
As vítimas, então, passam a imaginar novos procedimentos para a transformação de seu momento. Buscar um consenso na criação de novas formas alternativas de democracia embasadas numa nova validade, uma nova democracia-crítica, não uma mera negação da democracia vigente, mas uma nova democracia. Este novo momento é o espaço ideal para o nascimento de movimentos sociais e de uma nova consciência crítica. A comunidade das vítimas é a mesma que une a vítima ao carrasco. Mas este é que o ignora.
Estas transformações necessárias não podem, simplesmente, ser esperadas do sujeito excludente, uma vez que a sua tolerância não é positiva. Kaufmann alerta para o fato do excludente ver no excluído um sujeito que age em erro ou, seguindo o raciocínio deste trabalho dissertativo, o indivíduo heterossexual que cultiva a intolerância pelo homossexual enxerga neste alguém que se encontra fora do paradigma dominante. O outro age em erro , em contrariedade aos padrões, e o dominante procura enfraquece-lo e neutraliza-lo de maneira que sua forma de ser e agir seja anulada:
Se o erro do outro é uma contrariedade, um ilícito, um mal, então a tolerância não consiste na discussão respeitosa com ele, mas simplesmente num „deixar viver‟, sempre na esperança de, através da prova quotidianamente produzida da sua própria força e superioridade, convencer o outro da sua impotência, levando-o a abandonar, sem luta, a sua posição e eliminando-o, assim, como inimigo (KAUFMANN, 2004, p. 488).
Kaufmann também ressalva que a totalidade tende a se manter fechada para o outro, pois este constitui uma ameaça aos padrões estabelecidos, devendo o grupo dominante lutar ao invés de tolerar: “O ideal é indubitavelmente a sociedade „fechada‟, unida em torno de uma única crença, é a ortodoxia, e, pelo menos em princípio, a reacção legítima contra a heresia não é a tolerância, mas a luta” (KAUFMANN, 2004, p. 488).
A tolerância sofre a resistência da maioria dominante, uma verdadeira tirania que procura salvaguardar as desigualdades entre os homens de forma que a minoria não seja incluída.
Além disso, quando se fala em tolerância não se deve confundi-la com aceitação, pois esta última não reflete o real sentido de tolerar , que é compreender o outro sem reservas. Aceitar nem sempre significa compreender o outro, mas sim um mero suportar. A mera aceitação é uma resignação, que segundo Kaufmann, não reconhece o outro: “da atitude de mera resignação resulta a típica arrogância do tolerante: é ele que está na posse da verdade, o outro está em erro, mas ele é generoso e suporta o outro” (KAUFMANN, 2004, p. 488).
A tolerância é um agir ativo e não somente um sofrer ou suportar passivo.
Nenhum indivíduo é detentor da verdade e tampouco deve ditar sua percepção de mundo como sendo a única aceitável e verdadeira. Tanto o indivíduo heterossexual quanto o indivíduo homossexual possuem histórias de vida e não é sua orientação sexual o fator diferenciador de ambos. A tolerância deve ser real entre os diferentes, porém iguais.
Na questão homossexual, o intolerante não aceita o diferente. É incapaz de assimilar a complexidade do mundo em que vive, pois não exercita a abertura para a pluralidade social. Não suporta aquilo que vai contra seu juízo previamente definido e o qual não tem a menor intenção de questionar, rever ou levar em consideração a opinião ou visão de outros. É Kaufmann quem, sabiamente, define o intolerante e sua recusa em rever seus conceitos enraizados:
Ele [o intolerante] recusa novas informações, na medida em que não as possa integrar no seu cicatrizado sistema. Ele, basicamente, não aprende para além disso. Ele erige, no meio do grande mundo aberto, o seu pequeno mundo fechado. Mas ele vê e sente que está excluído da diversidade e que não dispõe de mecanismo para lidar com o mundo complexo. Isso inquieta-o e torna-o inseguro. E por força desta insegurança e inquietude ele reage agressivamente: faz tudo para que os outros abandonem a sua posição, pois não a suporta e muito menos a pode assimilar (KAUFMANN, 2004, p. 504).
Diferentemente, o tolerante sempre está aberto ao novo. Naquilo que envolve a sexualidade, o tolerante vê no outro com orientação sexual diversa da sua uma outra forma de manifestação natural da expressão humana. Ao invés de se fechar num mundo impenetrável, o tolerante procura aprender e apreender com as diversas formas de expressão do ser humano, bem como ter consciência de que novas interpretações sobre o mundo são necessárias. Para o tolerante, estas interpretações se transformam juntamente com a sociedade, não sendo por isso terminantes e absolutas. E “ao assimilar a complexidade, torna mais humano o mundo que vivemos” (KAUFMANN, 2004, p. 504).
A capacidade de tolerar envolve inclusão, o consenso de que o outro existe e justamente por existir é que deve ser tolerado. Talvez não seja possível amá-lo, como preconizam os ensinamentos cristãos, mas é possível se comunicar com ele, saber ouvi-lo, aceita-lo sem condições e leva-lo em consideração como sujeito existente.
Kaufmann encerra sua obra com um imperativo categórico da tolerância: “age de tal modo, que as conseqüências da tua acção sejam concordantes com a máxima prevenção ou diminuição da miséria humana” (KAUFMANN, 2004, p. 509).
A tolerância liberta, pois o individuo que a exercita se livra dos grilhões que ele próprio forjou para si.
Tolerar, reconhecer e compreender o homossexual como integrante de uma comunidade que ainda não foi abraçada pela totalidade, eis o desafio dos indivíduos que não conseguem enxergar no diferente uma extensão de si mesmo por pertencerem à mesma espécie: a humana.
A alteridade, isto é, a capacidade de conviver com o diferente, de se lançar um olhar interior a partir das diferenças deve ser cada vez mais estimulada para que a homossexualidade perca seu estigma como algo nocivo. A alteridade significa que o outro é reconhecido também como sujeito de iguais direitos e, neste caso, o homossexual deve ser tutelado pelo Direito de maneira ampla e irrestrita.
Porém, esta alteridade deve vencer o paradigma vigente: o androcentrismo.
O novo paradigma emergente, que irrompe diante da totalidade, deve se manifestar através de políticas diferenciadas nas faculdades de Direito do país e mesmo junto aos diversos setores do Poder Judiciário. O androcentrismo dominante deve ser confrontado com a alteridade, isto é, levar até os acadêmicos dos cursos de Direito e dos operadores do Direito o rosto do homossexual excluído, com o fundamental propósito de promover o re- conhecimento do outro pelo mesmo, configurando a analética dusseliana.
É na noção do paradigma dominante que vamos buscar a construção do novo paradigma, promovendo a proximidade proposta por Dussel através de uma política diferenciada nos cursos de Direito e nos ambientes dos tribunais, promotorias de justiça, delegacias e onde mais quer que o Direito exista para ser exercido, respeitado e oferecido visando, principalmente, confrontar o novo paradigma com o heterossexismo machista dominante.
Uma alteração dos currículos acadêmicos que permita o face-a-face entre a totalidade (acadêmicos de Direito) e as vítimas (homossexuais) seria o primeiro passo para a construção do novo paradigma. Promover palestras, cursos de atualização, publicidade, congressos e pontos de encontro que promovam o face-a-face entre o outro e o mesmo. Eis que o outro irrompe diante da totalidade.
Por meio do contato com a legislação, a família, os órgãos estatais, mas principalmente por meio da educação é que se adquirem hábitos e conceitos. Para Durkheim, a escola é a mais importante e poderosa instituição capaz de preparar as crianças e jovens para a sociedade, impondo-lhes o comportamento mais correto e a visão da consciência coletiva. É na escola que as crianças aprendem que se deve negar a vontade pessoal e sacrificar-se em função do todo social; que terão uma função a cumprir na sociedade, e que para complementarem-se terão de se relacionar com os seus semelhantes. Ou seja, a escola deve internalizar a sociedade no indivíduo, impor-lhe padrões de conduta que o impeçam de seguir suas próprias tendências e regras que possam quebrar a coesão social. Cabe à escola, portanto, preparar as futuras gerações a seguir a moral social mais correta e aceita, sabendo que a sua transgressão e contestação implica em punições:
Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, sentir e agir às quais elas não chegariam espontaneamente (...) a pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários (DURKHEIM, 1983, p. 05).
Existe um senso comum totalizador mencionado por Martinez (2003), conforme sua obra Manual de Educação Jurídica:
[...] desde a criação dos primeiros cursos de Direito no território nacional e, quiçá, mesmo antes pela influência da escola coimbrã no modelo brasileiro, foi, aos poucos, cristalizando-se um paradigma, de maneira uniforme e regular, sobre a práxis acadêmica. Esse paradigma demonstra-se como um senso comum totalizador, que acarreta, conforme a análise das evidências descritas anteriormente (capítulo primeiro), nos dias atuais, maiores efeitos nocivos do que positivos no meio social. Esse quadro é agravado na questão do ensino jurídico brasileiro, em vista de sua participação na formação da ideologia liberal, construída de forma hegemônica, no Brasil, a partir do século XIX. Daí se afirmar a existência de um modelo cristalizado de ensino retro alimentador do status quo social dominante, cuja perpetuação, por quase dois séculos, permite constatar-se um conjunto uniforme e regular das práticas liberais deixadas. (MARTINEZ, 2003, p. 130).
Este senso comum totalizador, em nossa tese, é o chamado androcentrismo ou heterossexismo machista vigente, o paradigma vigente diante do qual deve se apresentar o novo paradigma emergente nascido do face-a-face entre o mesmo e o outro, na visão dusseliana.
Desta forma, pretende-se demonstrar que, através da implementação de novas políticas renovadoras dos cursos de Direito e dos diversos setores do Poder Judiciário, incluindo-se nos currículos acadêmicos disciplinas teóricas e práticas que promovam o encontro (face-a-face) entre a hegemonia heterossexista (acadêmicos de Direito) e a comunidade excluída (homossexuais), bem como o encontro real entre magistrados, promotores e demais operadores do Direito com as vítimas é que finalmente se dará a analética dusseliana onde o outro deixa de ser coisa para se tornar alguém.
Entretanto, nem todo o corpo acadêmico de estudantes de Direito, por exemplo, compõe a hegemonia heterossexista machista dominante, daí porque a necessidade de diferenciação entre os que configuram o paradigma androcêntrico vigente e aqueles que não pertencem ao denominado senso comum. Aqueles libertos da influência do paradigma dominante já se encontram sob a influência tímida do emergente paradigma libertador, uma vez que estes indivíduos já possuem as características primordiais para irromper diante do paradigma androcêntrico vigente: não-machismo, não-androcentrismo, não-excludente, não- opressor, não-discriminatório, não-homofóbico. É no novo paradigma emergente que se pretende buscar o amálgama capaz de se contrapor ao paradigma androcêntrico dominante, uma vez que são inúmeros os estudantes do corpo acadêmico dos cursos de Direito que se encontram libertos da influência nociva do paradigma androcêntrico dominante.
Relembrando a alegoria da caverna platônica, os indivíduos que já se encontram influenciados pelo novo paradigma emergente são aqueles que se libertaram dos grilhões, abandonaram a caverna, conheceram a verdade e voltaram para libertar os que ainda se encontram presos na caverna (dominados pelo paradigma vigente).
A partir do pensamento de Enrique Dussel é que se reforçarão as bases do novo paradigma emergente, de forma que ocorra a analética possível: a proximidade, o face-a-face, o re-conhecimento do outro pela totalidade dominante.
Este re-conhecimento não somente formará novos operadores do Direito. Promoverá a renovação da natureza acadêmica e operacional, desconstruindo o modelo androcêntrico cunhado pelos descobridores e também o paradigma liberal herdado pelo ensino jurídico brasileiro.
Novos advogados, novos promotores, novos magistrados, novos operadores da Justiça. Não significando novos no sentido da conclusão de uma etapa emancipatória, como a conclusão de um curso ou etapas de um concurso. Novo no sentido de renovação, a construção de um novo modelo emancipatório das vítimas homossexuais excluídas.
7.CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível observar a presença da homofobia, da aversão e discriminação por parte de inúmeros acadêmicos com relação à homossexualidade.
Esta aversão é caracterizada pela existência de um paradigma androcêntrico dominante trazido pelos descobridores europeus e ora presente no meio social, a saber, em nosso caso, nos cursos de Direito e entre os próprios operadores do Direito, bem como apontar meios para a construção de um novo paradigma baseado na filosofia e ética de Enrique Dussel que venha a construir um novo modelo de práxis libertadora dos homossexuais oprimidos.
É possível perceber a existência de um paradigma androcêntrico dominante presente no senso comum da cultura brasileira, herança da cultura européia trazida pelos descobridores, e que se implantou em todas as camadas sociais e culturais do povo brasileiro, a saber, em nosso estudo, nos cursos de Direito e que se estende ao Poder Judiciário.
Este mesmo paradigma se faz presente nos cursos jurídicos brasileiros através da homofobia, o que acaba por produzir operadores do Direito influenciados pelo androcentrismo vigente.
A presença nociva deste paradigma androcêntrico, nos moldes do estudo da ética da libertação de Enrique Dussel, produz profissionais influenciados pela hegemonia vigente – o sexismo, androcentrismo, heterossexualismo machista – que além de subjugar e desvalorizar o universo feminino, exclui os homossexuais do rol de titulares de direitos, ferindo o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade.
O paradigma androcêntrico vigente deverá ser substituído por um novo paradigma emergente, o qual deve ser instituído através de uma nova práxis político-cultural nos cursos de Direito e ambientes do Poder Judiciário, de maneira a garantir a formação de profissionais voltados para os verdadeiros ideais de justiça, livres de estigmas, preconceitos e pré- julgamentos.
Por meio da Ética da Libertação, proposta pelo filósofo Enrique Dussel, é que se construirá o novo paradigma emergente, que podemos batizar de novo paradigma libertador, pois o mesmo propõe uma ética latino-americana como forma de libertar o povo oprimido da dominação excludente vigente trazida pelos descobridores influenciados pelo pensamento clássico europeu.
O novo paradigma emergente já se encontra presente, ainda que de forma tímida, no ambiente dos cursos jurídicos brasileiros, através de docentes e discentes preocupados com a exclusão homossexual, mas que ainda são uma minoria diante da dominação promovida pelo paradigma vigente androcêntrico.
Por meio da Ética da Libertação, deverá se promover um face-a-face, um re-encontro do mesmo com o outro, de forma que o novo paradigma libertador (antítese) seja o re- construtor de um novo paradigma onde o androcentrismo perderia seu poder dominador e sua hegemonia, libertando os homossexuais oprimidos e marginalizados.
Deve-se buscar alternativas políticas e sociais que visem promover a construção e afirmação do novo paradigma emergente dentro dos cursos de Direito e ambientes do Poder Judiciário, ora dominados pelo paradigma androcêntrico.
Despertar nos acadêmicos de Direito o senso crítico e também a própria consciência da existência deste paradigma é o primeiro passo dos docentes preocupados com a formação dos futuros profissionais. Somente através da educação e da conscientização é que se libertarão aqueles estudantes ainda cegos pelo véu da ignorância e pela trave do preconceito. Nosso Judiciário encontra-se atolado de processos onde homossexuais exigem que seus direitos sejam respeitados e profissionais preconceituosos são, no mínimo, dispensáveis num país com tanta desigualdade social, mas principalmente, com alto número de casos de discriminação.
REFERÊNCIAS
COSTA, Jurandir. A face e o verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo: Escuta, 1995.
DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. Piracicaba, SP: Loyola/UNIMEP, 1976.
. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1986.
. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.
. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000.
DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. 6ª edição, São Paulo, Nacional, 1983.
FONSECA, Ricardo Marcelo. Da ética à filosofia política crítica na transmodernidade: reflexões desde a filosofia de enrique dussel. In: _ . [Org.] Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004.
GÖSSMANN, Elizabeth. Dicionário de teologia feminista. Trad. de Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 1996.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Trad. de António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
LAGARDE, Marcela. Identidad de Género y Derechos Humanos. La construcción las humanas. In: STEIN, Laura Gúzman; OREAMUNO, Gilda Pacheco [Org.]. Estudios Básicos de Derechos Humanos IV. San José, C.R.: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1996.
MARTINEZ, Sergio Rodrigo. Manual de educação jurídica. Curitiba: Juruá, 2003.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A sexualidade vista pelos tribunais. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
SPENCER, Collin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999
doutor pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – Paraná. Advogado e professor universitário
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DROPA, ROMUALDO FLÁVIO. Para além do machismo legal: reconstruindo o pensamento jurídico com base na ética da libertação de Dussel Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2023, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63254/para-alm-do-machismo-legal-reconstruindo-o-pensamento-jurdico-com-base-na-tica-da-libertao-de-dussel. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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