CRISTIANE MONTEFELTRO FRAGA PIRES[1] [2]
(Orientadora)
RESUMO: O presente estudo teve por objetivo analisar possíveis efeitos dos Decretos Federais nº 10.9665/22 e nº 10.966/22 sobre a intensificação de danos ambientais especialmente em regiões da Amazônia. Visou-se ainda, verificar se tal decreto, indiretamente não exerceria um papel de instrumento legalizador de retrocessos no Direito Ambiental Brasileiro ao ferir princípios basilares e estimular a degradação ambiental. Os decretos em estudo, ao estimularem o garimpo artesanal como forma de desenvolvimento regional social e econômico, somado à determinação para que a Agência Nacional de Mineração simplifique os critérios para a outorga destes garimpos e de aproveitamento das substâncias minerais, não se atentam juridicamente para importantes princípios do Direito Ambiental, e portanto, têm o condão de atuar como medidas legislativas retrocessivas, pois ferem importantes princípios do direito ambiental.
Palavras-chave: Danos ao meio ambiente. Mineração artesanal. Retrocesso legislativo.
ABSTRACT: The present study aimed to analyze possible effects of Federal Decrees nº 10.9665/22 and nº 10.966/22 on the intensification of environmental damages, especially in regions of the Amazon. It was also aimed at verifying whether such a decree would not indirectly play a role of legalizing instrument of setbacks in Brazilian Environmental Law by violating basic principles and stimulating environmental degradation. The decrees under study, by encouraging artisanal mining as a form of social and economic regional development, added to the determination for the National Mining Agency to simplify the criteria for granting these mines and the use of mineral substances, do not legally pay attention to important principles of Law Environmental Law, and therefore, have the power to act as retrogressive legislative measures, as they violate important principles of environmental law.
Keywords: Environmental damage. Artisanal mining. legislative setback
1 INTRODUÇÃO
O planeta Terra vive atualmente uma crise ambiental, e assim, a legislação tem um papel fundamental no direcionamento de práticas adequadas que possibilitem que nosso meio ambiente se mantenha equilibrado e saudável, e que o desenvolvimento econômico seja realizado dentro de uma perspectiva de sustentabilidade.
No Brasil, o meio ambiente é protegido por normas legais, fazendo valer o que determina o art. 225 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Entretanto, a realidade muitas vezes se distancia das normas legais, podendo assim, comprometer o bem jurídico por elas tutelado. Situação ainda mais grave ocorre, quando uma nova norma é implementada com o objetivo de tutelar ações cujos efeitos têm o potencial de serem diametralmente opostos a manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida da população brasileira, assim como das suas futuras gerações.
Recentemente, em 11 de fevereiro de 2022, foi assinado pelo chefe do executivo nacional, os Decretos nº 10.965/22 e 10.966/22 simplificam a outorga de garimpos de pequeno porte ou de aproveitamento das substâncias minerais, e instituem um programa de apoio ao desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala objetivando o desenvolvimento “sustentável” regional. Entende-se que o desenvolvimento econômico é importante e necessário, mas as normas devem garantir que este ocorra de forma responsável, para que não tragam consequências devastadoras. O que se questiona é de que forma isso seria sustentável, tendo em vista que legalizar e fomentar atividades como estas, exigem extrema prudência e cautela e não a facilitação das exigências. Questiona-se também, se como consequência possa haver uma maximização dos riscos de impacto a Amazônia, como por exemplo o aumento de desmatamentos. À primeira vista, parece que esses decretos poderiam significar um retrocesso do Direito Ambiental Brasileiro e, portanto, se faz necessário maior análise jurídica sobre o tema.
As atividades mineradoras têm, pela sua própria essência, grande potencial de gerar danos ambientais significativos, pois que modificam intensamente os ecossistemas locais, seja por meio das enormes cavas que são abertas no solo, ou pelas consideráveis quantidades de resíduos que são produzidos e que nem sempre recebem o destino adequado. Além disso, é fato inegável, a existência de numerosos garimpos clandestinos em regiões da Amazônia, onde a fiscalização se faz mais dificultosa. Por não respeitarem a legislação ambiental, e operarem de forma clandestina, acabam por comprometer o meio ambiente em que se instalam.
Tem-se por hipótese que os Decretos Federais nº 10.965/22 e nº 10.966 podem ir na contramão de princípios do Direito Ambiental, e assim serem medidas legislativas retrocessivas.
O presente estudo teve por objetivo analisar possíveis efeitos dos Decretos Federais nº 10.965/22 e 10.966/22 sobre a intensificação de danos ambientais e sociais especialmente em regiões da Amazônia. Visou-se ainda, analisar juridicamente, se não acabariam por exercer indiretamente o papel de instrumentos legalizadores de retrocessos no Direito Ambiental Brasileiro ao ferir seus princípios basilares. Tal análise busca contribuir para as discussões a respeito das prováveis consequências dessas normas, e assim buscar apontar soluções para se evitar a implantação de problemas irremediáveis.
A metodologia empregada na presente foi a pesquisa bibliográfica com caráter analítico dedutivo. As fontes utilizadas foram doutrinas da ciência jurídica, normas, leis, documentos jornalísticos, dados estatísticos do MapBioma (2022) dentre outras fontes científicas.
2 O DIREITO AMBIENTAL E A EVOLUÇÃO DAS NORMAS RELACIONADAS À MINERAÇÃO NO BRASIL
No Brasil, a proteção jurídica do meio ambiente passou por diversas fases ao decorrer dos anos. A primeira fase, no período compreendido entre o descobrimento do Brasil em 1500 e chegada da família real em 1808, houve a incidência da exploração desregrada. Nesta, o meio ambiente foi explorado sem que houvesse uma proteção jurídica suficiente, pois haviam apenas algumas poucas normas isoladas de proteção aos recursos naturais que se escasseavam. (SIRVINSKAS, 2021).
Posteriormente, surgiu a denominada fase fragmentária, que perdurou de 1808 até a criação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente -LPNMA em 1981. Esta fase foi marcada pela existência de algumas legislações esparsas que buscavam proteger categorias mais amplas dos recursos naturais, limitando sua exploração desordenada, protegendo-se o todo a partir das partes. Entretanto, e tutelavam somente aquilo que tivesse interesse econômico (GRANZIERA, 2015).
A partir da LPNMA, iniciou-se a fase holística do Direito Ambiental e somente em 1988, foi garantida a proteção ambiental em sede constitucional, com a inserção do art. 225. Atualmente tem-se a consciência jurídica de que nada adianta tutelar de forma segmentada os componentes do meio ambiente, pois interferências em um deles, poderão repercutir em alterações significativas em todos os demais. Por isso, a tendência é que tratamento jurídico dispensado aos recursos naturais e à conservação da natureza, paute-se na visão de que o todo deve ser observado (CABRAL et al., 2019).
Nesse contexto, se faz mister melhor conceituar o Direito Ambiental como sendo: “Um complexo de princípios e normas reguladoras das atividades humanas que, direta ou indiretamente, possam afetar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações.” (MILARÉ, 2000, p. 93)
No rol das atividades reguladas pelo Direito ambiental está a mineração, que por sua própria essência apresenta risco de degradação ambiental. A lavra garimpeira, constitui-se em um regime de extração de substâncias minerais com aproveitamento imediato do mineral (BRASIL, 2022).
No Brasil, a CF/88 determina em seu art. 20, incs. IX e XXV que todos os recursos minerais são bens da União; e compete à ela estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem. O Estado é quem exerce o papel de agente normativo e regulador das atividades de mineração, ocupando a função também de fiscalização e incentivo, conforme pode-se ler no § 3º do art. 174 (CF/88).
São vários os dispositivos constitucionais pertinentes à mineração, podendo-se citar os arts. 20, 21, 22, 23, 24, 174, 176, 225, 231, dentre outros (BRASIL, 2011). Entretanto para materializar as determinações constitucionais, existe um arcabouço de normas incluindo um Código de Mineração (Decreto-lei no 227, de 28 fevereiro de 1967), além de várias normas correlatas na forma de leis, e regulamentações na forma de decretos. A seguir são apresentadas as mais relevantes para o presente estudo.
O primeiro Código sobre mineração, da República Brasileira, foi o Código de Minas, Decreto-lei no 1.985, de 1940. Após 27 anos de sua aplicação, publicou-se o Decreto Lei nº 227 de 28 de fevereiro de 1967, denominado de Código de Mineração, dando nova redação ao antigo Código de Minas. Os principais argumentos apresentados pelo então Presidente da República daquela época, que justificaram a edição de um novo código foram: -a necessidade de adaptação das normas que regulavam as atividades especializadas da mineração, à evolução da ciência e tecnologia ocorrida durante e após a II Guerra Mundial que introduziram alterações profundas na utilização das substâncias minerais; -proteger a capacidade competitiva do País nos mercados internacionais. Em menos de três meses, o Código de Mineração sofreu novas alterações por meio do Decreto-Lei nº 318, de 1967.
No ano seguinte, 1979, foi publicada a Lei nº 6.634, que dispôs sobre a Faixa de Fronteira, onde passa a ser proibido a instalação de empresas que se dediquem a pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de recursos minerais.
Em 1988, por meio da Lei nº 7.677 ficou autorizado ao Poder Executivo, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), a criação do Centro de Tecnologia Mineral – CETEM, destinado a promover o desenvolvimento da tecnologia mineral e sua assimilação pela indústria nacional por meio da formulação e execução da política nacional de tecnologia mineral.
Em 1989, o Decreto nº 97.507 vedou o emprego de mercúrio na atividade de extração de ouro, exceto em atividade licenciada pelo órgão ambiental competente; além de determinar que a criação de reservas garimpeiras só seria possível com um prévio licenciamento do órgão ambiental competente. Ainda ano de 1989 foi sancionada Lei nº 7.805, que promoveu alterações no Código de Mineração criando um regime de permissão de lavra garimpeira, e extinguindo o regime de matrícula antes previsto. Em seus arts. 3º e 5º, explicitou a preocupação com o meio ambiente, ao determinar que a outorga da permissão de lavra garimpeira passava a depender de prévio licenciamento ambiental concedido pelo órgão ambiental competente, e que a área permissionada não poderá exceder cinquenta hectares, salvo quando outorgada a cooperativa de garimpeiros. Importante também ressaltar que foi essa lei, em seu art. 10 que definiu o que é garimpo como o local em que ocorre a extração de minerais garimpáveis, além de determinar os minerais que podem ser garimpáveis.
Em 1990, o Decreto nº 98.812, determinou o IBAMA como órgão competente para a permissão de lavra garimpeira de potencial risco de impacto ambiental; e o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) como responsável por estabelecer as áreas de garimpagem considerando o interesse do setor mineral e as razões de ordem social e ambiental. Seu art. 12, § 1o prescreve que “A criação ou ampliação de áreas de garimpagem fica condicionada à prévia licença do Ibama, à vista de Estudo de Impacto Ambiental- EIA e respectivo Relatório de Impacto Ambiental - Rima”
Em 1994, a Lei nº 8.901 regulamentou o disposto no § 2o do art. 176 da Constituição Federal, que assegurando a participação do proprietário do solo nos resultados da lavra, com direito de 50% do valor total devido aos Estados, Distrito Federal, Municípios e órgãos da administração direta da União.
Em 2017, a Lei 13.575, criou a Agência Nacional Mineral (ANM) extinguindo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). A ANM recebeu a incumbência de promover o planejamento e o fomento da exploração mineral; e assegurar, controlar e fiscalizar o exercício das atividades de mineração em todo o território nacional. Já em 2018, o Decreto nº 9.406, alterou e regulamentou vários dispositivos do Código de Mineração, determinando que o licenciamento da atividade de garimpagem passa a ser outorgado pela ANM em conformidade com os procedimentos e os requisitos estabelecidos em Resolução.
No dia 11 de fevereiro do presente ano de 2022, foram publicados dois Decretos Federais, nº 10.965/22 e 10.966/22. O decreto 10.965/22 ao alterar várias disposições do Código de Mineração, e de outras normas, simplificou as regras de efetivação do registro de licenciamento pela a ANM, uma vez que diminuiu o prazo para apenas sessenta dias, contado da data da apresentação da licença ambiental competente (art 30, §1º) para manifestação da agência. Anteriormente esse prazo era de 120 dias, definidos pela Resolução da ANM nº 22 de 2020. Determina ainda esse decreto, que não havendo manifestação da ANM, em sessenta dias, serão produzidos os efeitos da efetivação do registro (art 30, §2º) e que em momento oportuno a agência deverá se manifestar (art 30, §3º). Em suma, determina que a ANM simplifique a outorga de garimpos de pequeno porte ou de aproveitamento das substâncias minerais.
Já o Decreto nº 10.966/22 que institui um programa que apoia o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala, e ainda determina a formação de uma comissão interministerial para esta finalidade, denominada COMAPE. Segundo esse documento, o objetivo é o desenvolvimento sustentável regional, tendo como área prioritária a Amazônia Legal (art. 10).
3 ANÁLISE DOS DECRETOS Nº 10.965/22 10.966/22 À LUZ DOS PRINCÍPIOS BASILARES DO DIREITO AMBIENTAL.
3.1 Os princípios basilares do Direito Ambiental
O Direito ambiental está sustentado por importantes princípios, ou seja, ideias centrais que conferem fundamento às normas, e dentre eles pode-se citar: prevenção, precaução, cooperação, reparação integral, proibição do retrocesso na proteção do meio ambiente, participação social, desenvolvimento sustentável (GRANZIERA, 2015; SIRVINSKAS, 2021).
Enquanto o princípio da prevenção impede o recuo das proteções ambientais, o princípio precaução evita que danos irreversíveis sejam causados ao meio ambiente, tendo em vista que nem sempre a reparação integral do dano causado é viável em termos técnicos e ou econômicos. Já o princípio participação garante um nível de proteção suficiente, graças a um controle cidadão permanente (BENJAMIN, 2012), e para isto sociedade deve ter acesso às informações ambientais oficiais, conforme garantido pela Lei 10.650/2003. Na participação, a sociedade organizada pode exigir do poder público medidas para solucionar questões ambientais, formulação de novas regras, e a atuação efetiva de órgãos e entidades de controle ambiental, conforme estruturado pela Lei nº 6.938/81 que instituiu o SISNAMA.
O princípio da cooperação pauta-se na ideia de que, por sua natureza, os recursos naturais não se submetem necessariamente às fronteiras políticas, cabendo aos Estados que os compartilham, atuar de forma coordenada para evitar a ocorrência de danos (GRANZIERA, 2015). Este princípio está consubstanciado no art.23 da CF/88 que dispõe sobre a competência comum da União, Estados Municípios e Distrito Federal para a proteção do meio ambiente.
Já o princípio da reparação integral, que está previsto na Lei nº 6.938/81 prevê que havendo degradação ambiental ou poluição, fica seu autor obrigado a reparar o dano ocorrido. Este princípio é complementado pela CF/88 ao estabelecer a regra de responsabilidade administrativa, civil e penal por danos ambientais (GRANZIERA, 2015)
O princípio da proibição do retrocesso na proteção do meio ambiente refere-se à manutenção das normas protetoras do meio ambiente, em obediência aos arts. 225 e 170 da CF/88. Considera-se retrocesso quando uma norma pode colocar em risco a proteção do direito fundamental. Este princípio encontra amparo em todos os demais princípios do Direito Ambiental. Já o princípio da sustentabilidade procura conciliar a proteção do meio ambiente com o desenvolvimento socioeconômico para a melhoria da qualidade de vida do homem atual e das futuras gerações. Pauta-se na utilização racional dos recursos naturais não renováveis (SIRVINSKAS, 2021).
É por meio dos princípios que se extraem os valores que darão sentido lógico às regras (GANZIERA, 2015). Esses princípios precisam ser respeitados, na medida que as regras são construídas, garantindo a continuidade da existência das sociedades humanas em meios ambientes saudáveis, o que diz respeito a um direito de terceira geração, assim como também o é, o direito à biodiversidade e ao desenvolvimento.
Nas últimas décadas, as normas relativas ao meio ambiente, tem sido editadas como uma decorrência das necessidades que a sociedade experimentou, e decidiu dar enfoque nas relações homem-natureza (BOBBIO, 1992).
O desenvolvimento também é um direito e necessidade da sociedade, porém ele implica em modificações no meio ambiente, e para que não haja danos significativos a CF/88 determina que este desenvolvimento seja sustentável, respeitando as normas do Direito Ambiental, tendo em vista, que os recursos naturais não são inesgotáveis. Os cuidados devem ser redobrados quando se outorga o exercício de uma atividade com potencial exaurimento dos recursos naturais envolvidos, chegando-se ao limite de restringi-la.
Para se atingir um desenvolvimento sustentável três pilares devem ser respeitados: a relevância social, a prudência ecológica e a viabilidade econômica (VILANI, 2013). Porém ameaças, de origem política, econômica e psicológicas podem levar a retrocessos normativos, e assim comprometer o desenvolvimento sustentável.
As ameaças políticas ocorrem quando há uma vontade demagógica de desregulamentação em matéria ambiental; as econômicas ocorrem quando uma crise econômica favorece o discurso da necessidade de reduzir as obrigações jurídicas ambientais, sob o falso argumento de que elas freiam o desenvolvimento e a luta contra a pobreza; e finalmente as ameaças psicológicas ocorrem quando o conjunto normativo ambiental é muito complexo e de difícil entendimento aos não especialistas, favorecendo um discurso em favor de uma redução das obrigações do Direito Ambiental (PRIEUR, 2012 citado por GANZIERA, 2015, p. 74).
3.2 Uma breve visão sobre o garimpo minerador no Brasil
Dentre as diversas atividades que impactam fortemente o meio ambiente, pode-se citar a atividade minerária. A partir do art. 225, § 2º da CF/88, depreende-se alguns aspectos que o legislador constituinte almejou deixar claro: -a legalidade da atividade mineradora; - sua importância para a economia, - o reconhecimento de seu poder de degradação ambiental.
Em 2020, três de cada quatro hectares minerados no Brasil estavam na Amazônia. O bioma concentra 72,5 % de toda a área, incluindo a mineração Industrial e o garimpo. São 149.393 ha; destes, 101.100 ha (67,6%) são de garimpo. (MAPBIOMAS, 2022).
As normas que regem a garimpagem são mais brandas do as que regem a mineração industrial, tanto no que diz respeito às análises para as outorgas, quanto à fiscalização. Garimpo e mineração industrial diferem também em relação ao fruto da exploração mineral. Enquanto produção de ferro (25,4%) e alumínio (25,3%) respondem por metade da área de mineração industrial, 86,1% da área garimpada está relacionada à extração de ouro. (MAPBIOMAS, 2022). De 2015 a 2020 o Brasil comercializou 229 ton. de ouro com indícios de ilegalidade, e mais da metade disto veio da Amazônia (O GLOBO, 2022).
O Código de Mineração prevê que pessoas físicas podem ter licença para garimpar em uma área de até 50 hectares, já as cooperativas, em áreas até 10.000 hectares.
Para especialistas como Suely Araújo, Especialista em Políticas Públicas – Observatório do Clima, é falsa a premissa da exploração rudimentar, em pequena escala, uma vez que os garimpeiros atuam dentro de um sistema em escala maior, com características e lucro não para os trabalhadores locais, mas para os empresários do setor. Os garimpeiros mesmo, em muitas situações trabalham em condições sub-humanas. Garimpos desativados há 10 anos ou mais, permanecem com suas áreas totalmente danificadas ambientalmente, sem nenhum sinal de recuperação (TV CULTURA, 2022).
Apesar das leis darem um tratamento diferenciado entre a mineração industrial e o garimpo, na prática isto inexiste, porque segundo especialistas, os garimpos já operam de forma industrial, empregando maquinário pesado e controladas por pessoas ou empresas que tem uma organização empresarial (O GLOBO, 2022).
Estudo realizado por Larissa Araújo Rodrigues, doutora em energia pela USP, demonstrou que grande parte dos garimpos brasileiros são ilegais, estando instalados em áreas não permitidas pela legislação. Assim, 40% dos garimpos brasileiros estão localizados dentro de unidades de conservação, onde é proibido garimpar, e outros 10% em terras indígenas, especialmente nas terras Kaiapós (O GLOBO, 2022). De 2010 a 2020, a área ocupada pelo garimpo dentro de terras indígenas cresceu 495%; no caso das unidades de conservação, o crescimento foi de 301% (MAPBIOMAS, 2022).
Para Rodrigues, embora a mineração corresponda a um dos setores básicos da economia, por ser realizada muitas vezes de modo informal e ilegal, causam danos ambientais e sociais severos. Há um enfraquecimento das instituições fiscalizadores como IBAMA e ANM, por falta de recursos. (MAPBIOMA, 2022 b).
Além de desmatarem a floresta, utilizam o mercúrio na extração do ouro, o que traz impactos para os rios da Amazônia e para as comunidades que vivem às suas margens. Estudo da Fiocruz realizado e parceira com WWF em 2021, encontrou contaminações por mercúrio em altos níveis (> 10.000 ppm) em populações próximas a garimpos na Amazônia e também em peixes daqueles locais (OBSERVATÓRIO DO MERCÚRIO NA AMAZÔNIA, 2022).
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DESACORDO DOS DECRETOS Nº 10.965/22 e Nº 10.966/22 COM OS PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL E OS POSSÍVEIS EFEITOS SOBRE A INTENSIFICAÇÃO DE DANOS AMBIENTAIS NA AMAZÔNIA
Os decretos em estudo, ao estimularem o garimpo artesanal como forma de desenvolvimento regional social e econômico, somado à determinação para que a ANM simplifique os critérios para a outorga destes garimpos e de aproveitamento das substâncias minerais, parecem não se atentar juridicamente para importantes princípios do Direito Ambiental.
Na construção dessas normas, tanto o princípio da prevenção quanto o da precaução foram pouco observados, pois quando os decretos determinam a simplificação dos critérios para o licenciamento e a diminuição do tempo de análise, isto impossibilita que a ANM execute o seu trabalho com qualidade, ou até mesmo impedem que os prazos possam ser cumpridos; o que leva a autorização tácita da atividade de lavra, mesmo sem se saber se o planejamento do garimpo atende os requisitos legalmente exigidos. Ou seja, passado sessenta dias, não tendo havido tempo hábil para a ANM realizar a análise de licenciamento, o garimpo passa assim mesmo a estar autorizado a funcionar. Consequentemente, nessas situações ficarão totalmente prejudicadas a prevenção e a precaução dos danos, que porventura o garimpo possa causar, e que muitas vezes são irremediáveis. Mesmo que a ANM possa se manifestar em momento posterior e oportuno, o dano já estará instalado.
Quando os dois princípios supracitados são ofendidos, automaticamente ocorre um comprometimento do princípio do desenvolvimento sustentável, uma vez que nem sempre haverá uma análise prévia para verificar se o planejamento daquele garimpo emprega medidas que sustentem um desenvolvimento sustentável. Isto é muito gravoso, por se tratar de um recurso natural que não se recompõe, ou seja que se esgota, quando não há um planejamento sério.
Embora nestes documentos normativos, o garimpo seja tratado como um promotor do desenvolvimento sustentável, fica difícil defender essa tese, por várias razões. Em geral o desmatamento é necessário, o minério não é renovável e sua exploração associada o uso de mercúrio, traz impactos diretos sobre o solo, rios e todo o Bioma Amazônia, e também sobre as comunidades que vivem às suas margens.
Considerando-se ainda que as normas cronologicamente anteriores aos decretos eram mais criteriosas e cuidadosas, conclui-se que havia uma maior proteção ao bem jurídico. Disto se depreende que há um retrocesso legislativo, o que ofende o princípio da proibição ao retrocesso das proteções ambientais, inclusive podendo estimular a exploração desenfreada de garimpos. Como alternativa para conter esses garimpos ilegais, o Procurador da República, Dr. Gustavo Kenner Alcântara entende que essas atividades sejam imediatamente suspensas, até que o Estado tenha capacidade de fiscalizar e então essas atividades ocorram em conformidade com a lei (MAPBIOMAS, 2022b).
Há que se considerar então que o programa COMAPE ao objetivar a formalização das atividades garimpeiras, acaba por criar um arcabouço institucional que permitirá que garimpos antes clandestinos, se legalizem com maiores facilidades e passem para o mercado formal, o que significaria uma legalização de operações ilegais. Isso terá acontecido por vontade demagógica de desregulamentação em matéria ambiental, ou por um descuido na construção das normas? Um outro estudo se faz necessário para responder a essa questão.
5 CONCLUSÃO
Embora o Ministério de Minas de Energia, alegue que as novas regras trazidas pelos decretos 10.966 e 10.965/ 2022 têm o objetivo de estimular as melhores práticas, formalizando os garimpos e promover saúde e dignidade às pessoas que atuam na atividade; após esse estudo jurídico podemos concluir que o resultado da efetivação dos decretos tende a ser a ampliação das áreas de garimpo, sem estudos prévios e com fiscalização diminuída, uma vez que reduzem prazos de estudos prévios, com um processo acelerado e simplificado para autorizar a exploração de novas áreas, prioritariamente na Amazônia.
Considerando-se ainda que as normas cronologicamente anteriores aos decretos eram mais criteriosas e cuidadosas, conclui-se que havia uma maior proteção ao bem jurídico. Disto se depreende que há um retrocesso legislativo, o que ofende o princípio da proibição ao retrocesso das proteções ambientais, inclusive podendo estimular a exploração desenfreada de garimpos. Somado a isso há hodiernamente um enfraquecimento, por falta de recursos, das instituições fiscalizadores como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e da Agência Nacional de Mineração (ANM), o que pode contribuir para a intensificação de garimpos ilegais.
Por fim, pode-se concluir que esses decretos têm o condão de atuar como medidas legislativas retrocessivas, pois ferem importantes princípios do direito ambiental, e retroagem em garantias consolidadas anteriormente pelo Direito Ambiental brasileiro, podendo gerar a intensificação de danos ambientais significativos na Amazônia.
Importante ressaltar que este estudo não esgota todas as discussões relativas aos efeitos destes decretos, mas sim teve o papel de contribuir na análise das prováveis consequências dessas normas legais, e dessa forma, alerta que a implantação das mesmas pode resultar em problemas irremediáveis para o meio ambiente e para a sociedade.
REFERÊNCIAS
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Discente do curso de Direito do Centro Universitário de Santa Fé do Sul, UNIFUNEC, Bolsista PIBIC .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Cristina Lacerda Soares Petrarolha. Seriam os Decretos nº10.965/22 e nº 10.966/22 instrumentos legalizadores de retrocessos no direito ambiental brasileiro? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 set 2023, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63256/seriam-os-decretos-n10-965-22-e-n-10-966-22-instrumentos-legalizadores-de-retrocessos-no-direito-ambiental-brasileiro. Acesso em: 21 nov 2024.
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