VICTÓRIA REIS EVANGELISTA FERREIRA DAMASCENO[1]
(coautora)
NATÁLIA MARRA
(orientadora)
RESUMO: No presente artigo verifica-se como objetivo principal analisar se o consentimento da vítima interfere ou não na tipificação do tráfico internacional de pessoas. Para que haja um melhor entendimento acerca do assunto, anteriormente será estudado o que abrange este crime e possíveis causas que o ensejam como, por exemplo: o contexto histórico, seu conceito, as mudanças que ocorreram na tipificação deste crime na legislação brasileira ao decorrer dos anos, os documentos e tratados internacionais existentes acerca do assunto por conta dos avanços dos Direitos Humanos, quais os perfis das vítimas, expondo, ao final, uma conclusão a respeito do que foi apresentado.
Palavras-chave: Tráfico internacional de pessoas; Direitos Humanos; Tráfico humano; Consentimento da vítima; Tipificação.
ABSTRACT: The main objective of this article is to analyze whether or not the victim's consent interferes with the definition of international human trafficking. In order to have a better understanding of the subject, we will first study what this crime encompasses and the possible causes that give rise to it, such as: the historical context, its concept, the changes that have occurred in the classification of this crime in Brazilian legislation over the years, the existing international documents and treaties on the subject due to advances in human rights, the profiles of the victims, and, at the end, a conclusion regarding what has been presented.
Keywords: International trafficking in persons; Human rights; Human trafficking; Consent of the victim; Classification.
Este artigo tem a finalidade de apresentar o que vem a ser o crime do tráfico internacional de pessoas, o contexto histórico, como se dá a tipicidade deste crime e se o consentimento da vítima interfere ou não no momento da configuração do crime, não visando esgotar todos os ramos que envolvem este assunto. O tráfico de pessoas é visto como uma das violações mais críticas dos direitos humanos, que alcança milhares de vítimas ao redor do mundo e que reduz a vida humana ao mero interesse pelo lucro, alcançando o mercado global, e devido a isto, países ao redor do mundo e organizações não governamentais trabalham em leis e se juntam, realizando tratados internacionais para tentar impedir este delito e apoiar e proteger as vítimas. (GLOBAL, 2021)
O tráfico de pessoas definido como um crime transnacional complexo (FAVALESSA; FONSECA; JACOB, 2023), também pode envolver o tráfico de órgãos, tecidos ou partes do corpo, a exploração do sexo e do trabalho, adoção ou casamento ilegal, etc. A ONU o define melhor no Protocolo de Palermo de 2003, desta forma, a escravidão e a exploração acabam sendo inerentes a prática do tráfico.
É um crime muito ligado a questões culturais, econômicas, na instabilidade política, em conflitos, etc., pois, as pessoas, fugindo de uma realidade desesperadora, buscam um consolo em outros lugares, o que pode ocorrer através de falsas promessas de uma vida melhor por parte de aliciadores fingindo serem boas pessoas. (GLOBAL, 2021).
O período mais marcante na história do Brasil envolvendo este ilícito, que na época não era tratado como um crime, mas como um ato corriqueiro que alimentava a economia global da época, foi no tempo Colonial que durou até o final do Império. Durante este período ocorria o tráfico de pessoas que eram tratados como objetos, sendo trazidos da África e levados não só para o Brasil, mas para outros países em navios negreiros com péssimas condições: não havia higiene, passavam fome e navegavam muito cheios, devido a isso, muitos escravos morriam no trajeto. (ARAÚJO, 2022).
A globalização potencializou o desenvolvimento tecnológico, havendo um aumento significativo no número de casos de tráfico de pessoas, já que o avanço da tecnologia proporciona aos traficantes atalhos para a prática do delito, permitindo, por exemplo, que os traficantes façam a transmissão ao vivo das vítimas sofrendo abusos a consumidores interessados no mundo todo, atraindo mais clientes e, consequentemente, tornando este mercado mais lucrativo (TAVARES, 2019). Com o crescimento de casos, aumenta-se a indagação que já existe há anos: se o consentimento da vítima é ou não importante para que haja a configuração da tipicidade do crime. Esse e os tópicos supracitados serão esclarecidos a seguir.
2. CONTEXTO HISTÓRICO E CONCEITO DO TRÁFICO DE PESSOAS
Constitui conhecimento público e notório o fato que desde os primórdios da humanidade o poder sempre fora exercido pelo mais forte em detrimento daquele menos favorecido, seja do ponto de vista físico, social ou cultural, de modo que, as raízes históricas da formação da sociedade, em diferentes localidades, remetem em sua maioria ao trabalho derivado de força escrava.
No Brasil, os contornos não diferem da realidade acima descrita, ante a predominância do trabalho baseado exclusivamente na servidão desde a período colonial até os idos da Lei Áurea, cuja data remonta a 13 de maio de 1988, a qual declarou extinta a escravidão na sociedade brasileira.
Nesse aspecto, percebe-se que o tráfico de pessoas no Brasil detém suporte histórico e remonta ao período escravocrata, o qual por certo, possui influência determinante até os dias atuais, seja na visão enraizada das vítimas enquanto objeto passível de comercialização, seja na forma como a prática se constrói, consoante expõe Thais de Camargos Rodrigues na obra Tráfico Internacional de Pessoas para Exploração Sexual (RODRIGUES, 2013, p.56):
Havia os senhores que enfeitavam as negras com joias de ouro, rendas e roupas finas e as ofereciam aos clientes. Outros obrigavam as negras, muitas delas ainda crianças, a se oferecer nas ruas e nos portos, onde desembarcavam marinheiros com toda espécie de moléstia, sobretudo sífilis. Havia ainda as que ficavam expostas nas janelas, seminuas, nas zonas de meretrício. (RODRIGUES, 2013, p.56).
Dessa forma, extrai-se que os direitos e garantias fundamentais inerentes a todos os indivíduos, sobretudo a partir do enfoque da dignidade da pessoa humana foram alvo, no decorrer de séculos, de patentes ofensas, as quais não se restringiram tão somente as pessoas negras, circunstância evidente ante a magnitude da problemática tratada no presente estudo.
No entanto, em que pese a amplidão da problemática, tem-se que os primeiros debates sobre a temática retroagem ao ano de 1885 no Congresso Penitenciário de Paris, todavia, a primeira medida efetiva surge apenas em 1904 com o Acordo Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, o qual fora promulgado pelo Brasil, acompanhado da Convenção Internacional Relativa à Repressão do Tráfico de Escravas Brancas datada de 1910.
Em ambas as oportunidades causa estranheza, no entanto, a proteção conferida tão somente às mulheres e posteriormente às crianças, enquanto camada vulnerável, o que por certo, atraiu lacunas quanto as medidas adotadas a todas as eventuais vítimas, sem qualquer distinção, razão pela qual no ano de 2000 surge o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime Organizado Transnacional, relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas – vastamente anunciado como o Protocolo de Palermo, o qual foi devidamente promulgado no ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto n. 5.017, de 12/03/2004.
A partir de então, são estabelecidos os contornos resolutos quanto a definição do tráfico de pessoas, apontado no referido protocolo da seguinte forma:
Recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sob a outra pessoa, para o propósito da exploração (...) inclui, no mínimo, a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos (NAÇÕES UNIDAS, 2000).
Nessa toada, observa-se que o Brasil marchou a passos largos quanto a necessidade de regramento específico sobre o assunto, momento rompido pela Lei 13.344 de 2016, responsável pela redação do art. 149-A do Código Penal, a qual disciplina que incorre nas penas previstos no referido artigo, aquele que:
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual. (BRASIL, 1940)
Desta feita imperioso se faz o estudo do referido tipo penal e suas especificidades, consoante passa-se a expor.
2.1 Análise do Crime e sua Tipicidade
A definição dada pela Organização das Nações Unidas (ONU), no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, Protocolo de Palermo, em seu artigo 3º é:
Por “tráfico de pessoas” entende-se” o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos. (BRASIL, 2004)
Para que se possa analisar este crime é necessário fazer uma investigação do que cerca este assunto. Para começar, é essencial averiguar as causas, ou seja, o que motiva isso a acontecer. Como já fora dito, vai desde circunstâncias sociais e culturais, até ocasiões de guerras, corrupção e migrações forçadas, históricas, entre outras. Tudo o que pode levar as vítimas a procurar chances melhores de vida, podendo levar muitas a caírem em golpes.
Outro ponto a se observar é a respeito de como os aliciadores fazem o tráfico acontecer, isto é, os seus métodos que, devido a globalização, avançaram muito e vem evoluindo cada vez mais, tornando-se mais recorrente. Eles utilizam de documentos falsos para que suas vítimas consigam sair das fronteiras com identidades diferentes ou mesmo esperam até que a vítima chegue até o local do cárcere para só então eles reterem os documentos dela para que ela fique impossibilitada de sair do local, articulam mentiras para enganar suas vítimas (seja por promessas de emprego ou de estudo, sites de namoro, etc.), dívidas por serviço, etc. Por ser um crime mais oculto e com diversas formas de ser praticado, é mais difícil das autoridades o detectarem e o combaterem, sendo de suma importância a cooperação internacional e a conscientização da sociedade. (ANJOS; PERES; PERES, 2022).
Segundo a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), mesmo que o narcotráfico continue sendo o mercado ilícito mais lucrativo, o crescimento que o comércio ilícito de pessoas está apresentando se mostra muito preocupante, podendo chegar a apresentar tanto dinheiro quanto o comércio de drogas e armas mundialmente, sendo um crime que afeta cerca de 2,5 milhões de pessoas e movimenta aproximadamente 32 bilhões de dólares por ano, segundo a Organização das Nações Unidas (LANGER, 2015). Entretanto, por ser um crime obscuro e difícil de ser descoberto é complicado estabelecer números exatos. O que se pode afirmar é que este delito está presente em todos os países.
Já em relação as vítimas, qualquer um pode ser, porém existem perfis mais vulneráveis, sendo estes mais recorrentes no crime de tráfico de pessoas como, por exemplo: mulheres, crianças, migrantes e refugiados, desempregados, grupos étnicos minoritários, pessoas em situação de pobreza ou situadas em áreas rurais e LGBTQ+. A vulnerabilidade da vítima é fator primordial e que chama bastante atenção dos aliciadores, sendo por isso que são mais habituais como vítimas. (TAVARES, 2019).
O tráfico de pessoas no Brasil é tipificado conforme o artigo 149-A do Código Penal, tratando-se de um crime de tipo misto alternativo ou crime de ação múltipla, podendo ser praticado mediante uma conduta do dispositivo ou por mais de uma conduta ao mesmo tempo, ou seja, quando em uma mesma situação o agente pratica uma ou mais de uma das oito condutas previstas pelos verbos núcleos previstas no artigo supracitado, gera somente um delito, sendo condutas alternativas: agenciar (ser representante de alguém); aliciar (seduzir ou atrair alguém para alguma coisa); recrutar (atrair pessoas, formando um grupo, para determinada finalidade); transportar (levar alguém ou alguma coisa de um lugar para outro, se usando de algum meio de transporte); transferir (levar algo o alguém de um lugar para outro); comprar (adquirir algo através de um pagamento); alojar (dar abrigo a alguém); acolher (proporcionar hospedagem). (NUCCI, 2020, p. 965).
Tanto o sujeito ativo quanto o sujeito passivo podem ser qualquer pessoa, não exigindo qualquer característica específica dos dois, configurando crime comum, e, tocante a liberdade individual (bem jurídico protegido pelo art. 149-A do CP) consiste em um bem jurídico indisponível, isto é, o consentimento da vítima não interfere na configuração da tipicidade da infração. Mas essa questão do consentimento da vítima será abordada com mais enfoque no próximo tópico.
O agente tem que ter a intenção (elemento subjetivo) de restringir a liberdade da vítima, independentemente de quais meios irá utilizar para que isso seja possível, realizando qualquer das oito condutas previstas pelos verbos núcleos alojados no caput - agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher – com o fim que esteja descrito em qualquer dos cinco incisos, não será necessário que as vítimas sejam exploradas ou não, pois o crime é formal, se concretizando com apenas com a conduta nuclear. Contudo, é necessário que a pessoa que está praticando tais atos tenha a intenção específica contida em um dos cinco incisos do dispositivo penal. Se não houver, o tipo penal não se amolda, podendo se encaixar em qualquer outro tipo. (BITENCOURT, 2016).
Em 2022 uma paranaense escapou de um esquema de prostituição internacional, em que ela foi atraída pelos aliciadores através de promessas de emprego ofertadas por uma agência de empregos para trabalhar na Espanha. A vítima, que não quis se identificar, disse que foi convidada para trabalhar de baby sitter em uma cafeteria, mas quando ela chegou ao local, viu que não era nada do que falaram. A mulher conseguiu escapar e voltou para o Brasil sem precisar se prostituir, mas vive com traumas desde que voltou ao país. (BUENO; BITENCOURT, 2022)
Quanto ao âmbito internacional existem alguns exemplos de tratados e convenções de proteção às vítimas do tráfico de pessoas, como: Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (também conhecida como Convenção de Palermo), Convenção sobre os Direitos das Crianças, Convenção Europeia contra o Tráfico de Seres Humanos, Protocolo da União Africana sobre o Tráfico de Pessoas, entre outros. Todavia o que mais possui destaque internacionalmente é o Protocolo de Palermo, conhecido também como Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Se um país quiser ser signatário do Protocolo de Palermo deverá também ser signatário da Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, porque os dois documentos deverão ser interpretados de maneira conjunta. (CHAMARELLI, 2011). O Brasil ratificou o Protocolo em 12 de março de 2004, entretanto, mesmo com a ratificação, o Código Penal brasileiro ainda possuía uma lacuna no tocante ao tráfico internacional de pessoas. (PISCITELLI, 2016).
Foi apenas com a promulgação da Lei 13.344 em 2016 que foi realizada uma profunda mudança no ordenamento jurídico brasileiro quanto ao tráfico humano. Antes, o tráfico de pessoas era tutelado no Código Penal brasileiro apenas pelos artigos 231 e 231-A, porém se referia ao tráfico que objetivava somente a exploração sexual. De acordo com Nucci, esses dispositivos já se encontravam ultrapassados, pois além deles preverem apenas uma modalidade das diversas que o crime realmente abarca (exploração sexual, trabalho forçado, tráfico de órgãos ou de tecidos, adoção ou casamento ilegal, exploração infantil), permitiam que o termo “prostituição” fosse usado como sinônimo de exploração sexual, o que não é adequado, pois as pessoas que seguem para o exterior com o intuito de se prostituírem não são vítimas do tráfico humano, já que vão tendo consciência de todo o processo envolvido e mesmo assim consentem com isso. (NUCCI, 2020).
Diante do exposto, se mostra evidente que o crime do tráfico de pessoas detém suas origens e práticas concebidas em um passado distante, que foram sendo moldadas e amplificadas pela tecnologia e pela globalização, tendo como suas vítimas, na maior parte das vezes, pessoas em situação de vulnerabilidade, que costumam desconhecer o perigo que correm. Com isso, a lei busca estar se inovando para abarcar esses casos e proteger as vítimas. Sendo assim, pessoas que, por vontade própria, consentem em participar deste tipo de conduta, estariam apresentando algum tipo de elemento relevante para a descaracterização do crime de tráfico? Até que ponto o tráfico deixa de ser considerado uma conduta criminosa e passa a ser atípica quanto ao consentimento da vítima? Mostra-se a importância da análise do consentimento da vítima diante do referido crime, que se segue no próximo capítulo.
3.O CONSENTIMENTO NA JURISDIÇÃO BRASILEIRA
Segundo Laura Lowenkron, duas coisas definem o consentimento: o ato de vontade e a total capacidade de exercer livremente a própria vontade. Portanto, depreende o conceito de autonomia individual, este que tem como preceito um autodomínio, ou seja, decisões que sejam livres de coações de qualquer tipo, partindo de uma pessoa que tenha concordado voluntariamente, exercendo seu livre arbítrio, isto é, ser senhor de si mesmo. Portanto, o consentimento só seria válido para as pessoas que fossem verdadeiramente livres, autônomas e racionais. (LOWENKRON, 2015). Para Anjos, poder não é o mesmo que autonomia, mas autonomia é uma expressão de poder, que na modernidade é muito valorizada. (ANJOS, 2006, p. 177).
Para Raylla, a autonomia veio da expressão grega autos, que pode ser traduzida por “lei” ou “governo”, o que indica uma noção de “autogoverno”, isto é, a habilidade da pessoa se reger de acordo com o que ela acha que seja melhor para si. Este seria o princípio da autonomia de acordo com autores da época, sendo utilizado como base moral em criação de políticas públicas. (ALBUQUERQUE, 2016)
Mas há situações em que essa autonomia na capacidade pode ser descaracterizada, invalidando o consentimento. São casos em que há a presença da vulnerabilidade. No artigo 217-A do Código Penal brasileiro incorrerá em crime se praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos, mesmo que haja consentimento desse menor. Pode-se concluir que mesmo com a permissão do sujeito menor de idade, esse consentimento não terá importância. Tanto a menoridade, quanto a doença mental ou a incapacidade de oferecer resistência são consideradas como tipos de vulnerabilidade, esta que é uma incapacidade natural que impede o discernimento (capacidade de razão). Assim, para que seja feita uma avaliação se o sujeito possui ou não capacidade, esta não vai depender apenas de uma análise da idade que a pessoa possui, mas em um conjunto de atributos que a constituem. (LOWENKRON, 2015).
Nessa ordem de ideias estabelecidas, sobretudo no que concerne ao profissional do sexo, que, voluntariamente, se dispõe a residir em outro país, é que se encontra a fundamental análise do consentimento da vítima no crime previsto no art. 149-A que, após mudanças que ocorreram através da nova legislação, a vontade da vítima, através de seu consentimento em determinados situações, passou a se expressar de uma maneira mais relevante.
Isso pois, trata-se de circunstância capaz de afastar a incidência das sanções previstas no referido tipo, já que, aqui não há qualquer atividade ilícita, mudança legislativa atual e necessária quanto a devida definição e as hipóteses que abarcam o tráfico internacional de pessoas, consoante entendimento disserta Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2020, p.965):
O tráfico de pessoas dá-se em todas as hipóteses descritas nos cinco incisos do novel artigo, além do que também criticávamos o uso do termo prostituição, como meta do traficante e da vítima. Foi alterado para a forma correta, substituindo prostituição por exploração sexual. Nem sempre a prostituição é uma modalidade de exploração, tendo em vista a liberdade sexual das pessoas, quando adultas e praticantes de atos sexuais consentidos. Ademais, a prostituição individualizada não é crime, no Brasil, de modo que muitas mulheres (e homens) seguem para o exterior, justamente com esse propósito e não são vítimas de traficante algum. Em suma, a alteração é bem-vinda e, em nosso entendimento, quanto à parte penal, tecnicamente bem feita.
Dessa forma, o que se percebe foi um verdadeiro e cristalino avanço legislativo no que concerne às variadas formas de trabalho existentes desde a antiguidade e, portanto, a exclusão da conduta típica nas hipóteses as quais se tratar de pessoa com idade superior a 18 (dezoito) anos, portanto, capaz, sendo o consentimento tão somente afastado quando restar evidente e suficientemente demonstrado que este ocorreu mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, interesse máximo do direito penal.
Isso porque, as condutas descritas no art.149-A sobressaem quanto ao consentimento, estabelecendo uma verdadeira linha tênue entre a conduta reprovável e aquela despenalizada.
Feito tal apontamento, destaca-se a partir das inovações trazidas pela Lei 13.344 de 2016, o impasse levado ao Poder Judiciário no que tange a caracterização das condutas aptas a atraírem as sanções impostas pela norma, em especial, no que concerne a eventuais depoimentos de vítimas na mesma situação e/ou inseridas em outras redes de tráfico.
Além disso, Rogério Greco elenca três requisitos fundamentais, em se tratando de causa supralegal, para caracterização de exclusão da tipicidade:
1 - que o ofendido tenha capacidade para consentir;
2 - que o bem sobre o qual recaia a conduta do agente seja disponível;
3- que o consentimento tenha sido dado anteriormente ou pelo menos uma relação de simultaneidade à conduta do agente.
Rogério Greco (GRECO, 2016, p. 478) fala em menção às lições de Lélio Braga Calhau (apud, LÉLIO BRAGA CALHAU, Vítima e direito penal, p. 81):
O Código Penal Brasileiro não incluiu o consentimento do ofendido como causa de exclusão do crime. Mesmo assim, deve o mesmo ser reputado como uma cláusula supralegal, haja vista que o legislador não poderia prever todas as mutações das condições materiais de exclusão, sendo que a criação de novas causas de justificação, ainda não elevadas ao direito positivo, corrobora para a aplicação da justiça material.
Os tribunais superiores interpretam e analisam de diversas formas quanto ao consentimento e as provas que caracterizam a tipicidade do crime. Porém, em geral, é possível observar que as jurisprudências dos tribunais qualificam a fraude, ameaça, uso da força, coação, rapto, engano ou abuso de vulnerabilidade como elementos essenciais para avaliarem a configuração do crime de tráfico internacional de pessoas. (SILVA, 2023)
Os tribunais também levam em conta se as vítimas foram ludibriadas quanto às condições de trabalho, remuneração, entre outros aspectos relevantes, e se essas informações fraudulentas foram determinantes para sua decisão de consentir em serem traficadas. (SILVA, 2023)
O julgado abaixo evidencia que não foi constituído crime, uma vez que as vítimas possuíam liberdade sexual e não sofreram nenhum tipo de violência ou fraude para saírem do país.
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MULHERES. ULTRA-ATIVIDADE DO ART. 231 DO CP E ADEQUADA INTERPRETAÇÃO DO ART. 149-A DO CP. LEI N. 11.344/16. ABOLITIO CRIMINIS. 1. Após o advento da Lei n. 13344/16, somente haverá tráfico de pessoas com a finalidade de exploração sexual, em se tratando de vítima maior de 18 anos, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual. 2. A prostituição, nem sempre, é uma modalidade de exploração, tendo em vista a liberdade sexual das pessoas, quando adultas e praticantes de atos sexuais consentidos. No Brasil, a prostituição individualizada não é crime e muitas pessoas seguem para o exterior justamente com esse propósito, sem que sejam vítimas de traficante algum. 3. No caso, o tribunal a quo entendeu que as supostas vítimas saíram voluntariamente do país, manifestando consentimento de forma livre de opressão ou de abuso de vulnerabilidade (violência, grave ameaça, fraude, coação e abuso). Concluir de forma diversa implica exame aprofundado do material fático-probatório, inviável em recurso especial, a teor da Súmula n. 7/STJ. Jurisprudência/STJ. (BRASIL, 2020).
Portanto, uma pessoa adulta e capaz que consente em se associar a prostituição não estaria sendo forçada e, portanto, o tráfico humano não seria tipificado neste caso.
Tocante as vítimas menores de idade, não há previsão expressa tocante ao consentimento no tráfico humano, mas elas não ficam fora da proteção. A vulnerabilidade estaria configurada tanto pelo fato de as vítimas serem menores de idade, por não possuírem o discernimento completo para livremente decidirem suas vidas, como também se elas estiverem dentro das hipóteses já reconhecidas em que, mesmo havendo o consentimento ele não será relevante, estando caracterizado o crime do tráfico de pessoas. (SILVA, 2023)
PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS E QUADRILHA. ART. 231 E 288 DO CÓDIGO PENAL. CONDUTA PRATICADA NA VIGÊNCIA DA LEI 11.106/2005. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.344/2016.VÍTIMAS MENORES DE IDADE. PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. ART. 227 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AUTORIDA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. 1. A Lei 13.344/2016 expressamente revogou os artigos 231 e 231-A do Código Penal e introduziu no mesmo diploma normativo o artigo 149-A, estabelecendo nova tipologia para o crime de tráfico de pessoas, cuja conduta ainda permanece criminalizada pela referida lei, uma vez que o novo tipo penal prevê todas as hipóteses anteriores, aplicando-se, no caso, o princípio da continuidade normativo típica da conduta. 2. À luz do Protocolo de Palermo e da Lei 13.344/16, somente há tráfico de pessoas, se presentes as ações, meios e finalidades nele descritas. Por conseguinte, a vontade da vítima maior de 18 anos apenas será desconsiderada, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual. 3. Com relação ao elemento normativo 'fraude' ou 'abuso' - sobretudo o 'abuso' - é importante assinalar que as vítimas eram menores de idade (Suellen tinha apenas 13 anos e Priscila tinha 16. Muito embora a atual lei não faça mais menção ao fato de ser essa vulnerabilidade presumida, não há dúvidas de ainda que as circunstâncias relacionadas à fraude (engodo) para levar as meninas para o Oiapoque/AP, não fossem convincentes, remanesceria a presunção de abuso das menores. 4. O abuso, no caso, nasce tão somente da idade das vítimas, mas também, sem dúvida, de sua condição social. Trata-se de adolescentes sem instrução ou com baixa instrução, residentes em áreas de pouco atendimento social e com grande ocorrência de prostituição. Não se pode olvidar o fato de que crianças e adolescentes são vítimas sensíveis e, não raro, não têm conhecimento pleno das consequências da sua ação. 5. O aparente consentimento das menores sobre a natureza das atividades que iriam desempenhar no garimpo, ou sua conduta de familiaridade com termos chulos e de conotação sexual não as coloca fora da proteção constitucional (art. 227 da Constituição Federal) que o ordenamento jurídico confere à criança e adolescente. 6. Apelação não provida. (DISTRITO FEDERAL, 2020).
E é a partir disso que se ilustra a problemática a ser trabalhada no presente estudo, vez que, se relaciona com o imbróglio enfrentado a nível mundial, de tal forma que imprescindível torna-se a reflexão e análise do artigo inserido no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente, as formas forjadas de consentimento baseadas, em sua maioria, em um futuro esperançoso imaginado pelas vítimas, seja a partir da remuneração elevada, bem como da ascensão social, fatores dominantes para a permanência e dificultosa erradicação do imbróglio na atualidade.
3.1 O Consentimento no Parâmetro Internacional
Como já foi dito, o tráfico de pessoas é uma violação aos direitos humanos, que diminui as pessoas a meros objetos para comércio. Por ser um crime que evolui e se torna mais complexo a cada dia, para combate-lo de uma forma mais eficaz, países com objetivos em comum tiveram que se unir e adequar suas legislações aos parâmetros internacionais. Há casos em que vários Estados são envolvidos pois, vítimas não são apenas transferidas dentro de um mesmo território, mas também de um país para outro e, se não houver uma união, a solução se tornará mais dificultosa. (FAVALESSA, FONSECA, JACOB, 2023)
O Brasil, por exemplo, fez mudanças na legislação brasileira para se moldar a norma internacional ao que concerne no tráfico humano. Há uma única diferença entre os dois e é em relação a como eles abordam a questão do consentimento da vítima em seus textos.
O Protocolo de Palermo, em seu artigo 3º, deixa expressamente dito que se a vítima do tráfico de pessoas tiver sido coagida a consentir através de ameaça, ou ao uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios, seu consentimento será considerado inválido.
Já o artigo 149-A do Código Penal não aborda a temática de forma transparente, se limitando apenas aos verbos núcleos no caput, as finalidades nos incisos, e as causas de aumento e de diminuição da pena nos parágrafos. Mas mesmo não havendo essa previsão de forma expressa, existe o entendimento dos Tribunais e da Lei 13.344/16 (Lei que inseriu no CP o art. 149-A) de que o consentimento só será irrelevante quando conquistado através de ameaça, violência física ou moral, sequestro, fraude, engano e abuso. (BARBOSA; BORGES, 2022).
Todavia, mesmo com essa diferença no texto das duas Leis, elas chegam a um mesmo entendimento em relação a questão do consentimento. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses supracitadas, não haverá vício de consentimento, ou seja, este será considerado e não ocorrerá a caracterização do crime do tráfico de pessoas.
Um exemplo de vício de consentimento previamente citado é o caso de uma vítima de 23 anos, em uma situação de extrema pobreza, receber falsas promessas de uma vida melhor em outro país, feitas por um homem. A vítima então decide ir voluntariamente, porém, quando chega ao local percebe que tudo não passava de uma mentira. O consentimento neste caso não seria considerado por ter sido obtido através de situação de vulnerabilidade, configurando o crime de tráfico internacional humano.
Outra situação seria uma pessoa de 23 anos, por livre e espontânea vontade, também estando em uma situação de vulnerabilidade, se submeter ao tráfico internacional de pessoas para praticar prostituição em outro país, estando sob o controle de uma organização criminosa, com o intuito de mudar de vida. O consentimento neste caso seria considerado, visto que nenhuma situação supracitada se enquadraria neste caso e, por consequência, o tráfico humano não estaria tipificado. (BARBOSA; BORGES, 2022).
O tráfico internacional humano não é uma novidade e vem se aperfeiçoando com o tempo e com o avanço da tecnologia, atingindo milhares de vítimas ao redor do mundo, indo de encontro aos direitos humanos fundamentais mínimos que todo ser humano tem direito.
Todavia, mesmo havendo a criação de novos meios para a prática do tráfico de pessoas com o passar dos anos, também houve a origem de novos pensamentos e novas formas de confronto e, com isso, passou-se a ter a repressão e prevenção deste crime, através de uma cooperação em âmbito internacional dos países, com assinatura de tratados internacionais, estabelecimento de diretrizes e proteção às vítimas, a conscientização da sociedade sobre o assunto, desenvolvimento e criação de leis eficazes, como foi com o art. 149-A do Código Penal brasileiro, entre outros. Conclui-se quanto a isto que mesmo com este aparato o tráfico humano ainda permanecerá gerando uma grande lucratividade para quem o pratica, devido à dificuldade que ainda existe ao enfrentamento frente aos seus diversos meios de funcionamento, o tornando um problema global bastante desafiador para as autoridades.
Concernente ao consentimento da vítima, quanto ao previsto pelo Código Penal brasileiro, fica claro que ele não prevê expressamente a questão do consentimento, deixando a cargo das decisões dos Tribunais, o que difere da norma internacional, que prevê este assunto expressamente. Porém, possuem o mesmo entendimento: o consentimento da vítima maior e capaz excluirá o crime, só não sendo relevante para a tipificação do tráfico internacional de pessoas quando obtido através das situações expostas, as quais, pela ameaça, pelo uso da força, pela coação, pelo rapto, pela fraude, pelo engano, pelo abuso de autoridade, por situação de vulnerabilidade ou pela entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios. Ainda é importante salientar que a saída para o exterior com a intenção de se prostituir, por si só, não transforma a pessoa em uma vítima, visto que ela possui sua liberdade individual e, o entendimento dos Tribunais acerca desse assunto é que haveria o livre consentimento nestes casos. Deste modo, cada caso deve ser avaliado de acordo com suas particularidades para que se chegue a melhor conclusão possível, atendendo as necessidades e protegendo os direitos de todos os envolvidos.
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Graduanda em Direito pelo Centro Universitário UNA Unidade Linha Verde
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EVANGELISTA, Gabriela Gonçalves. Tráfico internacional de pessoas: Consentimento da vítima e tipicidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 nov 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63795/trfico-internacional-de-pessoas-consentimento-da-vtima-e-tipicidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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