RESUMO: Por expressa autorização constitucional, extraída da interpretação conjunta do artigo 102, I, “a” com o artigo 125, § 2º, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), é plenamente possível que, quando determinado ato normativo estadual viole, ao mesmo tempo, a Constituição Federal e a Constituição Estadual, sejam simultaneamente ajuizadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), uma perante o Supremo Tribunal Federal (STF) e outra perante o Tribunal de Justiça (TJ) local. Esse fenômeno é doutrinariamente conhecido como “simultaneus processus”, e o alcance dos efeitos entre as decisões é fruto de discussão doutrinária e jurisprudencial.
Palavras-Chave: “Simultaneus Processus”. Coexistência de ADIs. Possibilidade. Vinculação e Efeitos.
ABSTRACT: By express constitutional authorization, extracted from the joint interpretation of article 102, I, “a” with article 125, § 2, both of the Constitution of the Federative Republic of Brazil (CRFB/1988), it is fully possible that, when a certain state normative act violates, at the same time, the Federal Constitution and the State Constitution, two Direct Unconstitutionality Actions (ADIs) are simultaneously filed, one before the Federal Supreme Court (STF) and the other before the local Court of Justice (TJ). This phenomenon is doctrinally known as “simultaneus processus”, and the scope of the effects between decisions is the result of doctrinal and jurisprudential discussion.
Keywords: “Simultaneus Processus”. Coexistence of ADIs. Possibility. Linking and Effects.
1.INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) estabelece, em seu artigo 102, I, “a” (redação dada pela EC nº 3/1993), que compete ao STF – na qualidade de “Guardião da Constituição -, processar e julgar, originariamente: “a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;”.
Da mesma forma, o texto constitucional, ao dispor acerca da organização da Justiça no âmbito estadual, disciplina em seu artigo 125, §2º que “Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.”.
Assim, da interpretação sistemática de ambos os dispositivos, resta clara a exegese de que, se determinado ato normativo estadual violar, a um só tempo, os textos da Constituição Federal e da Constituição do Estado-Membro respectivo, será possível o ajuizamento simultâneo de duas ações diretas de inconstitucionalidade, uma perante o STF, que terá como parâmetro a Constituição Federal, e a outra perante o Tribunal de Justiça Estadual, cujo parâmetro será a Constituição daquele Estado, ocasião em que ambas as Cortes terão competência para a análise da constitucionalidade da norma pelo controle concentrado.
2. “SIMULTANEUS PROCESSUS” E O ENTENDIMENTO DO STF
Conforme já se pôde inferir do que dito acima, o fenômeno do “Simultaneus Processus” pode ser conceituado como a possibilidade de se admitir, no controle concentrado de constitucionalidade, o processamento simultâneo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, uma no Supremo Tribunal Federal e outra no TJ estadual, ambas impugnando o mesmo dispositivo.
O STF não admite este fenômeno e entende que, neste caso, para evitar a existência de decisões contraditórias, o procedimento a ser adotado é a suspensão da ADI em âmbito estadual até o desfecho do caso no Supremo, já que a decisão deste influenciará na persistência ou não da ADI local.
Desta forma, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, a ação direta no âmbito estadual ficará suspensa, aguardando o julgamento da ADI ajuizada perante a aquela Corte.
É isso que extrai do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF nº 190, senão vejamos:
(...) A ocorrência de coexistência de jurisdições constitucionais estadual e nacional configura a hipótese de suspensão prejudicial do processo de controle normativo abstrato instaurado perante o Tribunal de Justiça local. (...)
STF. Plenário. ADPF 190, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/09/2016.
Assim, se o STF, ao concluir o julgamento da ADI, entender que a norma estadual impugnada é inconstitucional por violar o texto da Constituição Federal, a representação de inconstitucionalidade estadual deverá ser extinta sem resolução do mérito, em razão da perda superveniente do interesse de agir - perda do objeto. Deveras, se o STF decide que a norma estadual viola a Constituição Federal, o efeito de tal decisão é a imediata expurgação (retirada) da norma do ordenamento jurídico, de forma que não mais se fará necessária qualquer manifestação do Tribunal de Justiça acerca da norma.
Todavia, se o STF entender que a norma estadual impugnada é constitucional – não viola a Constituição Federal -, o Tribunal de Justiça poderá prosseguir com o conhecimento e julgamento da ADI estadual e, inclusive, considerar a norma inconstitucional e retirar a norma do ordenamento. Note-se que, aqui, não há contradição entre as decisões do STF e do TJ local, tendo em vista que a análise da norma objeto se dará com fundamento em parâmetro diverso, qual seja a Constituição do Estado Membro.
03. COEXISTÊNCIA DE ADI NO TJ E ADI NO STF, COM INDEVIDO JULGAMENTO DA DAQUELA EM PRIMEIRO LUGAR
Traçadas as premissas a serem seguidas quando da existência de ADI no STF e de representação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça, ambas tendo por objeto a mesma norma estadual, o estudo do “simultaneus processus” ganhou novos contornos em razão do que decidido pelo STF, em 2018, no julgamento da ADI 3659/AM.
No caso, o Estado do Amazonas promulgou a Lei Estadual nº 2.778/2002 que, ao criar o cargo de “administrador público” no âmbito daquela unidade federativa, estabeleceu, em seu artigo 3º, como requisito para provimento no cargo, que o interessado fosse graduado “em Curso de Administração Pública mantida por Instituição Pública de Ensino Superior, credenciada no Estado do Amazonas”.
Pois bem, ao restringir o provimento dos cargos, de forma exclusiva, aos graduados em instituição pública credenciada pelo Estado do Amazonas, a legislação estadual, indubitavelmente, afrontou diversos preceitos constitucionais, notadamente, o Princípio da Igualdade, da Razoabilidade e da vedação ao tratamento distinto entre brasileiros.
Por tais razões, o Procurador-Geral de Justiça do Estado do Amazonas ajuizou representação de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça, alegando que a lei violaria a Constituição Estadual.
Da mesma forma, o Procurador-Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, perante o STF, argumentando que a previsão ofenderia a Constituição Federal.
Ocorre que, ao invés de suspender a representação de inconstitucionalidade até o julgamento da ADI pelo STF, o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, de forma contrária às balizas fixadas na ADPF nº 190, procedeu com o julgamento pela procedência dos pedidos daquela e declarou a inconstitucional o dispositivo da Lei Estadual, com fundamento na violação do princípio da igualdade, norma de reprodução obrigatória expressa tanto no art. 3º da Constituição do Estado do Amazonas como no artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988.
Diante disto, o Supremo Tribunal Federal, em decisão paradigmática, decidiu que:
Coexistindo duas ações diretas de inconstitucionalidade, uma ajuizada perante o tribunal de justiça local e outra perante o STF, o julgamento da primeira – estadual – somente prejudica o da segunda – do STF – se preenchidas duas condições cumulativas:
1) se a decisão do Tribunal de Justiça for pela procedência da ação e
2) se a inconstitucionalidade for por incompatibilidade com preceito da Constituição do Estado sem correspondência na Constituição Federal. Caso o parâmetro do controle de constitucionalidade tenha correspondência na Constituição Federal, subsiste a jurisdição do STF para o controle abstrato de constitucionalidade.
STF. Plenário. ADI 3659/AM, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 13/12/2018 (Info 927).
Em síntese, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, mesmo diante do fato de já haver a norma sido expurgada do ordenamento pela decisão do TJAM, não seria admissível, in casu, a extinção da ADI – cujo fundamento era a violação à preceito da Constituição Federal – pela perda superveniente do objeto.
4.CONCLUSÃO
Por tudo o que exposto acima, conclui-se que, em coexistindo duas ações cujo objeto seja a declaração de inconstitucionalidade de norma estadual (simultaneus processus), uma ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, cujo parâmetro será a Constituição da República Federativa do Brasil, e a outra perante o Tribunal de Justiça Estadual, com fundamento na violação de norma de reprodução obrigatória da Constituição Estadual, deverá a Corte Estadual suspender o andamento da representação de inconstitucionalidade de sua competência até o término do julgamento da ADI no Supremo.
Não obstante, caso o Tribunal Estadual não proceda com a devida suspensão, a competência do Supremo Tribunal Federal não será afetada em razão de eventual decisão pela procedência da representação estadual. Em outras palavras, não haverá prejudicialidade no conhecimento e julgamento da ADI pelo STF, mesmo porque não se poderia admitir que a Corte Estadual, com seu indevido proceder, detivesse a última palavra acerca da interpretação da Constituição Federal.
5.REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Bernardo Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 14ª Edição. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 18ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2023.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2019.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
Pós-Graduação em Direito Público pela Universidade Anhanguera - UNIDERP; Graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió - CESMAC. Assessor Judicial no TJAL. Professor de Direito na SEUNE – Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste LTDA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, DIOGO BARROS TORRES DE. Do fenômeno do “simultaneus processus” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2023, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63877/do-fenmeno-do-simultaneus-processus. Acesso em: 23 dez 2024.
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