RESUMO: O presente artigo examina o instituto do superendividamento, analisando o Lei n. 14.181/2021 e do Decreto n. 11.150/2022 à luz dos parâmetros constitucionais de proteção do consumidor. Inicialmente, destaca-se a concessão de crédito como direito fundamental, cuja concessão deve ser orientada para garantir sua função social. A Lei define superendividamento como a incapacidade do consumidor, de boa-fé, quitar todas as dívidas de consumo sem comprometer o mínimo existencial. A abrangência de proteção conferida pelo Decreto n. 11.150/2022 é criticada pela doutrina e instituições democráticas, especialmente em razão da insuficiência da renda mínima estabelecida em relação a realidade econômica. O artigo propõe uma análise crítica das mudanças legislativas, explorando implicações no equilíbrio entre proteção do consumidor e acesso ao crédito, ressaltando a necessidade de normas para preservar mandamentos constitucionais. Destaca-se os desafios encontrados na prática forense para tratamento do superendividamento, ressaltando a necessidade de parâmetros claros e objetivos para estruturar a atuação do judiciário na solução dos casos práticos. A legislação existente mostra-se insuficiente, evidenciando a urgência de diretrizes claras para garantir tratamento isonômico a questão e proteção efetiva aos direitos constitucionais do consumidor em situação de superendividamento.
Palavras-chave: superendividamento; crédito responsável, mínimo existencial; proteção do consumidor.
1.INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o escopo de analisar o instituto do superendividamento, ponderando sua dimensão constitucional e a materialização da proteção por meio da edição da Lei n. 14.181/2021 e do Decreto n. 11.150/2022. Inicialmente, optou-se pela análise da literatura técnica acerca da sociedade de consumo atual, verificando que o crédito assume contornos de direito fundamental para o acesso a bens duráveis, de modo que a sua concessão deve ser organizada de modo a assegurar o cumprimento de sua função social. Em seguida, passa-se a analisar os princípios e mandamentos constitucionais de proteção do consumidor e sua projeção em relação ao superendividamento.
A Lei n. 14.181, de julho de 2021, introduziu alterações no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto do Idoso, visando aprimorar a regulação do crédito ao consumidor e tratar do superendividamento. Um marco significativo dessa mudança é a introdução do Art. 54-A no CDC, que define superendividamento como a manifesta incapacidade do consumidor, de boa-fé, quitar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial. Contudo, a generalidade das definições legais e doutrinárias revela-se insuficiente para guiar a aplicação prática do instituto na jurisdição. A necessidade de critérios mais específicos torna-se evidente, especialmente diante da obrigação estabelecida pelo Art. 54-A, §1º, do CDC, que demanda a edição de regulamentação pelo poder executivo.
A delegação dessa responsabilidade ao Poder Executivo, que foi realizada pela publicação do Decreto n. 11.150/2022, confere flexibilidade e adaptabilidade às mudanças no cenário socioeconômico. No entanto, essa abordagem não está isenta de desafios, como o risco de adoção de critérios inadequados e insuficientes que vulnerem a proteção ao consumidor.
Críticas ao decreto, provenientes de instituições e da doutrina, levaram a ajustes no valor considerado como mínimo existencial, mas permanecem desafios quanto à adequação desse valor à realidade econômica. O artigo propõe uma análise crítica das mudanças legislativas e regulatórias, explorando as implicações práticas no contexto jurídico e social, especialmente no equilíbrio entre a proteção do mínimo existencial e o acesso ao crédito para consumidores de renda mais baixa.
2.DESENVOLVIMENTO
A problemática do superendividamento é objeto de estudos há algum tempo, mas somente em 2021 foi formalmente estabelecida uma tutela legal especificamente direcionada ao tratamento dessa situação. A constatação empírica revela a urgência de abordagens cautelosas e políticas eficazes, alinhadas com as características específicas do contexto atual, visando mitigar os desafios associados ao superendividamento. Especialmente considerando o contexto da sociedade de consumo que expõe os consumidores a estratégias de mercado cada vez mais sofisticadas.
O filósofo francês Gilles Lipovetsky explica que vivemos a terceira fase da sociedade de hiperconsumo, caracterizada pelo “consumo emocional”. O autor explica que os atos de compra na contemporaneidade são relacionados a própria expressão da identidade e a satisfações emocionais e corporais, sensoriais, estéticas, lúdicas e distrativas (LIPOVETSKY, 2007). Nas palavras do autor:
Em profundidade, o consumo emocional aparece como uma forma dominante quando o ato de compra, deixando de ser comandado pela preocupação conformista com o outro, passa para uma lógica desinstitucionalizada e intimizada, centrada na busca das sensações e do maior bem-estar subjetivo. A fase III significa a nova relação emocional dos indivíduos com as mercadorias, instituindo o primado do que se sente, a mudança da significação social e individual do universo consumidor que acompanha o impulso de individualização de nossas sociedades (LIPOVETSKY, 2007, p. 45-6).
Para viabilizar o acesso a bens de consumo, a sociedade capitalista emprega estratégias econômicas, notadamente o financiamento e o crédito, serviços que têm se democratizado progressivamente. Nesse contexto, o acesso ao crédito passa a ser compreendido como um direito fundamental na sociedade contemporânea, à medida que consubstancia a “a prerrogativa de inserção, inclusão no mercado de consumo” (OLIVEIRA, 2015). Andréa Luisa de Oliveira ensina que o crédito, por sua relevância e grande valor para inclusão social no mercado de consumo, pode ser compreendido como um “bem público, a ser tutelado juridicamente pelo Estado, face às suas tessituras jurídicas fundamentais, alicerçadas na justiça e solidariedade social positivadas na Magna Carta.” (OLIVEIRA, 2015). Ainda, destaca a autora:
De tal modo, no plano internacional, o crédito, espelha relevante valor mundial, porque inerente das relações de consumo, e por tal, base de diretivas universais, expressos em tratados internacionais. Porquanto, a proteção consumerista, e nesta inclusa o crédito ao consumo, atualmente é sopesada como direito humano fundamental de terceira dimensão ou geração (OLIVEIRA, 2015, p. 61).
Andréa Luisa de Oliveira prossegue ainda enfatizando a relação do direito ao crédito com os direitos da personalidade:
Dessarte, a fundamentalidade creditícia retratada, torna-se mais evidente quando sua análise é feita às avessas: o descrédito econômico, enquanto míngua da confiança pública na aptidão de honrar suas relações obrigacionais, é, no mercado de consumo, densa ofensa à honra. Por isso, o resguardo do direito da personalidade entrelaça-se ao direito de crédito, pois revela-se como manifesta valorização do patrimônio moral. [...] Isso porque, este conceito, tido por alguns como econômico, perpassa por valores essenciais do homem: sua honra, dignidade, justiça, solidariedade social. Este é o objetivo em tela: demonstrar que, considerar o crédito como direito fundamental é considerá-lo atrelado a valores e direitos tidos constitucionalmente como fundamentais (OLIVEIRA, 2015, p. 66).
Assim, o contrato de concessão de crédito deve observar sua função social, a fim de permitir a preservação da dignidade humana e o mínimo existencial, ao mesmo tempo em que proporciona a saudável movimentação de bens de consumo e estimula a economia. Por outro lado, a “disfuncionalização creditícia, a síncope sistêmica, eis que, perpetrada com abusos contratuais, com desmerecimento à boa-fé negocial, que atenta não à singularidade, mas sim a coletividade de consumidores [...]” (OLIVEIRA, 2015, p. 116).
A compreensão da proteção ao direito do crédito como um direito fundamental implica a necessidade de sua concessão orientada pela função social, visando evitar impactos adversos, como a vulneração da dignidade humana decorrente do superendividamento. Diante desse cenário, a intervenção estatal e a organização legal se tornam imperativas, estabelecendo balizas que promovam uma concessão de crédito responsável. Benjamin, Marques e Bessa (2022) explicam que a “a atual função social do direito privado é a proteção da pessoa em face dos desafios da sociedade massificada, globalizada e informatizada atual”.
3.DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONSUMIDOR
A Constituição Federal de 1988 é reconhecida como sendo instituidora de uma revolução paradigmática que rompe com a tradicional visão individualista, instituindo um novo “direito privado, cuja característica marcante é a proteção da pessoa humana, valor que inspira e reforça, especialmente o reconhecimento da proteção entre todos, dos mais fracos, os vulneráveis da sociedade de massas contemporânea” (MARQUES; MIRAGEM, 2014). O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor pelo constituinte implicou em previsão específica de tutela garantir a equidade e a justiça nas relações comerciais.
No art. art. 5º, XXXII, da Constituição há a previsão de que o Estado deverá promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. Já no art. 170, a defesa do consumidor é incluída como princípio da ordem econômica. Finalmente, o art. 48 do Ato das Disposições Transitórias estabelece o mandamento ao legislador ordinário, a fim de que elabore um Código de Defesa e Proteção do Consumidor, o que foi realizado pela Lei 8.078/1990. Assim, “a Constituição Federal de 1988 é a garantia institucional da existência e efetividade do direito do consumidor no Brasil” (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2022).
Nesse contexto, a proteção do consumidor transcende a esfera legal, adquirindo status de salvaguarda constitucional que demanda a atenção e ação constante das instituições e da sociedade em prol de uma justiça distributiva e da preservação dos direitos fundamentais. Portanto, “a proteção do consumidor no Brasil é um princípio, um princípio de ordem constitucional” (MARQUES; MIRAGEM, 2014), que decorre da premissa de necessidade de proteção desse grupo em razão de sua especial vulnerabilidade.
Ademais, a concretização dos direitos foi garantida pela determinação de sistematização e regulamentação, que foi cumprida pelo legislador com a edição da Lei 8.078/1990, que ficou conhecido como Código de Defesa do Consumidor, constituindo o principal instrumento normativo da temática.
Relevante pontuar ainda que a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais são erigidas a objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, Constituição Federal).
4. DA PROTEÇÃO LEGAL ESPECÍFICA DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO
Em 1º de julho de 2021 foi publicada a Lei n. 14.181 que alterou o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) com a finalidade de “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”. Assim, pretende-se que os acréscimos respeitem a estrutura do CDC, beneficiando-se de sua estabilidade legislativa e principiológica (BENJAMIN; MARQUES; LIMA; VIAL, 2022).
5.DO CONCEITO JURÍDICO DE SUPERENDIVIDADO
A Lei n. 14.181/2021 adota o modelo objetivo de qualificação, que toma por base “a situação econômica do lar, comparando o valor total das dívidas com a renda e patrimônio do devedor” (ALMEIDA, 2018, p. 22). Foi rechaçado, portanto, o modelo subjetivo, que “leva em consideração percepção do próprio indivíduo devedor sobre sua capacidade de reembolsas das dívidas vincendas” (ALMEIDA, 2018, p. 22) e o modelo administrativo que pondera os “registros oficiais nos Tribunais (no Judiciário) para medir o superendividamento” (ALMEIDA, 2018, p. 22).
O Art. 54-A, §1º, do CDC, introduzido pela nova lei, define superendividamento como sendo a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação. Em seguida, o segundo parágrafo do dispositivo afirma que o instituto abarca quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
A doutrina identifica a existência do superendividamento ativo e passivo. No caso do superendividado passivo a situação de insolvência não é resultado de escolhas deliberadas, mas sim de circunstâncias extraordinárias ou imprevistas conhecidas como “acidentes da vida” (ALMEIDA, 2018). A Pandemia da Covid-19, por exemplo, implicou na redução repentina de milhares de famílias que, em razão de restrições sanitárias ou limitações médicas, foram impedidas de manter sua atividade laborativa.
Os superendividados ativos, por outro lado, contribuem diretamente para a situação ao ultrapassar suas capacidades econômicas, sem a ocorrência de efeitos excepcionais que justifiquem um aumento no padrão de consumo (ALMEIDA, 2018). No grupo de superendividados ativos, ocorre uma subdivisão entre conscientes e inconscientes. Estes últimos são aqueles que, agindo de boa-fé, abusam do crédito sem considerar o impacto financeiro em seus orçamentos, devido à falta de informação adequada sobre os encargos contratuais ou pela concessão de crédito irresponsável por parte dos fornecedores (ALMEIDA, 2018), que, em muitos casos, recorrem a estratégias de marketing agressivo para formalização de contratos bancários.
Por fim, os superendividados ativos conscientes são aqueles que, agindo de má-fé, acessam o crédito com intenção deliberada e pré-ordenada de não realizar o pagamento dos credores (ALMEIDA, 2018). Estes estão excluídos da proteção outorgada pela Lei n. 14.181/2021, que elege a boa-fé como critério distintivo para acesso aos institutos protetivos:
Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 3º O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.
Importante pontuar, ainda, que o art. 140-A, §1º, do Código de Defesa do Consumidor exclui do processo de repactuação de dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, as dívidas de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. Contudo, a opção legislativa de incluir tal restrição apenas no capítulo que trata do plano de pagamento implica no reconhecimento de que tais dívidas, embora não possam ser coercitivamente repactuadas, devem ser consideradas para a aferição da condição de superendividado do consumidor.
6.ANÁLISE DO DECRETO N. 11.150/2022 À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO
A generalidade das definições legais e doutrinarias são insuficientes para orientar a análise da prática da incidência do instituto aos casos concretos na prática judiciária. A experiência forense indica que a delimitação dos consumidores aptos a utilizar o procedimento de repactuação, conforme estabelecido, requer critérios mais específicos. Especialmente considerando que o. Art. 54-A, §1º, do CDC, em sua parte final, sinalizou a obrigação do poder executivo em editar regulamentação sobre o tema.
A atribuição ao Poder Executivo da faculdade de definir os parâmetros quantitativos e qualitativos relacionados ao conceito de "comprometimento do mínimo existencial do consumidor" confere vantagens substanciais, principalmente no que tange ao ajuste ágil e eficaz às mutações do cenário social. Essa prerrogativa possibilita a rápida adequação dos parâmetros, considerando que o processo legislativo é moroso e nem sempre consegue acompanhar a dinamicidade das variáveis econômicas, como inflação e taxas de juros. Além disso, a delegação dessa responsabilidade ao Executivo permite que a regulamentação se alinhe à política econômica adotada, refletindo escolhas políticas do governo eleito.
Entretanto, é imperativo ressaltar que essa opção também implica em desvantagens significativas. Há o risco de adoção de critérios quantitativos inadequados, insuficientes e incompatíveis com uma existência digna, comprometendo a efetividade das medidas destinadas à salvaguarda do mínimo existencial do consumidor. Ademais, é possível, ainda, que sejam ignorados critérios qualitativos como a hipervulnerabilidade de alguns grupos, que, em razão de barreiras de origem física, sensorial e social dependam de mais recursos para exercício pleno de seus direitos fundamentais, como é o caso dos idosos. Assim, essa prerrogativa do gestor público, quando mal-empregada pode conduzir ao esvaziamento da política de proteção ao consumidor superendividado.
Nessa perspectiva, o Decreto n. 11.150 publicado no Diário Oficial da União em 27 de julho de 2022 foi criticado pela doutrina e suscitou manifestação de diversas instituições, como a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), sob o argumento de que ele contradiz as diretrizes da norma a qual é subordinado.
O decreto previa em sua redação original que a renda mínima seria o percentual de 25% do salário-mínimo:
Art. 3º - No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário-mínimo vigente na data de publicação deste Decreto.
Define ainda o decreto que a apuração da preservação ou do não comprometimento do mínimo existencial seria realizada considerando a base mensal, por meio da contraposição entre a renda total mensal do consumidor e as parcelas das suas dívidas vencidas e a vencer no mesmo mês (art. 3º, §1º, Decreto n. 11.150/2022).
Merece destaque a redação original do parágrafo segundo do art. 3º, §1º que indica que o reajustamento anual do salário mínimo não implicaria em atualização do parâmetro fixado no caput do artigo. No ano de 2022 o salário mínimo era de R$ 1.212,00 (mil duzentos e doze reais), de modo que a renda mínima seria, portanto, R$ 303,00 (trezentos e três reais)[1].
A problemática se agrava em razão da previsão do art. 4º, do Decreto que exclui da aferição do cálculo do comprometimento do mínimo existencial as seguintes dívidas:
Art. 4º Não serão computados na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo. Parágrafo único. Excluem-se ainda da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial:
I - As parcelas das dívidas:
a) relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário;
b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais;
c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval;
d) decorrentes de operações de crédito rural;
e) contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES;
f) anteriormente renegociadas na forma do disposto no Capítulo V do Título III da Lei nº 8.078, de 1990;
g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor;
h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; e
i) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos;
II - Os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; e
III - os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas.
A análise do decreto indica que o mesmo exorbitou os contornos do instrumento normativo que regula, afrontando o caráter meramente regulamentar do Decreto Presidencial (ANADEP, Peça eletrônica 1 da ADPF 1.006/DF, 2022). Como visto acima, foram impostas restrições que inexistem na Lei 14.181/2021, que, no art. 54-A, §3º do CDC, afasta a incidência do instituto apenas nos casos de dívidas contraídas de má-fé ou contratação de produtos de luxo de alto valor. A lei não exclui da revisão legal, por exemplo, dívidas decorrentes de operação de crédito consignado, como fez o decreto.
No dia seguinte a publicação do decreto acima indicado (28/07/2022) o Conselho Nacional de Defensores e Defensoras Gerais assinou nota técnica intitulada “A inconsistência do Decreto n. 11.150/2022 e o esvaziamento inconstitucional da Lei 14.181/2021” a qual pontua com precisão a questão acima exposta:
O disposto no art. 4º, caput e parágrafo único, do Decreto, viola frontalmente o CDC ao excluir determinadas dívidas de consumo do conceito de mínimo existencial, visto que o CDC expressamente consignou, a partir da atualização promovida pela Lei 14.181/2021, que a prevenção e tratamento do superendividamento “englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.” (o §2º do art. 54-A, CDC). Nem mesmo a hipótese excessiva do §1º do art. 104 do CDC é capaz de regularizar o mencionado dispositivo do decreto, uma vez que a exclusão de certas modalidades de crédito do processo de repactuação foi apenas para a negociação (processo de repactuação de dívidas), mas não para fins de fixação do conceito de mínimo existencial (CONDEGE, 2022, p. 3-4).
Na prática, segundo o Decreto n. 11.150/2022, apenas teria direito a repactuação de dívidas o consumidor que, após o abatimento das parcelas mensais decorrentes de contrato de consumo, tivesse disponível valor inferior a R$ 303,00 (trezentos e três reais), que corresponderia ao mínimo existencial. Ou seja, considerou o Decreto que tal montante seria suficiente para suportar despesas com alimentação, moradia (inclusive as de financiamento imobiliário e despesas de condomínio), saúde, transporte, cultura e lazer.
A reação apresentada pelas instituições com vocação constitucional de defesa da população vulnerabilizada se pauta também em critérios objetivos. Segundo a “Organização das Nações Unidas (ONU), está na linha da miséria quem sobrevive com até U$ 1,90 por dia (R$ 304,95 ao mês, no câmbio de hoje)” (CONDEGE, 2022, p.3 – sem grifos no original).
No contexto nacional, é essencial observar que o “mínimo essencial” do Decreto n. 11.150/2022 na sua redação originária (R$ 303,00 - trezentos e três reais) era inferior ao custo de uma cesta-básica no ano de sua edição. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE) publicou nota à imprensa indicando que, em 2022 (ano da publicação original do decreto), a cesta básica de menor valor nas capitais do Brasil foi registrada em Aracaju no valor de R$ 521,05 (quinhentos e vinte e um reais e cinco centavos) e a de maior custo em São Paulo atingindo R$ 791,29 (DIEESE, 2023, p.1)[2].
A situação se agrava ao considerar os elevados custos de moradia digna no Brasil, especialmente em capitais, seja a título de aluguel, seja pelo pagamento de financiamentos, que, conforme mencionado, são desconsiderados para aferição da renda comprometida. Conforme Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, famílias com renda de até R$ 1908,00 (mil novecentos e oito reais) comprometem 39,2% deste valor com despesas de habitação. Ainda segundo a pesquisa, alimentação representa o segundo maior custo, comprometendo 22% da renda dessa parte da população brasileira[3].
Diante da análise do custo de bens e serviços como alimentação e moradia, é essencial notar que a determinação do art. 54-A, §1º, do Código de Defesa do Consumidor é de que fosse assegurada renda mínima para garantia do mínimo existencial. No momento de evolução da doutrina de proteção aos direitos humanos, entende-se que mínimo existencial não diz respeito a mera garantia de sobrevivência física, mas a existência com dignidade. Nesse sentido:
Neste contexto constitucional, o mínimo existencial não se limita ao mínimo vital, isto é, ao estritamente necessário à sobrevivência, garantindo, assim, uma vida condigna à pessoa superendividada, preservando-lhe o bem-estar físico, mental e social e salvaguardando-lhe os direitos sociais à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e infância – tudo nos termos do art. 6º da Constituição Federal de 1988, do art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, dos artigos 11 e 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto 591/92) e art. 11 do Decreto 678/92 (CONDEGE, 2022, p.2 – sem grifos no original).
Existem precedentes do Supremo Tribunal Federal que desde 2011 adotam tal conceito como razão de decidir:
A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. [...] (STF, Segunda Turma, ARE 639337 AgR, Relator Min: Celso de Mello, Data de Julgamento: 23.08.2011, Data de publicação: 15.09.2011)
Diante desse contexto, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos – ANADEP na petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com pedido de medida liminar distribuído perante o Supremo Tribunal Federal sob o n. 1006 (Relatoria do Min. André Mendonça), afirma que o Decreto afrontou decisões políticas estruturantes constitucionais, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana; os direitos sociais previstos no art. 6º, da CF (direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e a infância); ao dever do estado de promover a proteção ao consumidor (art. 5º, inciso XXXII, CF); ao princípio constitucional da vedação ao retrocesso social (ANADEP, Peça eletrônica 1 da ADPF 1.006/DF, 2022).
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 1.006/DF está apensa a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 1.005/DF apresentada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, que trata do mesmo tema, e ambas tramitam pelo rito do art. 12, da Lei 9.868/99 ainda pendentes de julgamento.
Ponderando as críticas contundentes da majoritária doutrina, em junho de 2023 foi publicado o Decreto n. 11.567/2023 que alterou o Decreto n. 11.150/2022 estabeleceu que “considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a R$ 600,00”.
Apesar do aumento no valor da renda mensal mínima, ainda subsistem as questões acima. Especialmente porque não foram alterados os critérios utilizados para aferição do que seria “renda livre”, mantendo a determinação de que dívidas com empréstimos consignados e financiamentos habitacionais, por exemplo, são desconsideradas no cálculo do superendividamento.
O Decreto n. 11.567/2023 também não estabeleceu critérios qualitativos com o fim de atender a especificidades regionais e pessoais de grupos de consumidores hipervulneráveis como idosos e pessoas com deficiência, que em razão das barreiras físicas, sensoriais e sociais dependem de recursos materiais diversos para participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Em relação ao critério quantitativo, nota-se que o aumento não é suficiente para assegurar o acesso à bens e serviços necessários à vida digna no ano de 2023. A última pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, publicada em 07/11/2023, indica que, apesar da redução do custo em algumas capitais, R$ 521,96 (quinhentos e vinte e um reais e noventa e seis centavos) ainda é o menor preço da cesta básica, encontrada em Aracaju. O maior custo entre as capitais foi registrado em Porto Alegre: R$ 739,21 (setecentos e trinta e nove reais e vinte e um centavos)[4] para compra da cesta básica. Ainda, segundo o mesmo instituto, o salário mínimo necessário para atendimento suficiente e adequado, em outubro de 2023, das necessidades materiais essenciais seria de R$ 6.210,00 (seis mil duzentos e dez reais)[5].
A questão é complexa, porque, se R$ 600,00 não é suficiente para garantia do mínimo vital em algumas capitais, considerar como mínimo existencial o valor equivalente a um salário-mínimo acarreta consequências desfavoráveis para o acesso ao crédito por parte dos consumidores de renda mais baixa. Tal determinação implicaria no desestímulo das instituições financeiras a concederem crédito a essa parcela da população, considerando a probabilidade de inadimplência, o que agravaria a situação financeira desses consumidores e a prejudicaria o acesso a bens de consumo duráveis.
Por conseguinte, a complexidade inerente a essa problemática demanda uma análise minuciosa por parte dos gestores públicos, visando a implementação de políticas que conciliem a proteção do consumidor com a manutenção da viabilidade do mercado de crédito. É necessário que os parâmetros adotados sejam capazes de impedir o superendividamento, sem, contudo, inviabilizar o acesso ao crédito pela população de renda mais baixa, o que provocaria sua exclusão do mercado consumidor pela via transversa.
7.QUESTÕES JURÍDICAS CONTROVERTIDAS E JURISPRUDÊNCIA SOBRE A PROTEÇÃO DA RENDA MÍNIMA
A falta de resposta eficaz da legislação e do decreto às questões práticas inerentes ao superendividamento deixa uma lacuna significativa, resultando na ausência de uma orientação objetiva, geral e segura. Essa omissão prejudica de maneira substancial a segurança jurídica no tratamento dessas situações, colocando em destaque a necessidade urgente de diretrizes mais claras para orientar a prática judiciária e oferecer soluções efetivas para casos concretos de superendividamento.
Inicialmente, nota-se na prática forense confusão entre o instituto do superendividamento com o limite máximo de comprometimento da renda com empréstimos consignados prevista na Lei 10.820/2003. Embora exista intersecção entre as questões, o âmbito de tutela dos diplomas normativos é diverso.
A proteção do superendividamento se relaciona a definição de uma renda mínima, enquanto a Lei 10.820/2003 limita ao patamar de 40% dos rendimentos brutos, após os descontos obrigatórios o percentual que pode ser reservado para financiamentos com desconto em folha. Para ilustrar a situação, um funcionário público que perceba R$ 20.000,00 (vinte mil reais) de remuneração e que tenha comprometimento de 50% de sua renda bruta com empréstimos consignados fará jus a adequação, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei 10.820/2003. Por outro lado, não é possível considerar, ponderando a realidade brasileira, que pessoa que percebe, após pagamento das dívidas, renda líquida de R$ 10.000,00 (dez mil reais) não seja capaz de ter acesso ao mínimo existencial e faça jus aos institutos previstos para proteção da pessoa superendividada.
Outra que questão que se coloca na prática judiciária é a compreensão do que seria efetivamente considerado como “parcelas de dívidas vencidas e a vencer no mês”, como determina o art. 3º, §1º, do Decreto n. 11.567/2023. Apesar de estabelecer diversas restrições no paragrafo único do art. 4º, o decreto não esclarece se devem ser incluídos no computo da renda comprometida despesas de consumo de prestação continuada, cujo vencimento ocorrem todos os meses, como é o caso do pagamento de contas para acesso a serviços básicos de água, energia elétrica, telefone, internet. A inclusão de tais dívidas de consumo no cálculo da renda comprometida modifica substancialmente os limites do instituto.
Não parece ser essa, contudo, a abrangência que pretendeu dar a Lei 14.181/2021 ao incluir o art. 54-A no Código de Defesa do Consumidor, que, em seu paragrafo primeiro indica expressamente que deve ser analisada a possibilidade de pagamento das “dívidas de consumo”. A análise do contexto de criação do instituto indica que ela pretende possibilitar a repactuação de obrigações de consumo anteriormente firmadas cujas parcelas se protraem no tempo, a fim de salvaguardar uma renda mínima que possa suportar as despesas para acesso aos bens e serviços de prestação continuada, entre outros. Ou seja, não se pretende realizar juízo hipotético do custo mensal dos serviços essenciais, que, evidentemente, sofrem variações conforme o consumo, mas garantir que seja reservado para o pagamento deles renda suficiente.
Finalmente, também há controvérsia jurisprudencial acerca da constitucionalidade do critério quantitativo utilizado pelo Decreto 11.150/2022. A análise dos precedentes julgados no ano de 2023 pelos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo, do Estado do Rio de Janeiro e do Estado do Paraná indicam que a renda mínima tem sido aferida na prática forense em conformidade com o Decreto 11.150/2022[6].
Contudo, existem precedentes jurisprudenciais que afastam a incidência do valor previsto no referido decreto e determinam a análise da preservação do mínimo existencial considerando as circunstâncias do caso concreto. Nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUPERENDIVIDAMENTO. AÇÃO DE CONCILIAÇÃO E DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS. PROCEDIMENTO. ADEQUAÇÃO AO CDC. AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO OBRIGATÓRIA. PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS DA PARTE AUTORA. MÍNIMO EXISTENCIAL. DEFINIÇÃO NO MOMENTO OPORTUNO. Cuida-se de recurso contra decisão inicial em ação de conciliação e repactuação de dívidas fundada no CDC, para situação de superendividamento. Decisão que indeferiu a liminar e deixou de designar audiência de conciliação, emprestando-se rito comum à ação. Recurso para suspender as cobranças efetuadas em detrimento da autora. Primeiro, ratifica-se a tutela recursal antecipada. Determinação para regularização do procedimento com a realização da audiência de conciliação (ato inicial previsto na lei, obrigatório e indispensável). [...]. Por último, inoportuna fixação do valor do mínimo existencial. Esse ponto deverá ser apreciado por ocasião do plano voluntário na audiência de conciliação ou no plano judicial compulsório. Até o momento, não se verificou situação processual capaz de viabilizar pronunciamento em sede do agravo de instrumento, repita-se, pela falta de informações da autora e que deverão ser colhidas (e provadas) ao juízo de primeiro grau ou ao administrador que possa a ser eventualmente nomeado. O magistrado de primeiro grau não estará vinculado de maneira absoluta ao parâmetro do Decreto nº 11.150/2022, isto é, a uma renda de 25% do salário mínimo. Esse parâmetro deverá ser analisado a partir das condições do caso concreto e poderá ser elevado, em especial para aquilo que deverá ser garantido ao consumidor para sua subsistência com o núcleo familiar, notadamente despesas com moradia, alimentação, água, luz, vestuário, educação, tributos e outras dívidas (não sujeitas ao processo de repactuação e inevitáveis). DECISÃO REFORMADA. AGRAVO PARCIALMENTE PROVIDO, COM OBSERVAÇÃO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2270965-19.2022.8.26.0000; Relator (a): Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 17ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/03/2023; Data de Registro: 16/03/2023)
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no dia 30/10/2023 publicou decisão da 9ª Câmara Cível no julgamento da Apelação Cível 1.0000.22.241259-5/003 que determinou a remessa ao Órgão Especial para julgamento da constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 11.150/2022, em respeito ao art. 97, da Constituição Federal:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDAS - - PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO - VIA INADEQUADA - PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA - AFASTADA - SUPERENDIVIDAMENTO - CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO E DE CARTÃO DE CRÉDITO -DECRETO 11.150 - INCONSTITUCIONALIDADE - CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO - ENCAMINHAMENTO AO ÓRGÃO ESPECIAL. 1. Compete ao Juiz, como destinatário da prova, sua valoração e o exame da conveniência em sua produção, podendo indeferir aquelas provas não necessárias ao seu convencimento, sem que isso configure cerceamento ou violação à ampla defesa. 2. Em razão de recente alteração legislativa, o artigo 3º, do Decreto-Lei n.º 11.150 passou a vigorar com o seguinte teor: "no âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a R$ 600,00 (seiscentos reais)". 3. Dispõe o artigo 97 da Constituição Federal, "Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.". (TJMG - Apelação Cível 1.0000.22.241259-5/003, Relator(a): Des.(a) Fausto Bawden de Castro Silva (JD Convocado), 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/10/2023, publicação da súmula em 30/10/2023)
Nesse cenário, os robustos questionamentos referentes à constitucionalidade do Decreto 11.150/2022, mesmo após sua revisão em 2023, geram insegurança quanto ao montante da renda mínima existencial e aos parâmetros para sua avaliação. Essa constatação implica a instauração de um cenário de insegurança jurídica, demandando a urgente análise pelo Supremo Tribunal Federal das Ações de Controle Concentrado de Constitucionalidade, a fim de orientar a atuação do judiciário. Espera-se que o precedente vinculante seja formado de modo a salvaguardar integralmente os direitos do consumidor, efetivando os preceitos fundamentais estabelecidos na constituição.
8.CONCLUSÃO
A evolução da sociedade de consumo, conforme descreve Lipovetsky, transformou o acesso ao crédito em um direito fundamental, implicando na “funcionalização” do acesso ao crédito. Portanto, a concessão do crédito deve observar a sua função social, o que implica na necessidade de estabelecimento de normas e parâmetros pelo Estado, com a finalidade de preservar mandamentos constitucionais de proteção ao consumidor e atingir objetivos constitucionalmente estabelecidos como a redução das desigualdades sociais e regionais.
A Lei 14.181/2021, publicada no contexto da Pandemia da Covid-19, pretendeu introduzir no ordenamento jurídico a proteção legal do consumidor superendividado, estabelecendo normas, conceitos e procedimentos para orientar a concessão de crédito responsável e permitir a repactuação de dívidas do consumidor, assegurando uma renda mínima existencial. A lei, contudo, delega ao poder executivo a definição do valor da renda mínima essencial, permitindo a sua rápida adequação conforme modificação de variáveis econômicas e alinhamento à política econômica adotada. Entretanto, essa opção não é isenta de desafios, à medida que permite que sejam adotados critérios quantitativos inadequados e insuficientes, esvaziando a proteção conferida pela lei.
O Decreto n. 11.150/2022, posteriormente modificado pelo Decreto n. 11.567/2023, buscou regulamentar a situação, mas críticas persistem, especialmente em relação aos valores estabelecidos. A ausência de ajustes adequados aos custos reais de vida, somada à manutenção de critérios questionáveis, coloca em xeque a eficácia das medidas. O aumento no valor da renda mínima para R$ 600,00, conforme estabelecido pelo Decreto n. 11.567, ainda se revela insuficiente diante do custo de vida, ponderando que, em algumas capitais esse valor é insuficiente para a aquisição de uma cesta básica.
Diante desse contexto, foram apresentadas duas ações de controle concentrado de constitucionalidade. A primeira Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 1.005/DF foi apresentada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e a segunda pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos – ANADEP n. 1.006/DF. As ações afirmam, entre outros, que o Decreto afrontou decisões políticas estruturantes constitucionais, além de extrapolar os limites da lei que pretendia regular.
Pondera-se ainda que, para além das críticas acima, a legislação e o decreto são omissos em relação a parâmetros objetivos e seguros que possam orientar a aplicação do instituto aos casos práticos. Não foi delimitado pelo instituto se serão consideradas como “dívidas de consumo” vincendas as referentes a acesso a bens e serviços de prestação continuada, como serviço de saneamento básico, energia, telefone e internet. Essa omissão prejudica de maneira substancial a segurança jurídica no tratamento dessas situações, colocando em destaque a necessidade urgente de diretrizes mais claras para orientar a prática judiciária e oferecer soluções efetivas para casos concretos de superendividamento.
A complexidade da questão exige uma abordagem equilibrada por parte dos gestores públicos, visando a proteção do consumidor sem prejudicar o acesso ao crédito. Isso porque a simples eleição do salário-mínimo como renda mínima existencial implicaria na vedação de acesso ao crédito pela parte substancial da população que aufere essa renda.
A legislação e os decretos vigentes mostram-se insuficientes para lidar efetivamente com o superendividamento, resultando em insegurança jurídica. A controvérsia jurisprudencial e a necessidade de um precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal evidenciam a urgência de diretrizes claras para orientar a prática judiciária e oferecer soluções efetivas para casos concretos de superendividamento.
9. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alvimar Virgílio de. O fenômeno do superendividamento individual na sociedade de consumo brasileira. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo: Defesa do consumidor: temas atuais e desafios, São Paulo, v. 3, n. 16, p. 18-32, jan. 2018. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/documents/20122/bc525f2e-9b05-5d0a-10b5-f843fd642ede. Acesso em: 12 nov. 2023.
BENJAMIN, Antonio Herman; MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia Martini. Comentários à Lei 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei Nº 8.078. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 16 nov. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Peça Eletrônica 1 nº ADPF 1.006/DF. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP. Brasília, 2022.
BRASIL. Decreto N. 11.150/2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11150.htm. Acesso em: 16 nov. 2023.
BRASIL. Decreto N. 11.567/2023. BRASÍLIA. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11567.htm#art3. Acesso em: 16 nov. 2023.
BRASIL. Lei N. 10.820/2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.820.htm. Acesso em: 16 nov. 2023.
CONSELHO NACIONAL DAS DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS GERAIS (CONDEGE). A inconsistência do Decreto 11.150/2022 e o esvaziamento inconstitucional da Lei 14.181/2021. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.defensoria.ce.def.br/wp-content/uploads/2022/07/Nota-T%C3%A9cnica-Inconsist%C3%AAncia-do-Decreto-11.150.2022.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2023.
DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE), Em 2022, preço da cesta básica aumenta em todas as 17 capitais pesquisadas. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202212cestabasica.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2023.
DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE); Outubro: custo da cesta básica fica menor em 12 capitais. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2023/202310cestabasica.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2023.
DIEESE - análise cesta básica - Salário mínimo nominal e necessário - setembro/2023. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html>. Acesso em: 12 nov. 2023.
Inadimplência cresce e atinge 40,15% da população adulta do país, aponta CNDL/SPC Brasil. Disponível em: <https://site.cndl.org.br/inadimplencia-cresce-e-atinge-4015-da-populacao-adulta-do-pais-aponta-cndlspc-brasil/>. Acesso em: 11 nov. 2023.
Inadimplência tem pequena queda e atinge 66,56 milhões de consumidores, aponta CNDL/SPC Brasil. Disponível em: <https://cdljovem.org.br/inadimplencia-tem-pequena-queda-e-atinge-6656-milhoes-de-consumidores-aponta-cndlspc-brasil/>. Acesso em: 11 nov. 2023.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Tradução Maria Lucia Machado.
MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O Novo Direito Privado e a Proteção dos Vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. E-book. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/77791989/v2/document/100079720/anchor/a-100007961. Acesso em: 11 nov. 2023.
OLIVEIRA, Andréa Luisa de. FUNÇÃO SOCIAL DO CRÉDITO E O CONSUMO (IN)SUSTENTÁVEL DOS SERVIÇOS BANCÁRIOS NA PÓS-MODERNIDADE. 2015. 179 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/18044/1/FuncaoSocialCredito.pdf. Acesso em: 11 nov. 2023.
POF 2017-2018: Famílias com até R$ 1,9 mil destinam 61,2% de seus gastos à alimentação e habitação. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25598-pof-2017-2018-familias-com-ate-r-1-9-mil-destinam-61-2-de-seus-gastos-a-alimentacao-e-habitacao>. Acesso em: 12 nov. 2023.
STF, Segunda Turma, ARE 639337 AgR, Relator Min: Celso de Mello, Data de Julgamento: 23.08.2011, Data de publicação: 15.09.2011.
TJSP; Apelação Cível 1000256-27.2023.8.26.0128; Relator (a): Alberto Gosson; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Cardoso - Vara Única; Data do Julgamento: 05/10/2023; Data de Registro: 06/10/2023.
TJRJ 0045258-28.2023.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). JOSÉ CARLOS PAES - Julgamento: 24/08/2023 - DECIMA SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 1).
TJPR - 15ª Câmara Cível - 0042370-62.2022.8.16.0014 - Londrina - Rel.: DESEMBARGADOR LUIZ CARLOS GABARDO - J. 07.10.2023.
TJSP; Agravo de Instrumento 2270965-19.2022.8.26.0000; Relator (a): Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 17ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/03/2023; Data de Registro: 16/03/2023.
TJMG - Apelação Cível 1.0000.22.241259-5/003, Relator(a): Des.(a) Fausto Bawden de Castro Silva (JD Convocado), 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/10/2023, publicação da súmula em 30/10/2023
Últimas da Internet: Bolsonaro assina decreto que regulamenta normas relativas ao super endividamento. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2022/07/27/ultimas-da-internet-bolsonaro-assina-decreto-que-regulamenta-normas-relativas-ao-super-endividamento>. Acesso em: 12 nov. 2023.
[1] Últimas da Internet: Bolsonaro assina decreto que regulamenta normas relativas ao superendividamento. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2022/07/27/ultimas-da-internet-bolsonaro-assina-decreto-que-regulamenta-normas-relativas-ao-super-endividamento>. Acesso em: 12 nov. 2023.
[2] DA CESTA BÁSICA AUMENTOU NAS, O. V. Em 2022, preço da cesta básica aumenta em todas as 17 capitais pesquisadas. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2022/202212cestabasica.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2023.
[3] POF 2017-2018: Famílias com até R$ 1,9 mil destinam 61,2% de seus gastos à alimentação e habitação. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25598-pof-2017-2018-familias-com-ate-r-1-9-mil-destinam-61-2-de-seus-gastos-a-alimentacao-e-habitacao>. Acesso em: 12 nov. 2023.
[4] DE, E. O.; DOS ALIMENTOS BÁSICOS DIMINUIU EM, O. V. DO C. Outubro: custo da cesta básica fica menor em 12 capitais. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2023/202310cestabasica.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2023.
[5] DIEESE - análise cesta básica - Salário mínimo nominal e necessário - setembro/2023. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html>. Acesso em: 12 nov. 2023.
[6] Nesse sentido: TJSP; Apelação Cível 1000256-27.2023.8.26.0128; Relator (a): Alberto Gosson; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Cardoso - Vara Única; Data do Julgamento: 05/10/2023; Data de Registro: 06/10/2023; TJRJ 0045258-28.2023.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). JOSÉ CARLOS PAES - Julgamento: 24/08/2023 - DECIMA SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 1); TJPR - 15ª Câmara Cível - 0042370-62.2022.8.16.0014 - Londrina - Rel.: DESEMBARGADOR LUIZ CARLOS GABARDO - J. 07.10.2023.
Analista Judiciária do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM); Pós-Graduada em Direito da Diversidade e da Inclusão ( Faculdade Legale) e Pós-Graduanda em Prática Penal Avançada ( Faculdade Focus).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOCATELI, Leticia Vilela. Dever constitucional de proteção do consumidor superendividado: questões jurídicas controvertidas sobre a Lei 14.181/2021 e o Decreto N. 11.150/2022 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2023, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63889/dever-constitucional-de-proteo-do-consumidor-superendividado-questes-jurdicas-controvertidas-sobre-a-lei-14-181-2021-e-o-decreto-n-11-150-2022. Acesso em: 23 dez 2024.
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